A natureza monstruosa em Vidas Secas, de Graciliano Ramos

Luiz Eduardo da Silva Andrade

RESUMO: Este trabalho[1] objetiva analisar as representações da natureza monstruosa no romance Vidas secas (1938), de Graciliano Ramos. Ao contrário do romantismo a natureza do modernismo de 30 perde toda a sua exuberância e é apresentada como fator que fragmenta ou mesmo destrói a nação e o “brasileiro”. A seca tem aspectos monstruosos porque cerceia a vida dos sertanejos do Nordeste e expõe um lado seco, doído e desumano do Brasil, tanto no aspecto paisagístico como principalmente no social, a expulsar e/ou matar de fome e sede quem vive nela.

PALAVRAS-CHAVE: Graciliano Ramos; Vidas secas; Nação; Natureza; Monstro

ABSTRACT: This study aims to examine the representations of the monstrous character in the novel Vidas secas (1938) of Graciliano Ramos. Contrary to the romanticism period, the nature of modernism of 30 loses all its exuberance and is presented as a factor that breaks or destroys the nation and the “brazilian.” The drought has since approximately the monstrous aspects of life man the Northeast of Brazil side and shows a dry, inhuman hurt and Brazil, both in appearance and mainly in the social landscape, to expel and/or kill those who hunger and thirst to live it.

KEYWORDS: Graciliano Ramos; Vidas secas; Nation; Nature; Monster

 

A modernidade tem como principal característica a renovação do pensamento, no sentido de valorizar a razão e afastar as supostas trevas impregnadas na cultura desde a Idade Média. Renovar o pensamento significa reavaliar os valores morais, éticos, religiosos, a economia, a política e a história da humanidade, Marshall Berman (2005) atribui ao Fausto, de Goethe, a qualidade de obra fundamental na inauguração do novo tempo na literatura, embora reconheça que a modernidade tenha começado bem antes. A revolução social empreendida pela modernidade é acompanhada pelo nascimento e desenvolvimento do capitalismo, Berman diz que Fausto passa por metamorfoses, as quais vão desde o descobrimento da modernidade, o desapego ao passado, até a fase empreendedora em que ele já está tomado pelo espírito moderno.

Para chegar ao auge Fausto é impelido pela modernidade a fomentar idéias as quais refletem o avanço tecnológico oriundo da Revolução Industrial. A industrialização acelerou a renovação do pensamento a tal ponto que na modernidade “tudo que é sólido desmancha no ar”, diz Berman repetindo Marx. Da velocidade das linhas de produção saiu a inspiração para o nascimento das vanguardas européias, período artístico que teve como principal temática a reavaliação do que era arte aliada à tentativa de estar sempre na dianteira do pensamento. As correntes vanguardistas transgrediram os valores artísticos do século XIX e abriram o século XX com a pretensão de romper totalmente com a formalidade que prendia o homem moderno a um passado, fosse ele estético ou sentimental.

No mesmo período o Brasil vive a efervescência da República, seguida da tentativa de criar uma identidade nacional idealizada desde o século XIX com o romantismo. A natureza assume papel principal no projeto de nação brasileira, não é à toa que os símbolos nacionais, como a bandeira e o Hino Nacional, exaltam o verde das matas, as riquezas minerais e o céu azul (CHAUI, 2001). Maria Zilda Cury (2000) sintetiza muito bem como funcionava essa idéia de unicidade da nação brasileira:

O final do século XIX brasileiro, por exemplo, teve nas imagens de nação um momento privilegiado de sua configuração como discurso fundador, caracterizado principalmente pela invenção de um passado inequívoco, inquestionável, único para a nação. A multiplicidade ampla e contraditória da cultura é substituída, no discurso da fundação, por referências harmoniosas e homogeneizadas, tomadas como representantes exclusivas. (p. 216)

Nas narrativas do romantismo estão presentes o discurso formador e fundador: o primeiro refere-se ao processo histórico no qual a estética romântica participa e a fundação é responsável pela fomentação da identidade nacional, cultural, bem como da idéia de nação (CHAUI, 2001). Em poesia destaca-se Gonçalves Dias e em prosa José de Alencar (BOSI, 1975, p. 101). A literatura do período caracteriza-se por ser nacionalista, as imagens impressas são pautadas na exuberância da natureza brasileira, através dessa apologia os autores encontram subsídios para enaltecer o Brasil e solidificar uma nacionalidade. A função da natureza, então, é construir uma ideologia, um princípio modelador da nação aliado à representação de personagens da classe média do século XIX, a fim de criar um vínculo de identificação positiva do brasileiro com o país recém-independente e em processo de implantação da república.

Chegado ao início do século XX, o modernismo pinta o cenário natural com cores e formas as quais valorizam a heterogeneidade tanto da paisagem quanto do povo brasileiro. Antonio Candido e José Castello dizem que “a denominação de Modernismo abrange, em nossa literatura, três fatos intimamente ligados: um movimento, uma estética e um período” (1979, p. 7). Foi um movimento que teve seu ponto de partida “oficial” na Semana de Arte Moderna em 1922, tinha como principal motivação movimentar a estética vigente e aportuguesada da nossa literatura. Ainda que sua delineação não fosse clara, nem pontualmente unificada, os modernistas visavam sobretudo a ruptura com o passado  para a partir do ideal vanguardista construir uma literatura brasileira. O primeiro momento modernista – de 1922 a 1930 – ficou conhecido por “modernismo de combate”, neste decênio os artistas tornaram-se conhecidos por terem uma postura radical, crítica e aguda. A produção modernista inaugurou uma proposta estética, um comportamento crítico, uma linguagem, novos significados para o conceito de cultura, por foi isso rotulada de antiarte e/ou contracultura, segundo Affonso Ávila (1975, p. 29).

No final dos anos 20, a partir da publicação de A bagaceira (1928), de José Américo de Almeida, inicia-se outra vertente literária denominada modernismo de 30, caracterizada por ser uma literatura socialmente mais crítica que a anterior. A natureza muda totalmente e passa a ser declarada hostil ao brasileiro, o nordestino sofre com a seca do semi-árido e já não se conforma somente em observá-la porque agora ele é vítima da degradação gerada pelo espaço. A harmonia que unia o homem ao ambiente numa simbiose é rompida, no romance de 30 a seca só retira do sertanejo a condição de viver.

Em Vidas secas (1938), de Graciliano Ramos, a seca do sertão aparece como um mal, portanto, pode-se falar em natureza monstruosa devido aos largos períodos de estiagem que destroem a vida. A partir desse aspecto, este trabalho tratará da natureza seca como um monstro questionador e problematizador do ideal de nação.

Caracterização da obra

Vidas secas foi escrito durante a segunda geração modernista. A crítica literária classifica como uma obra regionalista e de denúncia social, a obra trata e configura ficcionalmente o sertão do Nordeste brasileiro. Narra a vida de uma família de retirantes da seca, bem como descreve o ambiente hostil e a exploração dos donos de terra. O título do livro faz menção à secura presente em todos os espaços, desde a ambientação da caatinga com sua vegetação seca, amarela e cinzenta, ao pensamento das personagens, que se comunicam guturalmente como bichos. Ainda sobre o título da obra, Álvaro Lins (1977) comenta que ela representa

um estado de razão, de lucidez, de sobriedade. O critério que preside a sua obra [do autor]  é um critério de inteligência; a sua potencia é cerebral e abstrata. Não sei, por isso, que misteriosa intuição para se definir levou o Sr. Graciliano Ramos a escolher o título Vidas Sêcas para um de seus romances. Sem dúvida, todos os seus personagens são de fato “vidas secas”. Os seus personagens e este estilo em que se exprime o romancista. (p. 144)

Baseado ainda no título observa-se também que as relações sociais são limitadas, esbarram sempre na animalização do homem pela natureza, ironicamente a personagem mais humana na obra é a cachorra Baleia, ela adentra em todos os ambientes, intermedia a relação entre Fabiano e os dois filhos, mesmo quando morre permanece no pensamento do todos da família.

O fato de ser uma obra regionalista não quer dizer que Graciliano Ramos sobreponha o aspecto da denúncia social à analise psicológica, ambos são divididos: à medida em que ele caracteriza as relações externas das personagens, mapeia também os pensamentos delas, inclusive os de Baleia. O sertanejo de Vidas secas não é visto como pitoresco, sentimental ou jocoso, muito pelo contrário, as agruras do sofrimento causado pela seca o transformaram num ser à beira do “homem-bicho”, que não se lamenta, não fala, nem desiste de viver, porém esmorece como ser humano. A narrativa é feita em terceira pessoa, predominantemente com o discurso indireto livre a fim de penetrar no mundo introspectivo das personagens, já que esses não têm o domínio da linguagem culta necessária para estabelecer comunicação.

O romance é dividido em treze capítulos os quais se interligam, porém apresentam um caráter fragmentário, pois são postos como contos, episódios que acabam se interligando com uma certa autonomia. É uma obra singular onde os personagens não passam de figurantes em meio a uma condição de vida que se sobressai, na qual a história é secundária e o próprio arranjo dos capítulos do livro obedece a um critério aleatório. Segundo Nelly Novais Coelho (1974, p. 66) a forma de construir a obra foi feita através de quadros e cada um deles é o estudo psicológico de seus personagens. Em cada capítulo procura-se analisar as “pessoas” através de seu comportamento, que está voltado para a natureza e para os animais, já que existe uma fusão entre eles. Através de seus personagens Graciliano vai oferecendo aquele mundo complexo posto em voga pelo modernismo, isto é, o mundo debruçado nas surpreendentes galerias do espírito humano. Por isso, além de uma literatura social, o autor procura desvendar os mistérios que envolvem os seres humanos.

O livro tem um ciclo porque é aberto com o capítulo “Mudança”, em que eles estão na estrada e termina com “Fuga”, quando novamente eles vão embora. Dentro desse projeto vários elementos mudam de lugar, inclusive os sentimentos das personagens, só o que não muda é a seca, tanto na abertura quanto na finalização ela é brava do mesmo jeito.

Em “Mudança” os retirantes Fabiano, o pai, Sinha Vitória, a mãe, os dois meninos, acompanhados pela cachorra Baleia e o papagaio de estimação atravessavam a caatinga. Desalentados pela seca, pelo sol forte, pela fome, pela sede, pelo cansaço de existirem seguem arrastando seus pertences por dentro dos leitos dos rios esturricados. Já que estamos tratando das representações da natureza na obra é interessante notar que a narrativa é aberta com a caracterização do local, para depois entrarem em cena as personagens:

Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala. (RAMOS, 1977, p. 9)

Procuravam um lugar, na caminhada o menino mais novo acaba desmaiando de fraqueza. Fabiano nesse momento parece influenciado negativamente pelas circunstâncias impostas pela seca, pensa em abandonar o menino ali, o narrador ainda marca que estava com o “espírito atribulado”, mas não o abandona. Externamente era um sujeito magro, seco, cambaio e internamente tinha o coração duro, fechado, espinhoso, como se a seca fizesse parte de sua natureza e através do tempo ele fosse tomando a forma de um cacto.

As aves de rapina aparecem no céu, são urubus à espera de alguma morte. A natureza parece que encerra o grupo naquele lugar, porque o chão era seco tórrido, ao redor a caatinga ameaçava e no céu os urubus cercavam. Do segundo capítulo em diante as partes focam a vida de cada personagem interligando-as, forma-se uma rede de modo que descentraliza a atenção do leitor, já que não é dado privilégio. A linguagem é capaz de criar as situações para cada um, porém todos estão nivelados, afinal todos estão na mesma situação de abandono pelo Estado e privados de qualquer conforto, esse é o drama da narrativa. Coutinho (1978) afirma que

Fabiano é obrigado a aceitar e transigir com as diversas condições que o mundo lhe impõe. Não pode comprar a cama de lastro de couro, única aspiração de Sinha Vitória; não pode reagir à cobrança de impostos, manifestação imediata da ação de um governo do qual não participa e que lhe aparece como um fetiche exterior e distante; não pode se livrar da absurda prisão. (p.106)

O romance é estruturalmente fragmentado, Rubem Braga (2001) considerou a obra como um “romance desmontável”, inicialmente foi escrita como contos esparsos, somente mais tarde é que eles foram reunidos tornando-se um romance ou novela, a depender da classificação, entretanto esse aspecto não será alvo de nossa discussão aqui.O que une os capítulos é a paisagem que se torna o fio condutor a perpassar todo o enredo.As personagens são figurantes em meio à natureza que devora suas vidas, como Bosi (1975, p. 451) afirma a reificação do homem é tão intensa que se chega ao ponto de não haver diferença entre os objetos e as pessoas. Fazendo isso a narrativa rompe com uma tradição na literatura brasileira em que o homem sempre dominou ou apreciou a natureza.

São personagens rejeitadas pela natureza e pelas pessoas, não há a integração nacional, esse tipo de brasileiro não é aceito pelo ambiente físico nem pelo humano. Este é um dos pontos centrais da narrativa, o contato entre essas partes não é positivo. Sendo que natureza aparece no centro, dividindo tudo, porque tanto o fazendeiro, quanto os moradores da cidade sofrem a seca, ela fragmenta em todos os níveis as relações na obra, tanto dos retirantes entre si, quanto do contato deles com o mundo. Álvaro Lins (1977) diz que

o ambiente que os envolve tem qualquer coisa de deserto ou de casa fechada e fria. Nenhuma salvação, nenhum socorro virá do exterior. Os personagens estão entregues aos seus próprios destinos. E não contam sequer com a piedade do romancista. O Sr. Graciliano Ramos movimenta as suas figuras humanas com uma tamanha impassibilidade que logo indica o desencanto e a indiferença com que olha para a humanidade. Que me lembre, só a um dos seus personagens ele trata com verdadeira simpatia, e este não é gente, mas um cachorro, em Vidas Sêcas . (p. 146)

Alfredo Bosi (1975) comenta que “Graciliano via em cada personagem a face angulosa da opressão e da dor. Naquele, há conaturalidade entre o homem e o meio; neste, a matriz de cada obra é uma ruptura” (p. 451). As personagens são figurantes em meio a natureza que devora suas vidas, como Bosi afirma a reificação do homem é tão intensa que se chega ao ponto de não haver diferença entre os objetos e as pessoas. Fazendo isso a narrativa rompe com uma tradição na literatura brasileira em que o homem sempre dominou a natureza.

No episódio do Soldado Amarelo, ainda no segundo capítulo, a figura do governo só ajuda a desagregar. Primeiro começa com o fiscal da prefeitura que não deixa Fabiano vender a carne de porco sem pagar imposto, depois com o Militar que considerou o fato de Fabiano ter se retirado da mesa de cartas uma ofensa, prendeu Fabiano, humilhou-o na cadeia. Em cárcere, durante a noite inteira, sua mente não se acerta, fica confusa, uma mistura de revolta e desalento, contudo mostra-se conformado com a surra. É possível ver isso na passagem seguinte:

Então porque um sem-vergonha desordeiro se arrelia, bota-se um cabra na cadeia, dá-se pancada nele? Sabia perfeitamente que era assim, acostumara-se a todas as violências, a todas, as injustiças. E aos conhecidos que dormiam no tronco e agüentavam cipó de boi oferecia consolações: – “Tenha paciência. Apanhar do governo não e desfeita.” (RAMOS, 1977, p. 35)

Outro ponto a ser marcado é o capitulo “Inverno”, há uma preparação positiva para as chuvas, no entanto quando elas chegam a destruição não pára, havia o risco de enchente e  precisariam fugir novamente e viver com os preás. Então, vê-se que o problema do sertanejo não é com a seca somente, mas com a natureza, fato que rompe com a harmonia romântica das representações naturais. Pelo contrário, a hostilidade da caatinga em Vidas secas só auxilia na fragmentação do ideal nacional.

Otto Maria Carpeaux (2000) marca a cisão feita por Graciliano entre a cidade e o interior, ainda que a caatinga hostilize os sertanejos na cidade eles sofrem ou sofreriam mais, porque é na cidade que estão todos os vícios e outros problemas sociais. Haja vista que Fabiano apanhou do Soldado Amarelo porque se desentenderam num jogo de baralho. No capítulo “Festa”, as personagens vão à cidade, participam da missa e Fabiano bebe em demasia passando por outros problemas. Carpeaux argumenta que para Graciliano “não é o sertão o culpado; Vidas Secas é o seu romance relativamente mais sereno, relativamente mais otimista. O culpado é – superficialmente visto numa primeira aproximação – a cidade”. (p. 238)

Chegando ao penúltimo capítulo, “O mundo coberto de penas”, a presença das aves de arribação representava a aproximação do novo período de estiagem. Fabiano tentava matá-las atirando, porém em vão.  Era a luta contra o destino, contra a natureza cruel. Depois Fabiano vai compreender o porquê de as aves trazerem a desgraça. O que deve ser destacado aí é que a narrativa é dissonante da tradição na nossa literatura, ironicamente por causa de uma ave, “um bicho tão pequeno”, como diz Fabiano, a natureza criadora agora hostiliza o homem. Isso mostra o quão frágil é a relação entre eles, pois ela em todas as instâncias devora a vida.

A natureza como um mal

Vidas secas é um romance em que a caracterização da natureza fará parte não só da paisagem como também adentrará no espírito das personagens, as quais são fisicamente secas e psicologicamente áridas também.

A seca, em seus vários níveis, agride tanto a vida quanto a concepção de natureza brasileira bela cunhada no século XIX, as plantas são amarelas, cinzentas, os galhos poderiam dar idéia de fragilidade por serem finos, contudo eram cheios de espinhos, o verde não passava de manchas na tela presentes aqui e acolá. Não havia água, os rios estavam torrados pelo sol, o leito rachado e onde havia água era na verdade lama, revelando a condição sub-humana, animalesca em que viviam os sertanejos. Os animais da narrativa na maioria das vezes são aves de rapina – urubus e aves de arribação –, ou seja, animais caçadores que para sobreviverem precisam matar. A sobrevivência desses bichos depende da morte de outros, quando não trazem consigo a desgraça, basta ver quando os pássaros chegam ao sertão matando o gado, bebendo a água dos açudes e ameaçando atacar os retirantes em viagem. Fabiano percebe a destruição chegando pelo céu quando ele vê “de repente, um risco no céu, outros riscos, milhares de riscos juntos, nuvens, o medonho rumor de asas a anunciar destruição”. (RAMOS, 1977, p. 120)

Esses são alguns dos aspectos maléficos da seca, há outros como o sol tórrido, a fome, as mazelas sociais apresentadas através da figura do patrão, do Soldado Amarelo em relação a Fabiano. São monstros a se alimentarem da desgraça alheia, Julio Jeha (2007a) dirá que os “monstros corporificam tudo que é perigoso e horrível na experiência humana” (p. 7). Os monstros ameaçam, sua potencialidade é destruidora, por isso causam medo, horror e demarcam os espaços fronteiriços do que é possível à experiência humana.  A natureza em Vidas secas perde o tom romântico, a caatinga é uma ameaça à sobrevivência, o sertanejo bucólico de outrora cede espaço a um homem duro, grosso e calado, o qual da experiência com a seca só obteve a desgraça de ver a morte diariamente, além de ser expulso da sua terra. O sentimento nacionalista da literatura do século XIX é abandonado e aquilo que dava orgulho ao brasileiro – a natureza –, no romance de 30 hostiliza a vida dele.

Julio Jeha (2007b, p. 9) compreende o mal como uma privação. No caso da nossa obra a seca priva o homem de várias coisas, sendo que a maior de todas é a possibilidade de viver, a qual se reduz a uma intermitência, uma luta constante pela sobrevivência. Baseado em Paul Ricoeur, Jeha diz que para caracterizar o mal até as palavras faltam, como se o indizível se traduzisse somente pela experiência negativa, talvez por isso as personagens da narrativa são quase mudas pois falar não resolveria nada, só sabe como é o mal causado pela estiagem quem a vivencia. Como exemplo dessa ineficiência da linguagem há a passagem em que Sinha Vitória prefere não dar ouvidos ao menino mais velho e explicar a ele o que é inferno. Se ele não tem noção é porque não sente como ela que o inferno já é a vida deles na caatinga, sendo assim falar não resolveria:

Ele nunca tinha ouvido falar em inferno. Estranhando a linguagem de Sinha Terta, pediu informações. Sinha Vitoria, distraída, aludiu vagamente a certo lugar ruim demais, e como o filho exigisse uma descrição, encolheu os ombros. (RAMOS, 1977, p, 57)

O texto é metalingüístico na forma como Graciliano Ramos concebe suas personagens, o ambiente e a estrutura da obra. Além de a narrativa recortar um dado momento histórico, uma paisagem e um tipo de ser humano, a linguagem que caracteriza as personagens não se diferencia e é nivelada com a que cria o ambiente: ambos são secos, amarelos, duros, espinhosos, fechados e magros. Como já foi mencionado anteriormente, a ordenação dos capítulos da obra não é padronizada, bem como o pensamento das personagens, tudo é fragmentado da mesma forma como a percepção humana sobre o mundo e os fenômenos.

Ainda sobre a citação anterior, faltava a Sinha Vitória palavras para explicar ao menino o que era inferno, como se a situação vivida fosse tão má que dispensasse as palavras. São nesses pontos que a narrativa imprime uma linguagem criadora do ambiente – infernal – e ao mesmo tempo questiona o que é esse mal vivido pelos nordestinos, se o mal da seca não era um inferno. Lembrando que o inferno para o imaginário popular – principalmente desde a Idade Média – está associado a um lugar quente, cheio de demônios, onde as pessoas pagam pelos seus pecados. A partir daí Vidas secas indaga se aquelas pessoas merecem sofrer daquela forma, do que são culpadas ou se é a condição natural, social, cultural que as impôs àquela vida. Esse ponto da narrativa marca a cisão entre o paraíso tropical que é o Brasil do romantismo e o modernismo com a sua realidade crua dos que penam há muito tempo no sertão.

A interpretação da natureza como algo ruim não é novidade do século XX, Em O mal no pensamento moderno, Susan Neiman (2003) situa o início da idéia de mal na modernidade no século XVIII, com o terremoto ocorrido em Lisboa, em 1755. Por causa dele morreram muitas pessoas, ao ponto de vários estudiosos europeus da época escreverem sobre os terremotos, inclusive um dos grandes iluministas: Immanuel Kant. Na época e durante muito tempo Lisboa foi referência para se comparar, determinar algo ruim, fosse em matéria de catástrofe natural ou em situações corriqueiras, tragédia sobrepujada somente no século XX com o massacre de Auschwitz e mais recentemente com o atentado terrorista do 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos.

Quando se fala em mal logo surge a noção de moralidade, ligada principalmente à ação individual de alguém contra uma moral religiosa, no entanto o mal pode estar intrinsecamente ligado a uma situação desagradável diante de qualquer circunstância, seja ela física ou metafísica. A natureza negativa, a depender da referencialidade, situa-se, segundo Jeha (2007b), tanto no plano metafísico como físico para causar alguma destruição, ele diz:

a morte pode ocorrer por causa tanto da luta pela sobrevivência quanto por catástrofes naturais. A natureza, assim, parece operar num regime de mal metafísico, pois seus ciclos de vida e morte, criação e destruição continuam inexoravelmente. (p. 15)

Sua monstruosidade está no fato de ela ser capaz de habitar a fronteira tensionada entre o sim e o não da vida, entre a seca e a chuva, vale ainda ressaltar mais uma vez que nem no período das chuvas os sertanejos estão a salvo, eles continuam privados de comer, de moradia, são obrigados a fugir para onde vivem os preás. Para quem considera a natureza apenas como um mal físico, Jeha (2007b) diz que ela “afeta nossa integridade física ou mental” (p. 16) e não seria demasiado forçado ver a monstruosidade na natureza porque a seca revela o estado de “pobreza, opressão, e algumas condições de saúde” (p. 16) resultados da imperfeição na organização social. A natureza em Vidas secas consegue operar nos dois sentidos, basta ver a seguinte passagem em que o casal olha para o céu: “temendo que a nuvem se tivesse desfeito, vencida pelo azul terrível da obra, aquele azul que deslumbrava e endoidecia a gente”. (RAMOS, 1977, p. 14)

O monstro tem a capacidade de deslumbrar, por isso ele engana, causa espanto diante de sua força e tamanho. O gigantismo é uma das características do monstro, segundo Nazário (1998, p. 30), a figura do gigante está culturalmente associada à maldade, ainda mais que as personagens estavam olhando para o céu, um espaço teoricamente infinito à visão, mas que de tanto deslumbre endoidecia, mostrando a sua potência negativa. O azul agora é terrível, ao contrário do céu “risonho, límpido e profundo” do Hino Nacional, na obra ele significa a falta de chuva e aterroriza o casal porque sabem que terão de partir e voltar à incerteza mais profunda sobre o futuro. Voltando ao gigante, na letra do Hino diz que o Brasil é “gigante pela própria natureza”, a contrariar esta idéia em Vidas secas uma parte do país é devorada pela grandiosidade da natureza que fora outrora motivo de orgulho.

A monstruosidade da natureza

Etimologicamente o vocábulo “monstro” tem sua origem no latim “monstrum” e significa aquele que revela, desvenda algo. É impossível encerrá-los em conceitos, já que fazem parte do imaginário cultural, ou seja, estão livres de apreensões formais. Sua categorização é imprecisa, Miguel Mix (1993) dirá que ao monstro se apartam a estética e a ética, se fosse comparado a um homem, este homem seria um estrangeiro, ou seja, um indivíduo que está deslocado momentaneamente da realidade. O monstro é um ser fronteiriço, vive no limite do mundo conhecido e do imaginário, característica a qual corrobora o fato de ele ser categoricamente inapreensível.

Por não ser esteticamente definido suas qualidades variam, sua constituição é um mosaico de vários elementos que são agregados historicamente. Luiz Nazário (1998) define o ser monstruoso por sua “anaturalidade”, de modo que nunca estará em conformidade com o homem, a sociedade ou o momento histórico. Na verdade o monstro tem por função afetar a idéia de humanidade, questionar os valores e limites do que é ser humano, ainda mais no mundo moderno em que “tudo que é sólido desmancha no ar” e os valores são postos à prova constantemente. O monstro é um ser mutável, ele acompanha o tempo e o espaço, não é à toa que figuras monstruosas como o vampiro estão presentes desde o Egito Antigo, (LECOUTEUX, 2005), ou o acéfalo, as amazonas desde a Antiguidade grega (MIX, 1993). Esses seres metaforizam uma época e todos os valores pertinentes a ela, mediante este recorte o monstro inrompe trazendo consigo as indagações e perturbações sobre o espírito humano.

É nesse ínterim que a natureza em Vidas secas aparece.  Como no século XIX a literatura fomentou o ideal nacional através da representação de uma paisagem verde exuberante, no modernismo de 30 ela vai adquirir outras cores e passar a questionar o que é ser brasileiro, o que é a nação brasileira. A caatinga se opõe à amazônia da mesma forma que bem e mal são contrários, na obra de José de Alencar é possível verificar a bondade da natureza, já com Graciliano Ramos a imagem do semi-árido é negativa porque apresenta o mosaico paisagístico e social do Brasil, o homem, os bichos e a vegetação da seca desconstroem a visão romântica da nossa concepção histórica.

Para essa segunda parte da análise tomamos como ponto de partida a concepção de monstro presente no ensaio de Jeffrey Jerome Cohen (2007), intitulado “A cultura dos monstros: sete teses”. As teses tentarão mapear como as representações do monstro se configuram na cultura, o que ele significa, qual o sentido imbricado nas suas aparições. Obviamente as teses não resumem o que é o monstro, como Cohen mesmo diz: “alguns fragmentos serão aqui recolhidos e temporariamente colados para formar uma rede frouxamente integrada” (2007, p. 26).

Na primeira tese ele postula que “o corpo do monstro é um corpo cultural” (p. 26), ou seja, ele nasce de uma determinada sociedade e corporifica certo momento da cultura. A seca sempre foi presente no sertão, porém na década de 1930 houve uma muito forte, a qual forçou o governo a tomar alguma posição (VILLA, 2007). Tardia como sempre, serviu de motivo para lançar o questionamento sobre a situação do sertanejo, conta Albuquerque Jr. (2000) que José Américo de Almeida, deputado federal e interventor no estado da Paraíba nos anos 30, escreveu várias cartas ao então presidente Getúlio Vargas pedindo providências para a seca.

A seca na obra de Graciliano Ramos é um reflexo histórico, mas não somente, pois “como uma letra na página, o monstro significa algo diferente dele: é sempre um deslocamento; ele habita, sempre, o intervalo entre o momento da convulsão que o criou e o momento no qual ele é recebido – para nascer outra vez” (COHEN, 2007, p. 27). A presença da caatinga é uma metáfora de como o Brasil é diversificado culturalmente e de como os lugares mais distantes como o sertão se fazem presentes na configuração nacional, apesar do abandono estatal.

A nova concepção do sertão acorda a sociedade e rompe o pensamento de homogeneidade nacional, na época do Estado Novo era quase inacreditável para o país como um todo que pessoas passassem fome e morressem de sede, como se não houvesse imaginação o bastante para pensar a calamidade vivida no sertão. Quando na segunda tese Cohen (2007) escreve que o “monstro sempre escapa” ele se refere à categorização, ainda que se tente capturá-lo o monstro é inapreensível, a ele não se aplicam as convenções, ele deforma o que é comum, seu corpo é singular, mas não é limitado.

O monstro sempre escapa porque ele é indestrutível (NAZÁRIO, 1998). Justifica-se então o fato de ele sempre retornar, pois o que aterroriza, segundo Carroll (1999, p. 45), não é o monstro em si, mas o pensamento do monstro. O leitor sabe que a narrativa é uma ficção, mas a sugestão de que uma desgraça por recair sobre ele é que amedronta, sendo assim, o mal encarnado na monstruosidade nunca tem fim. No nosso romance vemos a indestrutibilidade do monstro quando Fabiano tenta matar as aves de arribação sem sucesso: “Levantou a espingarda, puxou o gatilho sem pontaria. Cinco ou seis aves caíram no chão, o resto se espantou, os galhos queimados surgiram nus. Mas pouco a pouco se foram cobrindo, aquilo não tinha fim”. (RAMOS, 1977, p. 117), e vendo a impossibilidade de livrar o sertão da seca conclui: “– Miseráveis. As bichas excomungadas eram a causa da seca. Se pudesse matá-las, a seca se extinguiria” (RAMOS, 1977, p. 120). A potência do monstro é justificada por sua indestrutibilidade

Não é por acaso que a seca no modernismo tem por função mostrar o quanto são porosas as fronteiras da nação, a produção cultural no Brasil do início do século XX levanta uma série de questões sobre a homogeneidade da nação propagada no século anterior. Como era um momento de efervescência sobre a questão nacional o monstro da seca surge para acirrar o debate, Cohen (2007) em sua terceira tese fala que “o monstro é o arauto da crise de categorias” (p. 30).  A seca anuncia e revela um Brasil entregue à mazela social, do povo explorado pelo fazendeiro, do governo que só atrapalha.

O meio físico influencia Fabiano de tal forma que sua identidade é questionada, ele já não é mais o sertanejo ingênuo e sofredor, aquele que Euclides da Cunha sintetizou na frase “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”. Fabiano não se presta a uma categorização definida, ele assume identidades de retirante, “bicho”, “homem”, “cabra” e um possível cangaceiro. Antonio Candido (1967), no livro Literatura e sociedade, tece uma crítica acerca da literatura regionalista do pré-modernismo, a dizer que é um “conto sertanejo artificial, pretensioso, criando um sentimento subalterno e fácil de condescendência em relação ao próprio país, encarando com olhos europeus nossas realidades mais típicas. O homem do campo é visto como pitoresco, sentimental, jocoso” (CANDIDO, 1967, p. 113). Vidas Secas recorta este sertanejo e a idéia de nação ao apresentar o avesso de uma natureza que é revelada na crueza da sua face de morte, a qual aborta a expectativa de futuro de Fabiano.

A caatinga representa um monstro na medida em que foi uma paisagem natural marginalizada na construção da imagem da nação, mesmo que tenha sido retratada no século XIX em O sertanejo, de José de Alencar, O cabeleira, de Franklin Távora ou em Os sertões, de Euclides da Cunha, já no século XX, ela sempre ficou em segundo plano sua função não passava de uma ilustração. Na sua quarta tese, Cohen (2007) diz que “o monstro mora nos portões da diferença” (p. 32), ele nasceu dentro de uma determinada cultura, mas constitui uma alteridade. A seca faz parte do Brasil, entretanto por motivos diversos foi esquecida reaparecendo, assim, como um outro dentro do mesmo. Em Vidas secas ela é tratada com realismo, participa ativamente da construção da narrativa influenciando as personagens, por isso que quando volta a cena na literatura brasileira é tão violenta.

Inclusive, voracidade e ferocidade são algumas das características do monstro descritas por Luiz Nazário (1998, p. 35). Essas propriedades estão representadas em nossa obra, sobretudo, pelas aves de rapina que matam o gado e ameaçam as pessoas:

O que indignava Fabiano era o costume que os miseráveis tinham de atirar bicadas aos olhos de criaturas que já não se podiam defender. Ergueu-se, assustado, como se os bichos tivessem descido do céu azul e andassem ali perto, num vôo baixo, fazendo curvas cada vez menores em torno do seu corpo, de Sinha Vitória e dos meninos. (RAMOS, 1977, p. 133)

A condição da natureza morar nos portões da diferença e ser uma alteridade não quer dizer que ela está ali para se mostrar somente, lembrando a primeira tese, quando a seca surge o seu corpo revela um constructo social, cultural, racial, econômico e sexual. Com relação ao social, podemos pontuar que a relação entre o Estado e a sociedade é questionada na obra, principalmente quando o Soldado Amarelo espanca Fabiano.

As plantas secas e espinhosas, os rios torrados, o sol escaldante e os bichos vorazes corroem a idéia de nação a partir do ponto em que desfigura o quadro pintado do Brasil, país que teve como motivação para a idéia de nação a natureza (CHAUI, 2001). Fazendo isso a seca se autodesconstrói – afinal, a caatinga também compõe a natureza brasileira – porque se ela está ali para questionar os valores da época ela não pode se fixar num único ponto, ela tem dupla referência de ser no mesmo instante o Mesmo e o Outro (COHEN, 2007), sendo assim, na medida em que critica a natureza nacional ela também está incluída na crítica. Vidas secas costura as duas paisagens – a floresta e a caatinga –, pois a seca não sobrepõe simplesmente e sim é agregada à paisagem nacional, explicando, assim, a justificativa para ela destruir, refazer e construir a nação.

A representação monstruosa não destrói simplesmente a imagem da natureza construída desde o romantismo, mas a idéia de que o Brasil é homogêneo e só há o “verde das matas”. Se a seca anulasse totalmente os outros ambientes naturais do país estaria ela somente substituindo-os, quando na verdade o monstro habita a linha tênue entre uma paisagem e outra, nunca deixando de problematizar e indagar.

O monstro surge para delimitar o espaço possível de ser cruzado, como se traçasse o limite entre a vida e a morte. A quinta tese postula que “o monstro policia as fronteiras do possível”, a seca proíbe a vida e demarca ao mesmo tempo os espaços culturais. O uso da seca no romance serve para mostrar que a natureza nem sempre permite tudo, ao contrário ela barra a passagem, é difícil para os retirantes saírem do sertão. Mesmo quando saem o narrador anuncia que sofrerão a partir dali outras agressões. Não tinham escolha, era maior do que eles a grandiosa natureza e sua força destruidora. Foram embora, chegariam a outro lugar no qual se plantariam, mostrando que o ciclo da vida deles não pararia ali. Muito menos a de outros nordestinos que fariam o mesmo percurso: “Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão continuaria a mandar gente para lá. O sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, Sinha Vitoria e os dois meninos”. (RAMOS, 1977, p. 134)

Como já foi dito anteriormente, o monstro é um ser fronteiriço, ele habita os limites do que é possível à experiência humana. Por isso que ele nasce nos locais mais longínquos e marginais da imaginação (CARROLL, 1999, p. 54), até os anos 30 o semi-árido nordestino foi uma paisagem pouco lembrada, salvo algumas obras já mencionadas, no entanto sabia-se que era um lugar distante, quente e seco, afinal era um dos “sertões do Brasil”. Para que exista o monstro é preciso que ele seja ameaçador, Carroll desenvolve a idéia a dizer que o monstro deve causar repulsa e medo, no caso da caatinga a seca manchava o cenário brasileiro romântico do século XIX e sugeria uma ameaça ao pensamento de nação. Apesar de não estar diretamente expresso em Vidas secas é necessário lembrar que desse ambiente seco nasceram movimentos como o messianismo de Antônio Conselheiro, em Canudos, o coronelismo e o cangaço, não dizemos aqui que a natureza condicionou totalmente o aparecimento deles, no entanto é sabido que culturalmente sempre é feita a associação entre o Nordeste, a caatinga e os movimentos citados.

Cohen (2007) na sétima e última tese diz: “o monstro está situado no limiar… do tornar-se” (p. 54), complementa ainda dizendo que eles “são nossos filhos” (p. 54). Mas como? Para se chegar a uma crítica à nação, a literatura brasileira precisou amadurecer várias idéias, por isso que o monstro é tão conhecedor do meio, ele sempre esteve no centro, mas foi empurrado para as margens. A paisagem seca esteve presente em narrativas do século XIX, mas servia somente como pano de fundo para o desenrolar das ações das personagens, como já foi visto. Graciliano Ramos dá materialidade a essa natureza monstruosa, através de uma linguagem enxuta e objetiva ele constrói um espaço com elementos ameaçadores da vida e da nação.

Além de ter uma influência psicológica sobre as personagens a natureza é materializada através dos vários elementos que a compõe. Nazário (1998) dirá que “os monstros são excessivamente concretos. Eles se apresentam peludos, musculosos, cheios de dentes, tentáculos, membros e garras” (p. 36). A caatinga tem todos os objetos da natureza bela do romantismo, no entanto na paisagem nordestina estão modificados: no semi-árido tem rio, mas é seco, tem plantas, mas são espinhosas, com galhos finos, tem aves, mas são de rapina, tem um céu azul, mas que endoidece e tem pessoas, mas reificadas e animalizadas. Com essas qualidades a monstruosidade da seca expõe os limites do tornar-se algo que ela não é, mas mesmo assim ela mostra, e de tão conhecedora do espaço, ela ataca a nação naquilo que dá mais orgulho ao país: a natureza.

Considerações finais

A relação entre natureza, já presente no romantismo, intensifica-se no modernismo. Primeiro, porque a partir das imagens da natureza desenvolvidas na literatura é possível ver a idéia de nação se formando e deformando ao mesmo tempo. Segundo, porque a natureza como espaço explorado pelo trabalho aumenta e conseqüentemente a transforma. Isto é, a imagem da natureza representada pelo romantismo seria mais exuberante e mítica, grosso modo, similar à do modernismo dos anos 1920. Já a natureza do modernismo da década de 1930 sofre uma reorientação ideológica e se torna hostil, tão hostil quanto a exploração do homem pelo homem.

Dessa forma, a natureza consegue agregar uma potência destruidora e influenciar a tudo e a todos, ao fazer isso Graciliano representa invertidamente a relação histórica entre o homem e a natureza, provando assim que o regionalismo e o universalismo não são incompatíveis. Muito pelo contrário, os seres mais primitivos da narrativa são os humanos, tanto o explorador – na figura do patrão, do cobrador e do Soldado Amarelo – quanto os retirantes, os quais tiveram sua humanidade retirada por uma série de fatores sócio-ambientais.

O monstro tem suas bases na cultura, no caso da natureza ela toma um corpo fragmentado em várias instâncias, ou seja, a exuberância da natureza brasileira traz consigo uma ideologia que perpassa a simples reflexão e vai além. Não é à toa que em pesquisa relatada por Marilena Chaui (2001), o povo brasileiro ainda tem seu orgulho pautado nas representações que faz da natureza. Isso revela que quando Vidas secas surge trazendo consigo um monstro, um ser culturalmente construído, a obra questionará os aspectos sociais, morais, éticos, espaciais, políticos e sexuais da nossa sociedade.

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[1] Este trabalho foi construído mediante o projeto de pesquisa intitulado Representações da natureza na literatura