Desespero e resistência: a exaustão na obra de Murilo Rubião

Aline Sobreira de Oliveira

RESUMO: Este texto busca realizar uma leitura de três contos do escritor mineiro Murilo Rubião desvinculada dos conceitos de literatura fantástica e de realismo mágico ou maravilhoso. A partir da noção de exaustão, desenvolve-se uma análise nos níveis temático e técnico dos contos “Bárbara”, “A fila” e “O edifício”.

PALAVRAS-CHAVE: Murilo Rubião. Exaustão. Desespero. Resistência. América Latina

ABSTRACT: This work seeks to perform an analysis of three short stories by brazilian writer Murilo Rubião which is disassociated from the concepts of fantastic literature and magical realism. From the notion of exhaustion, we analyze the short stories “Bárbara” (“Barbara”), “A fila” (“The line”) and “O edifício” (“The building”) with a thematic and technical approach.

KEYWORDS: Murilo Rubião. Exhaustion. Despair. Resistance. Latin America.

 

Não se pode dizer que a obra de Murilo Rubião não possui uma extensa fortuna crítica. Desde os anos 1940, quando publicou seu primeiro livro, O ex-mágico, até a atualidade, sua obra, marcada pelo insólito, tem motivado uma profusão de textos acadêmicos e jornalísticos. No entanto, é notável como a crítica ainda se sustenta, muitas vezes, nos conceitos já um tanto gastos de literatura fantásticarealismo mágico ou realismo maravilhoso que, se não são de todo inadequados, têm engessado a leitura dessa escrita singular no âmbito da literatura brasileira. Ensaiarei, então, uma leitura de certa forma desprendida, seguindo uma das grandes lições do escritor mineiro, que acredito ser a da caneta livre.

O ponto de partida de tal leitura é uma apropriação criativa de um trecho de uma entrevista concedida por Rubião, na qual ele diz: “Reelaboro minha linguagem à exaustão”. A palavra exaustão surgiu, então, como um presente dado pelo escritor, e a partir dela passou a ser pensada a noção de exaustão do possível. Em princípio, podemos dizer que tal noção representa um desgaste, um exagero ou um desequilíbrio, um movimento em direção ao limite de uma situação tida como possível, com conseqüências positivas ou negativas.

A noção de exaustão do possível mostrou-se útil uma vez que pode ser entendida tanto como uma temática como um procedimento técnico: enquanto tema, ilustra o aprisionamento do sujeito diante de uma situação comum que se estende absurdamente para o infinito, do que resulta o desespero e posterior resignação desse sujeito. Enquanto procedimento, entretanto, aponta para a liberdade da escrita, o movimento infinito da palavra que, isenta da ilusão de representar o que estiver fora dela, resiste ao que Costa Lima chamou de veto ao ficcional na literatura latino-americana.

Podemos encontrar a temática da exaustão do possível, ou seja, o desdobramento de uma situação comum ao nível absurdo, em pelo menos três contos de Murilo Rubião: “Bárbara”, “A fila” e “O edifício”.[1] O desequilíbrio do possível que gera o caos se dá, em cada um deles, num nível diferente: em “Bárbara”, há a desumanização de uma mulher devido à obesidade que lhe confere proporções monstruosas; em “A fila”, vemos a distensão do tempo para um sujeito que espera numa fila que todo dia parece se esforçar para mantê-lo preso, num desenrolar insólito que lembra as malhas do processo de Josef K.; já em “O edifício”, é o espaço que perde medidas concebíveis numa construção cujo objetivo é levantar um prédio de pavimentos ilimitados.

Outra característica comum aos três contos é a causa da exaustão do possível: ela é provocada por uma instância do mundo capitalista. Em “Bárbara”, a desumanização do sujeito ocorre devido ao consumismo; em “A fila”, a desproporção temporal se dá devido à burocracia, e em “O edifício”, o excesso espacial é causado pela megalomania. Essas três noções associadas aos contos podem ser entendidas como sínteses de importantes aspectos da cultura moderna: a efemeridade, o desejo desmesurado, o materialismo e a fetichização; a inflexibilidade, a ineficiência e a indiferença para com o outro; a ambição colossal, a monumentalização e a obsessão pelo excessivo.

Há nesses contos sempre um sujeito que, diante desses exageros, se vê oprimido e sem alternativas senão alimentar a máquina, seja do consumismo, da burocracia ou da megalomania – o marido de Bárbara se resigna em atender seus pedidos absurdos; o homem da fila, pela necessidade, se submete aos seus meandros; o engenheiro, não conseguindo convencer seus funcionários de que tal empreendimento é impossível de ser concretizado, se limita a resmungar pelos cantos e observar, triste, o aumento monstruoso do prédio.

Além disso, chama atenção a falta de utilidade dos empreendimentos engendrados pelas instâncias da modernidade: Bárbara fetichiza objetos que, extraídos de seu contexto (a água do mar na garrafa, a árvore extraída do terreno, o barco trazido para o solo), não têm função nem beleza: são como que representações da morte que o excesso anuncia. A razão pela qual Pererico espera por tanto tempo na fila para falar com o gerente da firma não é jamais explicitada, embora ele insista que se trata de um assunto urgente. O motivo de se construir um prédio tão alto, com número ilimitado de andares e cujas fundações demoraram mais de cem anos para ser terminadas, se existiu algum dia, perdeu-se no tempo com a morte de seus idealizadores.

Com relação ao conto “Bárbara”, pelo menos dois aspectos podem ser observados: o primeiro deles, a proporcionalidade existente entre o exagero do pedido e o exagero do corpo: Bárbara se desumaniza fisicamente à medida que seus pedidos se tornam também sobre-humanos. Além disso, a partir do episódio em que o marido lhe traz uma garrafa com água do mar no lugar do próprio mar e Bárbara, ao invés de se colerizar, se satisfaz, fica clara a esterilidade inerente a todos os seus desejos, que repercutirá ao longo do conto e está materializada também no raquitismo do filho. Extravagância e esterilidade: duas marcas do consumismo. O bom marido, diante de tais exageros, não tem outra escolha senão obedecer aos pedidos da esposa, o que acaba com seu ânimo, sua paz e seu dinheiro.

Em “A fila”, o personagem Pererico é submetido a uma fila absurda e infinita, permeada por corrupção e aleatoriedade. Os meandros da fila absurda e aleatória, encabeçada pela figura enigmática do poderoso porteiro Damião, fazem com que o pobre Pererico, homem do campo que vêm à cidade para tratar de um assunto sigiloso, perca anos de sua vida nas malhas da burocracia, lembrando um pouco o filme Brazildo inglês Terry Gilliam, produzido em 1985.

Resignado, perdido, tendo desperdiçado tanto tempo em uma fila que se desdobrava apenas em si mesma, que perdeu seu estatuto de via de acesso, Pererico volta para sua casa. Ao fim do conto, em que o homem está a caminho do campo, a indicação da fatal circularidade: “à medida que contemplava bois e vacas pastando, retornavam-lhe antigas recordações, esmaeciam as do passado recente”.[2] Pererico está de volta à terra que, em um ou outro momento, exigirá que retorne à cidade, lugar da lei, e se perca novamente nas malhas da burocracia.

Em “O edifício”, o engenheiro João Gaspar, contratado na juventude para terminar um edifício de ilimitados pavimentos, se vê no fim da vida impotente diante do projeto absurdo que insiste em se concretizar. Desprovido do poder e perdido num projeto que constatou ser de fato impossível, o engenheiro aos poucos se resignou a observar, com desânimo, a força invencível do prédio que teimava em subir. Mesmo as suas medidas intransigentes para interromper o trabalho, como a demissão de todos os funcionários, não impediram que eles continuassem o dever imposto por autoridades inimagináveis, trabalhando, por fim, “à noite e aos domingos, independente de qualquer pagamento adicional.”

Assim, podemos perceber como a exaustão de uma possibilidade, engendrada por uma instância moderna, leva os personagens ao desespero que, não sendo capaz de pôr fim à angústia, precede a resignação. A máquina – do consumismo, da burocracia e da megalomania – consome e esteriliza o sujeito, e, invencível, segue rumo ao infinito.

Enquanto procedimento narrativo, por outro lado, a exaustão do possível pode ser entendida como uma maneira de subverter os meandros de outra máquina: a do veto ao ficcional. A partir das bases sobre as quais se constrói a escrita enquanto representação, ou seja, sujeito, tempo e espaço, o desgaste dos seus limites cristalizados pela narrativa realista em nome de uma verossimilhança “domesticada” consegue demonstrar como, na verdade, a escrita, não falando de outra coisa senão de si mesma, não possui limitações.

A noção de veto ao ficcional foi desenvolvida por Luiz Costa Lima em três importantes trabalhos, reunidos recentemente sob o nome de Trilogia do controle. Interessam aqui suas reflexões acerca do veto ao ficcional na América Latina. Com o processo de independência dos países latino-americanos, a literatura adquire a função de escrever / inscrever a nação. Como lembra Michel Foucault em conversa com Gilles Deleuze, cabe, nas sociedades ocidentais, ao intelectual dizer a verdade: “O intelectual dizia a verdade àqueles que ainda não a viam e em nome daqueles que não podiam dizê-la: consciência e eloqüência.”[3] A classe literária latino-americana, constituída de intelectuais, detinha o poder e o dever de incluir seu país no mundo moderno através da afirmação de sua origem. Costa Lima observa que

No século XIX, o estudo da literatura se legitimara à medida que ela era tida como expressão dos Estados nacionais. Daí o prestígio da noção de clássico, que em si fundiria o idiossincrático nacional. Assim entendida, tomava-se a literatura como ingrediente básico da cultura, de cujo contato não se podiam afastar os bem-educados.[4]

Ainda que no século XX, com a gradativa complexificação dos Estado-nação modernos e com a influência das vanguardas européias, que se afastavam do objetivo representacional, engana-se quem pensar que na América Latina, pelo menos, a literatura se desvencilhou do compromisso com a história e a formação / consolidação da identidade nacional. No Brasil, dispondo de recursos técnicos vanguardistas e sob o argumento da piada, os modernistas continuaram a narrar a história do país. A identidade nacional se manteve no discurso modernista, mas agora, ao invés de uma identidade estanque, idealizada e revestida com uma roupagem européia, temos não mais a representação, mas a (suposta) apresentação da pluralidade de valores, cores, sons e paisagens, trazida para o discurso literário através da transgressão da linguagem erudita e aproximação da oralidade do povo.

O veto ao ficcional, então, continuaria a operar sub-repticiamente através de um nacionalismo literário “maduro”, não mais engajado em inscrever a nação, mas em constatar sua autonomia cultural. O imaginário que figura na literatura modernista brasileira, por exemplo, é quase sempre ligado a uma ancestralidade ameríndia, verificável, por exemplo, na obra-prima de Mário de Andrade Macunaíma. O compromisso com a verdade (mesmo que seja múltipla), uma das sete paixões da literatura de que fala Jacques Derrida,[5] encontra solo fértil numa sociedade recentemente (e relativamente) autônoma, carente de tradição.

As consequências do compromisso da literatura com a constituição de uma identidade nacional, bem como com seus projetos de modernização, não são simples. A paixão pela verdade, ao cumprir sua função, engessa a escrita e a despoja de seu lugar privilegiado, livre da “reição generalizada” de que fala Roland Barthes. A literatura deixa de simplesmente dizer e passa a querer dizer; tanto que, no caso de Murilo Rubião, a crítica apresentou uma tendência em tentar decifrar a verdade por trás dos dragões, coelhos e mágicos.

Podemos agora pensar no que pode representar uma literatura que, como que brincando com os limites da escrita impostos pelo veto ao ficcional, caminha para seu próprio infinito. A exaustão do possível é uma estratégia de combate ao regime da palavra partindo desse próprio regime: subvertendo suas bases, sua sustentação, descobre-se que não é preciso criar um mundo muito diferente do nosso para reivindicar o direito à palavra e à imaginação.

Logo, se por um lado a exaustão do possível no universo das personagens é um movimento que parte de uma relativa liberdade em direção ao aprisionamento no tédio infinito de uma possibilidade (que, de tão dilatada, torna-se absurda), imposto soberanamente por instâncias da modernidade – consumismo, burocracia e megalomania –, por outro lado, se pensado como um recurso narrativo, temos o contrário: o movimento que rompe o aprisionamento das palavras e das categorias narrativas básicas (sujeito, tempo e espaço) nos discursos identitários e se projeta em direção à liberdade da escritura. Tal movimento é ainda amplificado nas constantes reescritas que Murilo Rubião se encarregou de realizar ao longo de toda a vida: os limites do texto, violentamente dissimulados pela publicação, são cada vez mais moventes e elásticos, e estão sempre apontando para outro lugar.

A exaustão do possível enquanto atitude narrativa não é, portanto, uma resistência ao real, mas aos protocolos de um discurso que, por diversos motivos e através de vários subterfúgios, tomou para si a responsabilidade e o direito de contar a nação e cristalizou limites nas palavras.

Referências

BARTHES, Roland. Aula. Tradução e posfácio de Leyla Perrone-Moisés. 12. ed. São Paulo: Editora Cultrix, 2004.

CHIAMPI, Irlemar. O realismo maravilhoso: forma e ideologia no romance hispano-americano. São Paulo: Perspectiva, 1980. (Debates; 160)

COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. (Humanitas)

COSTA VAL, Ana Cristina Pimenta da. Recepção crítica da obra de Murilo Rubião. 2001. Dissertação (Mestrado em Teoria da Literatura) – Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Letras, Belo Horizonte, 2001.

DERRIDA, Jacques. Morada-Maurice Blanchot. Tradução de Silvina Rodrigues Lopes. Portugal: Edições Vendaval, 2004.

FOUCAULT, Michel. Os intelectuais e o poder. In: _______. Microfísica do poder. 24. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2007.

GOULART, Audemaro Taranto. As mágicas de um mago (o conto de Murilo Rubião). 1985. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira) – Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Letras, Belo Horizonte, 1985.

LIMA, Luiz Costa. Sociedade e discurso ficcional. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Vira e mexe, nacionalismo: paradoxos do nacionalismo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

RUBIÃO, Murilo. A casa do girassol vermelho e outros contosPosfácio de Sérgio Alcides. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

_______. O pirotécnico Zacarias e outros contos. Posfácio de Jorge Schwartz. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

SCHWARTZ, Jorge. Murilo Rubião: a poética do uroboro. São Paulo: Ática, 1997.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. 3. ed. São Paulo: Perspectiva: 2007. (Debates; 98)

 

[1] Será utilizado para a citação dos contos o volume O pirotécnico Zacarias da Companhia das Letras.

[2] RUBIÃO, 2006, p. 98.

[3] FOUCAULT, 2007, p. 70-71.

[4] LIMA, 1986, p. 70.

[5] DERRIDA, 2004.

 

Artigo recebido em 10/03/09 e aprovado em 11/03/09.