O visível, de Juan José Saer

Enrique V. Nuesch

A trinta quilômetros das instalações, uma semana, quinze dias depois do incêndio e da explosão do reator, estava proibido ficar e até passar por ali, ainda que fosse rapidamente. Mas pouco a pouco, a vigilância foi relaxando e, em um mês, nós, os velhos, demo-nos conta – e o comentávamos rindo – de que aquilo que fez com que os jovens empreendessem a fuga não era tanto o medo, mas sim a esperança, isso de que há um certo tempo já estávamos protegidos. Assim, sem estar de acordo, cada um de nós, seguindo por nossa conta o mesmo raciocínio, um por um, fomos voltando a nos instalar nos povoados onde tínhamos nascido. Esses povoados pelos quais tínhamos visto passar os czares, a guerra civil, a revolução, as purgações, as invasões, a tirania, a morte, mas também os casamentos, os partos, a infância, as festas, os trens, as colheitas.

Mais tarde, os jovens também começaram a voltar, mas nós, velhos, fomos os primeiros. E ainda que, tal como antes (embora ali, entre os trinta e os zero quilômetros do sarcófago que cobre o reator, por muito ou talvez nunca mais, nada voltará a ser como antes), respirávamos e caminhávamos sobre a mesma terra, entre eles e nós existia uma diferença de peso: se lhes custava acreditar na realidade mortífera do invisível que a explosão tinha desencadeado, para nós essa realidade era indiferente. Já nos sabíamos condenados antes da explosão, a curto e a longo prazo . Assim, como tínhamos evacuado o povoado contra a nossa vontade, aos quinze dias simplesmente voltamos. Depois de tantos anos de sobrevivência, já estávamos habituados a sentir a maneira como, desde o escuro, a ponta do invisível brocava o tempo e as coisas.

Dizem que aos bombeiros que foram nas primeiras horas combater o incêndio, bastaram os poucos minutos nos quais cruzaram pelo transbordante do invisível para desintegrá-los, e aos que estiveram a cinqüenta metros, em poucas horas não restava, nem por dentro nem por fora, nenhum traço humano. Mas a trinta quilômetros, a ação do invisível parece-se com o desígnio habitual do exterior, que dá e tira, edifica e derruba, e, com a mesma obstinação imperturbável, coagula as formas, repetindo-as até a náusea com o único fim de, um pouco mais tarde, desfigurá-las e desagregá-las, moendo-as tão fino que terminam sendo outra vez irreconhecíveis, misturadas no pó cinza e anônimo do tempo abolido.

Quando unicamente nós velhos tínhamos voltado, foram dias verdadeiramente felizes. Todos nos conhecíamos desde a infância; tínhamos trabalhado nas mesmas fábricas, nos mesmos campos, combatido nas mesmas trincheiras, dançado e bebido nas mesmas festas, e muitos membros da nossa geração, em tempos de guerra, tinham compartilhado até a mesma morte e ainda a mesma tumba apressada e ignota. E, pela primeira vez desde a nossa infância, já não havia czares, não havia partido, não havia destacamento militar, nem superiores, nem espiões, nem chefes, nem prédicas sinceras, nem consignas paternais, nem comissários políticos, nem instruções militares ou civis, nem monges, nem popes : tínhamos franqueado a linha além da qual reinava, onipresente e mortal, o invisível, internando-nos numa zona na qual, aparentemente, nenhuma hierarquia, nenhum discurso eram ainda válidos, e essa situação inédita nos conferia uma liberdade incomparável.

Tudo nos pertencia, casas, hortas, jardins, despesas e adegas. Como não poucas vezes tínhamos conhecido a escassez e também a fome, não ignorávamos o valor da abundância e, pela primeira vez, soubemos o que era gozar dela. Bastava nos abaixarmos para colher a salada, os tomates, os morangos que nem sequer tínhamos plantado – os que o tinham feito estavam longe, na cidade, na casa de algum parente, no hospital, no cemitério talvez agora. Tudo isso era secundário porque, a bem da verdade, e ainda que durante incontáveis gerações os seus antepassados houvessem vivido na região, eles nunca mais voltariam. Nas adegas, as garrafas de vodca, de vinho, e até de champanha na casa de algum personagem importante, se alinhavavam, oferecidas, nos esperando. As vacas davam mais leite do que podíamos tomar, as galinhas mais ovos que os requeridos por qualquer omelete, e os frangos, os patos, os porcos e os carneiros que sacrificávamos, antecipando-nos aos soldados que tinham a ordem de os matar e enterrar ou queimar, e que colocávamos para assar nos jardins (não se deve esquecer que estávamos na primavera), eram mais abundantes que em qualquer festa a que, em nossa vida já demasiado longa, tivéssemos assistido. De maneira que os cães e os gatos que se tinham dispersado pelo campo, porque eles também deviam ser mortos pelos soldados onde fossem encontrados, voltaram com a confiança restaurada; e se nos primeiros dias estavam ainda um pouco ariscos, apaziguaram-se quase que em seguida. Assim nos encontrava, nesse período feliz, o fim do dia; reunidos ao redor de uma mesa farta, brindando e conversando, cantando as mesmas músicas que contavam velhas histórias acaecidas havia muitos anos na região, falando de vivos e de mortos, e todos esses animais que se tinham aliado a nós, a nós parecendo-se um pouco pelo fato de que, por ignorá-la, eram tão indiferentes para com a morte como nós tínhamos chegado a sê-lo, resignados em sabê-la tão inevitável e próxima.

Não tínhamos sido, na nossa juventude, unicamente obreiros, homens do campo, soldados. Alguns, nos tempos livres, tocávamos violino, escrevíamos versos ou memórias, montávamos uma ou outra obra de teatro. Eu, por exemplo, nos anos vinte, tinha ido um tempo para a escola de belas artes de Vitebsk , e ainda que o meu talento seja inferior à minha paixão pela pintura, desde então, quando tinha vontade, desenhava alguma coisa ou distribuía um pouco de pintura sobre a tela. Meu mestre tinha nascido não muito longe da zona, e tinha brincado, criança, em lugares parecidos com os meus. Era capaz de observar as linhas ideais e as correspondências secretas do visível, até esvaziá-lo da matéria perecível, a que hoje é atacada e corrompida pelo invisível, e pintar a sua forma inalterável e eterna. Quando procurava os contrastes, eram sempre os mais simples e sutis, preto sobre preto, cinza sobre cinza, branco sobre branco. De volta para as formas e figuras, depois do seu passo pelo despojamento extremo, as suas personagens tinham perdido todo traço individual e não poucos dos seus atributos humanos. Os que lhe reprochavam que pintasse essas formas incompletas – homens do campo sem cara, sem braços, criaturas vagamente familiares e ao mesmo tempo tão estranhas – ignoravam o elemento profético que as justificava, porque umas poucas décadas mais tarde, nos mesmos jardins da sua infância, por causa da propagação do invisível, começariam a proliferar seres sem cara, sem braços, formas caprichosas e vivas nas quais uma espécie nova e diferente da nossa parecia estar se encarnando. Talvez, através dessas formas genéricas, humanas e inhumanas ao mesmo tempo, ele tentava figurar também o que o novo século estava fazendo das criaturas que nele se agitavam e do lugar no qual tinham surgido e as tinha acolhido. Quando os que mandavam queriam propagar o trabalho, meu mestre reivindicava a preguiça, e onde outros pretendiam impor a todo custo o conteúdo edificante, ele explicava o esquema ideal do universo, saudando o ensino inesgotável da forma e seu cintilar colorido. Da sua proximidade rigorosa e mágica ficou-me o gosto exaltante pelo visível.

Nos meus momentos de ócio de então, os que me deixaram as interrupções causadas pelo trabalho, a guerra, o exílio, minha vida familiar também, minha mulher, os meus filhos, os meus amigos e os meus inimigos, o estudo do visível, as fases de um mesmo objeto ou de um mesmo lugar em diferentes horas do dia ou em diferentes estações do ano foram a minha maneira de buscar um sentido para o mundo. Esse sentido é simplesmente a justaposição, na memória, dos estados sucessivos de uma presença qualquer, interna ou externa, no passar dos minutos, das horas, dos meses ou dos anos. Tomar consciência disso, dessa sucessão, é o que dá sentido ao mundo, não o sentido que o nosso desejo preferiria, mas o das coisas como são. Nenhum objeto é constantemente idêntico a si mesmo. Um tomate, por exemplo, nunca é única e verdadeiramente vermelho. Se acreditamos que é vermelho e única e verdadeiramente vermelho, esse preconceito nos impede de perceber os seus estados sucessivos e, portanto, ao nos cegar para o que as coisas são intimamente, nos cega também para entender o sentido da nossa existência. O mesmo tomate muda muitíssimo com o passar dos dias, desde que aparece na planta até que é arrancado e depositado num prato, mas não mais do que muda nesse prato durante as horas do dia ou em uns poucos segundos, cada vez que o meu olhar se fixa nele e me permite tomar consciência da sua presença. Na minha memória ele continua mudando através de infinitas e imprevistas transformações. Tanto como no que é exterior, muda de forma, de cor, de estado e, por último, o sentido. Nos meus momentos livres, com meus modestos meios de expressão, dedicava-me a pintar a mesmas coisas muitas vezes – um tomate, uma cadeira, um jardim ou uma árvore, uma cara (a minha) durante cinqüenta anos. Saber que as coisas são e não são ao mesmo tempo: isso é o que torna manifesto o sentido do mundo. Uma coisa qualquer, mas também a sua imagem pintada, ainda que pareçam fixas e em repouso, são , apesar dessa firmeza aparente, o teatro discreto onde se representa a cada instante uma cena vertiginosa.

A explosão, ativando o invisível, acabou com essa discrição benévola que, se no final das contas terminava também por nos dissociar, graças à lentidão com a qual nos destruía, nos permitia certa ilusão de permanência. A explosão veio para nos expulsar da nossa pátria comum, que é o visível. Somente nós velhos, por causa do pouco tempo que nos restava, podíamos desafiar o invisível, já que seus estragos se confundiam com os finais habituais que nos foram lembrados. Quando a esperança é ignorada, a diversidade, por obra desse obrigatório desdém, fica imediatamente abolida. De modo que, quando começamos um por um a desabar, a evidência desse final inscrito já a muito tempo nos nossos planos, não nos permitia desperdiçar as poucas forças que nos restavam com o gasto supérfluo da prudência. O certo é que, durante algum tempo, nesse território que todos tinham abandonado, pela primeira vez nas nossas longas vidas o mundo esteve feito na medida exata dos nossos desejos. Foi um período breve de prazer e de calma, durante o qual, sem deveres, sermões ou ameaças, gozávamos do mundo adverso e precário. É verdade que as coisas, durante essa primavera – a explosão tinha sido em abril – eram, pelo seu tamanho, sua cor ou sua forma, um pouco diferentes do que sempre tinham sido, como se por causa da explosão um novo mundo, colateral do primeiro, mas que terminaria por substituí-lo por completo, tivesse começado a proliferar. Em pouco tempo também nós formávamos parte dele, porque o invisível tinha-nos alcançado, infiltrando-se em nosso corpo, e quando o exército veio para nos evacuar, os soldados , que, porém, atuavam com firmeza não isenta de compaixão, evitavam no que era possível o nosso contato, e mesmo a nossa proximidade, porque éramos cidadãos desse mundo novo que eles acreditavam estar circunscrito num raio determinado mas que, na realidade, graças a essa explosão providencial, tinha começado uma expansão talvez já infinita. De outra parte, se fomos prisioneiros desse mundo desconhecido, as multidões nos seguiram, porque em pouco tempo as leis que anatematizavam o espaço proibido foram relaxadas, e a circulação permanente entre esse espaço e o de fora foi se fazendo a cada dia mais banal. Já não se sabe quem está dentro ou fora dessa germinação formigante.

Os milhares de homens de ciência nos tratavam como objetos ou criaturas de essência ou de uso desconhecido, isolando-nos em cômodos vazios e brancos depois de ter queimado nossa roupa e o resto dos nossos pertences e de nos ter feito tomar várias duchas das quais saia uma chuva enérgica, em cuja composição era evidente que entravam, além de água, alguns aditivos que me teria sido impossível identificar. Mas, por acaso a água que conhecemos é unicamente água, sempre idêntica a si mesma, sempre da mesma cor, na mesma temperatura, composta pelos mesmos elementos? Tudo o que chamamos de mundo, sua totalidade ou cada um dos objetos que o compõem são, já o sabemos, unos e múltiplos de cada vez, como a luz, por exemplo, que, presente até nos mais remotos confins do universo, é brilhante ou transparente, invisível ou dourada, branca ou multicolorida.

Já está me custando cada vez mais me levantar da cama, mas acredito que esse desengano se deve menos a uma suposta doença do que à obrigação que me foi imposta de não sair jamais do meu quarto branco, no qual há somente uma cama metálica, uma cadeira metálica e uma mesa metálica. Assim, fico deitado na cama, jogado de costas, olhando o branco do teto rebaixado. Uma vez por semana trocam os lençóis brancos, as roupas brancas e os levam para queimar. Acho que o mesmo farão comigo: dentro de muito pouco, esperam-me íntimas, radicais, inconcebíveis mudanças. Por agora, o visível, concentrando-se no branco teto rebaixado, me permite entrever, nos diferentes estados do turbilhão vivaz que ferve sob a superfície impassível, a instabilidade essencial do universo; e as dores terríveis que me predizem certos brilhos de compaixão no olhar de alguma enfermeira não são mais que um instante passageiro nas mudanças que se avizinham. Deixo a minha pátria vivente e colorida por uma escuridão talvez menos enganosa. É provável que, privado de exaltação, mas também de pena, visto de algum possível exterior, o mundo seja neutro e branco.

Original em:

SAER, Juan José. Cuento completos. — 3ª  ed. Buenos Aires : Seix Barral, 2004. 544p; 24×15 cm. ISBN 950-731-321-4