Os limites da representação: a dimensão da arte e da essência em Clarice Lispector

Gislei Martins de Souza

RESUMO: Este trabalho consiste em estudar Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres (1998 [1969]), escrito por Clarice Lispector. Procura compreender como o romance encena o vazio interior da subjetividade sendo produzido pela existência da fissura no omem istórico dominado pela vida, trabalho e linguagem. Discute que a fissura existente não pode ser preenchida na medida em que traz, sob o signo da morte, o drama no qual o ser fictício imerge na tentativa de efetuar um conhecimento de si mesmo. Como suporte teórico, as contribuições filosóficas de Foucault (2006) e Deleuze (1974) ampliam a visão do romance na medida em que se detém sobre o cerne da idéia clássica do omem como sujeito indivisível, capaz de dominar a si mesmo, porque tem a soberania do conhecimento. Tais estudiosos são pressupostos no sentido de construir a argumentação em torno do drama no qual a subjetividade se encontra fragmentada, visto que não se enquadra num lugar-comum que lhe dê um sentido à existência.

Palavras-chave: Literatura, Filosofia, Representação, Subjetividade, Conhecimento.

ABSTRACT: This work consists in studying Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres (1998 [1969]), written by Clarice Lispector. It tries to understand like the novel that it stages the inner emptiness of the subjectivity being produced by the existence of the cleft in the istorical man dominated by the life, work and language. It discusses that the existent cleft cannot be filled out in so far as brings, under the sign of the death, the drama in whic the fictitious being immerses in the attempt of effectuating a knowledge of you imself. Like theoretical support, the philosophical contributions of Foucault (2006) and Deleuze (1974) enlarge the vision of the novel in so far as it is detained on the duramen of the classic idea of the man like indivisible subject, able to dominate to you same, because it as the sovereignity of the knowledge. Suc studious are presupposed in the sense of building the argumentation around the drama in whic the subjectivity is broken up, I put on what is not been fitted at a common-place that gives im a sense to the existence.

KEY-WORDS: Literature, Philosophy, Representation, Subjectivity, Knowledge.

 

As nuvens são para não serem vistas. Mesmo um menino sabe, às vezes, desconfiar do estreito caminhozinho por onde a gente tem de ir – beirando entre a paz e a angústia (Guimarães Rosa – Nenhum, Nenhuma).

Diante de um romance complexo como Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, de Clarice Lispector, poderíamos nos arriscar a percorrer uma linha de estudo que se infiltre pelos meandros de uma produção inefável no intuito de descobrir um sentido unívoco. Entretanto, esse não constitui o nosso objetivo, pois se fôssemos tentados a tal estaríamos nos esquivando de apreciar a encenação do drama referente à subjetividade contemporânea que Lispector expõe aos olhos dos leitores. Clarice Lispector ultrapassa não só os artifícios retóricos da tradição literária, como também os procedimentos de sua própria escritura que sempre estão em vias de reativar o percurso, no qual explora os limites concernentes ao conhecimento do omem, lançando a crise da subjetividade na obra de arte. Faz parte, portanto, da obra clariceana a experiência do conhecimento baseada no encontro com o saber invisível, inacessível e inesperado, ou seja, enxergar no não-dizer uma aprendizagem. Não se restringe a encontrar soluções para a obscuridade da existência umana, ao contrário, a ficção clariceana amplia a crise ao expor a fratura decorrente do embate com o não-senso.

Em “A literatura e a vida”[1] Deleuze (2008) nos chama a atenção para o conceito de devir, colocando, já no princípio do ensaio, que escrever está além de impor uma forma à matéria do vivido, o que ocasiona um aprisionamento da obra de arte àquele que a produz, pois a literatura, ao contrário, tem que a ver com o informe, o inacabado, sempre a caminho de se fazer. Não cabe ao escritor escrever sobre suas “neuroses”, pois estas não são passagens de vida, “mas estados nos quais se cai quando o processo se interrompe, quando está impedido, preenchido” (2008, p. 04). Dessa forma, Deleuze afasta o conceito de alinhavar a subjetividade do escritor ao seu processo de escritura literária. O filósofo ainda argumenta que “a literatura só começa quando nasce em nós uma terceira pessoa que nos retira o poder de dizer Eu” (Idem). Trata-se de um processo, ou melhor, uma passagem que extravasa a matéria vivível e o vivido e, por isso a escrita em sua complexidade está inseparável do devir, pois ao escrevermos devimos-mulher, devimos-animal, devimos-vegetal, devimos-molécula, devimos-imperceptível. Nesse sentido, os devires se encadeiam uns com os outros ou coexistem em níveis, por zonas de vizinhança, de indiscernibilidade ou indiferenciação. As personagens literárias também agenciam o devir, pois ao mesmo tempo em que são perfeitamente individuadas, também elevam-se a uma visão que as conduz ao indefinido, ao demasiado inefável, extravasando os seus próprios limites.

A literatura é delírio, e nisto joga o seu destino entre os dois pólos do delírio. O delírio é uma doença, a doença por excelência, quando erige uma raça que se pretende pura e dominante. Mas ele é a medida da saúde quando invoca essa raça bastarda oprimida, que não pára de se agitar sob as dominações, de resistir a tudo o que esmaga e aprisiona, e de se esboçar enquanto fundo na literatura como processo (DELEUZE, 2008, p. 06).

Sendo um delírio, um agenciamento coletivo de enunciação, a literatura joga no sentido de dinamitar os lugares-comuns aos quais nos prendemos quando muitas vezes elaboramos o estudo de uma obra de arte. Em decorrência disso, Deleuze nos instiga a compreender o indefinido da literatura para que possamos ampliar nossa visão ainda norteada pelo bom senso.

O que a literatura faz na língua surge agora melhor: como diz Proust, aquela traça nesta uma espécie de língua estrangeira, que não é outra língua, nem um patois reencontrado, mas um devir-outro da língua, uma minoração dessa língua maior, um delírio que a transporta, uma linha de feiticeira que se escapa do sistema dominante (DELEUZE, 2008, p. 06).

Ao invés de se recriar uma “outra língua” Deleuze confia na destruição, na decomposição que a literatura faz com a língua materna como forma de incursão de um “devir-outro”, capaz de produzir um desdobramento “dos próprios sulcos”, cujo objetivo consiste em realizar “a passagem da vida na linguagem que constitui as Idéias” (Idem, p. 07). Com base na reflexão de Deleuze, podemos dizer que o projeto ficcional clariceano mostra a escrita como forma de autoconhecimento. Tratar-se-ia do modo como o escritor Rodrigo S. M., em A ora da estrela (1998), escreve através das ruínas deixadas por uma personagem, Macabéa, que não é passível de representação, pois traz em seu ser o inefável. Escrever foge do campo representacional à medida que se converte em um desvelamento do processo escritural ao mesmo tempo em que redimensiona a crise da subjetividade, na qual Rodrigo S. M. está imerso: “A minha vida a mais verdadeira é irreconhecível, extremamente interior e não tem uma só palavra que a signifique” (LISPECTOR, 1998, p. 11); “Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos os dias” (Idem p. 21). Supomos que a escrita clariceana enquanto processo está em vias de sempre se perfazer, buscando saídas para enfrentar o abandono na linguagem ao procurar se alinhavar à essência presente no ser fictício. Por esse motivo, Rodrigo S. M. se abstém do contato umano, bem como do futebol e da leitura para que possa infiltrar-se nos interstícios de uma personagem impossível de ser apreendida pela palavra, porque refém do não-dito, das descontinuidades, do silêncio trazido pelo fracasso relativo à representação da subjetividade. Também o narrador-personagem figurado em seu anonimato de autor, de Um sopro de vida (1999), em um sonho “inexplicável” brinca com o próprio reflexo. Esse reflexo não estava num espelho, pois constituía um outro ente que não ele. Escrever, portanto, torna-se uma necessidade de experienciar ou, mesmo, dar o “sopro de vida” capaz de enveredar-nos pela essência do ser forjado na literatura.

O ensaio teórico de Deleuze acerca da estreita relação entre a literatura e a vida nos faz supor que também Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres está em um constante devir maquinado pela trajetória da protagonista Lóri, trajetória esta que se opõem ao espaço definido pela representação que marcou o pensamento clássico. Diante disso, podemos estabelecer um vínculo em relação ao que Deleuze apresenta sobre as obras de arte que são atravessadas por “outra língua”; visto que a narrativa de Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres mostra a escrita como uma aprendizagem, na qual a subjetividade penetra a máscara representativa do enclausuramento da personagem. Lóri expõe sua falência, “dizendo o não dito e assinalando a vereda do nada na senda do ser” (SOUZA, 1993, p. 134). Entendemos que Clarice Lispector encena o “devir-outro” da língua em Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, cuja base no que se refere à produção literária no século XX está no afastamento que concerne à tradição romanesca no Brasil, ao tratamento da subjetividade, bem como à relação posta entre ficção e sociedade.

No ensaio “A moralidade da forma” (2005, p. 21) Arêas ilumina o estudo de Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres ao mostrar como o romance ocupa um lugar de destaque no projeto literário de Clarice Lispector. Para ressaltar o progresso literário d’ A ora da estrela, Arêas efetua não apenas um estudo aprofundado de alguns romances de Lispector, como também referenda críticos que trouxeram à baila Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres como obra menor, ilustrando que a leitura de Nunes não soube atingir na obra algo que fosse verdadeiramente inovador. Arêas revisita as críticas literárias baseadas nos romances clariceanos para ratificar sua própria posição, de maneira a expor que o valor ignóbil de Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres em detrimento das demais produções estava no incômodo que o mesmo trazia para Clarice Lispector.

Arêas chega mesmo a aferir que Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres seja um romance malogrado, tendo em vista uma espécie de “equívoco” que envolve sua atmosfera. Tal consideração decorre daquilo que a autora chama de “falta de foco”, pois, de um lado, á o tratamento de questões elevadas e, de outro a projeção de dois personagens que se aproximam da caricatura, o que demonstra a impropriedade do romance. Interessa-nos o fato de Arêas considerar que a produção da escritora aparece de tal modo entrelaçada a ponto de tornar-se um risco delinear “fronteiras ou rupturas drásticas em seu percurso”. Podemos perceber com clareza os princípios norteadores da leitura que Arêas enseja no que diz respeito ao conjunto literário de Lispector com o propósito de sempre abarcar o processo artístico, o qual se revela imbricado nos enredos, na ficção e no ato de construí-lo. Por essa via, Arêas, sempre tangenciada por uma visão auerbachiana, mostra os vários momentos de transgressão verbal em A paixão segundo G. . como forma de “forçar a língua e radicalizar a expressão, submetendo-a a um curto-circuito provocado principalmente pelo choque radical entre níveis de estilo, o ‘sublime’ e o ‘humilde’” (p. 24).

Muitas considerações de Arêas referentes a Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres se limitam a pontuar alguns recursos estilísticos tais como: a mescla de outros materiais de linguagem traduzidos e inseridos no romance, o reaproveitamento de textos que convocam certo ibrismo literário como se a autora “diagramasse a si própria” (p. 36), a esfera da retórica cinematográfica no mundo espetacular, a retomada do episódio edênico e até mesmo uma proposta sutil de romance policial. No cômputo de suas formulações sobre o romance, presenciamos mais propostas de recortes do que uma reflexão aprofundada. Arêas também se concentra em discutir tanto o problema formal, quanto a posição social da escritora circunscritos em Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, de modo à tensionar a narrativa.

[…] com Uma aprendizagem com certeza procurou alinhar-se junto ao que também se buscava na época, isto é, o “realismo novo”. Certamente tentava assim responder às críticas que lhe eram dirigidas. Pelo resultado obtido, não é difícil perceber que essa intencionalidade sumária era mortal ao processo intuitivo da escritora […] a prosa é ritmada pelo correr das oras, pelo suceder das estações e, em alguns momentos, pontuada pelo bater do relógio da igrejinha da Glória. Enquanto passa o tempo, e brilham, o sol e as estrelas, e empalidece a “lua gelada”, Clarice teoriza sem parar sobre a própria busca, experimenta falar sobre nada e para ninguém, angustiando-se e rebelando-se, quebrando e mergulhando as istórias às vezes no ponto de fusão do significado, caminhando na corda bamba, fabricando o futuro (da ficção) […]. A moralidade da forma exige essa busca e essa obsessão, frequentemente sonambúlica. Tem a coragem de errar de forma escandalosa, uma vez que abre mão do já conhecido, da abilidade, da esperteza (ARÊAS, 2005, p. 45).

Desse modo, a ensaísta tematiza que a forma do romance apresenta um misto dos traços de sua penosa composição na medida em que nela se encena as indecisões e escolhas da escritora. De um lado, isso demonstra, no ponto de vista da autora, “o lugar ambíguo de grande parte da ficção contemporânea, que manipula com suposta eficácia os lugares-comuns da modernização, invocando sempre os grandes princípios da arte” (p. 39). De outro, a organização do romance projeta a ordem do jornal consoante à dificuldade de sobreviver para uma escritora intuitiva, que só podia ser dissidente do ritmo massacrante dos tempos. Essa síntese baliza as implicações em que Arêas ensaia, a guisa da questão social, a idéia de os romances clariceanos não estarem vinculados a um projeto partidário, mas sim a procura de compreender o próprio procedimento da arte em seu vínculo com o contexto.

A nosso ver, Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres encena uma subjetividade submetida ao duplo domínio da plástica realidade cotidiana ao mesmo tempo em que mostra a implantação do caos no qual ela se encontra. Assistimos a luta de Lóri nos descaminhos entre ser e não-ser num “devir-louco”, em que ela se enclausura dentro da máscara, mas também se divorcia desta por não agüentar o seu peso de individualidade, que lhe causa a dor de viver em uma existência caótica. Lóri sente à flor da pele a dor insólita trazida pela “perdição real. Estar perdida não era a verdade corriqueira mas era a irrealidade que lhe vinha dar a noção de sua condição verdadeira. E a de todos” (LISPECTOR, 1998, p. 46). Como podemos perceber Lóri está perdida dentro de si mesma, como também em relação às coisas do mundo. Esta é a condição de todos os sujeitos quando procuram rearticular o ser sob o disfarce externo do rosto, o qual, segundo Ronaldes de Melo e Souza (1993), acaba por aprisioná-lo em uma individualidade pretensamente substancial.

De acordo com Ulisses, é a própria Lóri quem precisa esfacelar a mascará que lhe cobre o rosto, para que alce a linguagem aquela que possa dar sentido a sua existência. Entretanto, o caminho é árduo, embatumado de veredas, nas quais ela se perde, afastando-se do convívio social, o que a induz ao medo que “por falta de comunicação” (LISPECTOR, 1998, p. 81) perca os passos que avançara. Isso lhe faz telefonar para sua amiga cartomante, a qual informa que apesar da notória “compreensão intuitiva, e mesmo de graça feminina” Lóri sempre, nos eventos sociais, se retraía como se estivesse “ausente, como uma corça de cabeça baixa” (Idem, p. 82). Sentindo-se um “nada” Lóri tenta em vão se defender, mas a cartomante emprega a força esotérica para motivá-la no sentido de que ela “precisa andar de cabeça levantada, você tem que sofrer porque você é diferente dos outros […] não pode ter a vida burguesa dos outros” (Idem). Acreditar na força sobrenatural faz com que Lóri tente em vão se descobrir escondida por trás da máscara, pois a aprendizagem requer um desligamento total em relação ao senso comum. Assim como Macabéa que se deixou levar pelas palavras da madama Carlota, também cartomante, e acabou encontrando iminentemente a morte[2]. Com isso, Lóri se arrisca a ir na reunião do colégio “toda só”, sem Ulisses ou mesmo um professor que lhe acompanhasse:

Vestiu um vestido mais ou menos novo, pronta que queria estar para encontrar algum omem, mas a coragem não vinha. Então, sem entender o que fazia – só o entendeu depois – pintou demais os olhos e demais a boca até que seu rosto branco de pó parecia uma máscara: ela estava pondo sobre si mesma alguém outro: esse alguém era fantasticamente desinibido, era vaidoso, tinha orgulho de si mesmo. Esse alguém era exatamente o que ela não era.
Na ora de sair de casa, fraquejou: não estaria exigindo demais de si mesma? Não seria uma bravata ir sozinha? Toda pronta, com uma másca­ra de pintura no rosto – a ‘persona’, como não te usar e ser! – sem coragem, sentou-se na poltrona de sua sala tão conhecida e seu co­ração pedia para ela não ir. Parecia prever que ia se machucar muito e ela não era masoquista. Enfim apagou o cigarro-da-coragem, levantou-­se e foi (LISPECTOR, 1998, p. 83, grifo nosso).

A título de informação todo esse fragmento também integra a crônica A bravata do livro A descoberta do mundo, datado de 1984, o qual foi retrabalhado em Uma apredizagem ou O livro dos prazeres, produzindo um efeito de transmutação discursiva entre os textos ficcionais da escritora. Possuir uma essência disforme significa processar o remascamento, de sua estrutura externa para que se possa suportar o enigmático convívio. Não desejando que os outros lhe conheçam, ou melhor, consigam perceber como Lóri estava abatida em virtude do desentendimento relativo ao seu próprio ser, vemos que ela põe uma máscara outra, que não a constitui, para que enfrente aquilo que “ela não era”. A solidão, a reclusão a respeito da subjetividade faz de Lóri um sujeito desregionalizado, fora do tempo e da istória, aniquilado pois, parafraseando Adorno e orkheimer (1985), precisa perder-se para se ganhar e tem a necessidade de confrontar-se com o mundo na tentativa de rescindir a máscara que o protege de si mesmo, a qual obtura toda possibilidade de conhecimento do “eu”. É preciso encontrar forças para vestir a persona que conclama sua audiência, como também acender o “cigarro-da-coragem”, cuja fumaça esvaecerá no vento a agonia de se arriscar a usar um escudo artificial no campo de batalha da vida. Nesse sentido, alçamos uma compreensão acerca da condição do omem contemporânea, visto que este sempre vinculado à plasticidade referente aos mecanismos de consumo acaba por fabricar a sua autenticidade, cuja possibilidade de metamorfose esvazia, fragmenta e estilhaça a subjetividade. Assim, Lóri como um paradoxo precisa se duplicar e se esconder por trás da máscara, a qual emerge os traços de uma fabricação mal elaborada e que demonstra a falta de autenticidade em relação ao seu próprio ser.

A trajetória esboçada em Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres promove a visualização do jogo de simulacros delineado, a cada página do romance, pela mescla das diversas mutações da protagonista nas contingências de sua aprendizagem. Para compreendermos como o omem real se constitui na contemporaneidade através de uma máscara, persona, cuja vida amadurece a morte dentro de si mesma, muito nos auxilia a leitura de Souza (1997), para quem “[s]em avesso nem fundo, a máscara nada contém dentro de si. O lado de fora da máscara é uma forma, mas o lado de dentro é informe. Envolvendo o vazio informe do grão nulo do nada, a máscara é a religação e manifestação do que é presente e, ao mesmo tempo, ausente” (p. 136). Isso por entender que o objetivo de Clarice Lispector em narrar as coisas não mais dominadas pela representação sujeitiforme se apresenta como um desejo irrealizável. Ao exibir a máscara, conforme o entendimento do pesquisador, G. . estaria desnarrando o mito grego do omem enquanto idealidade que se converte no monodiálogo do silêncio e da palavra. Tal proposição nos faz refletir que a máscara que Lóri contraditoriamente traja é, na verdade, uma tentativa de afastar o embate com o não-senso e, assim, reconstruir um sentido em relação a uma identidade fixa.

Valendo-nos do romance Um Sopro de vida (1999 [1978]) podemos compreender o modo pelo qual a subjetividade contemporânea ao mesmo tempo em que se transveste sob uma persona também a destrói, deixando-a cair no vazio perplexo da existência umana. Para reforçar a ambigüidade desse mundo duplo, que se apresenta na obra de Clarice Lispector, focalizamos, já nas páginas iniciais do romance, o narrador-personagem autor tentando revelar o ser ficcional que criara, Ângela Pralini.

Às vezes sinto que Ângela é eletrônica. É uma máquina de alta precisão ou nascida em proveta? Ela é feita de molas e parafusos? Ou é a metade viva de mim? Ângela é mais do que eu mesmo. Ângela não sabe que é personagem. Aliás eu também talvez seja o personagem de mim mesmo. Será que Ângela sente que é um personagem? Porque, quanto a mim, sinto de vez em quando que sou o personagem de alguém. É incômodo ser dois: eu para mim e eu para os outros. Eu moro na minha ermida de onde apenas saio para existir em mim: Ângela Pralini (LISPECTOR, 1999, p. 29, grifo nosso).

Desse paradoxo do autor anônimo que se duplica em seu próprio personagem depreendemos uma subjetividade coisificada, a qual se torna um artefato a favor da grande máquina do mundo norteado pela metafísica representacional. Nessa luta inconstante entre ser o Mesmo e o Outro, o sujeito oscila, porque só consegue significar a si como uma ficção, ou seja, enquanto um ser que se transforma em linguagem. Não á como delimitar verdades a si mesmo e assim representar um “eu” já constituído, visto ser configurado por uma subjetividade à deriva sempre se encontrará no anonimato do próprio ser. Pensar a subjetividade distanciada de um âmbito referencial nos autoriza deslocá-la do espaço clássico instituído pela representação.

Para complementar nosso pressuposto trazemos a discussão de Foucault (1966) em As palavras e as coisas sobre a existência do omem no espaço que concerne ao saber, no momento em que ocorre o desabamento do mundo clássico da representação. Na abertura da obra, recorrendo ao campo definido pela Renascença, Foucault propõe argumentos em torno da linguagem não enquanto um sistema arbitrário, pois estava depositada no mundo, tendo uma relação de semelhança (imitação) com a coisa que designava. Segundo afirma Foucault eram as similitudes que regiam o saber e estabelecia, de certa forma, uma relação de transparência da linguagem no que se refere ao mundo. Assim, entre as palavras e as coisas avia uma espécie de entrelaçamento que encerrava a linguagem numa palavra definitiva. No mundo das similitudes, as palavras se relacionavam com as coisas e entre si, da mesma maneira que as coisas se relacionavam com elas mesmas. Partindo da episteme ligada ao saber no século XVII, Foucault mostra que as palavras se esmaecem em meio às coisas, como também em sua própria materialidade, passando a serem vistas enquanto instrumentos representativos completamente convencionais; e, por sua vez, as coisas são tomadas como um objeto a ser dominado. As similitudes, agora, abrem espaço para a nova ordem das identidades e das diferenças, as quais ditam as significações relativas à matéria do mundo, sendo que o saber consiste em representar o conhecimento das coisas. Na representação, os seres já não manifestam a sua identidade, mas a relação exterior que estabelecem com o ser umano.

Foucault ainda nos chama a atenção para o “vão” que existe entre as similitudes que formam o grafismo e as que constituem o discurso. A partir do século XIX, a linguagem não mais se assemelha imediatamente às coisas que ela nomeia, nem está por isso separada do mundo. á uma dimensão simbólica na linguagem que não pode mais se deter porque jamais encerra uma palavra definitiva. Desaparecendo assim essa camada invariável em que se entrecruzavam indefinidamente as palavras e as coisas, Foucault estabelece uma perspectiva que toma a arte literária em uma relação a si mesma, restituindo o aparecimento do ser vivo da linguagem em relação ao surgimento do “homem”:

[…] desde Dante, desde Homero, existiu, realmente, no mundo ocidental uma forma de linguagem que nós outros, agora, denominamos ‘literatura’. Mas a palavra é de fresca data, como é recente também na nossa cultura o isolamento de uma linguagem particular cuja modalidade própria é ser ‘literária’. É que, no início do século XIX, na época em que a linguagem se entranhava na sua espessura de objeto e se deixava, de parte a parte, atravessar por um saber, reconstituía-se ela alhures, sob uma forma independente, de acesso difícil, dobrada sobre o enigma do seu nascimento e inteiramente referida ao acto puro de escrever (FOUCAULT, 1966, p. 393).

Com o surgimento de novas empiricidades, quando a istória natural se transforma em biologia, a análise das riquezas se volve em economia política, quando sobretudo a reflexão sobre a linguagem se converte em filologia e se extingue o discurso clássico em que o ser e a representação convergem entre si, então, segundo Foucault, surge o omem com seu ser duplo, de um lado, como um objeto dominado pelo trabalho, pela linguagem e pela vida, e, de outro, enquanto o sujeito soberano de todo o conhecimento. E mais, Foucault acrescenta que “[t]odos estes conteúdos que seu saber lhe revela exteriores a ele e anteriores ao seu nascimento antecipam-se ao omem, dominam-no com toda a sua solidez e atravessam-no como se ele nada mais fosse que um objeto da natureza ou um rosto que deve desvanecer-se na istória” (1966, p. 408). Em suma, no início do século XIX desenha-se a analítica referente à finitude do omem dominado ao mesmo tempo pelas positividades que lhes são exteriores e que o ligam à espessura das coisas, também, é o ser finito que o determina sob a forma paradoxal do indefinido. No quadrilátero esboçado por Foucault concernente aos saberes que buscam definir o omem, ainda nos deparamos com a idéia empírico-transcendental que propunha aver uma natureza do conhecimento umano que lhe determinava as formas e que podia ser-lhe manifesta no próprio conteúdo empírico. Também deriva uma forma de reflexão que desloca não só o lugar do cogito, mas a da análise kantiana, a qual pela primeira vez trata do ser do omem em uma dimensão em que o pensamento se dirige ao impensado e com ele se articula.

Foucault sustenta muitas idéias na obra, lançando-se ao último traço que define ao mesmo tempo o modo de ser do omem e a reflexão a que ele se direciona, a relação com a origem. Pensava-se a origem da linguagem no século XVIII como a transparência que representava uma determinada coisa. Já no pensamento moderno, tal origem não é concebível, pois o omem adquiriu a sua própria istoricidade em virtude da organização relativa ao trabalho, vida e linguagem. Agora, a istoricidade em sua trama deixa delinear a necessidade de uma origem que lhe seria ambiguamente interna e estranha. Nesse cenário, o ser do omem em correlação à istoricidade constitui-se, através de um desdobramento, como a identidade inacessível da sua origem. Desde a Fenomenologia do espírito (1806), de egel, o originário, no omem, é decerto o que está mais próximo dele em uma superfície e, do qual, ele se afasta; não anuncia o tempo do seu nascimento, nem o germe da experiência remota. O pensamento moderno na tentativa de restituir o domínio do originário descobre o seu relativo distanciamento, propondo investigá-lo na direção em que ele se efetua e não cessa de se aprofundar. Foucault, referindo-se a diversos estudiosos (Hölderlin, Nietzsche e eidegger), orienta que o retorno à origem só se efetua no extremo do seu distanciamento. Na tarefa infinda de pensar sobre a origem, a modernidade descobre que “o omem não é contemporâneo do que o faz ser […] mas que ele está preso no interior de um poder que o dispersa, o expulsa para longe de sua própria origem e todavia lha promete numa iminência que será sempre oculta […] esse poder é do seu próprio ser” (FOUCAULT, 1966, p. 435). Sendo assim, o saber em relação ao ser do omem e da linguagem não está vinculado ao império da representação, pois o vazio do omem desaparecido nos permite conhecê-lo como a “brecha”, na qual se entrecruzam domínios incompreensíveis que configuram formas inéditas para que possamos “pensar de novo” (Idem, p. 445).

 Quando discernirmos a configuração feita por Foucault no que se refere ao sujeito contemporâneo em detrimento do sujeito clássico, pretendemos abordar a que ponto Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres dramatiza o conhecimento acerca da subjetividade não mais ordenada pela representação, uma vez que dissolve a concepção do omem como uma unidade indivisível. Somente será possível entender a amplitude do romance clariceano quando nos propormos a refletir em que medida a autora encena paradoxalmente um sujeito submerso na busca pelas similitudes. Ao mesmo tempo em que descobre a invalidez da máscara representativa, a qual lhe impossibilita de alçar um conhecimento de si mesmo. Supomos que Clarice Lispector experimenta não apenas o jogo inusitado entre a aprendizagem e o prazer no romance em estudo, mas também injeta uma dose de teor filosófico que abala o cerne da conceituação referente ao omem após o surgimento daquilo que Foucault chama de novas empiricidades. Para não perdermos o rumo de nossas articulações, lembremo-nos da passagem na qual Lóri incomodada com a máscara que encobre a nudez de sua alma chega ao impasse de si mesma:

E no escuro daquela noite que já prenunciava o outono Lóri era uma mulher infeliz. Sim, era diferente. Mas sim, era tímida. Sim, era supersensível. Sim, vira dois omens que tinham sido seus amantes e agora eram apenas semi-amigos. O escuro da noite outonal onde frescamente o vento soprava balançando com delicadeza os ramos pesados das árvores. O perfume da noite. Sempre soubera sentir o cheiro da natureza. Atravessou com algum prazer — o único da festa — o viaduto de… (como é o nome?) (LISPECTOR, 1998, p. 84-85, grifo nosso).

Vivendo num mundo de representação, no qual o omem tem seu aparecimento apenas como um objeto de conhecimento para as ciências ao mesmo tempo em que deixa se dominar pelo trabalho, vida e linguagem, vemos que a protagonista também procura enquadrar-se nesse sistema quando elabora para si uma persona. Contudo, Lóri se desafeiçoa com a deformidade do seu próprio ser, o que provoca uma vontade de sair da festa tal qual uma fugitiva. Como vemos, no silêncio da noite Lóri realiza o encontro relativo ao verdadeiro ser, não aquele que precisa da máscara circense capaz de encorajá-lo, mas o que lhe faz sentir o cheiro da própria natureza aflorando. A única escapatória prazerosa é retornar à origem, a mesma para a qual Foucault se volta, que dispersa o ser do omem sob domínios que não é capaz de discernir e que lhe propicia a “liberdade de não-ser” (LISPECTOR, 1998, p. 85). O omem como um sujeito desaparecido que as novas empiricidades definiram encontra a capacidade de surgir para si mesmo em toda a sua essência na literatura. De tal maneira, o romance que estudamos joga precisamente com a dualidade na qual o omem se vê na dupla linha produzida pelo desencontro respectivo ao surgimento do ser. Para enfrentar a luta da vida Lóri precisa usar a máscara de palhaço aquela mesma que os adolescentes empreendiam para não ficarem desnudos.

Não, não é que se fizesse mal em deixar o próprio rosto exposto à sensibilidade. Mas é que esse rosto que estivesse nu poderia, ao ferir-se, fechar-se sozinho em súbita máscara involuntária e terrível: era pois menos perigoso escolher, antes que isso fatalmente acontecesse, escolher sozinha ser uma ‘persona’. Escolher a própria máscara era o primeiro gesto voluntário umano. E solitário. Mas quando enfim se afivelava a máscara daquilo que se escolhera para representar-se e representar o mundo, o corpo ganhava uma nova firmeza, a cabeça podia às vezes se manter altiva como a de quem superou um obstáculo: a pessoa era (LISPECTOR, 1998, p. 86).

Apesar de Lóri entrar em cena como uma atriz que usa uma máscara pregada no rosto, a qual representava o papel que desempenharia naquela noite de festa, acaba por se defrontar com as mutações sensíveis ocorridas por trás dela. Representar a si mesmo numa máscara significa a forma encontrada pelo omem para dissimular o que realmente é. O omem em seu caráter duplo tem a possibilidade de escolher o caminho pelo qual poderá seguir. Entretanto, sempre se refugia nas margens do bom senso para que possa escapar das malhas da subjetividade. Mas o esconderijo que dá nova firmeza para enfrentar a si mesmo e o mundo pode a qualquer momento se desvencilhar, assim como em Lóri “a máscara crestava-se toda como lama seca, e os pedaços irregulares caíam no chão com um ruído oco” (Idem, p. 86). Nesse instante, é o espelho que dá a Lóri a respectiva dimensão de sua essência:

E eis rosto agora nu, maduro, sensível quando já não era mais para ser. E o rosto de máscara crestada chorava em silêncio para não morrer.
Entrou em casa como uma foragida do mundo. Era inútil esconder: a verdade é que não sabia viver. Em casa estava bom, ela se olhou ao espelho enquanto lavava as mãos e viu a ‘persona’ afivelada no seu rosto. Parecia um macaco enfeitado. Seus olhos, sob a grossa pintura, estavam miúdos e neutros, como se no omem ainda não se tivesse manifestado a Inteligência. Então lavou-o, e com alívio estava de novo de alma nua (LISPECTOR, 1998, p. 86, grifo nosso).

Depreendemos que a máscara é capaz de proporcionar apenas uma dimensão primitiva tanto ao rosto umano como ao de um macaco. Tendo em vista, que o sujeito já não tem domínio sobre o próprio ser á uma necessidade de dissimular a indigência da vida ordinária sob o formato da persona Loreley. Diante do espelho vemos como Lóri presencia a descoberta de si mesma enquanto um ente marcado pela dura aprendizagem da vida. A maturidade alcançada por Lóri através do desfacelamento da máscara frente ao espelho, mostra como Clarice Lispector encena os limites da representação, pois a subjetividade contemporânea constitui o lugar perpassado pelo Mesmo e o Diferente, o não-senso e o desconhecido. Para nós, a literatura clariceana agencia a crise na qual o sujeito atinge num nobre perfazer-se, tal como a imagem da clareira eraclítica que vigora através de si mesma, a nudez concernente ao não-ser, ao eu situado na senda aberta pelas instigações do logos. Nos textos de Clarice Lispector a máscara funciona ambigüamente para esconder e revelar a mescla de “eus” fictícios sob os quais o omem busca fugir da existência. Com base no conto “Ele me bebeu”, da obra A via crucis do corpo (1998 [1974]), visualizamos a personagem Aurélia Nascimento caracterizada constantemente na narrativa por seus atributos físicos: loura, dentes grandes, boca botão de vermelha rosa, usava peruca, cílios, lentes e seios postiços. Aurélia era amiga de Serjoca um maquiador que não queria nada com mulheres, pois desejava omens. Em uma noite esperavam um táxi quando aparece Affonso Carvalho, um metalúrgico que lhes oferece carona. Os dois amigos sem direção, um rumo para seguirem aceitam ir a um bar com Affonso. Enquanto Serjoca se enfurecia de raiva, pois percebia que Affonso estava se interessando por Aurélia, esta correspondia e olhava “com desejo o omem” (1998, p. 42). Affonso os convida para jantar em sua casa, onde Serjoca lança olhos lânguidos ao industrial. No dia seguinte Affonso liga para Aurélia apenas para dizer que Serjoca era um amor de pessoa. Marcam novamente um encontro, Aurélia pede para Serjoca maquiá-la. Enquanto era maquiada Aurélia percebia que ele apagava seus traços, deixando-a vazia com uma cara só de carne.

Sentiu um mal-estar. Pediu licença e foi ao banheiro para se olhar ao espelho. Era isso mesmo que ela imaginara: Serjoca tinha anulado o seu rosto. Mesmo os ossos – e tinha uma ossadura espetacular – mesmo os ossos tinham desaparecido. Ele está me bebendo, pensou, ele vai me destruir. […]
Foi ao espelho. Olhou-se profundamente. Mas ela não era mais nada.
Então – então – de súbito deu uma bofetada no lado esquerdo do rosto. Para se acordar. Ficou parada olhando-se. E, como se não bastasse, deu mais duas bofetadas na cara. Para encontrar-se.
E realmente aconteceu.
No espelho viu enfim um rosto umano, triste, delicado. Ela era Aurélia Nascimento. Acabara de nascer. Nas-ci-mento (LISPECTOR, 1998, p. 43-44, grifo nosso).

Diante do espelho Aurélia espreita o apagamento da máscara que, para ela, constitui o próprio rosto. O que ocorre é que essa personagem em sua dimensão está alienada a se esconder por trás de uma imagem que não corresponde a si mesma. Dando bofetadas em seu rosto com brutalidade, Aurélia procura aniquilar o desvelamento do não-ser para que consiga encontrar-se consigo mesma, propiciando o surgir relativo ao verdadeiro “eu” abatido pela existência falsa na qual vivia. Um outro momento de desencobrimento do ser é figurado no romance Um sopro de vida, no qual a personagem Ângela tem uma vida construída através do “reflexo deformado assim como se deforma num lago ondulante e instável o reflexo de um rosto. Imprecisão trêmula” (LISPECTOR, 1998, p. 47). Esta personagem denota a perplexidade em compreender o seu interior, mas acaba por se defrontar com o respectivo vazio do não-ser. O espelho consegue nos dar apenas a dimensão de uma imagem embaralhada e obscura, pois está sujeita a constante sondagem da instabilidade referente à natureza umana. Em “A procura de uma dignidade”, conto da obra Onde estiveste de noite (1999 [1974]), a Sra. Xavier, apaixonada por Roberto Carlos, apresenta um rosto “quieto que já deixara de representar o que sentia. E agora era apenas a máscara de uma mulher de 70 anos. Então sua cara levemente maquilada pareceu-lhe a de um palhaço” (1999, p. 16-17). Também o seu corpo era um “fruto fora da estação” que lhe traz o anonimato diante do reflexo criado pelo espelho. Um corpo cujo fundo não se via e que era a escuridão das trevas malignas que lhe fez ficar perdida não só no Maracanã, mas dentro de si mesma.

Dessa maneira podemos dizer que não á mais espaço para a representação, visto que ao tentar concebê-la nos deparamos com um ser submetido ao vazio da existência. Nisso, nos encaminhamos para a cena na qual Macabéa, personagem d’A ora da estrela, vai ao banheiro por não compreender que seu chefe estava pensando em demiti-la.

Depois de receber o aviso foi ao banheiro para ficar sozinha porque estava toda atordoada. Olhou-se maquinalmente ao espelho que encimava a pia imunda e rachada, cheia de cabelos, o que tanto combinava com sua vida. Pareceu-lhe que o espelho baço e escurecido não refletia imagem alguma. Sumira por acaso a sua existência física? Logo depois passou a ilusão e enxergou a cara toda deformada pelo espelho ordinário, o nariz tornado enorme como o de um palhaço de nariz de papelão. Olhou-se e levemente pensou: tão jovem e já com ferrugem (1998, p. 25, grifo nosso).

A trama da narrativa de Macabéa, que se caracteriza pela justaposição descontínua de “retratos”[3] tirados pelo narrador Rodrigo S. M., corresponde ao drama de sua vida impossibilitada de constituir-se enquanto uma imagem no espelho. Ao invés do rosto de Macabéa, presenciamos a descrição da pia rachada, suja, cheia de cabelos que significa a sua existência também bipartida, feita de pedaços que o narrador cola. O espelho vazio encena o esgotamento da dimensão representativa, que dispersa a imagem da personagem colocando-a nas margens do mundo. Enviesada pela constante dor de existir, falta para Macabéa à incursão nos limites da subjetividade. Entretanto, essa mesma falta indicia uma subjetividade que não consegue ser, significar em palavras, pois a personagem torna-se incapaz de se propor como sujeito da enunciação e restaurar a linguagem expressão do não-senso que lhe constitui: “Encontrar-se consigo própria era um bem que ela até então não conhecia” (p. 42); “Maca, porém, jamais disse frases, em primeiro lugar por ser de parca palavra. E acontece que não tinha consciência de si e não reclamava nada, até pensava que era feliz […] E também não prestava atenção a si mesma: ela não sabia” (LISPECTOR, 1998, p. 69). O drama é lançado quando Rodrigo S. M. também por trás da máscara está inabilitado a alçar a essência mesma de Macabéa, pois vê apenas o exterior da imagem forjada no espelho.

Mais uma vez quem aclara a problemática oriunda da personagem Macabéa é Arêas (2005), embora sua interpretação enfoque A ora da estrela como um modelo sobre o qual se estrutura o universo circense, mais perto com certeza de Fellini e estabelecendo analogias com os folguedos dramáticos brasileiros. O alicerce de seu estudo pode ser pinçado de acordo com o seguinte raciocínio: a novidade da leitura de Arêas encontra-se na aproximação que ela sugere existir entre o romance e o circo ligado às diversas formas do teatro popular e a seus bonecos. A pesquisadora rastreia neste romance o universo circense concentrando-se mais especificamente na figura de Macabéa, que segundo sua ipótese, é caricaturizada sarcasticamente como clown.

Ora, à semelhança do teatro circense, o jogo cênico de A ora da estrela utiliza de forma ostensiva máscaras e trejeitos, improvisação, delírio verbal, material remendado (lugares-comuns colados no esmalte do discurso ‘literário’), enfim, ‘a mesma rutilância das roupas, de material pobríssimo, mas incrível de invenções’ que Marlyse Meyer observou a propósito das danças dramáticas populares que estão na base de Morte e vida severina. São formas híbridas em que o sagrado e o profano se misturam, em que deboche e lirismo são vizinhos. Meyer anota ainda que o teatro do bumba meu boi, por exemplo, embora mantenha semelhanças a olho nu com a commedia dell’arte, por conta da presença do ‘Arriliquim’ e de outras máscaras guarda com aquele teatro popular italiano uma ‘presença mais profunda, estrutural’: sua ligação com a pobreza (p. 99-100).

Nesse ponto, delineado por Arêas, o narrador Rodrigo S. M. exerce seu papel imperioso de maquilar o rosto da nordestina frente ao leitor. O rosto pueril de Macabéa demonstra toda a ambigüidade relativa à figura do clown, o qual expressa uma escultura arcaica ao mesmo tempo em que simboliza uma máscara de arlequim. Além desses esclarecimentos, Arêas ainda menciona diversos elementos extensivos ao aparato circense: sexualidade, aspecto físico, ermafroditismo comum aos clowns, papel de mestre de cerimônias circense desempenhado pelo narrador, kitsch. A simplicidade da narrativa é menos trama que, às vezes, sucintas direções de palco, e funciona como mero suporte a tiradas que ficam a um passo do non-sense, mas com funcionalidade dupla de provocar o umor, bem como a sátira social. Esse movimento circunscrito na ficção clariceana seria extensivo à pobreza desse romance singular, construído na linha oscilante que o ameaça constantemente de ruína e fracasso literário. Arêas desenha um percurso que elucida a encenação da estrutura circense, antinaturalista por excelência, como uma maneira de Lispector falar da miséria urbana brasileira de uma forma fria e arrojada.

De modo bastante peculiar, vemos como Macabéa personifica o verdadeiro clown, cuja figuração não deixa margem à dúvidas: meio “caiada”, pela “grossa camada de pó branco” com que simulava os “panos brancos” (LISPECTOR, 1998, p. 27) do rosto, com o rosto deformado pelo espelho ordinário que lhe punha um “nariz tornado enorme como o de um palhaço, um nariz de papelão”, os lábios finos pintados fora do contorno, na tentativa de imitar Marilyn Monroe, tentativa frustrada, pois as unhas roídas matizadas de verniz berrante, deixando ver o sujo do sabugo, tudo isso compõe uma subjetividade ao mesmo tempo deplorável e patética. Comparada aos animais umildes, a capim, Macabéa possui um “corpo cariado” (Idem, p. 35), “tão jovem e já com ferrugem”, desgastado por uma existência iluminada pela “felicidade pura dos idiotas” (Idem, p.69), deslumbrantes sonhos, mas vazios “porque lhe faltava o núcleo essencial de uma prévia experiência de – de êxtase. A maior parte do tempo tinha sem o saber o vazio que enche a alma dos santos” (Idem, p. 38). Dela podemos afirmar o que Clarice Lispector postulou a propósito da galinha, a qual é comparada a Macabéa, a ponto de a personagem acabar morrendo “como uma galinha de pescoço mal cortado” (Idem, p.87). É apenas na agonia prazerosa da morte que Macabéa pode realizar a transcendência do ser sob o signo da linguagem que mostra a abertura “em fendas” (Idem, p. 81) como se “chegasse a si mesma” (Idem, p. 82). Somente a morte propiciou para Macabéa um desvelamento de sua subjetividade estilhaçada em virtude de sua incomunicabilidade a propósito do ser no mundo.

Essas considerações nos possibilitam afastar a questão social tematizada por Arêas em A ora da estrela para pensarmos na ambigüidade trazida pela máscara do clown que se estende à figura de Lóri, a qual lhe prende ao mundo, mas também engendra a descoberta da própria essência. Se, como afirma Deleuze (2006) é apenas no nível da arte que as essências são reveladas enquanto a unidade de um signo imaterial e, de um sentido inteiramente espiritual que em vão procurávamos na vida, supomos com base no projeto ficcional clariceano que Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres delineia uma aproximação da essência quando encena a crise da subjetividade como o âmago constituinte da aprendizagem de Lóri. Ora, o jogo de espelhos forjado pelo paradoxo aprendizagem/prazer também encaminha e reforça o desvelamento da essência que possibilita à personagem se constituir como um “eu”. A arte clariceana sublima uma protagonista incompleta e direciona o devir advindo por trás da máscara que esconde do mundo e de si mesma o insuportável abalo do seu interior causado pelas instigações do logos que clama ser escutado. Frente ao espelho, Lóri consegue desnudar sua essência ao perder a identidade que lhe impunha uma máscara social. Isso também acarreta a negação da identidade pessoal, assim como Deleuze (2003) aponta em Alice no país das maravilhas. Negativa possível à medida que o papel posto pelo nome próprio de Lóri, enquanto a sereia que encanta, é arrastado pelo devir da aprendizagem quando ela compreende através da linguagem a possibilidade de dizer “eu”. Lóri que antes procurava arranjar um modo de existir por meio da persona que vestia sob o rosto, “agora tinha na verdade o que era tão mais perfeito: era a grande liberdade de não ter modos nem formas” (LISPECTOR, 1998, p. 149).

Quanto a ela, lutara toda a sua vida contra a tendência ao devaneio, nunca deixando que ele a levasse até as últimas águas. Mas o esforço de nadar contra a corrente doce avia tirado parte de sua força vital. Agora, no silêncio em que ambos estavam, ela abriu suas portas, relaxou a alma e o corpo, e não soube quanto tempo se passara pois tinha-se entregue a um profundo e cego devaneio que o relógio da Glória não interrompia.
Ele se mexeu na cama. Então ela falou:
— Você tinha me dito que, quando me perguntassem meu nome eu não dissesse Lóri, mas ‘Eu’. Pois só agora eu me chamo ‘Eu’. E digo: eu está apaixonada pelo teu eu. Então nós é. Ulisses, nós é original (LISPECTOR, 1998, p. 148, grifo nosso).

Destituir-se de uma identidade que lhe fixava determinado modo de ser no mundo, firmar-se no não-senso trazido pela neutralidade do “eu”, constituir-se na atemporalidade da existência, significam os modos pelos quais Lóri atinge uma compreensão de si mesma como um sujeito predisposto ao duplo sentido. Para alcançar a unidade da essência faz-se necessário o reconhecimento de que o ser é constituído pela pluralidade de “eus” que mesclam um “nós” em um “é”. Localizar as nuances que correspondem à perda da identidade e a crise pela qual o sujeito tem de passar para alçar a sua própria essência, nos permitem situar a escritura clariceana numa determinada genealogia da arte literária que figura a dimensão da vida contemporânea.

Com nosso estudo percebemos que a narrativa de Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres diagrama a trajetória do omem rumo ao conhecimento de si mesmo. Ao pesquisarmos a personagem Lóri pudemos entender como o sujeito procura encontrar saídas para definir a subjetividade sob o jugo de uma lógica que o enquadre a determinado modo de ser. Impossibilitada de demarcar fronteiras, Lóri enfrenta toda sorte de agonias existenciais para, então, experienciar o aniquilamento da condição indigente e elevar os acontecimentos umanos à problemática da subjetividade, cujas indagações buscam um sentido para o ser em um mundo em vias de se desmoronar.

Diferentemente do erói clássico, Ulisses, a protagonista já não luta contra as forças míticas do destino na medida em que a subjetividade está sempre evocando a perda dos liames que lhe enraizavam a vida banal. Somente no silêncio trazido pelo vazio interior é que Lóri consegue abrir-se ao desvelamento do próprio ser. Não á aprendizagem se não ocorrer à discrepância com o senso comum, pela qual Lóri obtura a dor de compreender sua essência desconhecida e imprevisível, de maneira a atingir o prazer propiciador do surgimento do ser na linguagem.

A narrativa de Clarice Lispector apresenta o drama relacionado à falência da representação subjetiva incapaz de dar uma dimensão originária ao omem. Isso porque o acontecimento só é possível segundo um devir que arrasta Lóri ao infinito do não-ser, fazendo-a ingressar na aventura desveladora do saber não palpável. Assim, a protagonista margeia o não-senso e dissipa o conceito de identidade enquanto mero aparato ao situar-se na fissura aberta pela encenação referente ao drama da subjetividade na escritura clariceana. Algo que nos possibilitou ampliar a perspectiva de estudo referente à obra dessa escritora, tão complexa? Tão introspectiva? Ou simplesmente umana quando nos deparamos com o vazio, o nada narrativo? Assim, a profundidade na obra de Clarice Lispector se desenvolve como um efeito de linguagem que instaura a crise da subjetividade no que concerne a aprendizagem, a dor, a morte e o prazer.

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[1] Deleuze, Gilles, “La Litérature et la Vie”, Critique et Clinique, Minuit, Paris, 1993, pp. 11-17.

[2] Podemos ainda dialogar com a tradição literária de Machado de Assis quando no conto “A cartomante”, datado de 1884, encena o triângulo amoroso vivido por Vilela, Camilo e Rita. Enquanto Camilo recebe cartas que ameaçam revelar o romance com Rita para o seu marido Vilela, Rita crê que a cartomante pode resolver o problema. Então, Camilo procura a cartomante charlatã, cujas palavras o faz confiar que o pedido de Vilela para que vá a sua casa não diz respeito ao descobrimento da traição. Entretanto, ao chegar na casa de Vilela, Camilo é morto à queima roupa após ver Rita assassinada pelo amigo de infância, que já estava sabendo da perfídia.

[3] Ver ARÊAS, Vilma. Clarice Lispector com a ponta dos dedos. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

 

Artigo submetido em 21/07/2008 e aprovado em 10/08/2008.