Uma análise crítica das pluriidentidades e demais relações intertextuais entre Budapeste, de Chico Buarque, e Lorde, de João Gilberto Noll

Luís Fernando Fahrion Moraes

RESUMO: Este trabalho de pesquisa tem por objetivo aplicar aspectos da teoria literária para uma análise crítica sobre as relações pluriidentitárias de conteúdo multiculturalista e suas implicações para o processo de criação literária, analisando as “diferenças dentro das diferenças”; identificar algumas variantes da dialética eu-outro, identidade-diferença, opressor-oprimido, partindo do entendimento de alguns signos culturais presentes em algumas variações identitárias, bem como da influência de alguns vetores histórico-geográfico-culturais para o discurso literário. Analisando as pluriidentidades nas narrativas que abordam as relações entre-nações e identidades comparadas, o presente artigo focalizará a relação de intertextualidade entre Budapeste, de Chico Buarque, e Lorde, de João Gilberto Noll, definindo as conseqüências do hibridismo cultural presente em ambas as narrativas.

PALAVRAS-CHAVE: Budapeste. Lorde. Intertextualidade. Multiculturalismo. Identidades.

ABSTRACT: This paper has as its objective to apply some theoretical literary aspects in order to do a critical analysis of pluriidentitary relations based on multiculturalist content and its implications for the literary creation process, analyzing the differences inside the differences; identifying some variations of the me-other, identity-difference, oppressor-oppressed dialectics, starting from the comprehension of some cultural signs in some identitary variations, as well as the influence of some historic, geographic and cultural features on the literary speech. Analyzing the pluriidentities in the narratives that deal with the relations between nations and compared identities, this paper will focalize the intertextuality between Budapeste, by Chico Buarque, and Lorde by João Gilberto Noll, defining the consequences of the cultural hybridism in both narratives.

KEYWORDS: Budapeste. Lorde. Intertextuality. Multiculturalism. Identities.

 

Uma visão crítica sobre as abordagens multiculturais na criação pluriidentitária

Para que se possa enquadrar corretamente a idéia de multiculturalismo, inserida na Literatura, é preciso entender o universo da própria criação literária, bem como os objetivos de cada autor dentro desse processo criativo.

É possível que, se fizermos um apanhado de autores que escrevem de forma multicultural, ou seja, sobre as diversidades étnicas, sociais, históricas, geográficas, etc., que envolvem seus personagens, cada qual entenda o multiculturalismo dentro de prismas particulares ou de ideologias próprias. Esse aspecto é reflexo do próprio fluxo e refluxo desse grande corpo chamado humanidade, que, através dos tempos, constrói e põe abaixo grandes civilizações que sofrem seu amadurecimento, apogeu e queda.

Huntington define o estado atual das civilizações como:

(…) o mais amplo agrupamento de pessoas e o mais abrangente nível de identidade cultural que se encontra entre seres humanos, excetuando-se aquele que distingue os homens das outras espécies. Obviamente existe a mescla e a superposição de civilizações, e estas podem ainda conter subcivilizações. A civilização ocidental apresenta duas variantes principais, a européia e a americana, enquanto o Islã possui as subdivisões árabe, turca e malaia. No entanto, muito embora as linhas entre elas raramente estejam bem definidas, as civilizações são reais. Elas têm apogeu e declínio, dividem-se e fundem-se. E, como é do conhecimento de qualquer estudioso da História, as civilizações desaparecem.(1983, p.136)

A literatura de caráter multiculturalista, extrinsecamente ligada à literatura de identidades, é, em última análise, um estudo sobre a formação da própria civilização, mesmo que transladado para um formato eminentemente literário. Geralmente, os escritores que se debruçam sobre esse tema buscam essa exposição de entranhas civilizatórias, migratórias, por vezes de caráter psicológico, em que é dada ênfase ao mundo íntimo dos personagens, por vezes de cunho social, onde há um reforço discursivo maior nos aspectos que tratam do comportamento e da visão sistêmica de uma sociedade, comparativamente com outra ou não, enfim, são muitas as variantes. Talvez um diga que a questão centraliza-se em escrever dentro de uma objetivação voltada à valorização da diversidade, outro ao combate aos preconceitos, ou, ainda, a valorizar determinados aspectos histórico-revisionistas passíveis de abordagem ficcional; enfim, as respostas poderiam variar.

Huntington, ao explorar as ricas possibilidades de abordagem do tema “civilização”, teoriza ainda que:

Civilizações diferentes têm concepções diferentes das relações entre Deus e os homens, os cidadãos e o Estado, pais e filhos, liberdade e autoridade, igualdade e hierarquia. Essas diferenças são produto de séculos. Não desaparecerão em pouco tempo. São muito mais elementares do que as diferenças entre ideologias e regimes políticos. Diferenças não significam necessariamente conflito, e o conflito não implica obrigatoriamente violência. Contudo, ao longo dos séculos, foram as diferenças entre civilizações que geraram os conflitos mais violentos e prolongados. (1983, p.138).

Em uma perspectiva geral, considerando os aspectos civilizatórios expostos por Huntington, pode-se afirmar que multiculturalismo é, literariamente falando, acima de tudo, a exposição de mais de um tipo de identidade, dentro da mesma ou de diferentes civilizações, que permeia o comportamento social, explorando também as equações que permitem (ou podem permitir) a representação simbólica ou concreta dessas identidades do ponto de vista da criação literária, de forma a valorizar as mesmas para o bom desenvolvimento do discurso narrativo e do enredo como um todo.

Lançando um olhar para o legado de autores que trabalham com a perspectiva multicultural (HALL, 1997; BHABHA, 1998; McLAREN, 2000), veremos que esses tratam, essencialmente, de valorizar a pluralidade cultural, partindo do conhecimento dos costumes e signos culturais dentro das diversidades. Seu objetivo é questionar racismos, sexismos, preconceitos e injustiças de forma geral, buscando os aspectos mutáveis dentro desses espaços ou universos culturais, sociais e literários, tomando-se em consideração tanto as visões mais liberais quanto as mais folclóricas, sobrepondo sobre elas uma visão mais crítica do contexto ou ordem geral.

Embora passíveis de apresentar tensões e questionamentos, as abordagens multiculturalistas jogam luzes sobre aspectos que visam, sempre, um melhor conhecimento sobre tradições, visões de mundo e qualquer outro tipo de manifestações culturais, peculiares às culturas abordadas. Porém, levando-se em conta o fato de que a ficção pode omitir, ocultar ou, simplesmente, mentir sobre fenômenos sócio-culturais, em que medida a criação literária que trate das relações pessoais entre indivíduos diferentes, mesmo divergentes, pode estar apenas mascarando as desigualdades e preconceitos que estão sempre presentes na construção dessas identidades? O multiculturalismo literário, assim como o crítico, sendo a mais pura tradução das diversas formas de manifestação livre do pensar, do “ver o mundo com olhos particulares”, pode mesmo, sem que isso traga prejuízo para a liberdade de expressão, recair em um enaltecimento da diferença, na valorização de uma cultura sobre outra, fortalecendo, às vezes, mais que combatendo preconceitos arraigados no espírito crítico de determinada sociedade.

A análise das “diferenças dentro das diferenças” dentro do discurso narrativo é outra forma de valorizar discursos que não se embasem em visões estáticas, preconceituosas e homogeneizadas no processo de construção literária dessas identidades, sejam elas opressoras, representando a voz dos poderosos, ou oprimidas, na voz dos excluídos.

Trata-se, pois, ao invés de rejeitar as tensões, de incorporá-las dentro de sua exata dimensão, para que se possa avançar no entendimento do multiculturalismo que permeia o mundo globalizado, legado que é da soma de conhecimentos e costumes de todas as gerações e povos do passado que os deixaram sua história e cultura. Assim, abre-se o caminho para o entendimento de todos os possíveis vetores histórico-geográfico-culturais que permeiam as mais diversas formas de literatura.

Evita-se, outrossim, a redução do multiculturalismo apenas a um processo de valorização das muitas identidades ou, sob outro enfoque, à luta contra os preconceitos. Huntington inclui também os aspectos econômicos e sociais como importantes vetores da recriação de identidades, que é uma forte tendência da atualidade.

O mundo está ficando menor e a consciência das diferenças entre povos de diferentes civilizações vem aumentando. Por exemplo, os americanos reagem muito mais negativamente a investimentos japoneses do que a investimentos mais vultosos feitos pelo Canadá e por países europeus.
Também as mudanças econômicas e sociais estão separando as pessoas das identidades locais formadas há muito tempo. Em boa parte do mundo, a religião tomou a si a tarefa de preencher esse hiato, com freqüência na forma de movimentos denominados fundamentalistas. Tais movimentos são encontrados no cristianismo ocidental, judaísmo, budismo, hinduísmo, islamismo. A “dessecularização” do mundo, nas palavras de George Wigel, “é um dos fatos sociais dominantes do final do século XX”.
Ademais, no momento em que o Ocidente se encontra no auge do poder, ocorre um fenômeno de retorno às raízes entre as civilizações não-ocidentais – a “asianização” do Japão, o fim do legado de Nehru e a “hinduização” da Índia, o colapso das concepções ocidentais de socialismo e nacionalismo, trazendo a “reislamização” do Oriente Médio e, agora, o debate sobre ocidentalização versus “russianização” na ex-União Soviética.(HUNTINGTON, 1983, p. 138-139)

Todo esse processo de revolução do entendimento atual sobre o que vem a ser as diferentes formas de relacionamento entre diferentes formas de pensamento, tanto em âmbito local, continental ou global, é manancial para o processo de criação literária, e tem-se constituído em tema central de uma imensa gama de obras literárias, no Brasil e no mundo.

A análise das “diferenças dentro das diferenças” dentro do discurso narrativo é outra forma de valorizar discursos que não se embasem em visões estáticas, preconceituosas e homogeneizadas no processo de construção literária dessas identidades, sejam elas opressoras, representando a voz dos poderosos, ou oprimidas, na voz dos excluídos.

A partir do processo de hibridização identitária, conforme proposto por Canen & Moreira (2001), se clarifica o racionalismo da dialética eu-outro, identidade-diferença, opressor-oprimido. As identidades são resultantes de uma pluralidade de marcadores que não podem se reduzir a apenas um marcador principal, seja étnico, de gênero, sexual, religioso ou qualquer outro.

Na visão literária, seja sob o ponto de vista do poder ou da desobediência, do oriente ou do ocidente, todas as correntes de conhecimento humano, bem como suas raízes históricas, ganham um olhar diferenciado, à medida em que são confrontadas dialeticamente com as angustiosas e prementes lacunas, ainda não preenchidas, que compõem os intermináveis questionamentos, revisionismos e conflitos existenciais que perpassam nosso momento atual. Nesse contexto, o espaço literário pós-modernista é composto de um universo multifacetado, autocrítico e desafiador, uma vez que trabalha com as linhas do tempo histórico e os recortes estruturais que compõem, no micro e no macrocosmo, verticalmente e horizontalmente, as dinâmicas mutações sociais dos usos e costumes, vislumbrando, inclusive, possíveis cenários para o futuro desse grande organismo chamado coletividade.

Ambas as obras que analisamos neste trabalho, Budapeste e Lorde, são destituídas de elementos pré-textuais como prefácio, apresentação e outros; bem como de elementos pós-textuais. Dotadas de uma narração veloz e psicológica, com breves descrições de locais e maior relevo à expansão de sentimentos e percepções auto-reflexionais, sua leitura é de uma fluência que não prescinde de maiores esforços intelectivos para fazer-se compreendida. Seu discurso, dentro do pacto ficcional estabelecido por ambos os autores, está sempre a sugerir, através de sutilezas psicológicas, as causas que impulsionam e motivam os atos e reações expressas pelos personagens, dentro da feição eminentemente memorialista-intimista que ambos os narradores-protagonistas lhe imprimem.

Não é que não tenham diferenças: em Lorde há um imobilismo muito maior, haja visto que o narrador-protagonista assume apenas um país como lugar de fala. É em Londres que se desenrolam quase todas as situações por ele vivenciadas, tendo Liverpool a servir apenas como cenário para os momentos finais da narrativa.

Elementos de construção identitária presentes em Budapeste

Em Budapeste, de Chico Buarque, os cenários são mais amplos, e perpassam a realidade ficcional de dois países de heranças culturais linearmente distintas, que são o palco narrativo, alternando vivências do narrador-protagonista no Brasil e na Hungria.

As idas e vindas do narrador protagonista bem evidenciam as marcas de tempo narrativo. Isto facilita o entendimento do nexo causal entre as sucessivas “migrações” do narrador-protagonista à Hungria. Os retornos ao Brasil geram, sempre, os conseqüentes desdobramentos narrativos das situações psicológicas criadas a partir destas viagens.

Budapeste é uma narrativa espelhada, que abarca realidades culturais diferentes; à fria Hungria se adicionam elementos do cenário carioca, sempre refletindo as experiências do narrador-personagem principal, alternando-se narrativamente os países, capítulo a capítulo.

As motivações que conduzem o personagem central de Budapeste à Hungria, sejam subjetivas ou objetivas, são apresentadas, muitas vezes, mais fortes que a condição psicológica do próprio narrador, o que acaba levando-o a sofrer desconfortos emocionais tanto durante sua estada na Hungria quanto durante seu retorno ao Brasil. As dificuldades de adaptação à nova cultura, a discriminação, quase segregação a princípio, bem como as progressivas desambientalizações nas voltas ao Brasil, são quadros narrativos que não se contrapõem à introdução progressiva de outros elementos da narrativa, todos relacionados entre si. É o caso da desestruturação crescente do casamento do protagonista com Vanda, sua esposa brasileira, por exemplo. Aqui merece atenção não só o simbolismo da representação feminina-mátria de Vanda e Kriska, a amante húngara, para o protagonista, mas, também, a questão identitária que se relaciona com o comprometimento do personagem-narrador e o objetivo que ele passa a nutrir e que o faz retornar à na Hungria, que é o anseio por dominar o idioma magiar. Outra questão que remete à condição de dupla identidade do narrador é a mutação de seu próprio nome, através de uma sutileza do autor, ao utilizar o simbolismo do sotaque estrangeiro para passar uma mensagem mais significativa. Ele é José Costa no Brasil e, também, Zsoze Kósta para os húngaros.

A relação pluriidentitária proposta na ponte narrativa entre Brasil e Hungria, presente em Budapeste, simboliza o anti-provincianismo por excelência, representado pelo franco diálogo (de um personagem que se divide em dois) entre ambos os idiomas e ambas as fronteiras literárias. O que é presente na narrativa, também, é o fato do autor propor a existência de ghost writers, que seriam escritores que vendem a própria criação literária, e pessoas que as compram e passam a exibir sua autoria, como se de sua lavra partissem essas obras encomendadas.

Aspectos identitários na narrativa de Lorde

A desconstrução (ou redefinição) da identidade está presente também em Lorde, de João Gilberto Noll. A referenciação demarcada pela situação do protagonista-narrador, outro escritor (de sete livros) que é convidado a conhecer e trabalhar (não se sabe nem em que ou para quem) em Londres, é o mote central da narrativa. O narrador-protagonista, trocando a solidão de Porto Alegre pela de Londres, é um escritor conhecido, com suas obras já publicadas no exterior. Seu espaço intersticial reside na ponte Brasil-Inglaterra ou, melhor dizendo, Porto Alegre-Londres-Liverpool. Suas ambigüidades passam por uma atitude recolhida no novo país a uma canalização progressiva de sua libido para o exercício da própria homossexualidade.

Também, em Lorde o espelhamento imposto à narração assume caráter diferenciado: a narrativa é em primeira pessoa, sendo que o narrador segue sendo protagonista dos fatos que em sua volta vão se desenrolando, porém se percebe, a todo momento, uma inquietude interior por parte do mesmo; ele deseja ardentemente mudar (de país, de aparência). Os espelhos, fartamente citados no texto, são suas muletas psicológicas, uma projeção visível de seu eu profundo, onde busca os sinais de afastamento (ou, talvez, numa visão polissêmica, um íntimo e escondido desejo de reencontro) de sua identidade brasileira.

A narrativa em Lorde centraliza-se no personagem principal que passa a viver em exclusiva e ampla dependência de um certo personagem inglês, que passa a ser seu “guia” na Inglaterra. Descrito com tão poucos detalhes (loiro, tem uma amante, faz parte de uma companhia secreta…), remanesce envolto em mistério, quase um alter ego de caráter simbólico-reflexivo, quase um tipo ideal a ser alcançado pelo protagonista, como exemplifica a passagem abaixo:

Se não aderisse cegamente àquele inglês que me chamara até Londres, se não o reinventasse dentro de mim e me pusesse a perder a mim próprio, sendo doravante ele em outro, neste mesmo que me acostumara a nomear de eu, mas que se mostrava dissolvido ultimamente, pronto para receber a crua substância desse inglês, ora, sem isso não calcularia como prosseguir. E uma substância que eu saberia moldar, eu sei, eu saberia: em outro e outro ainda, em mais (NOLL, 2004, p. 27-28).

As atitudes do narrador com o inglês vão desde a gratidão até a sedução. E, da parte do inglês, é como se o oposto nele projetado pela idealização do protagonista tomasse vulto. A partir de determinado momento, este mesmo inglês que antes demonstrara ser heterossexual, derramando-se na cama do apartamento do bairro londrino de Hackney com uma colega-amante, passa a externar também sua tendência homossexual. É como se aceitasse, de forma velada, o flerte que lhe é sugerido pelo protagonista. É o que fica sugerido pelo autor no seguinte excerto:

Ele já não parece um dos guardiões incontestes da cidade. Aparenta me seguir dessa vez. Dá a pinta de ter perdido qualquer rota, nem sabe onde está. Sentamos nesses bancos com patamares mais altos. Pego a mão dele. Digo, esse aí é o Tâmisa. Olha a lua lá. Aproximo as mãos e beijo a dele. Desconfio de sua bonomia nada escancarada. Daqui a pouco ele se descontrola e mostra quem é mesmo que manda ali. Solto a mão dele, ponho-a em cima da sua perna, dou um tapinha nela. E me afasto para a ponta do banco. Começo até a desconfiar de que esse homem perdeu a argamassa que o mantinha durão, esquisito, oblíquo. Vai ver iniciou a cair de amores por mim (…) Vai ver é o rapaz da minha vida e chega só agora, quando nem o espelho mais quero olhar.(…) Pois, olha, vou pegar de novo a mão dele e ele não vai dar um pio, apenas entrefechar os olhos e aceitar. Mas, claro, não faço nada disso, não quero perder a perspectiva relutante que deve haver em casos assim (2004, p.84).

Essa tentativa de espelhar-se, refletir-se, na alma inglesa, está presente na mente do personagem-narrador ao longo de toda a narrativa em Lorde, e encontra seu ponto de ressignificação nas inúmeras referências que este faz ao espelho, representação simbólica das mudanças que vão inexoravelmente ocorrendo no arcabouço subconsciente deste personagem. Seu ego não é mais o mesmo, e ele procura afoitamente pelo espelho a fim de poder comprovar esse fato fisicamente, ou, quiçá, mirando-se, poder penetrar portas adentro de si mesmo (o olhar-se como mero fio condutor do refletir-se), vasculhando sua própria essência, tal como vemos abaixo:

Ao chegar em casa, a calefação no ponto.(…) Rondei pelo apartamento, a começar pelo banheiro, à procura de um espelho.(…) Não era por nada, queria me ver depois da viagem, ver se eu ainda era o mesmo, se este que tinha se adonado de uma casa nos subúrbios de Londres tinha remoçado com a mudança (…) (2004,p.23).

Onde eu estive o dia inteiro? Procurando um espelho, pois preciso constatar que ainda sou o mesmo, que outro não tomou o meu lugar.(…) O homem certo, eficaz, translúcido, é este que aparecerá no espelho que ainda não usei (2004,p.24).

Nessa noitinha entrei em casa e fui direto ao espelho (2004,p.28).

Não precisava mais dos espelhos dos banheiros públicos, nem do meu próprio em casa, eu era Apis, poderia andar a pé por toda Londres (…) (2004,p. 37).

Corri para o banheiro, peguei o espelho, e o pendurei ao contrário. Eu não teria mais face, evitaria qualquer reflexo dos meus traços. (…) Por via das dúvidas, o espelho continuava ali, voltado para o lado errado mas ali (…) (2004,p.44).

O discurso narrativo é amplamente recheado com descrições de Londres, porém há  poucas referências a Porto Alegre, vagando como memórias esparsas de um escritor que agora vive o sonho de morar no exterior, fascinado com o cenário de uma cidade que se afirma, em cada rosto e em cada esquina, cosmopolita por vocação. A narração, neste aspecto, evolui para o conceito de que é factível a vida em coletividade sem a necessidade de uma identificação coletiva, como se dá nas grandes cidades do mundo globalizado em que vivemos. Tal como está subentendido no discurso, para um cidadão do mundo sentir-se em sua casa em qualquer lugar é preciso, paradoxalmente, que ele não se sinta em casa em lugar algum.

O protagonista, porém, não abandona de todo sua identidade brasileira, que lhe dá a ginga necessária para sobreviver às incertezas e dificuldades de uma terra estranha, para o que temos confirmação através desta passagem: “Fui saindo, atravessando a rua, tinha manha, nessas horas sempre é bom lembrar-se de que se é brasileiro” (2004, p.83).

É justamente essa identidade brasileira que, ao final da trama, lhe dará a definitiva estabilidade financeira no novo país, como professor de português na Universidade de Liverpool, para onde se muda após sair de Londres, como vemos nestas passagens em que, inclusive, o narrador protagonista vem a conhecer um novo amante, já na nova cidade:

Eu sou professor de português, falei em português, claro, colado à imagem refletida daquele corpo agora solitário, com o hálito de George que o espelho devolvia, mas o qual – ao contrário – me transmitia: sim, a mim, sílaba por sílaba…
Eu sou professor de português, repeti o leve acento gaúcho, com a mesma disposição, a minha, só que em outra superfície, mais incisiva, oleosa, a melena espessa de bárbaro, a dele (2004, p. 109).

O autor de Lorde, é bom que se ressalte, propõe outro argumento velado na conduta de seu protagonista: o de que todo tipo de identidade deverá ser tacitamente aceito. O objeto para esta possibilidade analítica é o relato de várias situações de homossexualismo entre o protagonista e outros personagens da narração. Esta instrumentalização do discurso o conduz, é bom que se afirme, a um fortalecimento identitário e, porque não dizer, ideológico. Até mesmo o cicerone inglês do personagem-narrador, que mantém um romance com sua colega de trabalho, posteriormente revela uma inquietude sexual que pode enveredar pelo caminho da bissexualidade, embora não seja sugerido que se tenha consumado a relação sexual entre ele e o protagonista.

Conclusão

Um ponto de encontro entre as duas narrativas, como já foi dito, é a descrição mais ou menos pormenorizada dos lugares. A cidade de Budapeste nos é revelada de vários ângulos, bem como, em Lorde, o é a Londres do aeroporto de Heathrow, do Victoria Park ou do pobre bairro de Hackney. Porém, ao passo que ricas descrições do Rio de Janeiro são apresentadas ao leitor em Budapeste, algo esparsas e rarefeitas são as recordações de Porto Alegre exaradas pelo narrador de Lorde e, nesta, é Liverpool que assume o contraponto geográfico da narrativa, haja visto que o protagonista deseja ardentemente viver (vir a ser) como cidadão inglês, sem o desejo de retorno ao Brasil. É o que faz com que a internacionalização gradativa que vai tomando conta do protagonista de Lorde transforme esta obra, paulatinamente, de literatura heterocentrada em literatura autocentrada. A precariedade de suas referências ao Brasil reflete, inicialmente, sua sede de mudar desse país para qualquer outro, a fim de renovar-se. Posteriormente, reflete o fato de ter adotado, em definitivo, a Inglaterra como seu lar, como vemos no excerto abaixo:

Não era por nada que eu me apegara à ilha. No Brasil fora convocado por um inglês indecifrável, não é mentira, que até o fim de seus dias não me revelou a verdade de seu gesto, a quem representava de fato, a não ser as iniciais de uma instituição a meu ver fajuta, tudo certo; mas inglês este que me deu indiretamente a oportunidade de ver que eu precisava mudar de país, fosse para este ou outro (2004, p. 105).

Outra é a linha narrativa de Budapeste. O protagonista move-se constantemente entre os dois mundos, como que isentando, invariavelmente, a narrativa de posições estáticas, desestimuladas pelo potencial heterocêntrico do discurso.

Para entender o jogo de identidades proposto tanto em Budapeste como em Lorde, é preciso ver além do simples binomismo que está proposto na narrativa. Homi K. Bhabha é um teórico que propõe, em auxílio a nosso raciocínio, a introdução do conceito de “espaço intersticial” a fim de evitar que as identidades sejam reduzidas em simples binarismos.”A passagem intersticial entre identificações fixas abre a possibilidade de um hibridismo cultural que acolhe a diferença sem uma hierarquia suposta ou imposta” (1998, p. 22).

O que este teórico propõe é a reflexão do amplo, bem como do ambíguo, ao invés de nos fixarmos em reducionismos. A estética do outro (Kósta) na narrativa é híbrida, situa-se no espaço intersticial de Bhabha, e descarta a necessidade da exclusão. Um é parte do outro, o ghost writer é uma identidade possível do autor. O entre-países é uma necessidade que tece a trama do discurso com os elementos do desenraizamento, do contra-fluxo instável do escritor-não-autor. Há, também, a negação da busca da afirmação identitária, neste caso devendo-se ao fato de Kósta ser um ghost writer que demonstra gostar do próprio anonimato.

Guimarães Rosa reproduz este modelo, ou algo parecido, no conto A terceira margem do rio: o personagem estava constantemente à deriva e sua canoa nunca “pojava em nenhuma das beiras, nem das ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem capim” (1988, p. 32-37).

Outro exemplo à teoria de Bhabha temos na obra O ermitão de Muquém, de Bernardo Guimarães, que nos apresenta, também, um protagonista único, herói-anti-herói, desconstruído em três personagens distintos. A princípio ele é Gonçalo, bandido famoso e odiado nos sertões entre Goiás e Minas Gerais. A partir de um auto-exílio, ele se transformará em Itagiba, líder da nação indígena dos Xavantes, que passa a revelar alguma bonomia sem perder alguns aspectos de sua antiga personalidade. Ao final da narrativa, ele finalmente alcançará a paz espiritual como o religioso e asceta que dá nome à obra. O espaço intersticial de Bhabha mais uma vez é o mediador que faz a ponte entre esses mundos, todos demarcados e interpenetrados dentro de um universo maior e único, neste caso, o sertanejo.

Essa ponte gera elementos de interseção, uma vez que ambos os autores se permitiram, dentro do pacto ficcional estabelecido com os leitores, não só traçar elementos em comum dentro do espaço entre-países, mas, e sem talvez o saberem, construir narradores protagonistas que, cada qual a seu modo, se vão assemelhando durante o trajeto narrativo, embora provenham de mundos ficcionais distintos. Esta riqueza comparativa é abordada por Arrigucci (1999), ao analisar as raízes culturais de nossa literatura, nos seguintes termos: “Então, vamos dizer, essa é uma idéia que envolve o comparatismo: a formação de uma literatura de onde provém, a portuguesa, e com outras literaturas européias, e sem desprezar aos vários momentos de interseção” (p.373).

Portanto, pode-se concluir que as narrativas que tratam de analisar, mesmo que dentro de parâmetros ficcionais, as relações entre-nações, as multiculturas e as identidades contemporâneas comparadas, como é o caso das ambigüidades sexuais em Lorde; ou a relação cultural entre oriente e ocidente, presente em Budapeste, por exemplo, têm, efetivamente, seu grau menor ou maior de relevância, e nunca deixam de ser uma contribuição, ainda que mínima, para desvendar o intrincado quebra-cabeça que representam as civilizações, das quais a Literatura é sempre um profundo reflexo.

Referências

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