Imagens da China em Camilo Pessanha

Fernando Mendonça Serafim

RESUMO: Este artigo visa buscar, na textualidade dos escritos do autor de Clepsydra, os traços que compõem uma paisagem de exotismo sob o crivo de uma sensibilidade cindida e inquieta, cuja principal característica é a impermanência das sensações. As pouco numerosas cartas do autor (em especial os ensaios de China: estudos e traduções) terão papel primordial na análise dessa temática, a qual representa uma das possibilidades de compreensão e leitura de suas obras. Indubitavelmente, o entendimento desses topoi se faz necessário a fim de que sejam questionados alguns rótulos e equívocos teóricos que frequentemente são impostos à complexa poética de Camilo Pessanha.

PALAVRAS- CHAVE: exotismo; Macau; Decadentismo.

ABSTRACT: In this paper, we intend to find in the textuality of Pessanha’s writing the traces that compose a scenery of exotism characterized by the impermanence of impressions, marked by the author’s broken and uneasy sensibility. His scarce letters in prose (specifically his essay China: estudos e traduções) will have a main role in the analysis on this subject, which represents a way for comprehension and reading of his pieces. Undoubtedly, the understanding of these topoi is necessary to question some labels and theoretical mistakes that are often associated to the highly complex poetry of Camilo Pessanha.

KEYWORDS: exotism; Macao; Decadentism.

 

Camilo Pessanha é uma imagem fugidia, uma presença quase mítica na Literatura Portuguesa moderna. Mestre de mestres, não parece, a despeito de sua genialidade, ter procurado destaque e reconhecimento como poeta, o que só aumenta o interesse pela sua história particular um tanto nebulosa. Poeta dos elementos fugidios, mais afeito às águas do que aos moinhos, viveu o sonho e os pesadelos do Oriente distante. Com efeito, há quem o idealize como a encarnação do Decadentismo fin de siècle, do auto-exílio, do outsider abandonado ao ópio. Este trabalho propõe o repensar de alguns desses lugares comuns a partir do estudo de textos chineses do autor português, com especial atenção ao livro China: estudos e traduções, no qual Pessanha se dedica a analisar aspectos da cultura e sociedade chinesas.

Macau, território português incrustado no Oriente (até a sua reincorporação, efetivada em 1999 pela República Popular Chinesa), foi o lugar “escolhido” por Camilo Pessanha para que se levasse a cabo a sua carreira como professor e jurista. No dizer de Paulo Franchetti, assinale-se que “muito ao contrário de uma decisão emocional, a mudança para a China foi a alternativa possível após anos de esforço para obter um posto de trabalho em Portugal e várias hipóteses e tentativas de emigração” (FRANCHETTI, 2008, p. 10). É de se considerar, portanto, o impulso de imersão de Camilo Pessanha numa cultura estrangeira, e muito lhe calhou assumir tal posto numa terra distante. A explicação do fascínio de Pessanha pelo Oriente pode ter se originado de motivos de ordem pessoal e ideológica, mas os caminhos que o levaram a Macau mais parecem ter advindo de necessidade material. É certo que tais fatos, levados à tona por estudiosos como Paulo Franchetti, Gustavo Rubim e Daniel Pires, ajudam a redefinir o foco da análise dos textos de Pessanha: de uma superficial análise biográfica, baseada numa espécie de misticismo personalista, parte-se para uma lucidez interpretativa capaz de evidenciar as complexas estruturas dos principais temas de Camilo Pessanha, tanto em sua (quase desconhecida) prosa quanto em sua poesia.

O “EXOTA”

É preciso ingressar num suposto ethos do exotismo para entendê-lo como forma de enfrentamento dos problemas culturais, com o respaldo de uma “arqueogenealogia” (à maneira de Foucault) do orientalismo de Pessanha. Gustavo Rubim propõe, em seu artigo Pessanha – Exota um cotejo com outros ensaios e autores. Citando o romancista e sinólogo francês Victor Segalen, Rubim ressalta a alteridade como exigência dessa ótica que constitui o que o francês denomina “estética do diverso”, que pode ser traduzida na máxima “à sentir vivement la Chine, je n’ai jamais éprouvé le désir d’être chinois”: “para sentir vivamente a China, nunca experimentei o desejo de ser chinês” (SÉGALEN, apud RUBIM, 2008). Por esta via, tem-se que o outro é a medida segundo a qual será erigida uma postura crítica, o que implica dizer que o estrangeiro indelevelmente o será, e tal “disfarce” engendra um olhar atento ao que se passa nesta terra para sempre estranha. A descoberta reside, pois, na estranheza; da mesma forma, os padrões de comparação são estabelecidos conforme a vivência na terra natal. O exotismo se alimenta desse impasse de “estar não estando”, paradoxalmente exigindo do sujeito uma identidade que lhe é negada àquele momento e que subsiste somente no plano da memória.

A prosa de Camilo Pessanha nunca se refere à China de modo romanesco, e jamais prova, ao contrário de patrícios como Wenceslau de Morais, do desejo de ser oriental. Em certos trechos suas impressões deixam mesmo entrever uma atitude de distanciamento hostil. Com efeito, Portugal nunca deixa de ser o ponto fundamental ao qual o autor sempre retorna:

Em Macau é fácil à imaginação exaltada pela nostalgia, em alguma nesga de pinhal menos frequentada pela população chinesa, abstrair da visão dos prédios chineses, dos pagodes chineses, das sepulturas chinesas […] e criar-se, em certas épocas do ano e a certas horas do dia, a ilusão de terra portuguesa. (PESSANHA, 1988, p. 183).

No texto do qual se retirou o excerto acima, Pessanha tece filigranas do que considera o sentimento do exilado. Este discurso, que tem como pano de fundo a lendária estadia de Camões em Macau, exagera (até o limite de um suposto ultra-neo-romantismo, como bem assinala Gustavo Rubim) os matizes de um exotismo “inconsciente”, centrado na subjetividade e na afetividade do indivíduo. As relações estabelecidas entre as imagens do momento presente (Macau) e as reminiscências baças do passado fugidio determinam a emergência de uma poética cuja nostalgia é, antes de tudo, um procedimento estético. Em última instância, é posta em questão a sublevação do signo na impermanência cuja origem e (paradoxal) constância é a todo tempo reavivada pela estranheza que resulta do apelo ao mergulho no desconhecido, pela elaboração de um ethos cuja referência mais próxima (e, ironicamente, mais distante) será o Outro, o exótico, o estrangeiro. O “exota” será, como sugere Ségalen, um estrangeiro mesmo em sua terra, se considerarmos quão precária é esta relação de alteridade. Neste sentido, destacamos uma frase que antecipa a máxima sartreana: “L’Inhumain: son véritable nom est l’autre” (SEGALEN, apud RUBIM, 2008). A semelhança, neste sentido, é a própria anulação. Camilo Pessanha, repetidamente tachado de “marginal” pelos seus inúmeros detratores, intenta a dessemelhança para declinar dessa marginalidade. O pitoresco é que por vezes temos a impressão de que este movimento é absolutamente involuntário, o que atesta certa malícia do autor português cuja relevância fora até certo ponto ignorada pela própria crítica literária.

OS TEXTOS CHINESES

A matéria-prima dos textos chineses de Pessanha é o diverso. Seja nos contidos elogios ou nas indecorosas críticas, fica implícito um espírito indolente (português, naturalmente) que vê com certa indolência o fato de não ser chinês, vivendo entre eles. Evidente que esta indolência está muito mais próxima de uma postura ativa do que de uma confortável apatia. Como comentarista da vida chinesa, Pessanha remete sempre ao público europeu as suas impressões, julgando-as sob o crivo de uma sensibilidade ocidental, apoiada nas mais diversas áreas do conhecimento ocidental.

A arte chinesa é abordada mais especificamente no breve texto Sobre a estética chinesa, de 1910. Camilo Pessanha analisa obras chinesas pelo seu viés estético, advertindo que tratará apenas do que chama “defeitos” da arte chinesa. Com efeito, de pronte se nota a presença de valores ocidentais tradicionais: “arte pura”, “falta de elevação”, “inferioridade” da arte oriental são termos recorrentes, e ressaltam uma suposta artificialidade de temas, espacialidade descuidada e processos “errados” de composição. Para Pessanha, a literalidade de considerável fração da arte chinesa, acompanhada de deméritos técnicos evidentes, é uma marca de sua arte meramente decorativa. Não há, segundo ele, reflexão do ponto de vista filosófico na arte figurativa dos chineses, o que não raro lhe confere um status de descartável manufatura, num processo de automatização do objeto contrário ao conteúdo de singularidade característico do objeto artístico ocidental. Por esta mesma via, assinala o desprezo dos chineses pela nudez artística, cujo conceito é destrinçado a partir da ideia da perfeição estética, do despojamento limítrofe resultante do abandono à mais pura sabedoria do logos filosófico. Sabedoria esta que Pessanha julga não terem os chineses alcançado enquanto estivessem atados à estéril mimese da vida concreta, à reprodução da natureza enquanto fenômeno visual, à humanidade como existência palpável.

Pessanha é um intelectual de preceitos ocidentais, e seu olhar sobre a China está sempre modulado entre a estupefação e a radicalidade. Esta tensão, expressa de modo muito menos enfático em sua poesia (mesmo porque a China não é um tema central de seus versos), confere uma certa forma de autoridade à sua ensaística. Para seus contemporâneos europeus, Pessanha poderia representar uma espécie de voz da civilidade ocidental no Oriente: seu não-declarado papel de “adido” da cultura europeia em Macau o impelia a isso. Como sinólogo e português, Pessanha medeia civilização e culturas chinesa e europeia. Em seu texto Introdução a um estudo sobre a civilização chinesa (PESSANHA, 1988, pp. 121-149), ele mantém o seu olhar de viajante sobre as imagens que presencia, nunca se anulando como cronista: seus pareceres são majoritariamente incisivos e, portanto, parciais.

PESSANHA E OS VERSOS CHINESES

Apesar de ter escrito severas críticas a certos usos da arte chinesa, Camilo Pessanha foi, bem à moda oriental, um disciplinado aprendiz dos costumes de Macau, seu rincão. Parece-nos válido supor que os pólos da repulsa e do encantamento se punham de modo intenso na vida cotidiana deste “sino-português” nas ruas sujas da colônia, e dessa dúplice via surgiram fascínio e desprezo, do mesmo modo como é postulado o ensinamento secular do convívio entre opostos manifesto no yin-yang. A escrita de temas chineses em Camilo Pessanha é constituída dessa dialética, e é tornada limítrofe a partir da vigência desse providencial exílio, desse necessário desdobramento entre dois “eus”: o português – saudoso e rancoroso, e o chinês – disciplinado e um tanto desumanizado.

Pessanha estudara com obstinação a língua chinesa e traduzira versos tradicionais. A cultura chinesa, marcada por tradições cultivadas por milênios, o cativara de modo indelével. Apesar das críticas às quais nos reportamos há pouco, Pessanha reconhece na vitalidade da cultura e das tradições chinesas um tesouro desconhecido do Ocidente. Numa conferência de 1915 destinada aos portugueses de Macau, o poeta dedica grande atenção ao conjunto de possibilidades relacionadas à forma dos poemas em mandarim, proporcionada pela riqueza de matizes dos ideogramas. Beleza estética e fluência prosódica, segundo o autor, são características vitais da literatura chinesa. Para Camilo Pessanha, o patrimônio cultural daquele país deve muito à habilidade expressiva dos ideogramas; a longevidade e o apuro desse modo de registro ortográfico o fascinam. Todas essas considerações, convém recordar, se dão pelo império de um senso estético eurocentrista até mesmo conservador em certos pontos de sua prosa ensaística, um contra-senso se as opusermos aos traços incontestes de modernidade que permeiam sua poesia.

Essa dubiedade entre o conservadorismo crítico de Pessanha e a ousadia de sua poesia torna ainda mais evidente a figura do exilado. Este “exotismo de comparação”, concebido a partir de espaços culturais bem delimitados, não parece capaz de suscitar uma posição de neutralidade e relativização dos fenômenos culturais localizados. A China, com seus pagodes, esgotos, sábios e mendigos, permanece sendo um contrapeso à civilidade europeia. Deste modo, a literatura chinesa se faz como existência autóctone, paralela à do Ocidente.

É o curso da História, segundo Pessanha, quem engendra a literatura chinesa. No passado residem os saberes que a constituíram, bem como à sociedade, rica tanto em mazelas quanto em tradições. Sabendo disso, o poeta opta por traduzir poemas que narram os grandes feitos de remotas dinastias, ao mesmo tempo em que produz ensaios caracterizados por um cotidiano citadino brutal e desordeiro. Camilo Pessanha introduz a seus conterrâneos a complexa teia de idiossincrasias capaz de conter atrocidades e prodigalidades num caos harmônico. Neste contexto, o autor encontra como fonte primordial desse dualismo os ensinamentos compilados por Confúcio. Para Camilo Pessanha, é impossível dissociar os termos éticos propostos no Livro das Transformações do caráter do povo chinês, daquilo que ele se tornara na visão eurocentrista. Com efeito, essa tentativa de generalização tende ao cientificismo ocidental, embora seja possível visualizar um componente de misticismo na constituição deste ethos. Torna-se relevante, por esta ótica, observar o fato de um livro sagrado [1] ter sido concebido como obra literária de grande valor – embora esse fato não nos credencie a acreditar num suposto deísmo de Pessanha. A sua admiração pela China advém das tradições arraigadas, do senso de unidade e resistência deste povo e, portanto, não figura como uma admiração de cunho místico-religiosa, ao contrário do que alguns textos críticos sobre Pessanha sugerem.

À GUISA DE CONCLUSÃO

Concluímos este trabalho chamando a atenção para o fato de que a crítica da obra de Camilo Pessanha tem procurado, num movimento que se iniciou há aproximadamente quinze anos, desmobilizar estereótipos (biográficos, principalmente) que durante décadas contaminaram a leitura e o entendimento de sua poesia e prosa. Evidentemente, a poesia de Pessanha é ainda mais volumosa em termos de crítica. Todavia, o entendimento de sua prosa tem obtido justificada relevância, sobretudo no que diz respeito à discussão sobre a temática do exílio e à desconstrução da figura do poeta isolado e marginalizado, sustentada à base de lugares comuns sob uma suposta aura de didatismo. Mais do que uma concepção de poesia, a estadia de Camilo Pessanha em Macau determinou uma abordagem absolutamente original no que tange ao enfrentamento de alguns topoi. Dialogia, tradição e ideologia convergem nesses textos que, mesmo escritos há quase um século, não perderam a elegância de suas proposições.

Referências

FRANCHETTI, Paulo. Nostalgia, exílio, melancolia: leituras de Camilo Pessanha. São Paulo: EdUSP, 2001.

PESSANHA, Camilo. Macau e a gruta de Camões. In.: Contos, crónicas, cartas escolhidas. Org. António Quadros. Lisboa: Europa-América, 1988. pp. 181-186.

__________ . Introdução a um estudo sobre a civilização chinesa. In. Contos, crónicas, cartas escolhidas. Org. António Quadros. Lisboa: Europa-América, 1988. pp. 121-149.

__________ . Sobre a estética chinesa. In.: Contos, crónicas, cartas escolhidas. Org. António Quadros. Lisboa: Europa-América, 1988. pp.117–121.

RUBIM, Gustavo. Pessanha – Exota. : Lisboa : Catálogo da Exposição Weltliteratur: Madrid, Paris, Berlim, São Petersburgo, o Mundo!: Calouste Gulbenkian, 2008.

SÉGALEN, Victor. Essai sur l’exotisme. Montpellier: Fata Morgana, 1978.

 

* Graduando em Licenciatura em Letras (Português/Francês) pela Universidade Estadual Paulista, no Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas de São José do Rio Preto (Unesp/Ibilce). Trabalho sob orientação do Prof. Dr. Orlando Nunes de Amorim, do Departamento de Letras Modernas do mesmo Instituto, apresentado no XXI Congresso Internacional da Abraplip (Associação Brasileira de Professores de Literatura Portuguesa).

[1] O já mencionado Livro das Transformações, de Confúcio.

 

Artigo submetido em 25/01/2010 e aprovado em 25/02/2010.