O Homem Maldito, o início do romance sul-rio-grandense

Sheila Fernández Garcia

RESUMO: Meu foco de pesquisa tem sido o romance O homem maldito, de Carlos Eugênio Fontana, publicado em Rio Grande no ano de 1858, tornando-se provavelmente o primeiro romance de um autor local publicado na cidade e um dos primeiros romances do estado do Rio Grande do Sul.

PALAVRAS-CHAVES: formação do sistema literário, Carlos Fontana, romance.

ABSTRACT: My focus of research has been the novel O homem maldito by Carlos Eugenio Fontana, published in Rio Grande in the year 1858, becoming probably the first novel by an author published in the local city and one of the first novels of the state of Rio Grande do Sul.

KEYWORDS: formation of the literary system, Carlos Fontana, novel.

 

A literatura tem um papel de suma importância para a compreensão da sociedade, pois através dela diversos intelectuais, filósofos, pensadores e escritores têm conseguido resgatar culturas e, dessa forma, buscado compreender o presente em relação aos aspectos histórico e político.

É com esse intuito que o projeto “Dicionário de autores de Rio Grande no século XIX” (ILA/FURG) tem pesquisado sobre os primeiros escritores desta cidade gaúcha e suas respectivas obras, buscando assim resgatar, organizar e divulgar as informações sobre a formação e consolidação do sistema literário riograndino. Esses dados são coletados através de pesquisas em fontes primárias, como o jornal Eco do Sul (1856-1889) e A Imprensa (1855), e outras fontes que abordem a literatura produzida na região sul do estado.

O referido projeto, coordenado pelo professor Artur Emilio Alarcon Vaz (ILA/FURG), conta atualmente com a colaboração de seis acadêmicos dos cursos de Letras da Universidade Federal do Rio Grande, sendo que cada pesquisador atua num autor e/ou numa obra da formação do sistema literário rio-grandino. Meu foco de pesquisa tem sido o romance O homem maldito, de Carlos Eugênio Fontana, publicado em Rio Grande no ano de 1858, tornando-se provavelmente o primeiro romance de um autor local publicado na cidade.

O único exemplar encontrado dessa obra encontra-se no acervo da Biblioteca Rio-Grandense (Rio Grande, RS) e possui uma peculiar anotação de algum leitor – provavelmente do século XIX pelo estilo da grafia – que aproxima autor e protagonista ao escrever um breve comentário na página 47: “Nunca me constou que em Jaguarão tivesse manuscrito nenhum chamado Carlos a não ser o meu amigo Fontana; Por isso tenho deduzido disso o seguinte: o autor é o protagonista da obra”.

As informações encontradas em relação ao autor ainda são escassas e repetitivas: sabe-se que Carlos Eugenio Fontana nasceu em Pelotas no dia 4 de novembro de 1830 e que, ainda criança, sua família mudou-se para Buenos Aires ao eclodir a Revolução Farroupilha. Atuou como jornalista na cidade uruguaia de Rio Branco, onde dirigiu o Comércio de Litoral (1853), e trabalhou como redator no Eco do Sul em Rio Grande e no Imparcial em Jaguarão em 1857. Em 6 de setembro de 1882, seu nome consta numa lista de jurados divulgados pelo jornal Echo do Sul, mas não se conhece ainda dados sobre sua data de morte.

Sinteticamente, o romance O homem maldito conta a história dos filhos do capitão Fabiane: Carlos, rapaz moreno de estatura regular, e Heloisa, moça formosa de cabelos pretos e rosto angelical, que teve sua vida desgraçada por José Luis, homem sedutor, sem escrúpulos, calculista e assassino. Ao saber que a filha tinha perdido a inocência, Fabiane morre de desgosto, depois de fazer o filho Carlos prometer que iria vingar a honra da família.

Um ano após a morte do pai, Carlos vai à festa de aniversário de Sofia, dança com sua amada e declara seu amor, descobrindo que é também amado, porém sua felicidade dura pouco, pois nessa mesma noite descobre que a mão de Sofia foi prometida em casamento ao pior inimigo de Carlos: José Luis. Carlos decide então ir à casa de José Luis para lhe dar um ultimato: ou casaria com sua irmã Heloisa ou morreria. A princípio José Luis prefere a morte, mas acaba jurando falsamente que irá casar-se com Heloisa após oito dias, tempo de planejar eliminar Carlos, Heloisa e seu próprio filho, recém-nascido. No dia do casamento, três capangas de José Luis matam Heloisa, na frente de Carlos, e acreditam ter matado Carlos e o filho de Heloisa.

Dias depois, no casamento de José Luis com Sofia, Carlos reaparece, detalha os crimes de José Luís na frente de todos os convidados e entrega-lhe o cadáver do recém-nascido. Desmascarado, José Luis luta com Carlos e sai vencedor, embora não consiga realizar seu casamento.

Em 1855, dez anos depois da morte de Carlos, José Luis, satisfeito e tranqüilo no apogeu de sua glória e esquecido de seus crimes, parecia um homem com sã consciência e sem remorsos, vivendo uma vida feliz com sua família e usufruindo de um emprego público, obtido graças a falsas denúncias.

Surgem então alguns dados históricos no romance, como a elevação de categoria de cidade à vila do Espírito Santo de Jaguarão, solicitada por Manuel Pereira da Silva Ubatuba à assembléia provincial, assim como o lançamento, em sete de setembro de 1855, do primeiro número do Jaguarense, primeiro jornal da cidade. Também faz parte da narrativa a epidemia de cólera, que matou centenas de pessoas na cidade naquele ano do século XIX.

Esses dados históricos são intercalados com os personagens José Luiz, que – ameaçado por denúncias de desvios de dinheiro público – manda matar o redator do Jaguarense, e Sofia, que solitária morre de cólera. José Luis, ao ver seu plano frustrado, decide processar o redator do jornal, agora já com o nome de Eco do Sul, que acaba preso por nove meses, sendo julgado e absolvido em primeiro de abril de 1857, apesar de dez dos doze jurados serem cúmplices de José Luis.

A narrativa termina mostrando a morte do filho de José Luis, no dia sete de setembro de 1858, vítima de um terrível incêndio em sua casa, fazendo com que José Luis fique louco e com um terrível remorso.

Pode-se perceber neste resumo da obra que o romance tem quatro personagens principais: Carlos, Heloísa, José Luis e Sofia, os quais se apresentam de forma plana, o que segundo E. M. Forster os torna comuns, unidimensionais podendo ser definidos em uma ou duas frases. Nesta obra, as referidas personagens são apresentadas física e emocionalmente no início da história mantendo-se igual até o fim do enredo.

Carlos, por exemplo, é apresentado inicialmente como “de estatura regular dotado de uma dessas fisionomias que vulgarmente apelidam simpática…” (p. 11). Neste capítulo, o leitor já pode perceber que Carlos será o “mocinho” da história e é assim que ele termina na página 71, agonizando na hora da morte, mas feliz por ter vingado sua família e salvado a pobre Sofia das mãos de José Luis. A personagem, dessa forma, não impressiona, nem causa surpresa ao leitor, sendo totalmente previsível, e assim acontece com todas as outras personagens da obra de Carlos Eugênio Fontana.

Esses quatros personagens principais encontram-se todos numa das vertentes temáticas: a história de amor entre Carlos e Sofia, que não pode ser concretizada devido à ambição de José Luis e por este ter engravidado a irmã de Carlos.

Outra vertente apresenta fatos históricos, como a revolução Farroupilha, o surgimento da imprensa em Jaguarão, os boicotes políticos e o surto de cólera, assim como diversos locais da cidade mencionados eram reais, como a Praça da Matriz (p.4), a Rua do Triunfo (p.24), a Rua do Comércio (p. 32, 41 e 92), a Rua Boa Vista (p.41), a rua Nova (p.81) e a rua Direta (p.88).

Esses dados são influenciados pela presença de um tempo bastante datado e linear, pois – embora não há a definição no ano na primeira página – há outras diversas datas ao longo do romance: 7 de setembro de 1855 (p. 77), quando surge a imprensa com o jornal O Jaguarense; 21 de novembro de 1855 (p. 80), dia em que a cólera mata mais de cem pessoas na cidade; 1º de abril de 1857 (p. 86), dia do julgamento do proprietário do Eco do Sul; entre outros. Assim pode-se dizer que o tempo da obra é cronológico, pois os dois primeiros capítulos passam-se em oito dias, o terceiro passa em um ano, o quarto num dia, o quinto oito dias e o sexto (epílogo) após dez anos.

O narrador, onisciente em terceira pessoa, julga constantemente, colocando suas opiniões e mostrando que lado apóia; um exemplo disso é a maneira como descreve as personagens, dando ao leitor a revelação de quais são os personagens de sua preferência. Note a maneira como ele descreve o capitão Fabiane e Heloisa, ‘vítimas’ de José Luis: “Numa casinha perto da praça da Matriz, via-se um velho cuja a cabeça estava coberta de cabelos tão brancos como a neve… perto dele estava sua filha, bela como o primeiro raio de sol de primavera, formosa como um espírito celeste…” (p. 4). Essa colocação do narrador em relação aos referidos personagens transmite a impressão de pessoas bondosas, um senhor de idade avançada e sua bela filha, a qual em seu próprio corpo físico lembra a superioridade de um espírito divino.

Já José Luis é descrito como um homem sem escrúpulos, falso e frio: “José Luis, no apogeu de sua glória, tinha se esquecido inteiramente de seu último crime, e satisfeito e tranqüilo, parecia um homem de consciência sã, que não tem remorsos que devorem o coração” (p. 75). Neste parágrafo, percebe-se claramente a opinião do narrador em relação ao caráter e à personalidade de José Luis.

Além disso, em relação ao narrador onisciente, pode-se dizer que é bem marcante os diversos momentos em que esse abre espaço para a voz dos personagens, mostrando o tempo presente da ação e leva o leitor ao tempo real dos fatos. Quase ao final da obra, é narrado um acontecimento trazendo o fato para o presente, e para fortalecer no leitor o tempo exato da ação, o narrador dá voz aos personagens: “Nesse momento chegaram a casa de José Luis, de donde saia um negro carregado de foguetes; José Luis ao avistá-lo bradou com força: – Maldito! Onde vás? – Vou para a câmara que manda o senhor Rosa…” (p. 98). Percebe-se que, no primeiro momento, o narrador onisciente está em terceira pessoa e, em seguida, dá vida aos personagens para ratificar no leitor a impressão de momentaneidade temporal.

A obra apresenta características românticas como a valorização da natureza, em que a paisagem é tecida de acordo com as emoções das personagens:

O céu negro e fechado parecia ameaçar a terra com os horrores duma próxima tempestade.
Numa casinha perto da praça da Matriz, via-se uma velho cuja a cabeça estava coberta de cabelos tão brancos como a neve, e cujo o rosto indicava estar macilento pelo desgosto e o passar (FONTANA, 1885, p. 4).

Note como o narrador, antes de explicitar o estado emocional das personagens, cria um cenário natural que, logo em seguida, vem ao encontro do real estado em que as personagens estão, já que tempestades lembram turbulência e medo, enquanto o barulho dos relâmpagos podem lembrar tiros de guerra. No exemplo citado, através da descrição da natureza, o narrador antecipa ao leitor a situação tensa que os personagens irão passar.

A idealização da mulher e a descrição minuciosa dos fatos também deixam evidenciadas as características românticas da obra:

sua filha, bela como o primeiro raio de sol de primavera, formosa como um espírito celeste. Seus cabelos tão pretos como o ébano davam um lindo realce a seu rosto tão alvo como o alabastro; seus olhos eram encantadores, e seus lábios de carmim se assemelhavam a uma Vênus (FONTANA, 1885, p. 4).

Nessa citação, o narrador idealiza a mulher, como é próprio do Romantismo, comparando-a com a beleza da natureza e perfeição divina. Essa tendência romântica de idealização pode ser notada em diversos autores e obras da época. O romance Iracema, de José de Alencar, é um exemplo de como a mulher é idealizada, já que o autor retrata-a como síntese perfeita das maravilhas da natureza. Iracema é muito mais do que uma mulher, não anda, flutua. A heroína é o próprio espírito harmonioso da floresta virgem. Note, no trecho a seguir, do romance Iracema, como José de Alencar, não diferentemente de Carlos Eugênio Fontana, compara a mulher à natureza e como a mesma também é usada para descrever a personalidade da personagem.

Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema. Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira. O favo da jati não era doce como o seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado.

Nessa citação da obra de José de Alencar, pode-se perceber que o romance riograndino O homem Maldito seguia as características dos romances publicados na época no Brasil.

Além dessas características, percebe-se igualmente o egocentrismo explicitado na figura de José Luis e o Teocentrismo, como no trecho abaixo:

A tempestade tinha-se desenvolvido com todas as suas forças; os relâmpagos davam momentaneamente às trevas a luz do dia; os trovões… Pareciam o soar da trombeta do anjo exterminador anunciando aos homens a hora final.
Qual será o homem que, a vista d’um espetáculo tão terrível e sublime, não pense na grandeza e poder do criador?
Tens razão, minha filha; o ser supremo não abandona seus filhos. (FONTANA, 1885, p. 5).

No parágrafo acima, Deus é mostrado como o centro de tudo o que acontece na vida das pessoas, pois só Ele pode livrá-los dessa terrível tempestade, da guerra, das maldades. O homem não tem domínio sobre sua vida e o divino é o responsável pelo que acontece de bom e mau.

Com base nas análises feitas, percebe-se que O homem maldito é um romance histórico dentro dos moldes românticos, como era comum nesse período, estando adequado ao padrão literário nacional da época, tanto em relação à estrutura quanto a temática abordada. Além de José de Alencar, também se percebe o alinhamento de Fontana aos moldes românticos ao comparar essa obra gaúcha com o romance Escrava Isaura de Bernardo Guimarães, pois este também traz a temática do amor de forma semelhante (o amor entre Álvaro e Isaura impedido pelo vilão Leôncio), assim como o narrador em terceira pessoa onisciente e o tempo cronológico também são desenvolvidos de igual modo.

Outro tema abordado no romance em análise que é comum em todo o Brasil na época é a virgindade feminina. Fontana, através da personagem Heloisa, explicita ao leitor o fim trágico que uma moça tem ao se entregar ao desfrute da carne antes do casamento, e essa mesma característica pode ser percebida no romance Lucíola de José de Alencar, em que a protagonista também acaba morrendo com seu filho ao final da história.

Além desses, poderíamos citar diversos outros autores e obras que comprovam a adequação do romance analisado aos moldes literários nacional da época, como Joaquim de Macedo na obra A Moreninha, Oliveira Belo na obra Os Farrapos, entre outros. Isso comprova que o município de Rio Grande tinha uma produção literária satisfatória para os padrões do período não só em relação ao estado, como dos centros culturais do país.

Referências

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BAUGARTEN, Carlos Alexandre. Literatura e crítica na imprensa do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EST, 1982.

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FONTANA, Carlos. E. O homem maldito. Rio Grande: Tip. do Eco do Sul, 1858.

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MASGALHÃES, Mário Osório. Opulência e cultura na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul: Um Estudo sobre a História de Pelotas. (1860-1890). Pelotas: Ed. UFPel, 1993.

MARTINS, Ari. Escritores do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UFRGS/IEL, 1978.

MOREIRA, Maria Eunice. Regionalismo e literatura no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EST, 1982.

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ZILBERMAN, Regina. Literatura gaúcha: temas e figuras da ficção e da poesia no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: L&PM, 1985.

ZILBERMAN, Regina. A literatura no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto,1992.

 

* Graduanda do curso de Letras Português/Espanhol da Universidade Federal do Rio Grande e bolsista de Iniciação Científica do projeto “Dicionário de autores de Rio Grande no século XIX” desenvolvido pelo Prof. Dr. Artur Emilio Alarcon Vaz do Instituto de Letras e Artes.

 

Artigo submetido em 06/08/2009 e aprovado em 22/11/09.