O paganismo nas cantigas de amigo: mitos de amor e de fertilidade na Baila das Avelaneiras, de Aires Nunes de Santiago

Giliard Ávila Barbosa

RESUMO: Este artigo analisa a cantiga de amigo Bailia das Avelaneiras, de Aires Nunes de Santiago, sob uma perspectiva mitológica, na busca de elementos do imaginário pagão que justifiquem as simbologias contidas na poesia trovadoresca.

PALAVRAS-CHAVE: Trovadorismo. Cantiga de amigo. Mitologia. Símbolo.

ABSTRACT: This article analyzes the friendly song Bailia das Avelaneiras, by Aires Nunes de Santiago, about a mythological perspective, in the search of elements of pagan imaginary to justify the symbolisms contained in the poetry of the troubadours.

KEYWORDS: Troubadour. Friendly song. Mythology. Symbol.

 

Durante a Reconquista, os cristãos da península Ibérica se empenharam em retomar a posse de seus reinos e em expulsar os mouros que até então dominavam a região. Provindos do norte da península, os católicos foram recuperando seus domínios em direção ao sul e, no século XII, fortalecida pelas Cruzadas, a Igreja Católica atinge seu apogeu como autoridade política e religiosa.

É neste contexto que se inicia, em Portugal, uma literatura nacional, caracterizada pela fusão entre uma poesia popular pré-existente e uma influência causada pelo provençalismo francês: o Trovadorismo.  A poesia trovadoresca será dividida em duas categorias: a lírico-amorosa, representada pelas cantigas de amor (fortemente influenciadas pelos cantares provençais) e de amigo; e a satírica, formada pelas cantigas de escárnio e de maldizer.

Neste trabalho, nos restringiremos à análise de uma cantiga de amigo – a Bailia das Avelaneiras, de Aires Nunes de Santiago –, numa busca por elementos da mitologia pagã que nos ajudem a interpretar toda a simbologia erótica presente na canção que se fez conhecida como a obra-prima de seu autor.

1 A CANTIGA DE AMIGO E O APELO CRISTÃO

No Trovadorismo, a classificação das cantigas em suas categorias se dá de forma semelhante à proposta por Aristóteles, na Poética, em relação aos gêneros dramáticos. Assim como o filósofo grego dera maior importância à tragédia do que à comédia, de modo que a tragédia “imitava a ação de homens superiores”, ao passo que a comédia tratava de representar as falhas humanas (o que há de torpe e do que se pode rir no homem), as cantigas classificadas como lírico-amorosas detinham um caráter “elevado”: representando ou o sofrimento de trovadores que não eram amorosamente correspondidos por damas da nobreza (cantiga de amor), ou a coita da mulher que não reencontra seu amante (cantiga de amigo), as canções deste tipo se destacam em relação às satíricas, vistas com certo desprezo por apresentarem expressões de baixo-calão, não se preocuparem com o aspecto estético do poema e estarem, por estes motivos, associadas à vida boêmia e desregrada da plebe.

A cantiga de amigo caracteriza-se, sobretudo, pela presença de um eu-lírico feminino que lamenta a ausência do ser amado, dirigindo-se à mãe, às amigas ou à natureza para relatar-lhes sua coitacausada pela espera de seu homem, que está no serviço militar, ou pelo fato de o mesmo havê-la abandonado. Em geral, estes “desabafos” são repletos de elementos referentes à simbologia cristã: Deus, igreja, bem (virtude) e mal (pecado) são vocábulos constantemente utilizados nas cantigas, refletindo todo o poder que a Igreja Católica, naquele momento, exercia sobre a Europa.

2 A BAILIA DAS AVELANEIRAS: FUGA DO MODELO CRISTÃO

Em meio a todo um contexto histórico em que as cantigas trovadorescas se revestem de símbolos e referentes cristãos para se adequar ao pensamento da época – que se construía sob o comando da Igreja –, encontramos exceções na Bailia das Avelaneiras, de Aires Nunes de Santiago. Classificada como uma cantiga de amigo, esta composição nos causa certo estranhamento ao ser analisada, visto que nela se encontram muito mais alusões à mitologia pagã do que a quaisquer elementos católicos. Buscando explicações que justifiquem tal ocorrência, encontramos em Saraiva (1979, p. 56) a seguinte afirmação:

Em toda a Cristandade medieval, viu-se a Igreja obrigada a reprimir a prática de ritos e festas pagãs, cuja persistência mais ou menos ingénua sob a liturgia cristã apresentava como um dos aspectos mais pertinazes os cânticos eróticos de mulheres dentro dos próprios templos, por ocasião de romarias ou das festas pascais que cristianizaram as festas gentílicas das Maias sob a forma de júbilo da Ressurreição.

O depoimento do autor, aliado ao fato de que a península Ibérica já havia composto parte do Império Romano; já havia sido povoada por visigodos no século V, que depois se converteram ao cristianismo; e também havia estado sob domínio mourisco durante séculos, enquanto a Igreja Católica não conseguia se reerguer, nos leva a acreditar na existência de toda uma cultura de origem pagã que ainda permanecia viva na cultura do povo português, mas que era reprimida pelo poder religioso, o qual atingiu seu apogeu com o Pontificado do Papa Inocêncio III, assumido em 1198, data em que se inicia a produção atualmente conhecida como trovadoresca.

Desta forma, Bailia das Avelaneiras vem justamente de encontro à repressão religiosa, de forma que em toda a cantiga o elemento cristão aparece uma única vez (“Por Deus, ai amigas”) e, mesmo assim, o vocábulo surge muito mais como uma expressão costumeira do que como uma palavra-chave na qual está intrínseco qualquer significado. E é em busca das palavras-chaves que nos reportaremos às mitologias pagãs, em um período no qual a produção poética, quase em sua totalidade, se dedicava ao que era prescrito pelo papa cristão.

3 INFLUÊNCIAS GRECO-ROMANAS

A Bailia de Aires Nunes se faz singular logo no primeiro verso. Diferentemente de outras cantigas de amigo, nesta não encontraremos a voz de uma mulher que se queixa da ausência do ser amado à mãe, ou a alguma amiga, ou à natureza. Nesta composição, encontramos a manifestação não de uma ou duas mulheres, como é costume, mas de três amigas que se fazem revelar logo no começo do cantar.  Neste, não encontramos manifestação alguma de dor, mas o convite de uma amiga às outras para que as três, juntas, dancem.

Assim, representada em diversos quadros dançando sob as árvores e anunciando a chegada da primavera, encontramos neste poema a figura simbólica das Graças (também chamadas de Cárites), jovens deusas menores do panteão greco-romano que acompanham Afrodite em suas tarefas, sendo responsáveis por animar o banquete dos deuses com suas danças [1]. Tália, Aglaia e Eufrosina se apropriam do discurso, cada uma a seu momento, revelando-se em cada predicado que enunciam.

Na primeira estrofe, nos deparamos com o convite para que as três amigas bailem “sô aquestas avelaneiras frolidas”. O convite nos remonta à imagem pela qual ficaram conhecidas as integrantes do cortejo de Afrodite: dançarão sob as árvores. E é no adjetivo dado a estas árvores que uma das Cárites se denuncia. As avelaneiras estão “frolidas” – atributo de Tália, a responsável por fazer com que os vegetais floresçam na primavera.

Já na segunda estrofe, Aglaia, responsável pelo brilho e esplendor característicos da estação, se faz presente através do vocábulo “louçana”, que nos remeterá justamente uma idéia de graciosidade advinda do tom de pele (claro, brilhoso como a louça – estereótipo de beleza feminina) ou mesmo do intelecto (clareza de idéias).

Por fim, Eufrosina, Graça do júbilo e da alegria, reitera que “mentr’al non fazemos, / sô aqueste ramo frolido bailemos; / e quen ben parecer, como nós parecemos, / se amigo amar, / sô aqueste ramo sô-l’ que nós bailemos / verrá bailar.”, de forma que o simples ato de dançar, para as Cárites, se torna também um convite para as moças que apaixonadas estiverem, desde que sejam estas dotadas de divina beleza (“parecer, como nós parecemos”).

Juntamente às deusas, encontramos Dionísio. Disfarçado em pequenos símbolos, o deus do vinho se entremeia às Graças para que, juntos, os quatro produzam no leitor/ouvinte da cantiga um efeito catártico, capaz de causar uma sensação de alívio das proibições e repressões que o catolicismo impõe aos povos europeus.

Dionísio, assim como as “amigas”, se faz presente desde os dois primeiros versos, ainda que de forma implícita. Deus, também, da árvore, Dionísio teve seu culto propagado graças às mulheres que o cultuavam. Desta forma, a divindade sempre esteve ligada às mulheres que, possuídas por ele nos rituais orgiásticos, dançavam num ritmo frenético que as levava à exacerbação da libido e à perda da razão.

O poder da divindade se explicita no oitavo verso da cantiga: “sô aqueste ramo destas avelanas”. O ramo [2], símbolo maior da onipotência do deus irracional, se coloca sobre as mulheres, uma vez que elas dançam debaixo dos ramos de avelã. Há nesta figura toda uma simbologia que nos encaminha para a concepção de mulher submissa que se constrói durante a História. As Graças dançam e se extasiam sob o ramo dionisíaco, de acordo com a vontade do deus.

4 VESTÍGIOS NÓRDICOS

Além dos elementos greco-romanos, alguns vestígios de Mitologia Nórdica também foram encontrados na Bailia, possivelmente frutos da invasão visigótica ocorrida no século V. Sabemos que a árvore é devotada a Dionísio na Mitologia Greco-romana, mas a aveleira, em específico, pertence a duas deusas nórdicas: Gna e Idun. Gna, deusa mensageira, dona da brisa constante, era invocada para participar pedidos de fertilidade aos deuses. Idun, deusa que presidia a vida e tornava tudo fértil, por sua vez, tinha estreita ligação com o fruto da aveleira, a avelã, em cujo formato foi transformada por Loki para que fosse por ele libertada.

A união de ambas simbologias nos leva a uma importante constatação: a aveleira representa a liberdade sexual da mulher, que tem seu desejo manifestado não só na alegoria da primavera como também na figura da avelã, que em sua forma física nos lembra a figura da genitália feminina.

5 OBSERVAÇÕES FINAIS

A Bailia das Avelaneiras, de Aires Nunes de Santiago, representa a permanência em Portugal, ainda que de forma escassa, de traços da cultura pagã que o poderio católico não conseguiu suprimir. Na cantiga, o ambiente que nos é mostrado servirá de santuário para que as moças manifestem toda sua alegria e êxtase. A primavera trazida pelas Graças nos leva a perceber um estado edênico, no qual a natureza, em suave sintonia com o bailar das amigas, lhes permite “escapar” aos atentos olhos cristãos.

Analisando os diferentes mitos envolvidos na construção deste cantar e a interação de suas simbologias, propomos a seguir uma análise que seja capaz de englobar as relações estabelecidas entre as variadas significações que propõe cada mito.

Na primeira estrofe, presenciamos a mulher em seu estado irracional. Instintiva, ela se entrega aos instintos, se permitindo a afloração da libido no período primaveril, isto é, o momento em que a natureza toda conspira a favor de sua sexualidade.

Na estrofe seguinte, presenciamos a mulher em um estado de intelectual livre-permissão: aquela que for louçana (e, portanto, tiver clareza de idéias) não se recriminará por sentir prazer, dançando sob os braços de Baco (simbolizados pelo ramo). A mulher que conhece as coisas e as vê como elas são, sente-se à vontade para liberar seus instintos e entregar-se ao delirante prazer orgiástico, realizando os desejos do seu homem.

Por fim, podemos interpretar o elemento que até então era o único referencial cristão como sendo também símbolo do paganismo. “Por Deus” pode referir-se a Baco, a quem as graças, assim como as bacantes, rendiam cortejo, e não ao deus pregado pelo cristianismo. Desta forma, o poema se encerraria com a constatação de que, se a mulher não tem lugar na sociedade em que vive, que a ela ao menos seja dado o direito de experimentar o prazer da liberdade sexual ao lado do homem que a escolheu.

O mito serve ao leitor/ouvinte não só com um sentido estético, mas também o leva a refletir acerca da sociedade em que vive. Recorrer a figuras da mitologia pagã na obra de Aires Nunes é, portanto, muito mais do que cultuar os deuses do Paganismo, criticar a situação em que se encontra a sociedade no contexto histórico em que vive o trovador, sob o jugo da Igreja Católica, e mostrar a mulher o quanto ela “pode ser feliz” ao lado do seu homem. Critica-se a noção de pecado do cristianismo em prol dos desejos carnais dos homens portugueses.

A mulher deve ter liberdade sexual (simbolizada pelas graças e pelas deusas nórdicas), mas sempre respeitando os desejos do homem que a cerca (simbolizado por Dionísio e Loki, o libertador de Idun).

Referências

ARISTÓTELES. Poética. Trad., pref., int., com., e apêndices de Eudoro de Sousa. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1985.

BRUNEL, Pierre (org.). Dicionário de mitos literários. Traduzido por Carlos Sussekind et al. Rio de Janeiro: J. Olympio, 2005.

CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes (…). Traduzido por Vera de Sá Costa e Silva et al. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1991. Tradução de: Dictionnaire des symboles: mythes, reves, coutumes (…).

DANNEMANN, Fernando. Graças. Disponível em: www.fernandodannemann.recantodasletras.com.br. Acesso em: 19 mar. 2009

FAUR, Mirella. Mistérios Nórdicos: deuses, runas, magias, rituais. São Paulo: Pensamento, 2007.

MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa através dos textos. 2 ed. São Paulo: Cultrix, 1969.

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SERIACOPI, Gislane Campos Azevedo; SERIACOPI, Reinaldo. História: volume único. São Paulo: Ática, 2005.

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WIKIPEDIA. Graças. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Graças. Acesso em: 19 mar. 2009.

 

[1] As Graças são também consideradas deusas da beleza e da fertilidade que, de acordo com algumas vertentes, não seguiam somente a Afrodite, como também a Eros e Dionísio.

[2] Seu cognome romano, Baco, provém de bacchos = ramo.

 

Artigo submetido em 07/08/2009 e aprovado em 22/11/09.