O sem nome de um grande nome

Renata Santos

RESUMO: Uma breve análise do romance Sem Nome de Helder Macedo apresenta a complexa tríade de personagens, Júlia de Sousa, José Viana e Marta Bernardo, em sua busca por identidade e auto-afirmação. As atitudes dos personagens em algum momento remetem ao seu criador, fazendo com que a relação autor-obra também venha a tona, neste caso sob o olhar de Roland Barthes.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura Portuguesa. Helder Macedo. Roland Barthes.

ABSTRACT: A brief  analysis of the novel Sem Nome of Helder Macedo shows a complex triad of characters, Júlia de Sousa, José Viana e Marta Bernardo, in their search for identity and self-assertion. The attitudes of the characters in some moment refer to their creator, making the relation author-work come to sight, is this case under the gaze of Roland Barthes.

KEYWORDS: Portuguese Literature. Helder Macedo. Roland Barthes.

 

Bem sei que é assustador sair de si mesmo, mas tudo o que é novo assusta.
(Clarice Lispector)

A história ensina que todas as visões são fantasmáticas. Visões sempre a impor o passado no presente.
(Helder Macedo)

A verdade é sempre um contato interior e não tem uma só palavra que a signifique.
(Clarice Lispector)

O romance Sem Nome é sem dúvida um romance “sobre a demanda da identidade”, como diz o próprio autor em entrevista ao JL de 15 de março de 2005.[1] Fala-se aqui não apenas da identidade da personagem Júlia de Sousa, mas também de uma geração fruto do 25 de abril. Há, porém outros aspectos que merecem ser abordados, tais como os vários desdobramentos do romance a partir das relações de José e Júlia com Marta, personagem antagônica que, mesmo não aparecendo, é uma forte presença ao longo de todo o romance. Também não há como escapar da relação autor-obra, que neste caso será tratada pela ótica que Roland Barthes estabelece em seu artigo Escritores e Escreventes.

Para José Viana, Marta é um fantasma que traz à tona o seu passado atormentando-lhe o presente, impedindo-o de ver um futuro. Viana fica atado, pelo seu sentimento de culpa, ao dia 1 de junho de 1972, quando fugiu da guerra[2] para não ter que afastar-se de seu grande amor. Ironicamente ele nunca mais tem notícias dela. Durante trinta anos José pensou ainda amar a sua companheira de partido que desaparecera sem deixar rastros. O que Viana não havia percebido todo este tempo é que foi ele quem desapareceu da vida de Marta sem deixar qualquer pista. Marta só desapareceu de fato quando José Viana voltou a Portugal e não a encontrou. Foi então que o amor que talvez ainda sentisse por aquela mulher deu lugar à culpa. O próprio Viana admite depois: “Não pude mais acreditar em mim depois que abandonei a pessoa que mais amava e que me amava e que acreditava comigo no que eu acreditava” (MACEDO, 2006, p.156).  São a culpa e a desilusão que o impedem de viver, fazendo dele uma espécie de vegetal, passivo, imerso em sua rotina, sem sequer conseguir demitir a secretária, com a qual tivera um caso mal resolvido, pois ele, mesmo não a querendo mais, não tinha coragem de desligar-se dela de uma vez por todas.

Marta, apesar de ser o mistério do romance, a partir do capítulo sete cede lugar ao crescimento de Júlia e passa para o segundo plano da ação. Esquecemo-nos, por momentos, que ela é o espectro de José Viana e passamos a vê-la como a personagem de Júlia, criada por Júlia, que cria uma história e passa a dar vida a essa personagem, até então fantasmagórica, fazendo com que Marta, em alguns momentos, pareça um outro “eu” em que Júlia se enxerga e no qual enxerga uma forma de ser alguém. É uma espécie de esperança para o futuro, na qual ela se prende de forma a querer tornar-se aquele ser que ela sequer conhece. Júlia, ao construir sua personagem, acaba confundindo-se com ela na sua vontade de ser outra.

Helder Macedo tem razão ao dizer, numa entrevista concedida a Vilma Arêas e Haquira Osakabe[3], que “Recordar e imaginar são processos mentais muito semelhantes. Afinal ambos incidem sobre o que não está acontecendo.” É exatamente isso que acontece com Júlia quando fica em frente ao seu espelho, no apartamento que um dia foi de Marta e José, “tentando visualizar como é que se usava o cabelo no fim dos anos sessenta” (MACEDO, 2006, p.107), optando por:

Cabelo a pajem. Penteou a franja de novo para a frente. […] Calças, […] E pouca maquiagem. […] Recostou-se na cadeira […] a querer sentir o que a Marta sentiu quando José Viana a abandonou. […] a cadeira de Marta não era nada como aquela, nem parecida. […] Um sofá? Reclinada ao comprido num sofá, a cabeça num dos apoios laterais e os pés a tocarem no outro.” (MACEDO, 2006, p.108).

Júlia monta sua personagem imaginando cada detalhe seu, de gestos a pensamentos, e nesse exercício de imaginação confunde-se com a recordação, acaba por incorporar aquela personagem, quer ser aquilo que não pode ser, por nunca ter sido nada ou por ter sido tudo menos ela mesma.

O que Júlia fazia era misturar realidade, ficção e memórias, que nem eram dela, mas de Viana. Entretanto ela mesma já não conseguia delimitar as fronteiras entre real e imaginário. Aliás, ela nunca soube onde começava um e acabava o outro. Desde menina era dada aos jogos de faz-de-conta e mesmo com seus vinte e seis anos ainda gostava de brincar, fingir ser o que não era, tanto com Duarte Fróis, seu amigo de infância a quem julgava ingênuo, quanto com Carlos Ventura , seu colega de trabalho com quem mantinha encontros casuais, e com o próprio José Viana, “gostava de ser diferente para cada um deles.” (MACEDO, 2006, p.90).

E é com certa dubiedade, tanto no sentido de querer ser muitas, e ao mesmo tempo nenhuma, quanto de estar entre real e imaginário, que Júlia acaba escrevendo o relatório MB/JV e assinando: J(MB)S, como se Marta estivesse dentro dela. Neste relatório, sua autora mistura, a seus devaneios, as memórias de Viana, brincando mais uma vez “ao faz-de-conta”.

Às vezes parece que Marta é simplesmente o reflexo de Júlia no espelho, ou pelo menos o reflexo que esta quer ver daquela. E assim como Júlia, os leitores também não sabem como a Marta realmente foi. Sabe-se, graças a José, que Marta é ou ao menos foi, há muitos anos, fisicamente semelhante à Júlia, mas o próprio Viana demonstra dúvidas a este respeito: Não sei se você é de fato parecida com a Marta (MACEDO, 2006, p.157). O que o leitor sabe de Marta, além das poucas lembranças de seu amado, é fruto de devaneios de Júlia. Assim o leitor também imagina aquela que não aparece, mas que paradoxalmente rege o romance através dos devaneios que sua sombra incita em Júlia.

Na já citada entrevista de Helder Macedo a Vilma Arêas e Haquira Osakabe, o autor fala de um “conceito, que é recorrente” em sua escrita: fronteiras. E mais adiante diz que as fronteiras “estão lá para serem atravessadas”. A partir disso é notável em Sem Nome uma grande travessia, realizada por todos os personagens que cruzaram suas fronteiras. Numa primeira leitura a maior fronteira foi atravessada por Júlia: a da ignorância de si mesma para o auto-reconhecimento. Através da morte ficcional de Marta, Júlia, mesmo sem saber, contribui para que José Viana também ultrapassasse sua fronteira: a do passado para o futuro, ou mais precisamente, para o presente. Dessa forma Viana desprende-se das amarras do passado e permite que a espectral Marta também ultrapasse a fantasmagoria a caminho da lembrança. “A Júlia tinha-lhe devolvido a Marta que perdera.” (MACEDO, 2006, p.220).

É aí que temos o momento de libertação no romance, no qual José Viana liberta-se da culpa e pode finalmente viver sua vida, livre de sua secretária e de sua antiga rotina de bem sucedido advogado londrino, “a sua memória da Marta já tinha sido purificada pela Júlia […] percebeu que estava livre […] podia finalmente voltar a Portugal” (MACEDO, 2006, p.219). Também Júlia, que no desenrolar da trama afirma não se importar de não ser ela própria, descobre que sempre se importou. E depois de tanto brincar de faz-de-conta é que Júlia percebe sua verdadeira face, passando da imaturidade para a maturidade, quando decide não tirar seus pêlos pubianos. É o seu momento de crescimento. Este processo de maturidade também diz respeito à escolha de fazer a última crônica recusando o emprego que lhe foi oferecido. Carlos Ventura diz “que dizer não é muito mais importante do que dizer sim. Saber o que não se pode querer” (MACEDO, 2006, p.202). A este respeito Helder Macedo diz em sua entrevista: Talvez que a única coisa coerente da minha vida tenho sido ser capaz de dizer não, sempre que achei necessário, como tem sido várias vezes.

Tendo em vista as relações que foram estabelecidas entre a entrevista de Helder Macedo e seu romance Sem Nome, é possível fazer referência a um ensaio de Roland Barthes: Escritores e Escreventes. Neste ensaio Barthes define, a princípio, dois detentores da palavra: o escritor e o escrevente, este último nascido na França com a Revolução Francesa. O primeiro teria a escrita como um verbo intransitivo “eu escrevo” e ponto final, não há a necessidade de um fim porque sua escrita, sua literatura, já é um fim. Sua literatura é resultado de muito trabalho que acaba tornando-se, depois de muito tempo, um dom. A palavra é a essência do escritor.

O escrevente, por sua vez, tem a escrita como um verbo transitivo – “eu escrevo, o quê, para quem”-, tem uma finalidade. Este vê a linguagem simplesmente como um instrumento de comunicação e não como sua essência, por isso não tem um estilo pelo qual é reconhecido. O escrevente quer que leiam aquilo que ele quis dizer, pois crê que sua palavra desfaz qualquer ambigüidade, enquanto o escritor escreve e deixa ao leitor uma espécie de palavra multifacetada, instaura a ambigüidade. “A função do escrevente é dizer em toda ocasião e sem demora o que ele pensa” já o escritor deve “transformar o pensamento em mercadoria” (BARTHES, s/d, p.37).

A conclusão de Barthes, porém, é de que hoje temos a nova categoria, escritores-escreventes, cuja

função ela mesma só pode ser paradoxal: ele provoca e conjura ao mesmo tempo; formalmente, sua palavra é livre, subtraída a instituição da linguagem literária, e entretanto, fechada nessa mesma liberdade, ela secreta suas próprias regras, sob forma de uma escritura comum; saído do clube dos homens das letras, o escritor escrevente encontra um outro clube, o da intelligentsia.[4] (BARTHES, s/d, p.38).

É neste último grupo que se encaixa Helder Macedo. Por mais que Sem Nome seja um romance, e dessa forma ganhe seu status literário, é difícil não ver o professor universitário Helder Macedo falando em certos momentos do romance. Como no capítulo “Capelas Imperfeitas”, no qual Carlos Ventura auxilia Júlia a concluir um “artigo sobre minimalismo no teatro” a pretexto de “uma versão francesa e reduzida de Hamlet” que chegara a Lisboa. Toda a argumentação de Júlia e a forma basicamente didática usada por Ventura a fim de auxiliá-la não poderiam ser escritas por um leigo, mas por alguém, muito inteligente sim, e também com certa bagagem. Somente uma pessoa audaz e com boa percepção literária seria capaz de argumentar, muito bem, a ponto de convencer o leitor de que Cláudio é só uma vítima da mente maliciosa de Hamlet que criou toda a intriga, inclusive o fantasma do pai.

Outro momento em que observamos o catedrático Macedo é no capítulo “Duplicações”, quando mais uma vez Carlos Ventura dá uma verdadeira aula de literatura ao expressar sua opinião acerca do romance que Júlia começou a escrever sem saber exatamente aonde quer chegar. É pouco provável que um engenheiro conheça nomes como Dostoiévski, Poe, Nabokov, a menos que seja um amante da literatura, mas não é provável que o possa ser tanto a ponto de estabelecer todas as relações enumeradas por Ventura.

O fato de Ventura ter sido professor universitário até serviria para justificar toda a sua tenacidade literária, embora ainda assim não excluísse a idéia de que é o autor/escritor que manifesta suas percepções, seus pensamentos, como um escrevente. Até porque também Júlia, no capítulo “Só Para Mim”, faz uma crítica aos atuais best-sellers, “sem a menor consistência literária, historinhas água com açúcar (na expressão popular), com finais previsíveis ou então o que às vezes se costumam chamar de romances policiais com crime, paixão e espectros a mistura […] pena que não pudesse ser um romance” (MACEDO, 2006, p.112).

É assim, num emaranhado de menções literárias, históricas e estéticas que Helder Macedo, magistralmente, tece a teia de um enredo envolvente e surpreendente. Com a linguagem própria, se calhar, este escritor-escrevente enxerga longe, e mescla harmonicamente imaginação e recordação, história e ficção, despindo violentamente a sociedade (“Genocídios. Crianças africanas famintas com caras de extraterrestres. […] Mais de sessenta por cento do dinheiro a ir para as contas suíças dos presidentes e ministros destes países.” (MACEDO, 2006, p.152-153) sem perder o tom literário, moldando personagens que falam por si próprios. Sem Nome é o romance de um grande nome.

Referências

BARTHES, Roland. Crítica e Verdade. São Paulo: Perspectiva, s/d.

MACEDO, Helder. Sem nome. Rio de Janeiro: Record, 2006.

________. Partes de si e dos outros. In: CERDEIRA, Teresa Cristina. A experiência das fronteiras: leituras da obra de Helder Macedo. Niterói: EdUFP, 2002.

 

[1] Trecho retirado do artigo O nome da ficção publicado no site da editora Presença de Portugal, não consta no site o nome do autor deste artigo. Ver link: http://www.presenca.pt/imprensa_detalhe.asp?id=216&pagina= (acesso em 27/02/2009).

[2] José Viana havia sido recrutado para lutar nas guerras de libertação na África, onde as colônias portuguesas reivindicavam sua independência.

[3] Partes de si e dos outros – Entrevista realizada para um volume de ensaios, intitulado A experiência das fronteiras, acerca da obra do autor (Vide Referências).

[4] Grifo do autor.

 

Artigo submetido em 16/07/2009 e aprovado em 22/09/09.