Reflexões a respeito de ensino de literatura e da leitura e produção escrita em/para vestibulares

Meiry Peruchi Mezari

RESUMO: A partir de questionamentos acerca do ensino de literatura na escola, este ensaio apresenta uma breve discussão sobre a questão das leituras obrigatórias de obras literárias para as provas de vestibulares, especificamente o de 2006 da UFSC. Para isso, foram analisadas redações de dois candidatos

PALAVRAS-CHAVE: literatura, ensino, vestibular.

ABSTRACT: From questions about the teaching of literature in school, this paper presents a brief discussion about the required reading of literary texts to the vestibular tests, specifically the 2006 test of UFSC. For this, the textual productions of two candidates were analyzed.

KEYWORDS: literature, teach, vestibular.

 

o que é que continua, o que é que persiste,
o que é que fala da literatura depois do colégio?
Roland Barthes

No presente ensaio, pretende-se realizar uma breve reflexão acerca de questões que concernem à literatura e seu ensino, e às leituras que são “cobradas” dos candidatos de vestibulares, assim como alguns reflexos dessas leituras em duas redações de candidatos do Vestibular 2006 da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC.

Vendo como “perda de tempo” a leitura integral das obras literárias abordadas no concurso vestibular, muitos candidatos recorrem aos famosos resumos. Há uma grande discussão a respeito dessa questão, mas há que se considerar os motivos que levam o aluno realizar – ou não – a leitura integral das obras.

Crê-se que seja um ponto de partida interessante pensar, em primeiro lugar, no trabalho com literatura nos manuais de Ensino Médio. Deve-se levar em conta, também, a diferença da abordagem em escolas públicas e escolas particulares. Nas escolas particulares, todo o Ensino Médio já é voltado para o concurso vestibular. Já em escolas públicas, não há essa preocupação com o vestibular [1]. Se o aluno está interessado em prestar vestibular, é ele quem deve “ir atrás”. [2]

A partir de um grande contato com manuais de Língua Portuguesa e Literatura de Ensino Fundamental e Médio das mais diversas editoras, dos mais diversos autores, pode-se afirmar que todos seguem uma mesma linha: estudo de literatura feito cronologicamente, com base nas famosas “Escolas Literárias”, sempre listando as principais características de cada uma dessas “Escolas” ou “Períodos” literários, ressaltando os autores e obras que mais representam cada uma delas e, ainda, a data de início desses “movimentos” literários, geralmente coincidindo com a data de publicação da “Obra inaugural” do período, além de alguns trechos, a título de ilustração – menos de meia página -, dessas obras…

Para Roland Barthes, a literatura é assimilada à história da literatura, e essa é um “objeto essencialmente escolar, que precisamente só existe por seu ensino” (1988, p.53). Para o teórico francês, os “itens” citados acima e, ainda, os gêneros e séculos, podem ser chamados “monemas da língua metaliterária ou da língua da história da literatura” (p.54). A crítica no ensaio Reflexões a respeito de um manual é, em geral, ao fato de os livros didáticos – os manuais – serem quase que uma gramática da literatura. Barthes considera como uma censura o próprio conceito de literatura,

que jamais é definido como conceito, sendo a literatura, nesses manuais, um objeto que, no fundo, se impõe por evidência e que nunca se questiona para definir-lhe, senão o ser, pelo menos as funções sociais, simbólicas ou antropológicas; quando de fato se poderia inverter essa ausência e dizer – em todo caso, pessoalmente, eu o diria de bom grado – que a história da literatura deveria ser concebida como uma história da idéia de literatura, e essa história não me parece existir por enquanto. (BARTHES, 1988, p.55-56)

O fato de não se ter claramente uma definição, um conceito de o que é literatura, é que talvez torne (mais) difícil aos estudantes o trabalho com ela. Durante o período escolar, muitos estudantes se perguntam “mas para quê eu preciso aprender isso?”. Em geral, sempre há alguma “justificativa” para o ensino, mesmo que haja algumas coisas que eles afirmam que nunca precisarão lembrar durante a vida… Ao pensar sobre ensino de literatura, especificadamente: para que se aprende – ou se decora… – as datas de início dos períodos literários, para quê as listagens de características de cada movimento? Mais: tudo isso, sem haver clareza do que seja, de fato, a literatura.

No artigo Um Bicho de Sete Cabeças, foram analisadas as definições de gramática de alunos de Ensino Fundamental e Médio, e a conclusão foi que, “apesar de passar anos estudando a gramática, muitos deles não possuem uma concepção definida do que ela seja, confundindo-a, muitas vezes, com língua(gem)” (PERUCHI MEZARI, 2008, p.170).

Na época do estudo, ocorreu a idéia – até hoje, infelizmente, não colocada em prática – de fazer uma pesquisa semelhante, sobre a concepção de literatura de alunos de Ensino Fundamental e Médio. A hipótese é que, assim como em gramática, os estudantes não possuem clareza do que seja, realmente, literatura, e também não conhecem os objetivos da disciplina. A discussão, claro, realizar-se-ia num âmbito de literatura (ou história da literatura, para Barthes) como disciplina do currículo escolar, já que, se fossem questionados especialistas, teria-se uma infinidade de definições – ou não se teria, efetivamente, definição alguma. Segundo Jonathan Culler,

se quem está perguntando [o que é literatura?] é uma criança de cinco anos de idade, é fácil. “Literatura”, você responde, “são histórias, poemas e peças”. Mas se o indagador é um teórico literário, é mais difícil saber como enfrentar a indagação”. (CULLER, 1999, p.27)

Ainda seguindo essa linha de raciocínio, Terry Eagleton (2003) se pergunta: “se a teoria literária existe, parece óbvio que haja alguma coisa chamada literatura, sobre a qual se teoriza. Podemos começar, então, por levantar a questão: o que é literatura?”

Ramos e Prim, no ensaio Leitura com(o) disciplina: um somatório de questões, discutem a questão da leitura de obras literárias para o concurso vestibular e também as redações cujo tema se debruçava sobre essas leituras, no Vestibular UFSC 2006. Em princípio, percebe-se o problema já dentro da sala de aula, ou seja, da literatura como disciplina, quando da discussão da lista de livros para o vestibular sugerida por professores de escolas. Havia uma grande crítica, por parte dos professores, aos cânones indicados como leitura para o vestibular; quando esses professores tiveram oportunidade de sugerir as obras, porém, sugeriram os cânones! Isso ocorre, talvez, exatamente pelo problema dos manuais: são raros os que tratam de obras mais novas, mais recentes. Como disse Barthes, os manuais fazem historiografia da literatura e, sendo assim, tratam apenas das obras canônicas. Além disso, segundo Silva (1997, p.85), como os professores,

de modo geral, estão há anos impedidos de ler, por falta de tempo, incentivo, dinheiro, etc., a sua seleção vai se pautar pelos autores com quem tiveram a chance de conviver um dia, no passado. Talvez durante o curso de sua formação, ou porque os leram ou porque deles obtiveram referências, através da teoria e da crítica literária. Autores com os quais se habituaram por força da sua formação, da tradição, da profissão e da imposição e que para eles não significam risco algum.

Adentrando mais especificadamente às salas de aula, surge a discussão de ler ou não ler as obras para o vestibular, ou seja, “perder tempo” lendo a obra completa, ou ler apenas os famosos resumos? Em se tratando de escolas que realmente estão interessadas na aprovação dos alunos no concurso vestibular, há os dois lados: alunos que leem, de fato, todas as obras, e alunos que leem apenas os resumos, para aproveitar o tempo “de sobra” estudando outros conteúdos. Analisando as questões da prova de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira que envolvem as obras literárias no Vestibular UFSC 2006, é possível perceber que, em geral, é transcrito algum trecho da obra e, sobre esse trecho, são feitas afirmações tanto de natureza literária quanto gramatical.

Nas questões que envolvem a literatura no Vestibular UFSC 2006, percebeu-se que a maioria pode ser, sim, respondida com base na leitura do excerto disponibilizado na prova e com uma leitura prévia de um resumo. Não é discutível, porém, que o aluno que leu a obra na íntegra terá muito mais segurança na hora de responder às questões. Grande parte da prova de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira, quando não envolve apenas questões gramaticais com base em excertos das obras e tem uma relação maior com a literatura, menciona e questiona pontos objetivos das obras literárias, como, por exemplo, o número de narradores da obra e quem é o narrador do excerto. Infelizmente, muitos candidatos que leram apenas os resumos das obras conseguem responder às questões.

Em se tratando das propostas de redação do Vestibular UFSC 2006, porém, percebeu-se que a leitura das obras, se não de todas, pelo menos de algumas, seria fundamental: duas das três propostas[3] de redação dependem claramente da leitura das obras como requisito para o desenvolvimento de uma (boa) redação.

Como indicado no início desse ensaio, será feito, aqui, reflexões sobre duas redações que seguiram a Proposta 1 do Vestibular UFSC 2006. A primeira é intitulada “A procura da Alma” (redação 424). Nessa redação, o candidato comenta somente a obra Apenas um Curumim, de Werner Zotz, fazendo uma espécie de “paralelo” entre a trama da obra e a “saga” de um vestibulando. Há, nessa redação, alguns “erros” de grafia e problemas de coesão e coerência. O que deve ser analisado aqui, porém, é a questão das obras literárias, e é interessante ressaltar que o candidato não cumpriu a proposta a que tinha se disposto escrever. Ele deveria ter indicado as leituras que recomenda e as que não recomenda, dentre as 10 obras sugeridas para o Vestibular [4], mas apenas comentou que Apenas um Curumim “vai ficar marcada”, sem fazer nenhuma alusão às outras nove obras. Talvez porque não as tenha lido…

Já na redação “Seja você também um vestibulando” (redação 442), que também apresenta alguns problemas gramaticais, o candidato comenta que algumas das obras são interessantes, outras cansativas, sem, porém citar quais delas (talvez por não ter lido…). Depois disso, cita três obras. Os comentários acerca dessas são bastante superficiais e caem no lugar comum. O candidato comenta que a obra de Antônio de Alcântara Machado fala de três bairros de São Paulo (o que já é óbvio, tendo a obra o título Brás, Bexiga e Barra Funda); comenta que “se você curti mesmo e bruxarias leia O Fantástico na Ilha de Santa Catarina” (sic), porque é “muito interessante, de linguagem fácil e cheio de fantasias e mistérios” (nada muito profundo para que o candidato comprove a leitura da obra); e, por fim, sobre Os Sertões, de Euclides da Cunha: “apesar de Euclides ter vivido em Canudos tudo que ele relata em seu livro, a linguagem utilizada é complicada, sua leitura é possível apenas com um dicionário ao lado e seu entendimento é mínimo”. Aqui, o candidato demonstra não conhecer o contexto sócio-histórico d’Os Sertões, deixando a impressão de que imagina ser Euclides um morador de Canudos.

Não é acessível o conhecimento a respeito das duas redações citadas acima, a respeito do fato de se elas foram redigidas por candidatos que leram as obras na íntegra, mas acreditamos que, se tivessem realmente lido, teriam um resultado muito mais positivo. Percebe-se, assim, que a partir do momento em que a leitura das obras literárias é “cobrada”, no vestibular, também na redação, e não apenas nas questões da prova de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira, torna-se muito mais fácil para o candidato argumentar se tiver lido, efetivamente, as obras na íntegra. Isso é um passo muito importante sendo que, como comentado anteriormente, um grande número de candidatos que leram apenas resumos de obras conseguem responder às questões objetivas.

Referências

BARTHES, Roland. Reflexões a respeito de um manual. In: O Rumor da Língua. São Paulo S/P: Brasiliense, 1988.

CULLER, Jonathan. O que é literatura e tem ela importância? In: Teoria Literária: uma introdução. Trad. Sandra Vasconcelos. São Paulo: Beca, 1999

EAGLETON, Terry. O que é literatura? In: Teoria da Literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

PERUCHI MEZARI, Meiry. Um Bicho de Sete Cabeças. In: Crátilo: revista de estudos linguísticos e literários. Patos de Minas: UNIPAM, 2008. Disponível em:

<http://unipam.edu.br/cratilo/images/stories/file/artigos/2008_1(revisto)/UmBichoDeSeteCabe%C3%83%C2%A7as.pdf>. Acesso em 29 mar. 2009.

RAMOS, Tânia Regina Oliveira, e PRIM, Cristina de Souza. Leitura com(o) disciplina: um somatório de questões. In: FERRARO et all. Experiência e prática de redação. Florianópolis: Editora da UFSC, 2008.

SILVA, L. L. M. Às vezes ela mandava ler dois ou três livros por ano. In: GERALDI, João Wanderley. (Org.). O Texto na Sala de Aula: leitura e produção. São Paulo: Ática, 1997.

 

[1] Durante a produção do ensaio, será feito o uso de generalizações acerca de escolas públicas/particulares, manuais, alunos… Deixamos aqui registrado para não ser necessário, a toda hora, observar que há, sim,  exceções.

[2] Afirmamos isso empiricamente.

[3] Proposta 1: considerando a lista das obras literárias indicadas para esse vestibular, qual ou quais dos livros desta relação você indicaria para leitura e qual ou quais você não aconselharia? Por quê? Escreva uma redação expondo argumentos que justifiquem sua escolha.
Proposta 2: Em um percurso literário, sondando os quatro cantos da Ilha de Santa Catarina, descobri algo mais que bruxas e, andando pelos bairros do Brás, Bexiga e Barra Funda, conheci a São Paulo que trocou a sociedade cafeeira pela industrial.

[4] Para o Vestibular UFSC 2006 foi indicada a leitura das seguintes obras: Poemas Escolhidos, de Jorge de Lima; Os Sertões, de Euclides da Cunha; Apenas um Curumim, de Werner Zotz; O fantástico na ilha de Santa Catarina, de Franklin Cascaes; Amigo Velho, de Guido Wilmar Sassi; 200 crônicas escolhidas, de Rubem Braga; Brás, Bexiga e Barra Funda, de Antônio de Alcântara Machado; Resumo de Ana, de Modesto Carone; Império Caboclo, de Donaldo Schüler e A rosa do povo, de Carlos Drummond de Andrade.

 

Artigo submetido em 05/11/2009 e aprovado em 05/12/09.