Um drama no mar: uma face desconhecida de Koseritz

Juliane Cardozo de Mello

RESUMO: Esse artigo pretende analisar a novela Um drama no mar, publicada pelo jornalista alemão Carlos de Koseritz na cidade gaúcha de Rio Grande na década de 1860. Após o resgate, essa obra traz uma nova luz sobre uma face desse autor mais conhecidos pelas suas tendências realistas, (re)iluminando também uma parte da história literária sul-rio-grandense.

PALAVRAS-CHAVES: Carlos de Koseritz, novela, fontes primárias.

ABSTRACT: This article aims to examine the novel Um drama no mar, published by the German journalist Carlos de Koseritz of the city of Rio Grande in the decade of 1860. After the rescue, this book brings a new light on one side of the author best known for its realistic tendencies, (re)lighting for part of literary history sul-rio-grandense.

KEYWORDS: Carlos de Koseritz, novel, primary sources.

 

Um drama no mar ou Elyssandro: um drama no mar é uma novela de Carlos de Koseritz (1830-1890) publicada quando este morava na cidade de Rio Grande e que tem sido considerada como desaparecida. Em pesquisas no jornal Eco do Sul do ano de 1862, foi encontrado um folhetim denominado Um drama no mar, atribuído a X. Y. Z.. Além de Koseritz ser, então, um dos colaboradores deste jornal rio-grandino, o principal aspecto que confirma que esse folhetim é de autoria de Koseritz é o anúncio [1] publicado no Eco do Sul de 18 abr. 1863, divulgando a venda do romance com o mesmo título e de autoria de Carlos de Koseritz.

Através de buscas na Biblioteca Rio-Grandense (Rio Grande, RS), encontrou-se um exemplar de um romance homônimo, sem capa e, portanto, sem indicação de autor, data ou local de publicação, mas – no entanto – com texto igual ao folhetim publicado no Eco do Sul em 1862, o que traz a luz definitivamente mais uma obra desse importante autor radicada no Rio Grande do Sul. Conforme nota ao final desse volume, Um drama no mar baseia-se numa tragédia ocorrida em praias gaúchas no ano de 1862, e que o nome real do personagem Elissandro Moriby era Ferdinando Petrina e que esse foi executado no dia 30 de dezembro de 1862, fato confirmado por um site em língua inglesa [2], constituindo-se, assim, num romance histórico.

Esse romance contrapõe-se a face realista e racionalista tradicionalmente conhecida de Koseritz, jornalista influente durante décadas na capital gaúcha, pois se trata de romance tipicamente romântico, com o conflito constituído por um triângulo amoroso entre Elissandro, L… e Marília, o que acarretará todo o desenlace da trama, que gira em torno do amor entre L… e Marília e do amor não correspondido de Elissandro juntamente com seu ciúme e seu sentimento de vingança por ter sido desprezado pela amada e humilhado por seu esposo. E isso também fica explicito na representação dos personagens que são idealizados, sendo descritos com um vocabulário bastante positivo, sendo que até Elissandro, o antagonista, é representado como possuidor de um bom caráter, mas com traços obscuros em sua personalidade.

O romance possui um narrador onisciente intruso, pois esse não apenas narra, mas expõe seu ponto de vista, comenta os fatos e até faz certo juízo de valor analisando as atitudes das personagens segundo o seu posicionamento a cerca das venturas e das desventuras de ser marinheiro, comparando com suas vivências, e com a religião, julgando as atitudes de Elissandro segundo aspectos divinos. Por se tratar de um romance histórico, pode-se compreender que essa narração é feita a partir do ponto de vista de um espectador que tira suas conclusões a respeito dos fatos e conta-os a sua maneira, tanto assim que a mesma vai alternando-se entre primeira pessoa e terceira pessoa, em que o narrador faz inferências aos leitores justificando ou reafirmando os fatos.

Podem-se perceber várias representações românticas, como, por exemplo, a descrição da personagem geradora do conflito, Marília, que lembra as pastoras árcades, sendo essa extremamente idealizada com sua doçura e purezas exaltadas, como se vê no trecho:

a encantadora jovem que repousava sobre a esteira; seus cabelos são cor de azeviche, os raios voluptuosos que despedem os seus negros olhos, a sua tez levemente morena, a graça e flexibilidade de seu esbelto corpo, suas mãos e pés de microscópicas dimensões, e mais que tudo, esse gracioso abandono em sua posição, esse ar de distinção natural, provavam que Marília nascera em nosso hemisfério” (KOSERITZ, 1863, p. 9)

Essa idealização aparece em toda obra e pode-se comparar a mesma a todas as musas românticas, pois não há nenhuma característica de uma aproximação carnal de Marília com L…, sendo que essa tem apenas 16 anos e envergonha-se quando o esposo fala em ter filhos, e isso corrobora a pureza dessa jovem que, além disso, se suicida pouco antes de ser salva após desonrada por Elissandro, ficando clara a visão maniqueísta da mulher no Romantismo: pura, casta e que, na falta desses atributos, só lhe resta a morte.

Elissandro, antes de cometer seus crimes, lembra-se da família, da vida feliz na Itália e de sua primeira amada: Maria, que é descrita como a pastora árcade Marília, símbolo de pureza e de bondade. Essa idealização e perfeição das amadas, aspectos românticos, também se faz presente nos nomes: Marília, pastora de cantigas medievais portuguesas e da Marília de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga; e Maria, figura símbolo do Cristianismo, santa portadora de tamanha pureza que foi a escolhida de Deus para gerar seu filho.

Aspecto também importante que nos leva aos traços românticos dessa obra é a presença da religiosidade, como se pode perceber na repetição da palavra “Deus” no trecho abaixo:

é então que ao mesmo tempo nos sentimos enormemente grandes em face desses terríveis elementos, que fazemos obedecer ao nosso “quero”, e infinitamente pequenos em relação a Deus, nosso criador, que tamanho poder doou ao homem, com a inteligência; é então que compreendemos bem a palavra de Deus (KOSERITZ, 1863, p. 22).

E com isso o narrador mostra uma intensa preocupação com o julgamento divino e um grande temor a Deus, sendo que não só no trecho ilustrado, mas como em outros, pois o narrador julga os acontecimentos sobre ótica divina, com a presença da dualidade bem x mal, o que também é bem característico desse movimento, mostrando com isso o moralismo cristão que planeia o romance de início ao fim.

E essa visão da religião opõe-se às opiniões explicitadas por Koseritz em seus artigos publicados em diversos jornais gaúchos, já que nesses mostra-se contra os jesuítas e de forma anticlerical devido à tentativa de igreja católica de tornar cristãos os imigrantes, como ele, nas colônias alemãs. Koseritz também se mostrava evolucionista e cientificista e muito familiarizado com a ótica realista que surgia no país, sendo que se correspondia com Tobias Barreto, um dos fundadores desse movimento no Brasil. Por esses motivos, Koseritz foi perseguido politicamente e morre, em maio de 1890, após uma prisão ilegal em que ficou oito dias de forma incomunicável.

Ainda nesse aspecto religioso, temos uma referência explicita à Bíblia, pois, Elissandro é descrito como “anjo caído”, o que nos remete à idéia de Lúcifer, anjo que ansiando maior poder, acaba se entregando às trevas e ao pecado, “caindo” assim do Paraíso. E essa idéia de anjos caídos fornece a explicação para a existência do inferno e de demônio na religião católica, sendo esses uma grande representação dos conflitos entre o bem e o mal. Elissandro seria a representação do demônio por toda sua beleza e por todos os aspectos positivos de seu caráter em conjunto com todo o seu espírito assassino, e esse mata L… não apenas pelo amor de Marília e sim para obter o controle do navio, mostrando assim que a amada é apenas utilizada por Elissandro como uma forma de ascensão social, sendo que, com essa cobiça e com essa ganância, o mesmo equipara-se bem ao anjo expulso do céu.

Essa dualidade entre o bem e o mal exposto no romance pode-se perceber no trecho abaixo:

Na câmara um anjo a orar, prestes a voar ao céu que é pátria dos anjos… No porão um demônio encadeado e remordendo-se em cega ira por haver perdido a partida, em que jogara sua cabeça. (KOSERITZ, 1863, p. 58)

Vê-se aí a oposição entre anjo e demônio. O anjo é a personagem Marília, temente a Deus e, mesmo suicidando-se, vai para o céu, pois cometeu essa atitude para salvar-se da desonra passada. O demônio é Elissandro, dominado pela ira, pela ganância e pela cobiça, remetendo a sua maldade e a sua falta de crença em Deus e aos seus pecados capitais.

Outra referência bíblica presente no romance é a narrativa presente no Velho Testamento sobre Davi e Golias, em que o narrador equipara a valentia do jovem grumete Guilherme que incentiva os demais marítimos a vingar-se de Elissandro pela morte de seus oficiais e oferecendo-se para atacar o assassino. Assim, é exaltada a coragem de Davi e de Guilherme por lutarem e vencerem, mesmo estando em desvantagem a seus opositores, atribuindo coragem ao jovem e a salvação do navio à vontade e a bondade de Deus.

Outro recurso narrativo é a citação a imagens de dois pintores: o renascentista alemão Hans Holbein, através de sua xilogravura “Dança Macabra”, e o holandês Rembrandt (1606-1669), através de seu quadro “Anjo caído”. A primeira imagem mostra cinco esqueletos numa dança da morte e é citada no momento em que a tripulação lança ao mar os oficiais mortos por Elissandro (p. 45), enquanto o segundo quadro ilustra bem a situação do antagonista, em seu conflito interno entre cometer ou não um crime (p. 11). Ambos os pintores citados retratam figuras religiosas, o que corrobora a visão da religiosidade encontrada ao longo do romance.

A mitologia greco-romana também está presente nesse romance, pois temos deuses como referentes a determinadas ações ao longo da narrativa: temos Febo, Éolo, Morfeu e, por fim, ainda aparece a beleza divina de Marília, representada como uma “estátua da antiga Grécia”. Esses elementos mitológicos vão se sucedendo ao longo do texto de acordo com o desenvolvimento da ação da calmaria à tempestade e ao acontecimento final que marca o fim trágico de Marília. E, nesses elementos mitológicos, tem-se características neoclássicas que marcaram também o século XIX, e que no Brasil uniram-se a características românticas, sem que os intelectuais da época pudessem discerni-las, pois estávamos então buscando compor uma literatura tipicamente brasileira, livre do controle português e da influência européia.

A natureza também está presente nesse romance de forma idealizada, estando relacionada aos sentimentos pelos quais passam os personagens do romance: ao início do romance, antecedendo o conflito, a tarde é descrita como amena, rósea, banhada pelo Febo, o que remete à tranquilidade e, por isso, o ambiente é positivo; à medida que os fatos vão ocorrendo, vai surgindo uma tempestade que vai se intensificando no desenlace das ações, desde o planejamento do crime, até as memórias da família que trazem a Elissandro uma espécie de consciência do ato que irá cometer, e os crimes juntamente com o estupro de Marília, em que a tempestade intensifica-se ainda mais, até no final vir novamente à calmaria, após Elissandro ter sido capturado pelos marinheiros do navio.

Nesse romance, o tempo é cronológico e demarcado como um tempo histórico, pois o narrador descreve ações que aconteceram “em nossas praias” e que chocaram a população riograndina devido à brutalidade dos assassinatos, e sendo essas, segundo narrador nas páginas iniciais do romance, muito comentadas por todos na região:

o que vou narrar-vos tem um fundo de verdade; os fatos se deram, e deram-se bem perto de nossas praias, deram-se há bem pouco tempo; ainda todos estremeçam ao recordarem-se da primeira noticia desses horríveis crimes, que circulou pela nossa pacífica cidade. (KOSERITZ, 1863, p. 5)

O navio, como espaço, simboliza a vulnerabilidade das personagens e dos acontecimentos, pois esses estão sempre a mercê das tempestades, que podem ocasionar um naufrágio, como de fato ocorre, pois, nessa noite de tempestade, há o naufrágio e o assassinato mudam seu destino rumo à morte.

Com relação às personagens, pode-se dizer que todas são planas, segundo E. M. Forster, não evoluindo ao longo da narrativa, bem ao estilo romântico, com L… sendo o herói característico, honrado e viril, e Marília a virgem pura, bela, graciosa. É em Elissandro que se concentra toda a dualidade do texto: jovem, belo, de bom caráter, porém assassino, mas igualmente não apresenta complexidade, sendo que sua mudança de caráter pode ser justificada como uma dominação demoníaca que faz cometer os crimes.

Esse romance ilustra o Romantismo em sua fase de criação no Brasil, apresentando pontos em comum com obras lançadas no mesmo período, como A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo. A esse respeito, as palavras de Antonio João Silvestre Mottin, “os romances singelos retratos da vida sociocultural-política, como Nini, Inês, Laura, A donzela de Veneza, imitam Joaquim Manuel de Macedo” (ZILBERMAN et alii, 1999, p. 52), também se aplicam ao Um drama no mar, pois há a explanação da vida marítima, tão conhecida do narrador e também do próprio Koseritz. Com relação aos romances citados, nenhum dos exemplares foi encontrado pelos pesquisadores da obra de Koseritz, sendo a obra aqui estudada a única que permaneceu do período inicial do escritor alemão em terras brasileiras.

Pode-se concluir então que temos um romance tipicamente romântico em que há uma idealização dos personagens, da natureza e da religião, juntamente com a presença de aspectos neoclássicos como a mitologia greco-romana e a presença intertextal com Marília de Dirceu e suas características semelhantes à pastora neoclássica. E essa união de características desses períodos distintos ilustra bem esse período de transição da literatura no Brasil, mostrando, principalmente, uma outra face do jornalista Carlos Von Koseritz, (re)iluminando uma parte da história literária sul-rio-grandense.

Referências

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KOSERITZ, Carlos de. Um drama no mar. [Rio Grande: Tip. Eco do Sul, 1863].

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ZILBERMAN, Regina; MOREIRA, Maria Eunice; ASSIS BRASIL, Luiz Antonio de (org). Pequeno dicionário de literatura do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Novo Século, 1999.

 

[1]Elissandro ou Um drama no mar. Novela marítima, por Carlos de Koseritz. Esta interessante novela original rio-grandense, que narra os horríveis sucessos que se deram nas águas das costas da província, a bordo do palhabote inglês Whintrop, acaba de ser publicado num nítido volume em 8. francês.
Acha-se à venda nesta cidade na tipografia do Eco do Sul e em casa do autor à rua direita n. 122.
Em Pelotas, no escritório da empresa do Eco do Sul, junto ao armazém dos srs. Toledo & Neto.
O preço é 800rs, por volume, em porções maiores de 25 exemplares se faz um abatimento de 10%.” Disponivel no endereço www.ila.furg.br/ecodosul/1863.htm. Acesso em 19 jun. 2009.

[2] No endereço www.capitalpunishmentuk.org/1837.html, há uma lista das execuções públicas realizadas na Inglaterra entre 1837 e 1868, inclusive de Ferdinando Petrina em 30 dez. 1862.

 

Artigo submetido em 03/08/2009 e aprovado em 10/11/09.