Corpos abertos e silêncios rasgados: o recurso poético e político do erotismo na contemporaneidade

Larissa Andrioli

RESUMO: O presente trabalho se propôe a analisar o erotismo como recurso poético (e político) na contemporaneidade. Para isso, recorre à tradição, tomando textos como O amor natural, de Carlos Drummond de Andrade, e os Sonetos luxuriosos, de Pietro Aretino, para então abordar a poesia atual. Neste momento, recorremos principalmente ao poeta mineiro Oswaldo Martins, mas o artigo também passa por impressôes iniciais acerca da poética da portuguesa Manuela Amaral. Toda a discussão sobre o erotismo, a poética e a política é aqui apresentada e mediada por questionamentos quanto à ética capitalista, assunto muito abordado nos escritos citados.

PALAVRAS-CHAVE: erotismo, Drummond, Manuela Amaral, Oswaldo Martins, Pietro Aretino, poesia contemporânea.

ABSTRACT: The present article proposes to discuss how the eroticism can be used like a poetic and political resource at the present day. To that, it appeals to the literary tradition, taking texts like O amor natural, from Carlos Drummond de Andrade, and the Sonetos luxuriosos, from Pietro Aretino, to then look at the present poetry. At this moment, we appeal mainly to the poet Oswaldo Martins, but the article also passes by initial impressions about the Portuguese Manuela Amaral poetry. The whole discussion about eroticism, poetic and politic is here presented and mediated by questions about the capitalist ethic, a matter that frequently appears in the writings studied.

KEYWORDS: eroticism, Drummond, Manuela Amaral, Oswaldo Martins, Pietro Aretino, contemporary poetry.

 

I. Introdução

Pretende-se, aqui, analisar como o erotismo configura um recurso político quando usado como recurso poético, tanto na tradição literária quanto na contemporaneidade. Para tal, o corpus literário compõe-se dos poetas Drummond, Aretino, Oswaldo Martins e Manuela Amaral. Nos quatro autores o que vemos é uma expressão além do puro sentido sexual do erotismo, algo que caminha para a postura política, mesmo social. Como isto se dá e qual seria o motivo é o que este trabalho procurará esclarecer.

A representação erótica, muitas vezes, é colocada no nível das manifestações imorais, como uma espécie de piada infame que se conta escondido, da qual todos riem disfarçadamente e classificam de “humor negro” ou politicamente incorreto – mas que traduz os pensamentos de boa parte da sociedade. Da mesma forma, o sexo é sempre negado: o prazer é sujo, é baixo, carnal (“Não me arrependo do pecado triste / que sujou minha carne, suja toda carne”, já dizia Drummond) — e, portanto, deve ser rechaçado e superado — pelo menos nas aparências. Essa postura, entretanto, negligencia um fato importante: o sexo é elemento universal e indispensável na vida humana. E não falamos, aqui, do discurso religioso, de que o sexo é necessário para a procriação — indo além, é possível dizer que, mais que fundamental à preservação da espécie, ele é, antes de tudo, necessário para viver. Para tentar suprir esta necessidade, somos diariamente bombardeados pela representação erótica prevista pelo discurso de autoridade, aquela representação legitimada e que se manifesta em filmes, novelas etc. que contêm cenas de caráter sexual. Entretanto, esse tipo de representação, denominada orientação do prazer, além de limitar e anular o prazer, também favorece a preservação de preconceitos e tabus correntes na sociedade. Essa necessidade de controlar o sexo está ligada à sociedade do trabalho. Um corpo guiado pelo prazer nunca se volta ao trabalho alienado e à produção — que são a base da sociedade em que vivemos. O prazer guia, sim, a um trabalho — mas ao trabalho criativo, e não ao produtivo. A partir do momento em que o organismo existe não como um instrumento de trabalho alienado, mas como um sujeito de auto-realização (ou seja, se o trabalho for, ao mesmo tempo, socialmente útil e a satisfação de uma necessidade individual), a sexualidade narcisista deixa de ser uma ameaça à cultura e pode levar, ela própria, à criação cultural (MARCUSE, 1975, p. 183). Entretanto, na medida em que a sexualidade é organizada e controlada, a fantasia passa a afirmar-se, principalmente, no campo das perversões — a perversão existe de forma geral numa cultura repressiva e possui ainda formas compulsivas, coercitivas e destrutivas; a perversão geral pode perfeitamente expressar-se em formas compatíveis com a moralidade na civilização de elevado grau (MARCUSE, 1975, p. 178). O que devemos ter em mente é o fato de que é possível que, numa organização sexual menos repressiva, a libertação sexual possa criar novas e duradouras relações de trabalho.

É a partir dessa perspectiva que podemos ver a adoção da expressão erótica como uma postura política — e não simplesmente como representação do ato sexual. Ao usar o recurso do erotismo, coloca-se em questão o tabu da sexualidade para questionar até que ponto as relações de trabalho estabelecidas na sociedade de repressão são positivas. A crença no deus grego Eros, de onde vem o termo erotismo, contribuía para uma transição mais livre do erótico na sociedade grega. Para a tradição filosófica, é a divindade que une sombra e luz, matéria e espírito, sexo e ideia — contribui com a passagem do caos ao cosmo. É um dos deuses primordiais da cultura pré-cristã e representa a vida e os prazeres vitais.

II. Pelo orgasmo a explicação do mundo

A publicação, em 1992, de O amor natural foi, para os admiradores da poesia de Carlos Drummond de Andrade, uma surpresa — grata para alguns, para outros nem tanto. Nos 40 poemas que compõem o livro, o autor evoca temas como nudez, sexo oral, o corpo feminino, sexo anal e incesto, todos sempre perpassados por uma linguagem poética muito bem trabalhada. O erotismo, entretanto, não é novidade absoluta na obra de Drummond.

Desde o seu primeiro livro, Alguma poesia, Carlos Drummond já evocava a sexualidade, expressa na admiração do corpo alheio. O poeta (e genro de Drummond) Manuel Graña Etcheverry foi um dos presenteados com uma das duas únicas cópias de O amor natural editadas por Drummond e publicou um ensaio sobre o erotismo nele contido. Ao tratar das primeiras abordagens sexuais feitas pelo poeta itabirano, usa como exemplo o poema que abre o livro de 1930: “Poema de sete faces”.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas, pretas, amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

Il riferimento alle gambe, naturalmente di donna, indica che il poeta si esalta in considerazione di questa parte scoperta dell’anatomia femminile, e che la sua mente incalza ogni tipo di divagazione a suo riguardo: i suoi occhi non chiedono niente, e si compiacciono alla visione cosiddetta “sessuale”. Si potrebbe qui assumere che da un punto di vista sentimentale — il cuore — il poeta è monogamo, mentre i suoi sensi — gli occhi — sono poligami. (ETCHEVERRY, 1990)[1]

No decorrer de Alguma poesia, outras citações à anatomia feminina também são feitas, como em “Moça e soldado” (“Passam soldados. / … mas todas são pernas. / Meus olhos espiam. / Tambores, clarins / e pernas que passam.”) (ANDRADE, 1976, p. 21), bem como referências outras referências a questões sexuais — é o caso de “Iniciação amorosa” e “Cabaré mineiro”.

Em seu segundo livro, Brejo das almas, Carlos Drummond vai nos apresentar uma peça essencial para o estudo aqui apresentado: o poema que atende pelo nome de “Em face dos últimos acontecimentos”.

Oh! sejamos pornográficos
(docemente pornográficos).
Por que seremos mais castos
que o nosso avô português?
Oh! sejamos navegantes,
bandeirantes e guerreiros
sejamos tudo que quiserem,
sobretudo pornográficos.

A tarde pode ser triste
e as mulheres podem doer
como dói um soco no olho
(pornográficos, pornográficos).

Teus amigos estão sorrindo
de tua última resolução.
Pensavam que o suicídio
fosse a última resolução.
Não compreendem, coitados,
que o melhor é ser pornográfico.

Propõe isso ao teu vizinho,
ao condutor do teu bonde,
a todas as criaturas
que são inúteis e existem,
propõe ao homem de óculos
e à mulher da trouxa de roupa.
Dize a todos: Meus irmãos,
não quereis ser pornográficos? (ANDRADE, 1976, pp. 37-38)

Neste poema, Drummond questiona a postura histórica perante o sexo e propõe uma mudança: não há mais lugar para a repressão que ele enfrentou enquanto iniciava sua vida sexual, ainda criança, ou quando escrevia poemas em que ocupava somente a posição de voyeur. Aparece também a dicotomia amor versus morte, aqui seguida da opção de que o escritor fez: “Pensavam que o suicídio / fosse a última resolução. / Não compreendem, coitados, / que o melhor é ser pornográfico.” Antônio Houaiss defende que o poema é peça premonitória da “crescente necessidade do fescenino, do escatológico, do pornográfico e quejandos, que invade e pervade as áreas de predomínio ideológico burguês.” (HOUAISS, 1976, p. 68).

Uma outra questão que aparece no poema citado e que é relevante é a dicotomia erotismo versus morte (Eros versus Tanatos). A morte, domínio da continuidade, contrapõe-se à vida, que é descontínua. O erotismo introduz num mundo fundado sobre a descontinuidade toda a continuidade possível sem deixar que ela triunfe — porque o triunfo da continuidade é a morte. Assim, o erotismo é a aprovação da vida na morte — chega à continuidade, mas não a completa; leva seres descontínuos a uma continuidade momentãnea (BATAILLE, 1987, p. 11). A aproximação erotismo/morte também pode ser feita a partir de outros aspectos. Pertencendo o erotismo ao domínio da violência e da violação (BATAILLE, 1987, p. 16) assim como a morte, atrai e repele o indivíduo — o fato de ser uma ação interdita e repelida não anula, entretanto, o desejo que a circunda. Ainda duas coisas permanecem interditas ao homem: a morte e a união sexual, e assim é possível analisá-las como paralelos: o desejo de matar e o seu interdito relacionam-se paralelamente ao desejo de uma atividade sexual e seu complexo de interditos que a impedem.

Desta forma, não é de se estranhar que em alguns poemas, Drummond apresente o erótico e o tanãtico como alternativas. É o que acontece em “Não se mate”, onde o erotismo se aproxima de sua raiz etimológica: Eros enquanto vida. No poema de Brejo das almas, a desilusão amorosa (“Carlos, sossegue, o amor / é isto que você está vendo: / hoje beija, amanhã não beija, / depois de amanhã é domingo / e segunda-feira ninguém sabe / o que será.”) (ANDRADE, 1976, p. 40) suscita a reflexão sobre a possibilidade (referência também à tradição romântica) do fim do sofrimento através da morte. Mas o poeta aconselha: “Inútil você resistir / ou mesmo suicidar-se”.

Na obra de Drummond, aparece a denúncia da constante repressão ao erotismo. Em seus três livros de poesia de memória, muitas vezes o poeta aborda a sua iniciação sexual e a consequente repressão sofrida. É o que ocorre, por exemplo, em “Tentativa”, com a figura repressora do pai,

Uma negrinha não apetecível
é tudo quanto tenho a meu alcance
para provar o primeiro gosto
da primeira mulher.

Uma negrinha, sem cama
salvo a escassa grama
do quintal, sem fogo
além do que vai queimando
por dentro o menino inexperiente
de todo jogo.

Ai medo de não saber
o que fazer na hora de fazer.

Me ajude, primo igual a mim.
Seremos dois a navegar
o crespo rio subterrâneo.

No chão, à luz da tarde, a tentativa
de um, de outro, em vão, no chão
sobre a fria negrinha indiferente.

Em meio à indiferença dos repolhos,
das formigas que seguem seu trabalho,
eis que a montanha
de longe nos reprova, toda ferro. (ANDRADE, 1985, pp. 677-678)

e em “Iniciação amorosa” (este ainda de Alguma poesia), na figura do mal-estar físico:

E como eu não tinha nada que fazer vivia namorando as pernas morenas da lavadeira.

Um dia ela veio para a rede,
se enroscou nos meus braços,
me deu um abraço,
me deus as maminhas
que eram só minhas.
A rede virou,
o mundo afundou.

Depois fui para a cama
febre 40 graus febre.
Uma lavadeira imensa, com duas tetas imensas, girava no espaço verde. (ANDRADE, 1976, p. 22)

É em Brejo das almas que Drummond firma seu pacto pornográfico. Além de convidar a humanidade à pornografia, no já citado “Em face dos últimos acontecimentos”, ele nega qualquer pudor e, apesar de classificar o pecado como triste e sujo, ocupando, portanto, um lugar baixo em relação à estrela, ele aceita e assume o erótico:

Não me arrependo do pecado triste
que sujou minha carne, suja toda carne.
O caminho é tão claro, a estrela tão larga,
os dois brilham tanto que me apago neles.

Mas certamente pecarei de novo
(a estrela cala-se, o caminho perde-se),
pecarei com humildade, serei vil e pobre,
terei pena de mim e me perdoarei. (ANDRADE, 1976, p. 43).

A partir de então, a impressão que fica é que “o poeta (…) vai se libertando das sutilezas metafóricas e buscando dar nome às coisas, sem muitos rodeios” (AGUIAR, 2007, p. 105), desencadeando uma sensualidade cada vez mais explícita em sua obra, que culminará com a publicação de O amor natural.

Já no título, Drummond explicita sua concepção do que vai relatar no livro: sexo não é mais que o natural do amor, é o amor carnal, mas ainda assim, amor. Se, de acordo com a tradição filosófica, Eros é uma divindade que comunica valores opostos, numa relação sexual são indissociáveis os valores carnal e espiritual. É o que Carlos Drummond diz no início do primeiro poema de O amor natural:

Amor — pois que é palavra essencial
comece esta canção e toda a envolva
Amor guie o meu verso, e enquanto o guia,
reúna alma e desejo, membro e vulva.
Quem ousará dizer que ele é só alma?
Quem não sente no corpo a alma expandir-se
até desabrochar em puro grito
de orgasmo, num instante de infinito? (ANDRADE, 1992, p.19)

No último verso, o autor questiona a concepção do sexo como algo longe do sublime. Afinal, “[q]uem não sente no corpo a alma expandir-se / até desabrochar em puro grito / de orgasmo, num instante de infinito”? Depois, no último poema do livro, “Para o sexo a expirar”, alguns versos retomam esta ideia, e vão mais além: mais que sensação da alma, o orgasmo é parte existencial da questão existencial do amor: “Amor, amor, amor — o braseiro radiante / que me dá, pelo orgasmo, a explicação do mundo” (ANDRADE, 1992, p. 103).

É importante notar que durante todos os poemas que compôem O amor natural, o poeta nunca abandona o apuro da linguagem, tão seu característico. Em “Era manhã de setembro” (ANDRADE, 1992, pp. 21-23), por exemplo, a escolha do mês mencionado não é pura e simplesmente por corresponder à rima com “membro”. Durante todo o poema, desfolham-se metáforas que se utilizam de elementos da natureza, em especial ligados às flores — e é em setembro que a primavera tem início. Um recurso utilizado com muita eficácia é a composição por aglutinação, com a qual o autor cria novas palavras que melhor expressam o que ele pretende dizer. O poema “Bundamel bundalis bundacor bundamor” é todo construído em cima disto, e nos versos finais de “Sugar e ser sugado pelo amor” o sexo oral é descrito belamente: “é tudo boca boca boca boca / sessenta e nove vezes boquilíngua” (ANDRADE, 1992. p. 67).

III. O poeta da deseducação

Em 2008, o Brasil se viu no meio de uma discussão sobre até que ponto o moralismo e a hipocrisia ainda estariam inseridos na sociedade. Após ser convidado pela própria diretoria da Escola Parque a falar na sala de aula sobre seu trabalho de escritor, Oswaldo Martins foi demitido. O motivo: escrevia poesias de conteúdo erótico-pornográfico. A reclamação veio dos pais de alunos que, após ouvirem a fala do professor, foram buscar sobre ele na internet e se depararam com seu blog. Também na web, o escritor possui publicada uma releitura dos Sonetos luxuriosos, de Pietro Aretino, denominada I modi[2]. A abordagem de Martins difere da de Drummond: sua poesia é feita para transgredir. E se O amor natural era transgressor, o que dizer da poesia que questiona abertamente os valores da sociedade e diz “caralho”, “buceta” (sintomaticamente grafada com u), “foder”? Em Cosmologia do impreciso (2008), sexo e vida se confundem. Onde lemos “bucetas” podemos ler “Eros” – e Eros não é menos que vida. Assim como o corpo feminino, a arte é também vida e fonte de prazer – é possível sentir tanto prazer com ela quanto se sente com a relação sexual. Volta, então, a ideia de corpo e espírito que Oswaldo trabalha: se a arte, segundo a visão tradicional, é uma atividade sublime, ao ligá-la tão intimamente ao corpo, o poeta está mais uma vez afirmando que o espírito e o corpo não se separam: no sublime da arte, há a criação erótica, carnal – há o prazer.

quando quadros e livros
bucetas são

não são bucetas que se levam
aos livros e quadros

senão que quadros e livros
buscam

o que de bucetas
são (MARTINS, 2008, p. 93)

O caráter transgressor da poesia de Oswaldo não aparece somente na utilização da linguagem sexual para se referir a outros assuntos, como o poema acima citado mostra. O que vemos é uma subversão do discurso sexual do poder de que fala Michel Foucault (FOUCAULT, 1988): se a sociedade é permeada pela verbalização do sexo de forma técnica, classificatória, como forma de, pela dissipação, banalizar e repelir a prática, o que temos na poesia de Oswaldo é o discurso poético sobre o sexo. Longe de ater-se a minúcias biológicas, seu texto faz a sexualidade trocar frequentemente de posição com a arte. O discurso sexual, aqui, está fora do âmbito do poder; não se trata de uma de suas ramificações que se estabelecem à medida que o sexo é verbalizado e normatizado.

Na subdivisão “Estudo para pinturas sacras”, do Cosmologia, o poeta volta-se para a religião: começa por desconstruir a imagem de “virgem” de Maria. A virgem, figura tão pura nas escrituras, é aqui mulher real e faz intrigas, obtém favores, finge e, o mais importante, faz sexo. Fala de sexo. Fala de deus e de sexo ao mesmo tempo. Reúne sagrado e profano.

A virgem de olhos doces tece intrigas
para conquistar os favores
de deus

para isso usa de artifícios
finge no olhar vazio
ser a menina dos olhos

depois diz para isabel:
fodi com deus.

ah, isabel, isabel,
com ele
é como se fodesse com todos os homens (MARTINS, 2008, 105)

Neste poema aparece uma questão interessante: aqui, o sexo com Deus é uma forma de entrar em contato com todos os outros homens. É como a comunhão – mas feita a partir do corpo. Se, ao ingerir o que representa o corpo de Deus, a pessoa entra em contato com este e ao mesmo tempo com todos os seus irmãos, aqui a proposta é a mesma, mas a comunhão é feita pelo corpo em si, e não por uma representação dele. É possível enxergar também a questão da projeção divina no homem. Se o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus, por que seria o sexo uma característica nossa e exclusivamente nossa, carnal? Não: aqui, o sexo atinge também a divindade.

Depois, Oswaldo retoma os “Ensaios sobre a pintura”, de Diderot, onde o filósofo, escritor e crítico de arte faz uma série de considerações sobre como seria a relação entre arte e sexualidade, caso esta não fosse brutalmente reprimida pelo cristianismo.

Se nossa religião não fosse uma sombria e insossa metafísica, (…) se esse abominável cristianismo não se tivesse estabelecido mediante o assassinato e o derramamento de sangue, (…) se todos os nossos santos e santas não estivessem cobertos até a ponta do nariz (…) se a Virgem Maria houvesse sido a mãe do prazer, (…) se, nas bodas de Canaã, Cristo, tocado de vinho, um tanto desabusado, houvesse percorrido o colo de uma das jovens das bodas e as nádegas de Santa Joana (…) veríeis o que fariam nossos pintores, poetas e escultores; em que tom falaríamos desses encantos, que exerceriam um papel tão sublime e tão admirável na história de nossa religião e de nosso Deus; e com que olhos contemplaríamos a beleza à qual deveríamos o nascimento, a encarnação do Salvador e a graça de nossa redenção. (DIDEROT, 1993, 94-95)

A transposição para a poesia é feita a partir da tomada de pequenos trechos de Diderot (como “se Madalena houvesse tido alguma aventura galante com Cristo” ou “se as alegrias de nosso paraíso não se reduzissem a uma absurda visão beatífica”), que são em seguida desenvolvidos por Oswaldo Martins:

4
cristo nas bodas de caná houvesse percorrido o colo das moças

e com os olhos inebriados de tesão
tocasse aqui uma teta
ali as curvas

as portentosas nádegas
da mulher que se oferecia

mais que a morte
seria a carne

nossa unção (MARTINS, 2008, 112)

A grande questão levantada neste poema é: o erotismo, ao mesmo tempo em que se relaciona à vida, também é vida – mais: é unção, é algo sagrado. E este seria um valor universal, não fosse a imagem criada e repassada até hoje pelas religiões, que têm em Jesus Cristo a personalização de seus valores – e é sua imagem de ausência de sexualidade que nos foi passada como exemplo de conduta.

IV. Sexo enquanto questão existencial

O poeta Pietro Aretino foi, por assim dizer, o bode expiatório da Renascença italiana, purgando-lhe as culpas e os crimes – seus Sonetti lussuriosi, marco na história da poesia erótica do Ocidente, foram alvo de perseguição por quatrocentos anos, o que resultou no escasso número de sua edição, quase todas em francês e “com as palavras ditas obscenas substituídas por sinônimos menos chocantes ou pela letras inicial seguida de hipócritas reticências” (PAES, 2000, p. 26). Os sonetos de Aretino surgiram a partir da série reproduções dos quadros feitos por Giulio Romano que representavam posições sexuais.

Na maior parte dos sonetos, vemos comentários trocados pelos amantes que suscitam um acompanhamento da cena erótica. E digo “acompanhar” porque, em primeiro lugar, em diversos momentos o leitor é promovido de voyeur a co-participante da ação; em segundo, porque não somos colocados diante de uma cena estática – temos um processo que se desenrola com uma “intensificação retórica cujo crescendo paraleliza mimeticamente o ritmo do mais intenso dos processos fisiológicos conhecidos do ser humano” (PAES, 2000, p. 36) – o orgasmo. Trata-se de uma experiência indizível como todas as outras experiências profundas e que os sonetos de Aretino tentam, paradoxalmente, dizer. Esse objetivo de dizer o indizível envolve o recurso que José Paulo Paes chama de retórica do orgasmo. O primeiro meio de que se vale essa retórica é o vocabulário cru; outro recurso é o registro interjectivo. Antes de Aretino, a literatura marcada pelos “nomes técnicos” era restrita a um círculo de patronos e amigos dos escritores que produziam esses textos. O autor dos Sonetos luxuriosos, no entanto, tornou esse tipo de produção acessível a um público mais amplo, chegando mesmo a inovar seu conteúdo de acordo com as demandas dos leitores. Por isso, sua obra não só gerou uma grande quantidade de imitações (muitas atribuídas a ele, mas escritas, na verdade por seus discípulos), mas também preparou a proliferação da pornografia nos séculos seguintes.

Aretino, além de, como já foi dito, transformar o leitor em co-participante da ação sexual, ele vai além: o sexo, tão carnal e palpável em sua poesia, acaba por transcender o físico: torna-se uma questão existencial:

Fottiamci, vita mia, fottiamci presto,
Poi che per fotter tutti nati siamo,
E se il cazzo ami tu, la potta io bramo,
Chè il mondo saria nullo senza questo.

[Fodamos, meu amor, fodamos presto,
Pois foi para foder que se nasceu,
E se amas o caralho, a cona amo eu;
Sem isto, fora o mundo bem molesto.] (ARETINO, 2000, 68-69)

Essa postura, usada como forma de atacar diretamente a moral hipócrita, é defendida por Aretino no início de seus Sonetos:

Diverti-me […] escrevendo os sonetos que podeis ver […] sob cada pintura. A indecente memória deles, eu a dedico a todos os hipócritas , pois não tenho mais paciência para as suas mesquinhas censuras, para o seu sujo costume de dizer aos olhos que não podem ver o que mais os deleita. (ARETINO, 2000, p. 5)

Essa perspectiva vai ser retomada bem mais tarde no Modernismo como uma dentre as tantas formas utilizadas para promover a liberdade (os poemas-piada de Oswald de Andrade, os versos brancos e os versos livres). Resgatar uma visão primitiva do corpo e dos atos que este pratica, valorizar o sensual, desconstruir os valores consagrados da moral estabelecida – são preceitos de uma poesia erótica.

V. O eros feminino

A poeta portuguesa Manuela Amaral vem completar esse corpus trazendo a ele uma nova visão da questão erótica: a questão feminina. Sua poesia é marcada por duas grandes questões: o erótico e o feminino. Podemos observar que a poesia feminina contemporânea em geral não existe sem o erótico. Manuela Amaral usa o erótico para trazer à tona a questão da mulher, e para tal se assume não só como ser feminino, mas também como uma mulher que ama as mulheres. A concepção da sexualidade – não da escritora, porque não vem ao caso, mas da sua poesia – é essencial para ler seus escritos. O teor contestador de sua poética pode ser visto em “Rebeldia”:

Soltem-me
as algemas

Quero
a minha alma livre
meu corpo livre
meu pensamento livre

Esbofetear o mundo
e cuspir
na vida

O ato de “esbofetear o mundo” e “cuspir na vida” é frequentemente executado pela poesia homoerótica de Manuela. Mais do que afirmar a sexualidade em geral – que, por si só, já é um tabu -, ela afirma uma sexualidade específica – a homossexual. E, para afirmar, ela nega sua identidade – e assim constrói uma identidade própria para sua poesia:

Não sou homem
nem mulher
nem lésbica
ou pederasta

Sou tudo

Mas ser tudo
não me basta

Ao mesmo tempo, coloca em discussão uma questão que perpassa a pós-modernidade: a impossibilidade do ser único. Num mundo com tantas identidades se cruzando, não é possível que se fale em defesas sociais únicas. Por isso, a poesia de uma escritora lésbica não é perpassada somente pela sua feminilidade, mas também pela das outras mulheres que a cercam.

O sexo e a poesia, e consequentemente a arte, não são só o sublime. Os palavrões citados no poema retornam à questão mostrada em Oswaldo Martins, sobre a libertação da linguagem sexual. A questão da linguagem e da impossibilidade dela é também retomada em “Palavra por dizer”:

Só agora sou poeta
na poesia que não escrevo
Só agora me transmito
Só agora me transcrevo

Eu silabo no teu corpo
a palavra que não digo

A poesia de Oswaldo e Manuela, de certa forma, se complementam, já que abordam de formas diferentes as mesmas questões, apenas com pontos de vista diferentes. A questão que aqui já foi abordada em Oswaldo, sobre a religiosidade, também aparece em Manuela: “Nas ilhas mais remotas do teu corpo / fui encontrar o santo graal perdido”.

O santo graal, símbolo religioso, é transformado em objeto sexual, é encontrado no corpo sexualizado da parceira. Essa ligação é feita também em outros poemas, como, por exemplo, ao dizer, em “Auto de fé”: “a um palmo do umbigo eu fui primeira / a divina / a deusa”.

VI. Conclusão

Creio não haver maneira melhor de terminar o presente artigo do que com as palavras de Aretino em uma carta da época da divulgação das gravuras nas quais baseou seus sonetos:

Que mal haverá em contemplar um homem a possuir uma mulher? Serão os mesmos animais mais livres que nós? Parece-me que aquela coisa que a Natureza nos dá para perpetuar-nos deveria ser usada à volta do pescoço como berloque e no chapéu como medalha. Foi ela quem vos fez (…) Gerou as mais adoráveis crianças, as mulheres mais belas, os santos mais veneráveis. Não é mister ocultar órgãos que engendraram tantas belas criaturas. Seria antes mister ocultar nossas mãos, que nos dissipam o dinheiro, fazem juramentos falsos, emprestam a juros usurários, torturam a alma, ferem e matam. (PAES, 2000, pp. 28-29)

O que se tentou mostrar com esse breve panorama foi que a poesia erótica, desde sempre, serviu para um objetivo além da excitação sexual, ainda que isso não seja amplamente divulgado. O tabu sexual contribui para que continuemos tachando a literatura erótica de conteúdo baixo, quando, na verdade, trata-se de algo sublime.

Referências bibliográficas

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___. Reunião – 10 livros de poesia. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1976.

ARETINO, Pietro. Sonetos luxuriosos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

BATAILLE, Georges. O erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987.

DIDEROT, Denis. Ensaios sobre a pintura. Campinas: Papirus, 1993.

DURIGAN, Jesus Antônio. Erotismo e literatura. São Paulo: Ática, 1985.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.

LAWNER, Lynne. As cortesãs do Renascimento. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

MARCUSE, Herbert. Eros e civilização. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975.

MARTINS, Oswaldo. Cosmologia do impreciso. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.

MORAES, Eliane Robert. O efeito obsceno. Cadernos Pagu (UNICAMP), Campinas, v. 20, p. 122-130, 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/cpa/n20/n20a04.pdf>

PAES, José Paulo. Notícia biográfica. In: ARETINO, Pietro. Sonetos luxuriosos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 10-20.

___. Uma retórica do orgasmo. In: ARETINO, Pietro. Sonetos luxuriosos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 21-49.

PAZ, Octavio. A dupla chama: amor e erotismo. São Paulo: Siciliano, 1994.

 

[1] “A referência às pernas, naturalmente de mulheres, indica que o poeta se exalta em considerações sobre esta parte descoberta da anatomia feminina, e que sua mente persegue todo tipo de divagação a esse respeito: os seus olhos não perguntam nada, e se comprazem com a visão considerada ‘sexual’. Pode-se aqui assumir que do ponto de vista sentimental – o coração – o poeta é monogâmico, mas os seus sentidos – os olhos – são poligâmicos.” (Tradução minha)

[2] I modi encontra-se disponível no site Texto Território, mantido por Oswaldo Martins e outros escritores: http://textoterritorio.pro.br/imodi/index.html