Linguagem ambígua e significação, em Guimarães Rosa

Eduarda da Silva

RESUMO: A fim de discutir a linguagem ambígua como recurso poético, este ensaio sistematiza um recorte — mesmo que bastante restrito — para melhor visualizar o modo como essa ferramenta se apresenta na produção literária de Guimarães Rosa e quais podem ser algumas de suas possíveis significações.

PALAVRAS-CHAVE: linguagem ambígua; recurso poético; Guimarães Rosa; significação.

ABSTRACT: In order to discuss the ambiguous language as a poetic feature, this paper systematizes a cut — even though it’s very restrict — to get a better way of visualizing how this “tool” seems to work in the Guimarães Rosa’s literary production, and what can be some of its possible significations.

KEYWORDS: ambiguous language; poetic feature; signification.

 

É, e não é. O senhor ache e não ache. Tudo é e não é…[1]

Partindo da epígrafe que é um excerto do único romance — e obra-prima — de João Guimarães Rosa, faz-se ideia do que será abordado nesse estudo. “Tudo é e não é…” carrega a síntese de um dos temas mais recorrentes da obra rosiana: a ambiguidade. Este tema — que é também ferramenta discursiva e recurso poético — transforma a produção literária de Rosa em algo demasiadamente humano e vivo, uma vez que explicita uma discussão sobre um ponto específico e bastante controverso da habilidade que os seres humanos têm de se comunicar; seria possível dizer, desse modo, que a ambiguidade aparece como uma forma de questionamento através do qual se pode refletir a capacidade que o sistema da linguagem tem de significar.

Tomando o cuidado de não restringir o foco da análise a ser feita aqui, do papel da ambiguidade em Guimarães Rosa, é importante perceber que não se trata de um “problema” exclusivamente linguístico, mas de uma questão que envolve paradigmas mais profundos da vida humana que dizem respeito àquilo de que ainda não se tem explicação, ou melhor, ao que muitas vezes as explicações racionais não conseguem esgotar. É também nessa margem deixada pela racionalidade, por conta da sua incapacidade em desvendar assuntos desse tipo, que se fundamenta e ganha legitimidade esse aspecto da expressão literária rosiana.

Por mais que, neste momento, o objeto de estudo seja especificamente a produção literária do autor em questão, não se pode esquecer que essa característica não pertence exclusivamente a ele. Esse tipo de discussão pode ser considerado integrante de toda atividade humana e principalmente toda expressão artística que se preocupa em lidar com reflexões acerca dos problemas da representatividade. A literatura, de modo especial, lida com mais frequência, ou talvez apenas com mais visibilidade, com questões desse gênero. Assim, parece importante acrescentar uma citação que fala em poucas e sensatas palavras dessa relação entre a literatura e a vida. Relação essa tão presente em Guimarães Rosa:

A ciência é grosseira, a vida é sutil, e é para corrigir essa distância que a literatura nos importa. Por outro lado, o saber que ela imobiliza nunca é inteiro nem derradeiro; a literatura não diz que sabe alguma coisa, mas que sabe de alguma coisa; ou melhor: que ela sabe algo das coisas — que sabe muito sobre os homens. (BARTHES, 2004, p. 19)

O caráter metalinguístico de discurso crítico sobre a representatividade que se condiciona na obra de Guimarães Rosa acaba por mesclar, de maneira singular, muitos aspectos que seu regionalismo aborda. A ambiguidade aparece também aqui, quando o estilo da escrita do autor une popular e erudito, ao elaborar essa matéria aparentemente simples — utilizando narrativas em forma de anedota e as típicas citaçηes de cantigas, por exemplo — da cultura oral, com os artifícios linguísticos da cultura letrada. Esse regionalismo se torna paradoxal à medida que a matéria da vida sertaneja expande seus horizontes e amplia seu campo de discussão para os conflitos existenciais universais.

É a partir do particular que se alcança o universal, do arcaico que se encontra o moderno e da simplicidade que se chega à sofisticação. A simultaneidade da existência daquilo que se considera o oposto — e por isso teoricamente não compatível — num mesmo fenômeno é a marca do que Candido denomina como o “grande princípio geral da reversibilidade” em Guimarães Rosa. A capacidade de realizar essa fusão de modo satisfatório, e possibilitar através dessa mescla a percepção de que toda definição conhecida é insuficiente e pode ser questionada na tentativa de significar o mundo, é um dos elementos que torna a escrita rosiana única, sendo o motivo pelo qual a ambiguidade se encontra no centro das reflexões que serão aqui abordadas.

Entretanto, como a ambiguidade é qualidade intrínseca de praticamente todo assunto abordado na obra de Guimaráes Rosa, faz-se necessário um recorte mesmo que artificial e redutor. O recorte feito aqui leva em conta as reflexões de Antonio Candido em seu ensaio O homem dos avessos em que as ambiguidades estão agrupadas em grandes grupos: a ambiguidade da geografia, a dos tipos sociais, a afetiva e a metafísica. Mesmo não utilizando iguais critérios, parece bastante lógica e útil essa divisão em conjuntos que sistematiza e facilita a investigação que se busca realizar nesse estudo.

1. Ambiguidade geográfica

O São Francisco partiu minha vida em duas partes[2]

A geografia na escrita de Guimarães Rosa é mais um elemento constitutivo da narrativa que reafirma a tendência do autor de fazer valer em sua obra “a liberdade que os homens têm de fazer significar as coisas” (BARTHES, 1970, pp. 165-184). Como tudo em sua escrita, a geografia está submetida ao processo de definição e redefinição, de significação e resignificação, ou melhor, de “suspensão da significação” (Barthes, 1970, pp. 165-184) a que está sujeita toda obra de arte.

Como a vida de Riobaldo, tudo tem duas partes na narrativa Roseana, e elas sempre são constituintes de uma mesma manifestação. A primeira — no caso específico da geografia — é aquela que o leitor consegue reconhecer como representação, aquela com a qual estabelece paralelos com a realidade. As estórias de Guimarães Rosa têm uma ambientação bastante específica: o sertão brasileiro, a região que se estende do Norte de Minas Gerais e Leste de Goiás ao Sul da Bahia; por isso, não é difícil de fazer conexões desse tipo, a maioria dos nomes próprios de lugares — como: rios, cidades, povoações — são reais, e, para quem já esteve naquela região, há uma facilidade muito grande de se recuperar essas referências.

A segunda parte, é a que afasta o topônimo da sua correspondência com o real, o transforma em personagem da trama, dilui a sua ligação com aquilo que se toma por verdadeiro. Esse movimento, que dificulta o recuperar de referências, muitas vezes acaba dissipando as fronteiras da materialidade, o referente geográfico deixa de ser um espaço físico apenas e passa a cumprir um papel ativo dentro da narrativa.

Nem sempre existe uma analogia particular, é frequente, também, a ocorrência de generalizações e, nesses casos, o lugar em que a trama se desenvolve aparece apenas delineado, com certas características definidas. É o que acontece em Terceira margem do rio em que temos apenas a informação de se tratar de um ambiente ribeirinho. Apesar disso — talvez pela extrema especificidade de seu regionalismo — essa generalização não impede o leitor de criar uma imagem bem específica do cenário em que o conto se desenrola.

O rio e suas margens “materializam” as escolhas possíveis desse “nosso pai”, que “ou desembarcava e viaja s’embora, para jamais, o que ao menos se condizia mais correto, ou se arrependia, por uma vez, para casa”. Das duas opções, o pai decide por uma terceira, ele escolhe abandonar a família e viver o rio, não desembarcando em nenhumas das duas margens, vivendo em um lugar terceiro, na terceira margem do rio. Essa escolha acaba por evidenciar o caráter contraditório e questionador da escrita de Guimarães Rosa, demonstrando que existe sempre algo além daquilo que está definido racionalmente.

Fica claro, portanto, que o rio não é apenas o cenário, ele cumpre papel importante no projeto de dizer desse texto literário. O refúgio terceiro encontrado pelo pai dentro do rio é a lacuna deixada pela linguagem no processo de significação da leitura de um texto literário. É a demonstração “concreta” de que na verdade as fronteiras, as delimitaçães escapam ao controle e que todo significado precisa se construir no seu contrário que é parte integrante de si.

2. Ambiguidade dos tipos sociais

Sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado![3]

Depois de definir o sertão como “simples universozinho nosso”, Riobaldo conclui com essa máxima que consta na epígrafe da terceira parte deste ensaio: “sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado!”; e é a partir dessa colocação do jagunço-professor-fazendeiro que será analisada a ambiguidade dos tipos sociais nesse estudo.

A força que é mencionada no excerto acima possui diversos significados dentro da obra de Guimarães Rosa, e do contexto histórico-social que faz parte da matéria nela contida. Esses significados, mais do que ficção, são uma substância viva que permeia a escrita rosiana, pois eles vêm do processo de formação da identidade sertaneja e constituem o plano de fundo dessas narrativas, importante vínculo entre a realidade e o imaginário.

Ao abordar de forma singular a vida do sertanejo, Guimarães Rosa acaba por desvendar esses sentidos na figura que cria desses indivíduos dentro da sua literatura que contém dentro de si a firmeza, a determinação, a coragem e a violência também presentes no indivíduo real. O desenho desse indivíduo foi construído por influências do ambiente — que os torna fortes, persistentes, determinados e corajosos em busca da sobrevivência —e da realidade social em que está inserido. É a partir dos fatores de organização social que o jagunço será analisado como o tipo social ambíguo na narrativa rosiana.

A “instituição da jagunçagem” (BOLLE, 2004) é resultado e força propulsora de um sistema de engrenagens que rege esse “simples universozinho” que é o sertão brasileiro. O modo como essa sociedade rural se concretizou acabou por gerar essa figura intrigante da cultura popular do país. Walnice Nogueira Galvão elabora essa ideia de maneira bastante clara em As formas do falso, onde diz:

É tradição brasileira secular a presença de uma força armada a serviço de um proprietário rural, grupo de função defensiva e ofensiva, presente dentro da propriedade, para garantir limites, mas igualmente importante para garantir eleições, seja pelo número de votos que representa, seja pelos votos que pode conseguir por intimidação ou mediante fraude. O braço armado serve para prevenir conflitos e para resolvê-los; a violência é uma prática rotineira, orientando o comportamento dos seres humanos em todos os níveis. (GALVÃO, 1972; p. 21)

A violência é o que estabelece a ordem nesse sertão dos fortes, ela controla, oprime e pune com base na regra sertaneja da aliança e da vingança. O sertão de Rosa ainda vive nos moldes arcaicos em que foi constituído, mas é consciente do processo de modernização que ocorre a sua volta e que, aos poucos, tenta se infiltrar entre as peças do sistema.

O jagunço, então, peça integrante desse maquinismo, faz parte de um universo regido por uma lei às avessas que o coloca em uma posição dividida. Divisão essa muito claramente representada no conto Famigerado, de Primeiras estórias, onde Damázio, a fim de esclarecer um suposto insulto feito por “um moço do Governo”, procura um homem letrado — que tudo indica ser um médico — para lhe dizer o que “famigerado” verdadeiramente significava. A cena criada traduz perfeitamente a atmosfera mesclada de medo e respeito que a presença de um jagunço com a fama de Damázio imporia.

Tal como o signo que o coloca na procura por uma definição, Damázio faz parte do grupo de seres complexos que contem em si uma essência e seu oposto ao mesmo tempo. Quer dizer, o jagunço, frequentemente associado às ações de banditismo, à violência e à crueldade, também é respeitado pela coragem, pela honra (do código da jagunçagem) e, por que não, pelo medo, pois “o jagunço não é um assassino: ele é um soldado numa guerra; o jagunço não mata: ele guerreia; o jagunço não rouba: ele saqueia e pilha” (GALVÃO, 1972). Dito de outra forma, nesse sertão em que a lei falta e a honra da regra existe cria-se uma figura que é o famigerado jagunço: “o matador, assassino, notório e notável” (WISNIK, 2002).

3. Ambiguidade afetiva

Artes que morte e amor têm paragens demarcadas. No escuro. Mas senti: me senti. Águas para fazerem minha sede.[4]

O amor tem paragens demarcadas no escuro, demarcadas onde é difícil definir o local com precisão, o amor é difícil de definir. A ambiguidade afetiva será observada principalmente em Grande sertão: veredas, no qual, essa ambiguidade, é um elemento analisado pelo próprio narrador, pois Riobaldo narra a história da parte mais significativa de sua vida, não para um interlocutor específico, mas para si mesmo, com o intuito de sistematizar e compreender o que realmente aconteceu, para analisar suas escolhas e descobrir ao que elas levaram — já que somente quem experimentou tem algo a contar — e, porque não, para tentar justificar sua história através da estória.

Essa reavaliação faz o narrador hesitar em muitos momentos e, no que diz respeito à questão afetiva, os desequilíbrios giram em torno, não somente da “indecisão” entre o amor elevado que sente por Otacília e o mundano que o liga à Nhorinhá, em que entram em conflito também os valores sociais do casamento e, dessa forma, Nhorinhá seria uma caso extraconjugal e continua a habitar as lembranças do jagunço, mas também, naquilo que ele considerava verdadeiro em cada um dos seus amores, já que nessa roda entra também Diadorim — o jagunço Reinaldo — que representa a ambiguidade máxima do homem-mulher ou da mulher-homem.

O balanço feito por Riobaldo é justificado pelo fato de que cada um de seus amores representa uma vida completamente diferente, mas ao mesmo tempo possível e, ainda mais seriamente no caso de Diadorim, pois o jagunço-narrador se sente culpado pela morte do amigo — culpa essa que vira mote para todo o romance. Ao longo da narrativa, percebe-se que existem ponderações feitas em relação a cada uma das “opções” possíveis de Riobaldo.

No primeiro caso, Nhorinhá, tem-se uma prostituta que desperta o interesse do jagunço e cuja relação foi descrita pelo próprio como semelhante ao “casamento, esponsal”. Há, dessa forma, uma transição “do mundo profano da prostituição para o mundo sagrado”. Transição essa reforçada pelo fato de que o contato físico não volta a acontecer, o “erotismo casto” de Nhorinhá é mantido durante toda a narrativa graças às lembranças de Riobaldo, que percebe somente no final, depois de casado com Otacília, que realmente amou e ainda amava depois de oito anos Nhorinhá. A filha de Ana Duzuza pode ser vista como a manifestação mútua e agressiva dos valores do espírito e da carne, ao mesmo tempo em que Riobaldo dá sempre ênfase nos “amor sensível” de Nhorinhá, esse não se repete e é, à distância, cultivado pela lembrança.

Otacília, por sua vez, é a certeza, a fuga do mundo, o porto seguro de Riobaldo na Fazenda Santa Catarina e “a Fazenda Santa Catarina era perto do céu — um céu azul no repintado, com as nuvens que não se removem” um local idílico que guarda o amor puro do jagunço. Riobaldo a descreve: “minha Otacília, fina de recanto, em seu realce de mocidade, mimo de alecrim, a firme presença”. Nem tão firme era o sentimento de Riobaldo, ele hesita logo depois de tê-la pedido em casamento:

— “Casa-comigo…” — Otacília baixinho me atendeu. E, no dizer, tirou de mim os olhos; mas o tiritozinho de sua voz eu guardei e recebi, porque era de sentimento. Ou não era? Daquele curto lisim de dúvidas foi que minou meu maisquerer.[5]

O seu “mimo de alecrim” é a certeza e a dúvida; a certeza por ser o amor “correto” — se comparado aos outros — e socialmente aceito, mas a dúvida por constituir apenas uma das opções, fechando os outros caminhos possíveis de sua vida.

Por último temos Diadorim, o amor-amigo, o amor proibido e condenável. Riobaldo conclui: “Diadorim me veio, de meu não-saber e querer”. É o amor negado, rejeitado, impossível. Mas, se o sexo de Diadorim — revelado no final — torna o amor entre os dois possível, este fato não apaga o questionamento que Riobaldo se propôs da possibilidade ou não de se amar Diadorim enquanto homem jagunço, companheiro guerreiro, pois diversas vezes ele considera a si próprio e a Diadorim como diferentes do restante do grupo.

Como é que se pode gostar do verdadeiro no falso? Amizade com ilusão de desilusão. Vida muito esponjosa. Eu passava fácil, mas tinha sonhos, que me afadigavam. Dos de que a gente acorda devagar. O amor? Pássaro que põe ovos de ferro.[6]

“Ah, a flor do amor tem muitos nomes”, chama-se dorme-comigo quando Nhorinhá, casa-comigo quando Otacília e não-saber e querer quando Diadorim. O conflito de Riobaldo é resolvido em parte, sendo que fez sua escolha, mas permanece insolúvel em seu narrar. O amor não conhece limitações, mesmo que sua concretização não seja possível. “O amor dá as costas a toda reprovação”.[7]

4. Ambiguidade metafísica

[…] o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem — ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos.[8]

Se, como visto anteriormente, for correto pensar a escrita de Guimarães Rosa como uma tentativa de mostrar que o mundo é, na verdade, “um objeto a ser decifrado” (BARTHES, 1970, 165-184), então nada mais justo do que considerar que o debate a que se dá mais ênfase é o feito entre as forças — mais uma vez — (aparentemente) antagônicas do bem e do mal. É essa aparente oposição entre bem e mal que dá forma ao que se denomina, aqui, de ambiguidade metafísica.

“Aparente oposição” porque o que se descobre, depois de uma leitura mais detida, é que bem e mal podem conviver, não se excluem ou se anulam mutuamente, como é usual pensar. Uma maneira de se considerar isso é ver bem e mal como uma questão de ponto de vista, como no caso de Joãoquerque um “avergado homenzarrinho” que depois de fugir covardemente do jagunço Ipanemão que bateu à porta da casa de Mira “viúva recém”, volta e se apresenta “sem ser do jeito de vítima” e acaba matando brutalmente o jagunço que à primeira vista nada havia feito à Mira.

Decidir quem é mau nessa situação se torna bastante difícil, se é o sujeito pacato que se arrepende de ter fugido e deixado a mulher indefesa a mercê do jagunço “cruel como brasa mandada, matador de homens, violador de mulheres”, e que volta para protegê-la, mas mesmo depois de constatar que nada havia sido feito mata o vilão; ou se Ipanemão, que é morto sem motivo imediato enquanto “acocorado, à beira de foguinho, bebia e assava carne, sanguinaz, talvez sem nem real ideia de bulir com a Mira”.

O que acontece com Joãoquerque parece semelhante a muitos outros casos das narrativas rosianas. A transformação daquilo que se considerava o bem no que se considera mal — bem como a situação reversa — parece ser uma maneira encontrada pelo autor para discutir essa questão. É possível citar pelo menos outras duas estórias em que “metamorfoses” parecidas acontecem, são elas o caso de Augusto Matraga, em A hora e vez de Augusto Matraga[9], e o de Maria Mutema, em Grande sertão: veredas.

No primeiro caso, o personagem principal passa por uma transformação: “Nhô Augusto” que era “duro, doido e sem detença, como um bicho grande do mato” e ficara ainda “mais estúrdio, estouvado e sem regra” depois da morte do pai, passa a ser homem direito e justo. Mas, para isso, é preciso que ele seja frustrado duas vezes; primeiro, quando Augusto se vê totalmente sozinho: seu casamento, que não andava bem havia muito tempo, acaba e sua mulher o deixa para tentar ser feliz com outro homem — Ovídio Moura, e seus jagunços — que foram embora por falta de pagamento — passam a trabalhar para outro homem: Major Consilva.

Augusto decide então se vingar, primeiro de Major Consilva e depois de Ovídio Moura. Entretanto, esse ato desesperado acaba quase causando a morte de Augusto Matraga, que é espancado pelos capangas que faziam a proteção da casa do Major. Quase morto, Augusto Esteves — ao tentar fugir — se joga por um barranco muito íngreme e isso acaba por salvar sua vida, já que um casal que por ali vivia encontra o homem e cuida dele até que se recupere. Durante sua recuperação Augusto reconsidera seu modo de vida e depois da visita de um padre acaba decidindo deixar o “caminho do mal” que era sua antiga vida e optar pelo “caminho do bem”.

Ele vive por muitos anos, com o mesmo casal que cuidou dos seus ferimentos, tratando-os como se fossem seus pais e, de acordo com os aconselhamentos do padre, trabalhando muito e ajudando os outros. Até que a passagem do bando de jagunços de Seu Joãozinho Bem-bem o faz perceber que havia algo dentro de si adormecido. O líder do bando reconhece em Augusto uma valentia pouco comum e o convida pra seguir com eles, o moço recusa e o bando parte sem ele. Acontece que algo havia mudado e Augusto resolve sair sem rumo.

Durante seu perambular, Augusto Matraga se reencontra com Joãozinho Bem-bem e seu bando, eles estão em uma fazenda a fim de vingar a morte de um dos companheiros que foi apanhado em uma emboscada por um dos filhos do fazendeiro, dono da propriedade. Augusto, depois de saber do ocorrido, vem intervir em favor da família. Por discordar de seu João Bem-bem os dois acabam brigando até a morte de ambos quando só então descobrem serem parentes, primos, e morrem amigos e felizes por terem morrido valentemente “na faca” de homem distinto.

Até que ponto a passividade recomendada pelo padre a Augusto era o fazer o bem? Até que ponto ele agiu corretamente matando Joãozinho Bem-bem? Joãozinho Bem-bem que se mostra sempre justo era realmente mau?

O segundo caso, o de Maria Mutema, é na verdade uma parábola dentro da narração de Riobaldo. Essa mulher vivia em uma pequena vila e sua estória começa quando seu marido amanhece morto, sem qualquer motivo aparente. Como era de se esperar Maria segue sua vida de maneira recatada como previa sua condição de viúva, e toma o hábito de ir a igreja se confessar a cada três dias. O Padre Ponte, entretanto, ouvia suas confissões com alguma hesitação e resistência, até que foi ficando franzino, mirrado e morreu. Depois disso, Maria Mutema deixa de ir à igreja.

Certo dia, uns padres estrangeiros aparecem na vila em missão e durante a missa do último dia, Maria aparece na igreja e o padre, depois de interromper o Salve-Rainha pedindo uma explicação à mulher, diz a ela que deseja ouvir sua confissão na porta do cemitério onde estão enterrados seu marido e o Padre Ponte. É durante a confissão que Maria Mutema diz toda a verdade, aos gritos e publicamente assume que causou a morte dos dois homens; de seu marido colocando chumbo derretido dentro do ouvido enquanto ele dormia, e do padre Ponte, por lhe ter confessado o crime dizendo que era por amor ao padre que havia feito aquilo. Quanto mais o padre sofria, mais ela insistia na mentira, apenas por sentir prazer em ver seu sofrimento.

Depois de confessar, Maria pediu perdão a Deus. E, mesmo presa, e confirmado o crime com a exumação do corpo de seu marido, Maria Mutema continuava de joelhos rezando e clamando seus pecados. O seu pretenso arrependimento e “tão pronunciado sofrer” fez com que alguns dissessem que ela “estava ficando santa”. A transformação de Maria Mutema só ocorre após o seu arrependimento; antes disso, ela ainda era a mesma, a sua remição vem através da mudança pessoal.

Em Grande sertão: veredas, Riobaldo diz que “o mal ou o bem, estão é em quem faz; não é no efeito que dão”, mas como definir o indivíduo de outra maneira que não por suas ações? Como definir ações por boas ou más se não for pelo seu resultado? Mesmo que a leitura de Guimarães Rosa leve a estes questionamentos, é muito provável que não seja possível encontrar a resposta para todos eles. Afinal, “uma pergunta nunca é mais do que sua própria resposta esparsa, dispersa em fragmentos entre os quais o sentido se difunde e foge ao mesmo tempo” (BARTHES, 1970, pp. 165-184). Talvez o mais importante seja realmente encontrar as perguntas, respondê-las seria reduzir e fechar possibilidades de leitura, uma grande perda, se vista dessa forma.

5. Conclusão

Que isso foi o que sempre me invocou, o senhor sabe: eu careço de que o bom seja bom, e o rúim ruím, que de um lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero os todos pastos demarcados… Como á que posso com este mundo? A vida é ingrata no macio de si, mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero. Ao que, este mundo é muito misturado…[10]

Essa vontade de Riobaldo, em Grande sertão: veredas, parece conter todo um projeto de dizer do próprio autor ao longo de toda sua obra. Fazendo uma análise rápida e superficial já foi possível perceber que a ambiguidade é um tema recorrente em Guimarães Rosa, mas que essa ambiguidade vem sempre acompanhada de uma tentativa de separação, discriminação e definição clara que nunca consegue ser levada até o fim. De encontro a essas inúmeras tentativas de se “demarcar os pastos” vem a complexidade da mente humana que constantemente procura desvendar todo sentido de um signo.

Há ainda outra explicação para esse deslizamento de significação que se encontra nas obras rosianas. Essa explicação está contida na própria matéria do objeto de que se trata neste estudo, o discurso literário, melhor dizendo, a linguagem literária e suas particularidades. Para deixar um pouco mais clara essa colocação, é preciso ter em mente a tendência que a literatura tem de se colocar como “uma mensagem de significação das coisas, e não de seu sentido” (BARTHES, 1970, pp. 165-184), e perceber que a “significação”, da qual se fala aqui, diz respeito ao processo de produção de sentido.

Assim, Guimarães Rosa seria o exemplo perfeito daquilo que Barthes procura determinar como linguagem literária, em Literatura e significação. Para Barthes, a linguagem literária “serve para formular, não para fazer”, é um construto sugestivo e como representação é sempre ambígua, já que baseada na linguagem — no sistema de signos arbitrários por meio do qual se faz existir, e que se refere somente a si próprio — é, de certo modo, sempre parcial e inacabada, “[…] é um discurso no qual se acredita sem acreditar, pois o ato de leitura se funda num torniquete incessante entre dois sistemas: vejam minhas palavras, sou linguagem, vejam meu sentido, sou literatura” (BARTHES, 1970, pp. 165-184).

Guimarães Rosa compreendeu de forma excepcional o que é o fazer literatura, independentemente de opiniões pessoais, há que se consentir que de sua obra seja possível retirar uma enciclopédia de reflexões. Ao criar um fluxo dinâmico na sua frase, faz com que o leitor se perca entre tantas sensações e impressões que recebe ininterruptamente. Sua sintaxe quebrada faz perceber que a linearidade, ou melhor, a sucessão lógica, não é importante; o efeito é um choque, a percepção de que se está lidando com algo mais. É esse algo mais inalcançável que move a literatura, e a leitura de literatura.

Referências

BARTHES, Roland. Literatura e significação. In: _______. Crítica e verdade. São Paulo: Perspectiva, 1970. p. 165-184.

BOLLE, Willi. grandesertão.br: o romance de formação do Brasil. São Paulo: Ed. 34, 2004.

GALVÃO, Walnice Nogueira. As formas do falso. São Paulo: Perspectiva, 1972.

WISNIK, José Miguel. O famigerado. Scripta, Belo Horizonte, v. 5, n. 10, p.117-198, 1° sem. 2002.

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Disponível em: <http://moodle.ufsc.br/file.php/13710/Grande_Sertao_-_veredas.htm>. Acesso em: 16 nov. 2011.

ROSA, João Guimarães. Sagarana. Disponível em: <http://moodle.ufsc.br/file.php/13710/Sagarana.htm>. Acesso em: 16 nov. 2011.

 

[1] ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Disponível em: <http://moodle.ufsc.br/file.php/13710/Grande_Sertao_-_veredas.htm>. Acesso em: 16 nov. 2011.

[2] ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Disponível em: <http://moodle.ufsc.br/file.php/13710/Grande_Sertao_-_veredas.htm>. Acesso em: 16 nov. 2011.

[3] ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Disponível em: <http://moodle.ufsc.br/file.php/13710/Grande_Sertao_-_veredas.htm>. Acesso em: 16 nov. 2011.

[4] ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Disponível em: <http://moodle.ufsc.br/file.php/13710/Grande_Sertao_-_veredas.htm>. Acesso em: 16 nov. 2011.

[5] ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Disponível em: <http://moodle.ufsc.br/file.php/13710/Grande_Sertao_-_veredas.htm>. Acesso em: 16 nov. 2011.

[6] ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Disponível em: <http://moodle.ufsc.br/file.php/13710/Grande_Sertao_-_veredas.htm>. Acesso em: 16 nov. 2011.

[7] ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Disponível em: <http://moodle.ufsc.br/file.php/13710/Grande_Sertao_-_veredas.htm>. Acesso em: 16 nov. 2011.

[8] ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Disponível em: <http://moodle.ufsc.br/file.php/13710/Grande_Sertao_-_veredas.htm>. Acesso em: 16 nov. 2011.

[9] ROSA, João Guimarães. Sagarana. Disponível em: <http://moodle.ufsc.br/file.php/13710/Sagarana.htm>. Acesso em: 16 nov. 2011.

[10] ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Disponível em: <http://moodle.ufsc.br/file.php/13710/Grande_Sertao_-_veredas.htm>. Acesso em: 16 nov. 2011.