Machado de Assis e a religião moderna

Giuseppe Freitas da Cunha Varaschin

RESUMO: Partindo de uma perspectiva tradicionalista e fenomenológica pretende-se investigar a maneira como o fenômeno religioso é tratado nas obras de Machado de Assis. Faz-se uma análise histórica e filosófica da situação religiosa contemporânea ao autor em questão e conclui-se por constatar e justificar a posição crítica e cética do mesmo.

PALAVRAS-CHAVE: Religião; Machado de Assis; Escola Tradicionalista; Fenomenologia.

ABSTRACT: Starting from a traditionalist and phenomenological standpoint we try to investigate the means by which the religious phenomena is addressed in the works by Machado de Assis. A historical analysis of the religious situation of the author’s time is done and we conclude by finding a justification to his critical and skeptical position.

KEYWORDS: Religion; Machado de Assis; Traditionalist School; Phenomenology.

 

IN LIMINE

O mundo como idéia (ou pensamento).
Entre a gnose e o real (talvez) o acordo.
Mas no ramo (imperene) canta o tordo
(provisório) e invisível vem o vento

e leva o canto e deixa um desalento,
a queixa dos sentidos. Não recordo
se sonhei tudo isso ou não: um tordo
e a noite em meus ouvidos um momento,

outro rapto no vento… Mas supor
que o triunfo moral do cognitivo
restitua-me o ser menos a dor,

é resignar-me a um perfume tão rápido
que não existe quase, insubstantivo
como a Idéia. Não: o mundo como rapto!

(TOLENTINO, 2002, p. 89)

1 – Introdução

Ao redigir este ensaio deparei-me com a aguda consciência de uma contradição. A escolha de um tema para a pesquisa, por definição, precede cronologicamente à própria pesquisa, baseando-se numa noção vaga e imprecisa do objeto a ser inquirido. é com base nessa noção vaga que se estabelece a hipótese, e é a partir dessa hipótese — instituída por critérios tão turvos — que se fará a inquirição, cujo objetivo será a confirmação da hipótese. A hipótese precede a observação minuciosa e a deforma. é a tautologia viciada do método científico: fazemos uma conjetura de uma constante e escolhemos, de um conjunto de elementos heterogêneos, os aspectos de alguns daqueles elementos que parecem obedecer a nossa conjetura inicial. Ao perceber a circularidade desse processo perguntava-me: o que é que isso tem a ver com a realidade? As conclusões dessa minha pesquisa correspondem a algum objeto de experiência? Não estou somente elaborando um constructo mental do meu objeto em vista de facilitá-lo para os meus propósitos? E foram, curiosamente, essas reflexões que me conduziram à verdadeira “solução” da questão acerca do tema religião em Machado de Assis. O problema com que com que eu me deparava ao redigir um ensaio para a segunda fase do curso de letras da Universidade Federal de Santa Catarina era, em escala menor, o mesmo que assola grande parte do pensamento ocidental desde o fim da idade média. E Machado de Assis não era, certamente, uma exceção. Foi só quando me vi, de certa maneira, ao lado de Machado — dividindo uma mesma deficiência — que pude perguntá-lo, com cautela: “Qual a tua visão sobre religião?”.

É evidente que há muito perigo na extração de um conteúdo não-estético de uma obra literária. Qualquer elemento da realidade, seja ele um simples objeto como uma cadeira ou uma faca, ou um ente de razão[1] como uma idéia ou um sentimento, quando inserido dentro de uma obra de arte adquire uma significação primordialmente estética, artística ou expressiva. Uma arma dentro de um romance não representa perigo para a vida do leitor, do mesmo modo que uma opinião expressa por um personagem não necessariamente se refere diretamente à esfera existencial na qual o leitor vive. Um conteúdo, por exemplo, filosófico dentro de um romance, não pode, prioritariamente, ser avaliado enquanto tal — isto é, não deve ser ponderado buscando um referente no mundo dos leitores — e sim de acordo com sua coerência dentro do universo ficcional criado pelo autor. É por isso que Oscar Wilde, no seu célebre prefácio ao Retrato de Dorian Gray, diz:

Um livro não é, de modo algum, moral ou imoral. Os livros são bem ou mal escritos. Eis tudo. (…)
A vida moral do homem faz parte do tema para o artista, mas a moralidade da arte consiste no uso perfeito de um meio imperfeito. O artista nada deseja provar. Até as coisas verdadeiras podem ser provadas.
Nenhum artista tem simpatias éticas. A simpatia ética num artista constitui um maneirismo de estilo imperdoável.
(WILDE, 1972, p. 9)

É esse o primeiro perigo que hemos[2] de enfrentar. Ao escrever um ensaio sobre as Religiões em Machado de Assis corre-se o risco de construir uma longa e elaborada falácia do espantalho — inventar um Machado de Assis teólogo e impugnar ou reafirmar suas supostas teses. É um risco que possui seu contraponto dialético na unidade da pessoa do autor da qual deriva qualquer ação possível — e, por consequência, toda sua obra. É sobre isso que fala Mikhail Bakhtin em seu ensaio Arte e Responsabilidade:

Os três campos da cultura humana — a ciência, a arte e a vida — só adquirem unidade no indivíduo que os incorpora à sua unidade. (…) O que garante o nexo interno entre os elementos do indivíduo? Só a unidade da responsabilidade. (…) A vida e a arte não devem só arcar com a responsabilidade mútua mas também com a culpa mútua. O poeta deve compreender que a sua poesia tem culpa pela prosa trivial da vida, e é bom que o homem da vida saiba que a sua falta de exigência e a falta de seriedade de suas questões vitais respondem pera esterilidade da arte. (…) Arte e vida não são a mesma coisa, mas devem tornar-se algo singular em mim, na unidade de minha responsabilidade. (BAKHTIN, 2010, p. 1-2)

Toda arte tem de surgir da centralidade da alma humana, que é onde se canalizam e adquirem valor cognitivo todas as informações e pensamentos adquiridos ao longo da vida. A criação artística é um dos modos de exercício da liberdade, e o ato de livre escolha sintetiza tudo o que um ser é. O único outro modo possível de criação é a pura imitação ininteligente, e certamente não se pode dizer que Machado é um imitador. Isso significa que é possível, muito embora com cuidado, analisar um vestígio do que seria a posição religiosa de Machado de Assis, a partir do que está materialmente presente nas suas obras, com base no princípio de responsabilidade e unidade de sua personalidade.

2 – Visão Geral

A religião não é um tema central em nenhum dos romances de Machado de Assis. Machado não era pessoalmente um indivíduo religioso, embora não fosse um materialista. é certo que conhecia a doutrina e a Escritura cristã, quando jovem fora educado pelo Padre Silveira Saramento, de quem permaneceu amigo até a vida adulta. Há indícios de que fora ateu, diz-se inclusive que teria rejeitado no leito de morte a extrema unção para manter-se coerente ao ceticismo que tinha em vida. Sabe-se certamente que fora leitor de Ernest Renan e defensor do pluralismo religioso. Machado não caía no anticlericalismo escrachado de seus contemporãneos realistas, o que constituía um de seus traços distintivos perante eles. As bases informacionais para a concepção deste ensaio padecem, a princípio, de escassez. O fato mais imponente no princípio desta investigação é que a religião não tem centralidade nem na obra nem na vida de Machado. Mas disso já se pode conjeturar algo de interesse: há uma possível coerência entre a religião na obra de Machado e em sua vida.

Ainda assim, é pouco, pois os dados materiais são parcos. Não se chega a uma tese suficientemente explorável para a elaboração de um ensaio deste porte. Semelhante problema teríamos na extração de um conteúdo culinário, por exemplo, nas obras de Machado: tudo o que é dito lá sobre culinária não é dito para finalidades culinárias.

Cabe então perguntar: por que a religião, isto é, o meio para religar o indivíduo a um Absoluto, do qual a vida terrena o afastou, não está presente, ou está presente somente de maneira superficial na obra de Machado? Consideremos, para finalidades metodológicas, Machado um filho de seu tempo, isto é, do século XIX. A imagem que Machado nos revela da religião como uma mera formalidade social puramente externa aos anseios da alma é uma imagem verossímil da religião deste século. Talvez seja por essa excessiva formalização e, consequentemente, esvaziamento de conteúdo das religiões, que Machado opta por não a colocar da maneira central em sua vida ou em sua obra. Ela não tem mais condições de centralizar coisa alguma, pois ela própria perdeu seu centro, seu núcleo, passara a ser uma roupa, um adorno hipócrita, uma ideia fora de lugar — mais uma entre as tantas máscaras e moedas de troca no grande teatro do mundo. Estou falando de um fenômeno do qual Machado é tanto vítima quanto testemunha. Começarei traçando as possíveis origens históricas desse fenômeno da degeneração da religião, para depois aprofundá-lo e observar sua aparição nos romances de Machado de Assis.[3]

3 – Origens Históricas

A consciência de uma degeneração no espírito humano — e consequentemente do intelecto — é um traço praticamente universal nas tradições religiosas. Isso significa que cada religião, em certa medida, prediz sua própria falência. Para começar com o relato quase universal da queda do homem, que está associado a quase todas as escatologias. O homem “caiu” da sua fonte absoluta, perdeu a capacidade de ver a imagem de Deus em todas as coisas, afastou-se disso que é a origem de toda a vida e de toda a existência — o Ser supremo — e todo efeito quando se afasta de sua causa está fadado a se degradar. é dessa noção de infalível decadência que deriva a objeção de muitos religiosos à teoria da evolução e a muitos hábitos da ciência e da filosofia moderna[4]. Martin Lings, um dos maiores pensadores e estudiosos de religião comparada do século passado, afirma em seu livro Sabedoria Tradicional & Superstições Modernas(Polar, 1998) que “as religiões são de fato unânimes em ensinar não a evolução, mas a involução” (LINGS, 1998, p. 22). Essa noção da história como história da degradação da humanidade e da própria religião — o elo entre o humano e o absoluto — está presente, por exemplo, nas sentenças (hadîths) do profeta Mohammad:

O melhor de meu povo é a minha geração; depois, os que vêm imediatamente depois dela; e enfim aqueles que vêm imediatamente depois destes. (…) No início do Islã aquele que omite um décimo da Lei será condenado; mas, nos últimos tempos, aquele que cumprir um décimo será salvo. (MOHAMMAD apud LINGS, 1998, p. 41)

Conforme, também, os três períodos do Budismo, na sequência dos quais sua compreensão vai se tornando progressivamente mais deficiente: o primeiro que dura mil anos é chamado de “o período do verdadeiro Budismo”; o segundo, que também dura mil anos, é chamado “período de imitação do Budismo”; o terceiro, o nosso e o de Machado, é chamado “período da degenerescência” (LINGS, 1998, p. 41). Semelhante visão se faz presente também na divisão védica das eras segundo a qual estamos no último ciclo, o chamado Kali Yuga, tempo da intoxicação, do pecado, do ateísmo e do ódio. é possível traçar uma analogia também com a Idade de Ferro da mitologia grega. Temos a mesma ideia de descendência no cristianismo — o caminho entre pecado original e o apocalipse — se considerarmos essa queda como contínua, e não meramente um fato no passado. O fato incontestável é que as tradições, na mesma medida em que tentam cultivar nas almas seus valores espirituais, profetizam inexoravelmente a perversão desses mesmos valores; e, para a maioria delas, considera-se que nos dias de hoje essa perversão já atingiu seu estado mais grave.[5] São divisões bastante conhecidas que, possivelmente, ao menos em parte, eram conhecidas de um homem culto como Machado de Assis. A ópera do mundo, alegoria do velho tenor em Dom Casmurro, cuja música é composta por Satanás e as palavras por Deus é uma espécie de derrota deste sob aquele até o derradeiro instante, no qual reinará, finalmente a glória de Deus.

O notável pensador francês do início do século passado, René Guénon — talvez o mais severo crítico dessa modernidade — afirma em sua obra A Crise do Mundo Moderno (Irget, 2010) que o início dessa perversão da espiritualidade começou com o princípio do que hoje chamamos de história, à qual ele se refere como história profana, que condena todos os acontecimentos anteriores como pertencentes a um período puramente legendário. A história “começa” efetivamente no século VI a.C. Guénon aponta-nos, especificamente, para a dita civilização clássica grega e para o surgimento da filosofia como o princípio de todos os problemas espirituais modernos. Para ele há um grande perigo em considerar o princípio da filosofia de maneira avulsa, isto é, separado de suas raízes no orfismo anterior. Considerada essa tradição, não há nada propriamente profano na filosofia, afinal, o próprio criador da palavra filosofia fora Pitágoras de Samos, indivíduo fortemente influenciado pelos cultos esotéricos tradicionais da Grécia. A palavra filosofia significa, como sabemos, “amor à sabedoria”. Identifica, portanto, uma contemplação de algo que a transcende, e que transcende, pois, aos seus instrumentos, meios e técnicas. Entretanto, logo em seguida, segundo Guénon, houve uma primeira perversão. A filosofia passou a ser identificada à própria sabedoria tornando-se um fim em si mesma. Aí, consequentemente, o intelecto — faculdade responsável pela captação das verdades tanto materiais quanto espirituais — passou a ser igualado também à razão — o que significa trocar o efeito pela causa, sendo que esta é, por princípio, superior àquele. Instaura-se o humanismo e o individualismo que “arrasta ao naturalismo, visto que tudo o que está para além da natureza está, por isso mesmo, além do alcance do indivíduo enquanto tal” (GUÉNON, 2010, p. 44). Institui-se também uma espécie de racionalismo — que consiste em negar a intuição intelectual — e que leva, como levou a academia platônica, ao ceticismo absoluto, esvaziado de todo conteúdo e conhecimento. O próprio indivíduo Machado de Assis intitulava-se, frequentemente, como cético — especialmente após o seu “estalo” realista nas Memórias Póstumas e ter perdido, como confessou a Mário de Alencar, “todas as ilusões sobre os homens” (ASSIS, 2010, p. 13). Na visão de Guénon, o ceticismo, — talvez culminante com a dúvida metódica cartesiana, pilar fundador do edifício filosófico moderno — que tem como fruto praticamente todos os símbolos e imagens (e aí inclui-se a literatura) que povoam nossas mentes, é o resultado desse longo e injusto processo de esquecimento das verdades tradicionais. Para ele, um indivíduo como Machado de Assis não seria mais que um pobre coitado, vítima, assim como todos nós, do mundo profano.

Eu creio que seja possível pensar numa origem menos remota e mais objetiva para esse declínio da verdadeira vivência da espiritualidade — e da própria realidade — do que a proposta por Guénon. Ele, a meu ver, comete o erro de enxergar a história como um processo demasiado unívoco e parcial, negligenciando, por exemplo, a avassaladora experiência cristã medieval. Santo Agostinho faz uma teoria da história baseada numa distinção entre a cidade de Deus e a cidade dos homens; penso que, se quisermos compreender a dessacralização da civilização moderna — e todos os seus reflexos culturais, como na obra de Machado de Assis —, isto é, o reinado absoluto da cidade dos homens, devemos voltar os olhos para a última cidade de Deus, que é, precisamente, a civilização medieval.

O declínio começa em um auge. O período medieval, que principia com a eversão do império romano, é também o ressurgimento da ampla hegemonia de uma civilização na qual a religião ocupava um papel central. No entanto, devido à ausência de um forte poder político centralizador, a igreja passa a assumir funções sociais que não estavam, de modo algum, prescritas no ensinamento de Cristo[6], como funções militares, burocráticas e pedagógicas que exigem uma transposição da mensagem originária para esses outros planos. E aí principia-se uma profusão de discussões da doutrina cristã, que se dão por um método puramente dedutivo, no estilo que seria posteriormente adotado por racionalistas como Descartes e Spinoza. O desenvolvimento da doutrina neste período, especialmente pelos filósofos escolásticos, consiste em extrair da vida e mensagens de Jesus um conjunto de afirmações universais acerca das mais diversas esferas da realidade. é certamente uma realização intelectual de imenso porte essa transposição doutrinal de uma vida, afinal, é tão difícil transformar a vida de Cristo numa doutrina quanto transformar a sua própria vida numa doutrina. Talvez não seja mera coincidência que esse fenômeno tenha se intensificado a partir da aristotelização do cristianismo com Sto. Alberto Magno; a tradição filosófica anterior — de cunho agostiniano e platônico — possuía ainda a abertura peculiar do poético e do mitológico. Os filósofos e mais tarde a Igreja Católica, deslumbrados com essa capacidade de encaixar a experiência religiosa em “categorias” e expressá-la da maneira mais rigorosa, perderam a noção da plena vivência espiritual — pois seu equivalente doutrinal não a substitui. A crença no cristianismo passou a ser não mais a vivência efetiva da confiança na pessoa do Cristo, mas a aceitação de determinadas proposições que compõem uma doutrina. é essa “aberração” a verdadeira religião oficial dos personagens dos romances de Machado de Assis.

4 – O Fenômeno

Chamarei este fenômeno de doutrinarismo, que significa o abandono da realidade pela doutrina. Esse conceito assemelha-se ao conceito de fundamentalismo apresentado por Eric Voegelin em sua obra The drama of humanity and other miscellaneous papers (University of Missoury Press, 2001) e define o fundamentalismo como o apego de um indivíduo a frases, sem a preocupação da busca pela sua correspondência na realidade. A existência contínua deste fenômeno vai desde a escolástica medieval até os dias de hoje, invadindo outras esferas da cultura e, consequentemente, afetando também as produções artísticas como a literatura de Machado de Assis. Este fenômeno pode ser ilustrado simbolicamente pelo episódio bíblico em que Pôncio Pilatos pergunta a Jesus: “Quid est veritas?” (João 18,38). Ao fazer essa pergunta, Pilatos não está tentando buscar a verdade que está ao seu redor ao vivenciá-la em expectativa, e sim substituí-la por uma proposição para refugiar-se em um arcabouço doutrinal. é no mínimo curioso que o cristianismo, séculos mais tarde, tenha cometido o mesmo equívoco que aquele sob o qual padeceu seu fundador.

A tentativa de racionalização completa de Deus empreendida pelos escolásticos acaba tornando Deus um mero conteúdo de consciência, ou seja, uma ideia. Daí perverte-se o conceito de fé, que passa a designar a adesão puramente formal ou nominal a essa ideia, e não mais, como diz Frithjof Schuon (A Unidade Transcendente das Religiões, 2010), uma confiança decorrente da percepção da Graça.[7] Originalmente Deus não era uma ideia, da mesma forma que o cristianismo não era uma doutrina. Se a fé fosse puramente a aceitação de uma ideia, e não uma abertura que desencadeia o milagre, Cristo não teria dito que “a fé move montanhas” (Marcos 11,23). Uma religião baseada em ideias e não em experiências é uma religião fadada à morte e à irrealidade[8], uma religião que busca a total racionalização acaba encontrando a total irracionalidade, cria um abismo entre pensamento e realidade, pois diz que é possível conceber Deus como conceito sem vivenciá-lo. Santo Anselmo, que pode ser considerado um pré-escolástico, já alertava contra essa possibilidade em seu argumento ontológico, mais tarde injustamente rejeitado por São Tomás de Aquino:

O insipiente há de convir igualmente que existe na sua inteligência “o ser do qual não se pode pensar nada maior”, porque ouve e compreende essa frase; e tudo aquilo que se compreende se encontra na inteligência.
Mas “o ser acima do qual não é possível pensar nada maior” não pode existir somente na inteligência. Se, pois, existisse apenas na inteligência, poder-se-ia pensar que há outro ser existente também na realidade; e que seria maior. (SANTO ANSELMO, 1979, p. 102)

Todas as ideias baseiam-se em abstrações de determinadas impressões de constantes que percebemos através das nossas percepções. A função do pensamento é atingir um conhecimento possível do que ainda é desconhecido. Por exemplo: para ver este computador, você não precisa pensar nele, você o percebe. Agora, se o desejo é atingir um conhecimento mais preciso de algo que não está ao alcance da sua percepção, há duas possibilidades: uma é conjeturar um modelo mental, um esquema eidético; a outra é simplesmente adotar uma posição de expectativa, de entrega ativa ao desconhecido. é precisamente esta a diferença da religião tal qual vivenciada pelos místicos e da religião teorizada pelos doutrinadores. O místico conserva essa segunda atitude, o doutrinador, tendo perdido a capacidade para praticá-la, é levado à primeira.

Essa experiência de abertura não é traduzível doutrinalmente, porque ela é também uma experiência de confiança. Não há como enunciar perfeitamente o porquê de alguém confiar em outro alguém.

É claro que não se trata de negligenciar ou desprezar qualquer formulação de tipo doutrinal como completamente inútil, mas sim de perceber que toda e qualquer doutrina ou ideia não será senão uma expressão parcial, simbólica e insuficiente da experiência real. A doutrina tem de servir de meio simbólico para incitar a intuição de realidade que a originou, e isso só é possível se a doutrina conservar uma abertura potencial para essa realidade, que a transcende. Além disso, como diz Frithjof Schuon em seu livro Para Compreender o Islã (Nova Era, 2004): “A razão de ser das expressões ou das formas é a verdade, e não o inverso. A verdade é simultaneamente única e infinita, daí a diversidade de sua linguagem.” (SCHUON, 2004, p. 16). Isso significa que há ilimitadas formas de expressar a mesma realidade, pois a realidade mesma é ilimitada. Qualquer tentativa de abarcar a totalidade do real em fórmulas ou em sentenças absolutas é altamente ilusória[9], pois toda e qualquer doutrina será apenas uma coisa dentro da realidade, e não o contrário. O indivíduo que pretende ser o enunciador da realidade última, o inventor de uma doutrina universalmente válida, é alguém que inventa uma posição fictícia de enunciação, como se estivesse fora do universo observando-o como um Deus. A única coisa universalmente válida é a própria realidade.

É contra todo esse movimento que se insurge o método fenomenológico, no princípio do século passado, com Edmund Husserl na sua avassaladora crítica ao psicologismo a partir do conceito de intencionalidade e em seu consequente apelo para voltar às coisas mesmas, contra a planificação da existência e da realidade em conjuntos abstratos de proposições, que, em si mesmas, não podem ser nem verdadeiras nem falsas. Se compreendemos qualquer ideia ou doutrina é porque estamos abertos à mesma realidade do seu autor. Somente nessa abertura, nessa busca pela experiência correspondente aos enunciados doutrinais, é possível captar a realidade que uma determinada doutrina traduz. Caso contrário, todo pensamento torna-se bidimensional, toda discussão perde substancialidade, torna-se uma simples comparação entre textos, pois não há mais critério algum que determine o que é verdadeiro[10] e o que é falso. E daí surgem os mais diversos e incomunicáveis “sistemas” filosóficos — mesmo os grandes pensadores da antiguidade são transformados em construtores de “sistemas” — absolutamente incomunicáveis entre si e cuja coerência só pode ser interna (haja vista que foi abolida a referencialidade), e, consequentemente, irrefutável. é disso, precisamente, que parte a sátira que faz Machado de Assis faz com o humanitismo ou o borbismo. Como conciliar, ou mesmo confrontar racionalmente, por exemplo, o humanitismo com os primórdios da escola analítica nos trabalhos de lógica matemática de Gottlob Frege? O humanitismo pode ser uma filosofia ficcional, mas essa incomunicabilidade — posteriormente tornada objeto de investigação pelos existencialistas — era, e ainda é, um problema real da filosofia e da religião. Essa sátira que Machado fez é um bom indício de que ele estava plenamente consciente das dificuldades intelectuais de seu tempo, e, talvez o fato de não ter recebido uma educação formal tenha o ajudado a perceber isso de maneira mais clara.

O homem moderno, tanto em matéria de religião como em ciência ou filosofia, é geralmente como alguém que chega a um restaurante, olha o cardápio e decide se gostou ou não gostou do restaurante. O cardápio passa a valer em si mesmo, e não como indicador de uma experiência de degustação. A rejeição não se baseia num juízo de realidade, afinal, o indivíduo não provou a comida, e sim num mero impulso emocional imediato. A doutrina não serve para as mesmas finalidades da realidade, do mesmo modo que o cardápio não serve para as mesmas finalidades da comida. Houve uma obsessão pelos meios racionais/formais e uma negligência pela própria experiência/conteúdo à qual eles buscam aludir.

De que maneira esse amplo fenômeno cultural humano se reflete nos hábitos religiosos dos brasileiros do século XIX retratados na obra de Machado de Assis? De uma maneira bastante simples:

Toda religião com o passar do tempo tende a um número crescente de imposições formais e externas, isto é, todo exoterismo tende a aumentar. Esse aumento de determinações cada vez mais exotéricas muitas vezes acarreta um esvaziamento do conteúdo esotérico da religião. É interessante traçar um paralelo com algo que ocorre nas relações humanas[11]: Quando estamos estabelecendo amizade com uma pessoa temos que observar o caráter dela a fim de reagir de maneira a gerar uma relação de simpatia. Depois de um certo tempo já temos em nossa mente um conjunto de padrões de comportamento dessa pessoa, e, com base nisso, aprendemos certas maneiras regulares de agir perante ela; e a relação, em um certo nível, se automatiza. Vamos aos poucos colecionando meios exteriores cada vez mais automáticos de comportamento, certas formalidades se estabelecem entre os membros da relação. Esses meios de manutenção de relações são necessários para a preservação de qualquer relação duradoura — é impossível manter uma relação para sempre na mesma espontaneidade inicial. Por outro lado, esses meios automáticos não são suficientes por si para manter uma relação autêntica, eles são apenas instrumentos para a preservação de um relacionamento. Por isso, é possível que um dia nos deparemos, em meio a tantas formalidades, com o fato de já não conhecermos aquela pessoa com quem estamos nos relacionando.

O mesmo acontece com a religião. A doutrina e o restante do exoterismo são os equivalentes analógicos desses meios automáticos e exteriores. Como já ilustrei anteriormente, no final da idade média a religião passou a ser a admissão puramente formal de um exoterismo ou da doutrina e não mais a vivência efetiva do esoterismo ou da espiritualidade. Dessa maneira cai todo o edifício de uma religião — ou seja, de uma relação autêntica com o Absoluto — pela falta de conteúdo interno e ela se torna uma mera superstição[12], um ópio do povo que se incorpora aos aparelhos ideológicos do estado de que fala Althusser e todo o movimento neo-ateísta. Eles certamente têm razão em criticar esse tipo de “religiosidade” que não é nada mais que uma idolatria, seja idolatria da moral, o moralismo, ou a idolatria da doutrina, o doutrinarismo.

A religião, tal qual exposta por Machado de Assis, não é a religião da vivência da relação de abertura à percepção do Absoluto e sim a que está entre tantas outras máscaras hipócritas a serem usadas pelos seus personagens, um entre tantos outros meios de buscar um alívio de culpas reais, um meio vão, pois, como bem diz Bentinho — “o interno não aguenta tinta” (ASSIS, 1982, p. 179). Contra isso também, talvez, falasse Jesus: “Agora, vós, ó fariseus! Purificais o exterior do copo e do prato, e por dentro estais cheios de rapina e de perversidade! Insensatos! Quem fez o exterior também não fez o interior?” (Lucas 11, 39-40).

5 – Análise das Obras

Creio que sem esse longo esclarecimento sobre a condição espiritual do homem moderno seja impossível, ou ao menos perigoso, sequer falar sobre religião. Para analisar os elementos religiosos na obra de um determinado autor é de suma importância primeiro saber discernir entre o que é religioso e o que é apenas religiosidade, entre o esotérico e o exotérico, entre o conteúdo e a forma, entre a substância e o acidente. A religião é tratada em Machado, e por isso disse que ele era um homem de seu tempo, quase sempre como um entre tantos hábitos sociais sem significação profunda, pois não há, em nenhum de seus personagens — a despeito de um deles ser um defunto autor — qualquer vestígio de alma ou qualquer outro órgão espiritual; e, se o há, não importa — o que importa são as apólices que esta deixará.

Comecemos pensando num de seus romances da chamada primeira fase, ou fase romântica: Helena. Quando se pensa em romantismo, geralmente se pensa em uma espécie de renascimento dos sentimentos religiosos, ou reflorescimento melancólico do catolicismo, sufocado em plena idade da razão e do capitalismo insensível. Isso está correto apenas em parte. A religiosidade romântica é também pensada apenas formalmente — isto é, exotericamente — ortodoxa. Trata-se de um uso puramente estético de símbolos que outrora tinham uma profunda significação espiritual. Machado o faz em suas Crisálidas nos poemas “O Dilúvio” e “Fé”. O romantismo representa também um deslocamento da significação dos símbolos sagrados e exoterismo — se na religiosidade autêntica eles se voltavam para um Absoluto transcendente, no romantismo eles são meios de expressão ou tradução do relativo, do imanente. O sofrimento e a penitência, que anteriormente constituíam meios para a imitação de Cristo, ou seja, de ascese espiritual, no romantismo são meios de glorificação de uma pessoa ou de qualquer outro objeto imanente. Vemos um claro exemplo disso na morte de Helena e também neste trecho:

Helena torcia-se no leito como se todos os ventos do infortúnio se houvessem desencadeado sobre ela. Em vão tentava abafar os soluços, cravando os dentes no travesseiro. Gemia, entrecortava o pranto com exclamações soltas, enrolava no pescoço os cabelos deslaçados pela violência da aflição, buscando na morte o mais pronto dos remédios. Colérica, rompeu com as mãos o corpinho do vestido; e o jovem seio, livre de sua casta prisão, pôde à larga desafogar-se dos suspiros que o enchiam. Chorou muito; chorou todas as lágrimas poupadas durante aqueles meses plácidos e felizes, leite da alma com que fez calar a pouco e pouco os vagidos de sua dor. (ASSIS, 2010, p. 150)

É nesse sentido também que Novalis, um dos maiores representantes do primeiro romantismo alemão, diz que todo objeto pode tornar-se um santuário. Por isso, o romantismo, embora não possua uma unidade ideológica, somente emocional ou psicológica, é associado por muitos estudiosos, como Simone de Pétrement, aos movimentos e seitas gnósticas — a busca incessante pela inocência do éden perdido e pela divindade que está dentro, como que contingenciada pelo corpo do homem[13]. Por conta disso, Helena é retratada, no fim das contas, como inocente e sofredora. Poder-se-ia pensar que o sofrimento de Helena é um sofrimento altamente cristão, de um cristianismo que já não tem mais valia na frieza do mundo moderno, de valores que já não mais convêm ao jogo impessoal das relações; que Helena morre em um mundo onde já não mais cabem seus elos afetivos incondicionais, despreocupados com o lucro resultante de cada relação, mas isso seria demasiado ingênuo. É evidente que o sentimento de valorização das relações familiares é um componente da tradição religiosa do cristianismo, porém, não o é senão de maneira também exotérica — não justificando a entrega absoluta que Helena lhe concede.

A visão do esoterismo cristão, isto é, da verdadeira espiritualidade de Cristo, é de renúncia, até mesmo da família, como é demonstrado perfeitamente quando Jesus diz: “Se alguém vem a mim e não odeia seu próprio pai e mãe, mulher, filhos, irmãs e até a própria vida não pode ser meu discípulo”. (Lucas 14, 26)

A valorização que o cristianismo aplica ao casamento e à família — ambas bastante importantes em Helena — é, em grande parte, um exemplo de exoterismo acrescentado a posteriori, um daqueles desenvolvimentos doutrinais a fim de viabilizar a expansão da religião de que falei anteriormente. A proposta de Cristo é uma proposta ao indivíduo separado de seu meio — para a ovelha desgarrada da casa de Israel — e não para a sociedade; instituições sociais como a família e o casamento só foram adornadas de cristianismo por um exoterismo improvisado, já não provêm diretamente dos ensinamentos crísticos, mas de elaborações doutrinais começadas por São Paulo.

A essa determinação do casamento monogâmico indissolúvel opõe-se, por exemplo, ao suposto divórcio de Bentinho e Capitu. É relevante lembrar que o divórcio — contanto que seja a princípio uma iniciativa do marido — é admitido como legítimo tanto pelo judaísmo quanto pelo islamismo e também por algumas denominações cristãs. Embora esteja, de certo modo, claro na Bíblia que Deus odeie o divórcio e que não o considere moralmente recomendável[14], há certas indicações de que ele seria possível se por ocasião houvesse ocorrido “prostituição” (Mt 19, 9). No entanto, essa cláusula restritiva não se faz presente em nenhum dos outros evangelhos e nem na primeira epístola aos Coríntios[15], o que leva muitos exegetas a crer que tenha sido um acréscimo dos últimos redatores deste evangelho, para responder à problemática rabínica acerca da legitimidade do divórcio. Trata-se, pois, provavelmente, de um trecho fortemente enraizado no seu contexto imediato, novamente, uma solução exotérica sem grande significação mística ou metafísica arraigada na pessoa de Cristo. O divórcio entre Capitu e Bentinho, conforme o trecho acrescentado ao evangelho de Mateus, foi uma mera adequação ou flexibilização de um juízo anteriormente absoluto a uma situação concreta. Esse problema, no romance, não é tratado sequer como um problema espiritual, e sim um problema de manutenção de uma imagem perante a sociedade — ou seja, somente pelo seu aspecto externo e imanente ao mundo.

O repúdio de Bentinho à Capitu, contado tão bruscamente e em tão poucas linhas, “A separação é coisa decidida”, (ASSIS, 1982, p. 337) — sem mostrar sequer um segundo de hesitação espiritual, que faria justiça ao seu suposto catolicismo de juventude — é também uma prova de sua total incredulidade e irreligiosidade hipocritamente disfarçada a fim de vestir uma aparência de normalidade. A religiosidade que mantinha na juventude “brincando de missa”, jurando por Deus e realizando transações comerciais com Ele não era senão um excitamento pueril com os elementos formais e exotéricos do catolicismo que o rodeava. Bentinho — que foi categórico e irrepreensível ao acusar Capitu de um adultério ao ver causalidade e não mera casualidade na semelhança — talvez propositalmente abafasse em sua alma a lição de Cristo:

Não julgueis para não serdes julgados. Pois com o julgamento que julgais sereis julgados, e com a medida que medis sereis medidos. Por que reparas no cisco que está no olho do teu irmão, quando não percebes a trave que está no teu? Ou como poderás dizer ao teu irmão: ‘Deixa-me tirar o cisco do teu olho’, quando tu mesmo tens uma trave no teu? Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho, e então verás bem para tirar o cisco do olho do teu irmão. (Mateus 7, 1-5)

É extremamente interessante fazer um paralelo entre esse trecho e a situação em que se encontrava Bentinho no romance Dom Casmurro. Primeiro pela referência comum aos olhos como fontes de muitas percepções simbólicas e analógicas. Bentinho percebera,olhos talvez, o cisco no olho de Capitu no enterro de Escobar quando essa o olhava de modo “apaixonadamente fixa” (ASSIS, 1982, p. 324). Mas talvez fosse mera ilusão de ótica, percepção borrada pela trave que estava no seu próprio olho, quiçá, colocada, dias antes, pelas mãos de Sancha… Essa projeção de culpa, condenação do suposto pecado e da suposta pecadora a um castigo material é certamente a atitude de um moralismo irreligioso — que é uma das faces do doutrinarismo — e insensível, a qual Cristo repreenderia, como repreendia toda hipocrisia. Capitu[16] também, genuinamente respondeu: “A vontade de Deus explicará tudo… Ri-se? é natural; apesar do seminário, não acredita em Deus; eu creio…” (ASSIS, 1982, p. 338). Esqueceu-se também, Bentinho, da outra lição de Cristo: “Se teu olho direito te escandalizar, arranca-o e atira-o para longe de ti.” (Mateus 5, 29) O olho direito representa, justamente, a razão, ou seja, a causalidade vista por Bentinho entre a semelhança de Ezequiel e um adultério. Bentinho não arrancou seu olho direito, nem a trave que nele estava. Arrancou Capitu para fora de sua vida, sem se lembrar dos ensinamentos esotéricos de Cristo. Talvez a isso Bentinho dissesse que “a Bíblia é cheia de expressões cruas e grosseiras.” (ASSIS, 1982, p. 318). É em Dom Casmurro que encontramos, certamente, o maior número dessas manifestações do fenômeno que podemos chamar de “doutrinarismo”. Uma outra forma de manifestação desse fenômeno, que já mencionei, são os escambos espirituais empreendidos por Bentinho e também por sua mãe. A promessa inicial de sua mãe que o levou ao seminário, os mil padre-nossos e mil ave-marias, os 2000 padre-nossos para salvar a vida da mãe e a proposta de trocar o sacerdócio de Bentinho por o de algum órfão. É possível pensar essa manifestação de uma forma socioeconômica e também teológica. Pensemos primeiro aquela e depois esta. Poder-se-ia dizer que Bentinho, em uma sociedade em que as relações se estabeleciam a partir de uma vantagem do benefíciosobre o custo, esperasse o mesmo de uma relação com Deus — uma Graça entendida num sentido estritamente quantitativo, uma espécie de superávit na balança das relações comerciais com Deus[17]. Todas as suas relações entre as pessoas se davam inteiramente por algum expectativa de lucro ou benefício próprio e o mesmo ocorria com relação ao Absoluto[18]. Pensemos agora de uma forma mais teológica: David Hume em sua História natural da religião (Editora Unesp, 2004) diz que o hábito de construir um Deus demasiado antropomórfico, “movido pelo amor e pelo ódio, suscetível às oferendas e às suplícias, às pregações e aos sacrifícios” (HUME, 2004, p. 72), é uma reação pagã, ou idólatra, a uma concepção demasiado abstrata e intelectualmente refinada do Deus das tradições monoteístas. “Por causa da debilidade de seu fraco entendimento, os homens não podem contentar-se em conceber sua divindade sob a forma de um puro espírito ou de uma inteligência perfeita (HUME, 2004, p. 73) diz Hume. Sobre esse Deus pobremente concebido ele também diz que “seus devotos tentarão por todos os meios obter seus favores; e por imaginarem que, como eles, ele ama o louvor e as lisonjas, não pouparão nenhum elogio ou exagero em suas suplícias” (HUME, 2004, p. 32). Há claramente uma paganização do cristianismo nesses atos de Bentinho e de sua mãe. O que ocorre é, novamente, a apropriação de elementos do exoterismo cristão — que deveriam estar “mirados” para o esoterismo e para a realização espiritual — em finalidades puramente imanentes e muitas vezes nada espirituais. Não é o homem que serve Deus, mas Deus que serve o homem. é uma mentalidade que se baseia, bem como a corrente moderna da Teologia da Prosperidade, no princípio de reciprocidade — se eu dou algo a Deus (um “ato de fé”), Deus é obrigado a me dar algo em troca. É, na verdade, a antítese do “seja feita avossa vontade” do Pai nosso. Ocorre ainda que as promessas nem sequer são pagas, como diz Bentinho: “Não paguei uns nem outros, mas (…) tais moedas são como a moeda fiduciária — ainda que o devedor não pague valem a soma que dizem.” (ASSIS, 1982, p. 266). É curiosa essa associação a termos monetários como “devedor” e “moeda”. O mesmo será feito ainda mais escandalosamente adiante: “O credor era arquimilionário, não dependia daquela quantia para comer, e consentiu nas transferências de pagamento sem querer agravar a taxa” (ASSIS, 1982, p. 278). É interessante aqui trazer à tona uma frase do finado ex-presidente da Associação Cultural Montfort, Orlando Fedeli, indivíduo polêmico, mas grande conhecedor do catolicismo: “Com efeito, o devedor insolente gostaria que seu credor não existisse.” É um raciocínio que reforça a irreligiosidade e até um possível ateísmo de Bentinho. De todo modo, significa, novamente, o esvaziamento de conteúdo espiritual verdadeiro da religião. O homem — e mesmo o religioso —, diz Frithjof Schuon, durante a queda, deixou de perceber apenas Deus para perceber as coisas em Deus, depois Deus nas coisas e Deus e as coisas para, enfim, perceber somente as coisas, esvaziadas de Deus. Assim é o mundo aos olhos de Bentinho, assim é o mundo nos romances de Machado.

Bentinho é também um personagem interessante — ao lado de Brás Cubas e do Conselheiro Aires — por ser um narrador em primeira pessoa. Todo narrador em primeira pessoa emula o esquema narrativo inventado por Santo Agostinho nas Confissões. Trata-se da transcrição de um exame de consciência — prática amplamente difundida pelo cristianismo, à qual Foucault em sua obra Estratégia Poder/Saber (Editora Forense, 2004) atribui como causa da profusão de autobiografias literárias e de diários pessoais. O grande poeta espanhol Antonio Machado traduz essa experiência em seus versos: “Quien habla solo, espera hablar con Dios un día“. Todavia, nesses três narradores esse esquema — que era originalmente quase um método de ascese espiritual — se encontra invariavelmente pervertido em seus propósitos. Se o objetivo de Santo Agostinho era encontrar a verdade sobre ele mesmo ao confessar-se perante a onisciência que o julgava, o objetivo desses narradores — embora todos eles proclamem que estão falando a verdade absoluta — é mentir para si mesmos e para o público que os lê. De novo, é o uso de uma fórmula, ou da forma religiosa para expressar um conteúdo de finalidade inteiramente irreligiosa. Se a religião é, entre outras coisas, uma tentativa de o homem estabelecer um contato com Deus, é também um esforço do intelecto para alcançar a verdade, afinal, para a religião, toda verdade é verdade de Deus. Acredito que isto, num plano mais social, esteja associado à autonomização da aristocracia perante o clero, pois aí a conduta pública — que vê o indivíduo tal qual ele parece ser — passa a ser a medida oficial de aferição de valores. Abolido o tribunal interno da onisciência, surge a necessidade de o indivíduo amoldar-se (e aí adquire a importância da palavra inglesa fashion, cujo significado é justamente esse) a padrões de conduta puramente exteriores elegidos por essa aristocracia. É claro que muitos deles são uma esperta incorporação de modelos religiosos, mas dentro desse contexto se secularizam e adquirem outra significação. Não é também coincidência que, justamente no período em que essas mudanças ocorrem, populariza-se a metáfora do “teatro do mundo” — retomada por Machado em Memórias Póstumas de Brás Cubas e em Esaú e Jacó.

Há outro aspecto em comum entre esses três narradores em primeira pessoa: são todos, de certa maneira, criadores de um “universo”, o que os torna analogamente correspondentes a uma espécie de Deus causa das causas ou primum movens. Tais quais esse Deus, eles interferem na realidade criada não somente através de suas ações enquanto protagonistas, mas também em alterações e deturpações dos verdadeiros acontecimentos — aos quais o leitor não tem acesso. Outro traço que torna esses narradores — excetuando-se aí talvez o conselheiro Aires — próximos a esse Deus criador é o fato de eles todos narrarem numa espécie de supra-temporalidade, já não mais afetada diretamente pelo fluxo temporal representado na narrativa. No caso mais particular de Brás Cubas fica clara que essa tentativa de secolocar no lugar de Deus, a que eu me referi anteriormente como uma posição de enunciação impossível, audaciosa pretensão do homem moderno, é deliberada. Em seu famoso “delírio”, Cubas coloca-se encadernado na Suma Teológica de São Tomás como se ele se identificasse com o objeto da investigação do aquinate — o próprio Deus. Sua desfaçatez mostra-se em outros momentos, como no início, em ele diz que a única diferença entre ele e Moisés é o fato de este ter começado sua narrativa pelo começo. Mas enquanto aquele era o profeta de Yaweh, este é profeta da voluptuosidade do nada — o profeta de si mesmo e de sua doutrina vazia. é o que resta quando tudo caiu no doutrinarismo, ou seja, quando nada mais vale coisa alguma.

Em Esaú e Jacó, bem como em contos como A Cartomante, vemos presente o tema da predestinação. é certo que tanto a cabocla do castelo quanto a cartomante eram charlatãs, mas ambas as narrativas se desenvolvem como se não fosse o caso. A ideia de predestinação opõe-se também à ideia de livre-arbítrio do cristianismo, religião adotada pelas personagens do romance.

Outro elemento, por assim dizer, exógeno, em Esaú e Jacó, é o espiritismo. Associa-se algumas vezes também as Memórias Póstumas de Brás Cubas ao espiritismo, pelo estilo que se assemelharia a uma psicografia, mas creio que isso seja deturpar o sentido maior da obra. O espiritismo, severamente satirizado por Machado em sua crônica do dia 5 de outubro de 1885, não é propriamente uma religião, ao menos não no sentido tradicional do termo. As religiões são fenômenos espirituais muito heterogêneos e o conceito que as inclui todas em uma única categoria é um conceito bastante vago e inexato. Quando nós, brasileiros, tentamos conceitualizar “religião” acabamos pensando em um conceito que se aplica praticamente só ao cristianismo. Para adquirir uma compreensão minimamente clara do que é religião, podemos analisar aquilo que nós, intuitivamente, sabemos que as religiões foram. Elas foram, entre outras coisas, origens de civilizações — quadros de referência e meios simbólicos para orientar uma comunidade humana inteira na realidade. O espiritismo, por ser uma “religião” de surgimento já na era da ciência moderna tem pretensões de cientificidade e de total inteligibilidade através da mera razão humana. É uma “religião” experimental. É válido retomar aqui a fala de Jesus a Maria Madalena após sua ressureição: “Noli me tangere” (João 20, 17). Não me toques, ou não me “agarres” e “domines”. Essa frase pode ser interpretada como uma alegoria para a não-empiricidade das religiões. A verdade última não pode ser atingida pela razão e nem pelos cinco sentidos, dizem todas as religiões tradicionais. Neste sentido, o espiritismo é antes uma ciência que uma religião.[19]

Outra questão passível de ser explorada sob um enfoque religioso nas obras de Machado é a força-motriz de quase todos os seus personagens: a vontade de ascensão social — tão diversa e contrária à ascese espiritual. A mendicância enquanto método espiritual é, também, algo comum a quase todas as tradições religiosas. Padres e freiras vestem-se de trajes negros para simbolizar que estão mortos para a vida e para os prazeres mundanos — tornar-se amigo de Deus é, em certa medida, tornar-se inimigo de si mesmo e de suas vontades materiais:

Não ajuntei para vós os tesouros na terra, onde a traça e o caruncho os corroem e onde os ladrões arrombam e roubam, mas ajuntai para vós tesouros no céu, onde nem a traça, nem o caruncho corroem e onde os ladrões não arrombam nem roubam; pois onde está teu tesouro aí estará também teu coração. (…) Ninguém pode servir a dois senhores. Com efeito, ou odiará um e amará o outro, ou se apegará ao primeiro e desprezará o segundo. Não podeis servir a Deus e ao Dinheiro. (Mateus 7, 19-24)

Bastam esses trechos do Evangelho de São Mateus para notar que há algo de muito antirreligioso no esforço que move praticamente todos os personagens de Machado de Assis. Embora haja em cada discurso uma aparente intenção de moralidade, trata-se de máscaras que pretendem enganar somente os observadores externos, e não uma suposta onisciência divina que, por definição, não poderia ser enganada. Desde Estácio com sua falta de solidariedade aos escravos e desprezo aos pobres, passando pela aristocracia exploradora de Brás Cubas e culminando nas trapaças e extorsões — que são o centro de um romance como Quincas Borba —, a finalidade de cada ação é oculta, levemente hipócrita, e sempre imanente à realidade limitada dos círculos humanos. Os personagens não visualizam verdadeiramente valor algum que não esteja acima de suas próprias vidas e prazeres. Muitos rezam e vão à missa, é verdade, mas para ir à missa não é preciso ter fé, apenas pé; e, como insinua ironicamente Brás Cubas, rezam com mais sono do que com fervor.

A irreligiosidade se faz presente até mesmo nos personagens que são formalmente pertencentes ao clero da Igreja Católica. Padre Melchior, embora não demonstre defeitos espirituais gravíssimos, é apenas um mediador cuidadoso entre as relações humanas, mantedor do status quo; fala com seu discurso mais moralista (ou doutrinarista) do que verdadeiramente espiritual. É um típico apóstolo do doutrinarismo — fenômeno descrito anteriormente neste ensaio. Além disso, pode-se dizer que ele é antes um servo do dinheiro e dos benefícios materiais do que de Deus, afinal, toda sua atividade paroquial está condicionada aos favores prestados à família de Estácio e ao farto sustento com que eles o provêm. Padre Cabral está mais orgulhoso do título de Pronotário Apostólico do que com uma vida mística que provavelmente desconhecera. é um símbolo perfeito da excessiva formalização que torna qualquer religiosidade oca de valores reais. Padre Cabral valorizava mais sua própria ascensão formal do que os conselhos da pessoa de Cristo contra a vaidade. é interessante associar a figura desses dois sacerdotes às supostas profecias de Nossa Senhora na montanha de La Salette nos alpes franceses em 1846 — e que foram amplamente difundidas no século XIX:

Os sacerdotes, ministros de meu Filho, os sacerdotes, por sua má vida, por suas irreverências e sua impiedade em celebrar os santos mistérios, por amor do dinheiro, das honras e dos prazeres, os sacerdotes tornaram-se cloacas de impureza. Sim, os padres pedem vingança, e esta está suspensa sobre as suas cabeças. Desgraçados dos padres e das pessoas consagradas a Deus, as quais, por suas infidelidades e sua má vida crucificam novamente o meu Filho! Os pecados das pessoas consagradas a Deus clamam ao Céu e chamam a vingança e ela está às suas portas, pois não se encontra ninguém para implorar misericórdia, e perdão para o povo; não há mais almas generosas não há mais ninguém digno de oferecer a Vítima sem mancha ao Pai Eterno em favor do mundo. (CâMARA, 1957, p. 329)

Não era apenas Machado e os demais escritores realistas que eram anticlericais no século XIX. é interessante associar alegoricamente essas profecias de corrupção no seio da Igreja Católica ao conto A Igreja do Diabo. Assim como nA Igreja do Diabo havia alguns que, subvertendo a doutrina, continuavam adorando a Deus, na Igreja Católica havia alguns que crucificavam novamente Jesus e serviam, justamente as forças da antiespiritualidade.

6 – Conclusão

Machado demonstra ser um sujeito consciente da falta de espiritualidade e também do senso de realidade de sua época e do seu país. O catolicismo sempre fora no Brasil, em boa parte, uma máscara social para cobrir hipocrisias e heresias. O maior país católico do mundo, dizem as estatísticas. Católicos de IBGE, nós os inventamos. Se o fenômeno do doutrinarismo é patente no mundo inteiro, ele é e foi ainda mais escandaloso no Brasil, e especialmente na época de Machado. Por isso diz o filósofo Olavo de Carvalho em seu livro O Futuro do Pensamento Brasileiro (é Realizações, 1997) que:

Há catolicismo, sim, no Brasil, mas reduzido às suas manifestações mais externas e menos espirituais: o moralismo sexual enervante, ostensivamente violado e sempre objeto de chacota (erigida mesmo em gênero literário); a religiosidade farmacológica, com formulários de rezas para bicho-de-pé e cólicas menstruais — uma verdadeira mania nacional; o esteticismo sentimental das procissões e festas populares; as intervenções políticas da Igreja a favor do establishment ou contra ele, que hoje reduzem todo debate religioso à medição rasteira dos coeficientes de “progressismo” e “conservadorismo”. (CARVALHO, 1997, p. 27)

Por isso, de acordo com o relato de Carvalho na mesma obra, em uma conversa com o grande especialista em religiões Whitall N. Perry, é negado ao Brasil a condição de país religioso ou sequer católico, pois, segundo ele, aqui não se produziu uma única manifestação superior de mística ou de santidade patente. E onde não há mística nem santidade não há religião. Isso é o mesmo que dizer que onde não há esoterismo, ou seja, vivência espiritual interna verdadeira, e somente exoterismo, formalidades conservadas pela força do hábito, não há religião real — há apenas superstição. Assim era, em grande parte, o Brasil de Machado e talvez ainda o seja hoje. Talvez por isso Machado em sua vida particular optasse por não se devotar a qualquer doutrina — seja religiosa, filosófica, científica ou literária — que abafasse a pluralidade da realidade em fórmulas simplórias e auto probantes; aí, por isso, o humanitismo, caricatura e símbolo de todo doutrinarismo de sua época. O ser humano, afoito por estar imerso no imenso desconhecido do universo, busca, muitas vezes, um refúgio factício em doutrinas que possa chamar de “verdades”. Daí o fanatismo e o fundamentalismo cujas consequências trágicas se desenrolam até hoje. Uma doutrina falsa produz malefícios reais.

Foi exatamente a percepção de estar incorrendo neste erro que me fez escolher pela sua exposição neste ensaio. Estava eu também correndo o risco de afundar-me no doutrinarismo, priorizando minhas construções mentais acerca de Machado sobre a realidade de sua obra, ressaltando os aspectos que pareciam concordar com o que eu pensava, e ocultando aqueles que me pareciam contradizer, semelhantemente a Quincas Borba quando indagado à queima roupa sobre a sua “filosofia”. Percebi o meu erro e o extingui, espero, na medida do possível. Espelhei-me em Machado — que buscou, com a intolerável pretensão individual de satirizar a deprimente situação existencial de seu tempo — a face por trás da máscara e encontrou a hipocrisia. Vide Bentinho: “Mas o que pudesse dissimular ao mundo, não podia fazê-lo a mim, que vivia mais perto de mim que ninguém” (ASSIS, 1982, p. 331).

 

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[1] Termo muito usado pelos filósofos escolásticos (ens rationis) e mais modernamente por Martin Heidegger. Trata-se daquilo que só existe enquanto conteúdo de consciência, ou seja, jamais em-si, como ente independente, sem deixar de ter, é claro, um fundamento ontológico. Como diz Edmund Husserl: “toda consciência é consciência de alguma coisa”.

[2] Quando faço uso da primeira pessoa do plural refiro-me ao conjunto eu e o leitor. Por princípio não faço uso do plural majestático, tão em voga em nossa academia tupiniquim, porque não me considero o porta-voz de coisa alguma senão de minha própria consciência individual — atribua-se a ela, e não à responsabilidade diluída do intelectual coletivo, quaisquer méritos ou condenações incitadas por estas palavras.

[3] Escolhi para analisar com mais especificidade somente os romances que lemos na disciplina de Literatura Brasileira II.

[4] As tradições religiosas pregam unanimemente o fluxo descendente da consciência para a matéria, do espiritual para o material — “E o Verbo se fez carne” (João 1, 14) — em oposição ao evolucionismo, que, de certa maneira, ensina justamente o caminho inverso.

[5] É curioso o quão contrário a isso é o humanitismo de Quincas Borba e sua divisão de eras em sentido ascendente: a estática, expansiva, dispersiva e a contrativa. Talvez seja mais um dos aspectos em que é uma caricatura do positivismo, especificamente da lei dos três estados— de acordo com a qual o homem passa por três estados progressivos do conhecimentos e de compreensão da realidade: o teológico, o metafísico e o positivo.

[6] Ao contrário do judaísmo e do islamismo, em cujas tradições se distingue desde o princípio o exoterismo, isto é, a face pública e “formal”, do esoterismo, isto é, a instrução espiritual individual propriamente dita. Diz o metafísico francês Frithjof Schuon em sua obra A unidade transcendente das religiões (Irget, 2011): “o que mais tarde veio a ser chamado de exoterismo cristão quase não aparece como tal na Revelação crística, ou só aparece de modo secundário. (…) os principais ensinamentos de cristo ultrapassam este modo, e é precisamente esta a sua razão de ser. (…) oferecer a face esquerda àquele que feriu a direita não é coisa que possa ser posta em prática por uma coletividade social em vista de seu equilíbrio, e só tem sentido a título de atitude espiritual” (SCHUON, 2011, p. 141). A religião cristã põe ênfase na relação pessoal, ou vertical, entre a alma e Deus. Já as demais religiões abraâmicas diluem essa relação numa dimensão horizontal-social.

[7] “A fé é a priori uma disposição natural da alma para admitir o sobrenatural; ela será, por conseguinte, essencialmente uma intuição do sobrenatural, provocada pela Graça, que será atualizada mediante a atitude de confiança fervorosa.” (SCHUON, 2011, p. 148). O quão diferente é isso da noção vulgar de fé como um conjunto de crenças? É com base nessa noção vulgar de fé que se desenrolam todos os debates e reflexões acerca de religião atualmente. E é com base nela que Machado faz sutis, porém severas críticas à religião de sua época.

[8] Abre-se, então, o espaço para a morte de Deus nietzschiana e a abolição do Logos Divino empreendida por Martin Heidegger — perde-se a lastro comum entre o pensamento e a realidade do qual decorre basicamente todo pós-modernismo filosófico.

[9] Tais tentativas encontram hoje sua manifestação mais impressionante na chamada Teoria da Grande Unificação no ramo da física, que almeja explicar todos os fenômenos físicos do universo em uma única fórmula matemática.

[10] Adotando a definição de verdade dos escolásticos, a adequação do intelecto à coisa. Ora, se abolimos a existência da “coisa”, da res, cai-se num subjetivismo impraticável e totalmente contra-intuitivo.

[11] Pois uma religião é, em certa medida, um conjunto de meios para preservar uma relação com o Absoluto. Toda relação requer sacrifícios feitos para sua manutenção, sacrifícios esses que não dependem da disposição subjetiva daquele que sacrifica, mas de ordens objetivas externas.

[12] René Guénon define como superstição tudo aquilo que, tendo perdido sua significação profunda, sobrevive a si mesmo através de manifestações totalmente exteriores.

[13] Esse sentimento é também presente em Bentinho, personagem com certas características românticas, quando ele diz “Padre futuro, estava assim diante dela como de um altar. (…) Estávamos ali com o céu em nós.” (ASSIS, 1982, p. 194).

[14] “De modo que já não são dois mas uma só carne. Portanto o que Deus uniu, o homem não deve separar.”(Mateus 19;6) Cristo diz que Deus permitira aos judeus o divórcio, ou “repúdio”, por causa “da dureza dos vossos corações” (Mateus 19, 8).

[15] “Quanto àqueles que estão casados, ordeno não eu, mas o Senhor: a mulher que não se separe do marido — se, porém, se separar não se case de novo, ou reconcilie-se com o marido — e o marido não repudie sua esposa!” (1 Cor 7, 10-11).

[16] Talvez a mais genuinamente religiosa das personagens machadianas.

[17] E não, como eu descrevi anteriormente, uma percepção da presença divina.

[18] O erro aí é que há uma diferença ontológica entre as finalidades humanas relativas almejadas entre as relações sociais e a finalidade última, que é o Absoluto. O Absoluto é, por definição, aquilo ou aquele que “amarra” todas as relatividades, aquele que é o princípio comum entre o sujeito e qualquer fim desejado por ele. Por exemplo, o indivíduo que almeja conseguir uma grande riqueza não pode, por sua própria natureza, garantir que essa riqueza exista. Somente o Absoluto é elo criador comum entre a riqueza e o indivíduo a pode desempenhar essa função.

[19] Se é uma pseudociência ou não, cabe investigar se o seus métodos encontram algum objeto na realidade ou o criam, simplesmente, a partir da imaginação fértil de seus seguidores.

[20] As citações da Bíblia foram extraídas, em sua maior parte, da Bíblia de Jerusalém, publicada em 2002 pela editora Paulus.