Águas em Águas

Samanta Maia

RESUMO: Como que numa jangada, sofrendo a possibilidade do desequilíbrio e/ou desfrutando a possibilidade da agilidade aquática de Águas da Serra, este ensaio se iniciou como proposta para um passeio despretensioso por um poema de Guimarães Rosa – quando o que ambicionava era encontrar alguma chave facilitadora para a leitura deste autor -, levando consigo apenas um tema: “água”; e agora permanece como um convite, pronto a repetir o passeio.

PALAVRAS-CHAVE: Água; Águas da Serra; Guimarães Rosa; Magma.

ABSTRACT: As if on a floating raft, undergoing the chance of an unbalance and/or rejoicing the possibility of Aguas da Serra’s aquatic nimbleness, this essay began as an invitation for a unpretentious wandering through a poem by Guimarães Rosa – since what was coveted was providing an easing key for reading this author -, taking alongside it only a theme: “water”; and now it remains as an invitation, ready to repeat the ride.

KEYWORDS: Water; Águas da Serra; Guimarães Rosa; Magma.

 

ÁGUAS DA SERRA

Águas que correm,
claras,
do escuro dos morros,
cantando nas pedras a canção do mais-adiante,
vivendo no lodo a verdade do sempre-descendo…
Águas soltas entre os dedos da montanha,
noite e dia,
na fluência eterna do ímpeto da vida…
Qual terá sido a hora da vossa fuga,
quando as formas e as vidas se desprenderam
das mãos de Deus,
talvez enquanto o próprio Deus dormia?…
E então, do semi-sono dos paraísos perfeitos,
os diques se romperam,
forças livres rolaram,
e veio a ânsia que redobra ao se fartar,
e os pensamentos que ninguém pode deter,
e novos amores em busca de caminhos,
e as águas e as lágrimas sempre correndo,
e Deus talvez ainda dormindo,
e a luz a avançar, sempre mais longe,
nos milênios de treva do sem-fim…

(ROSA, 1997, documento eletrônico)

O poema é uma grande gota. Pinga na poesia e vai, rio. As águas da serra, de uma serra – dessa. A sensação comum é a de que se está lidando com palavras que correm. Corre também o olhar pelo poema, mas é só tentativa de acompanhá-las – essas palavras. Isso porque as palavras correm com a água, e a água corre nas palavras; desabanar na natureza. Muitos caminhos se cavam – braços, margens (terceiras). O poema (tampa pra muitas panelas, e panela) que está em disposição de dialogar com as águas e com Deus, por lados diversos, ou ainda com Riobaldo-coração, ou ainda com – que vai no sempre.

Serra, coração verde que se abre em correr sangue: artéria-rio. As águas correm cortando o coração – um lugar de início, pulsante, puro, criação em ligação direta com o criador -, saindo dele. Atilho que une a água ao criador é o rio.

O rio serve de berçário, é o caminho propiciador da relação do alto com o baixo, do criador com a criação – as águas vêm do morro, do início, do coração, da fonte. No “caso de vida e de morte” de Pedro Orósio (O recado do morro) há um morro que fala, “avisando de coisas” – um recado, palavras. As águas podem tanto ser a palavra (divina), ou o aviso (divino), saída(o) do morro (o próprio – entidade superior:) – o morro que contempla o mundo, examina os homens, calado, misterioso –

– “H’hum… Que é que o morro não tem preceito de estar gritando… Avisando de coisas…” – disse, por fim, se persignando e rebenzendo, e apontando com o dedo no rumo magnético de vinte e nove graus nordeste.
Lá – estava o Morro da Garça: solitário, escaleno e escuro, feito uma pirâmide.
(ROSA, 1994, documento eletrônico).

Javé, porém, está no seu templo santo,
Javé tem o seu trono no céu.
Seus olhos contemplam o mundo,
suas pupilas examinam os homens (Salmos 11, 4).

e que conduzida pelo rio (que desempenha o então papel de atilho), está para chegar a terra, a nós, como ser a própria entidade, partindo dum lugar-não-lugar, dum lugar-que-não-se-sabe (“dedos da montanha”, as águas partem dos dedos de algo maior, de algo menor que compõe certamente algo maior, desconhecido, de que não se tem conhecimento da grandeza, “do escuro dos morros” – rei sitae) como meio de alcançar a terra:

Águas que correm,
claras,
do escuro dos morros,
[…] (ROSA, 1997, documento eletrônico)

[…]
Águas soltas entre os dedos da montanha,
noite e dia,
na fluência eterna do ímpeto da vida…
[…] (ROSA, 1997, documento eletrônico)

Numa passagem do apocalipse, uma possível imagem desse “lugar (nenhum)”, e do rio, que brota do trono de Deus (mesmo a descrição que o narrador de O recado do morro faz do morro é obscura: “é solitário, escaleno e escuro, feito uma pirâmide”. A menção à pirâmide pode ser tomada não só como retrato da forma geográfica do morro, mas como alusão ao enigma da Esfinge – do mito grego de Édipo -, símbolo da incompreensão humana diante dos procedimentos divinos):

O Anjo mostrou para mim um rio de água viva; era brilhante como cristal; o rio brotava do trono de Deus e do Cordeiro. No meio da praça, de cada lado do rio, estão plantadas árvores da vida; elas dão fruto doze vezes por ano; todo mês elas frutificam; suas folhas servem para curar as nações. (Apocalipse 22, 1-2)

Não obstante, a água ainda pode tomar outros rumos: provir da própria criação. O criador se faz brotar na criação, ou ainda, a partir do criador a criação acha o caminho e brota de si: “Se alguém tem sede, venha a mim, e aquele que acredita em mim, beba. É como diz a Escritura: ‘Do seu seio jorrarão rios de água viva’.” (João 7, 38)

A aproximação do morro ao coração, a fonte – do criador (ex corde ad corde) ou da criação, criador-criação -, de onde jorram as águas, onde nasce o rio, nasce o caminho, da Bíblia, é feita também no Alcorão, livro sagrado do Islã. O septuagésimo quarto verso da segunda surata (“Al Bácara”) fala do coração dos homens como pedra, rocha; daqueles que “raciocinam” sobre as manifestações dos sinais de Deus brotam rios:

Então ordenamos: Golpeai-o (o morto), com um pedaço dela (rês sacrificada). Assim Deus ressuscita os mortos vos manifesta os seus sinais, para que raciocineis.
Apesar disso os vossos corações se endurecem; são como as rochas, ou ainda mais duros. De algumas rochas brotam rios e outras se fendem e delas mana a água, e há ainda outras que desmoronam, por temor a Deus. Mas Deus não está desatento a tudo quanto fazeis.
Aspirais, acaso, a que os judeus creiam em vós, sendo que alguns deles escutavam as palavras de Deus e, depois de as terem compreendido, alteravam-nas conscientemente? (Sura II 73-75)

Água fluência-eterna (“[…] na fluência eterna do ímpeto da vida […]”): o não-tempo. Já antes não tinha o tempo, quando rio era apenas regar o jardim, e o sono de Deus não acontecia, e a luz não se perdia – em avançar -, e nenhum pensamento estava para não ser detido. O rio não pode ser assim, o surgimento do tempo? Um quando partir do tempo para a tal fluência-eterna; quando o tempo se desandou em acontecer pra sempre? Mas “tempo” e “pra sempre” não se anulam? As palavras embaralham tempo e não-tempo – as palavras e a anulação das palavras. “Eterna” é palavra que anula “fluência”, e anula tempo, pois que a eternidade está além do tempo; “fluência”, por sua vez, anula “eterna”, porque pressupõe uma ideia de movimento, um pulsar constante, um conjunto de pulsações culminantes; a eternidade não pode ser um movimento contínuo, e mais: “ímpeto”; como pode ser a “fluência eterna” de um “ímpeto”, de um “arrebatamento”, de um “de repente” de vida? Como pode ser um “movimento eterno”? Movimento eterno é ser, movimento de ficar no mesmo lugar, ficar sendo, ficar imóvel (no ser, em si) – no lodo a “verdade do sempre-descendo” (essa, uma, ao menos) vive, vivendo (“Uma coisa, a coisa, esta coisa: eu somente queria era – ficar sendo!)” (ROSA, 2006, p. 422). “Um rio saía de Éden para regar o jardim, e de lá se dividia em quatro braços.” (Gênesis 2, 10).

Ainda no fim, o poema dirá do avanço da luz “nos milênios de treva do sem-fim…”, para o que não tem fim usa uma unidade de medida – é inevitável a associação com o tempo. O inventário daquilo-que-vem-com: “[…] forças livres rolaram,/ e veio a ânsia que redobra ao se fartar,/ e os pensamentos que ninguém pode deter,/e novos amores em busca de caminhos, e as águas e as lágrimas sempre correndo, […]”, parece o primeiro segundo do tempo (como se o tempo fosse criação) dum relógio imenso, o primeiro tic-tac do sempre, a partir desse segundo é que se fez o sempre e as coisas que também sempre vêm, as coisas que atravessam as vidas, comuns em todos os tempos (pensamentos que ninguém pode deter, novos amores, lágrimas, águas – tudo no sempre) – mas isso tudo, dentro de uma água maior, numa fluência-eterna, do/num não-tempo (as coisas ficam sendo, estão num estado de ficar sendo, exercendo o ser).

Martin Lings (Sabedoria tradicional & superstições modernas, 1998, p. 37) diz que a espiritualidade em si mesma é, por definição, supratemporal, que ela está acima do tempo, mas que seus efeitos estão no âmbito do tempo (são temporais). O mundo, a história humana, segundo Lings, é repleta de efeitos menos diretos da espiritualidade no tempo, tais efeitos possuem tendência a “acompanhar o ritmo temporal de crescimento e gradual declínio”, “uma ascensão repentina seguida de uma decadência gradual” (chamado por ele de “ritmo Deus-Homem”), que resulta “de uma combinação que está acima do tempo com o que está sujeito ao tempo” (LINGS, 1998, p. 38) (dá como exemplo o Antigo Testamento, “narrativa de uma tendência descendente”, o que acontece entre a Queda e o Dilúvio e, logo depois, entre o Dilúvio e a Torre de Babel) – combinação tempo-não-tempo. A tendência ao declínio, à degeneração, é constantemente detida pelas intervenções divinas que restabelecem uma perfeição relativa, essas intervenções estão sempre no caminho de volta, “em oposição ao curso geral dos acontecimentos” (LINGS, 1998, p. 38), escapam da “corrente coletiva que conduz rio-abaixo” (LINGS, 1998, p. 36). Sobre o defrontar “rio-acima”, modo de escape da corrente, apresentado pela religião, diz-se que “é possível a alguns resistir a ela; a outros é concebível mesmo ir contra a corrente; e ainda a uns poucos, é possível superá-la totalmente, realizando sua jornada de volta à própria fonte ainda nesta vida.” (LINGS, 1998, p. 36).

O rio do Éden, vida a banhar os homens. O Éden é outra das sugestões do poema (talvez a que mais pede olhos sobre si), como narrativa do pecado original: Mundo-Éden em mundo-esse-mundo, quando as águas deixaram de regar o jardim do primeiro mundo para fugir para um segundo – águas-serpentes:

Qual terá sido a hora da vossa fuga,
quando as formas e as vidas se desprenderam
das mãos de Deus, talvez enquanto o próprio Deus dormia?…
(ROSA, 1997, documento eletrônico)

Mas se “De Deus ninguém foge”? A leitura toma a face da denúncia do poema: alguma vez algo escapou de Deus, quando e enquanto não se sabe:

Não diga: “Vou me esconder do Senhor. Lá de cima, quem se lembrará de mim? No meio de tanta gente, quem me reconhecerá? Quem sou eu nesta imensa criação?” Veja bem! O céu, o mais alto do céu, o abismo e a terra, tudo isso treme diante da visita de Deus. Os montes e os alicerces da terra se abalam de pavor quando Deus olha pra eles. (Eclesiástico 16, 16-19)

Fugiram no sono de Deus, e Deus dorme? Quando Deus dormiu? Ou dormirá, e nas linhas – passadas – se pinta o futuro, uma previsão?:

O meu socorro vem de Javé,
que fez o céu e a terra.
Ele não deixará que o seu pé tropece,
o seu guarda jamais dormirá!
Sim, não dorme nem cochila
o guarda de Israel. (Salmos 121, 2-4)

Quando o sono se fazia no Éden, talvez no sétimo dia – o dia do descanso de Deus – é que “os diques se romperam”, as forças rolaram livres?:

No sétimo dia, Deus terminou todo o seu trabalho; e no sétimo dia, ele descansou todo o seu trabalho. Deus então abençoou e santificou o sétimo dia, porque foi nesse dia que Deus descansou de todo o seu trabalho como criador.
Essa é a história da criação do céu e da terra. (Gênesis 2, 1-4a)

E então, do semi-sono dos paraísos perfeitos,
os diques se romperam,
forças livres rolaram,
(ROSA, 1997, documento eletrônico)

Forças de natureza física, ou ainda forças de pensamento e/ou oníricas. Num descuido do criador foram permitidos desejos. Havia a linha que circulava e separava em lugares diferentes as vontades, as ânsias e os possíveis receptáculos das vontades/ânsias (até então vazios delas), forças que ficavam concentradas em si mesmas, em um nó de energia-espera para explodir. A linha é partida, rompida dá a liberdade aquilo que ninguém pode deter, faz daquele que não tinha nenhuma necessidade um constante faminto:

e veio a ânsia que redobra ao se fartar,
e os pensamentos que ninguém pode deter,
e novos amores em busca de caminhos,
(ROSA, 1997, documento eletrônico)

A conexão entre água e desejo também pode ser estabelecida e compreendida com base num texto religioso hindu: Bhagavad-Gita; um diálogo, contido no épico Mahaabharata, entre Arjuna, um dos cinco Pandavas (filhos de Pandu, irmão de Dhritarashtra), e Krishna (Senhor Supremo) sobre o dilema: lutar pelos seus direitos e aceitar a guerra ou fugir dela em nome da paz e não violência (o motivo da guerra foi que, com a morte do rei Pandu, os Pandavas passaram a reis por direito, mas o filho mais velho de Dhritarashtra (que teve cem filhos), o Duryodhana, era muito ambicioso e, ainda que o reino fosse dividido em duas partes, ele o queria todo). O septuagésimo verso do segundo capítulo desse texto representa o desejo como um rio – aquele que não se perturba com o fluxo desse rio (fluxo dos desejos) a entrar no oceano é aquele que alcança a paz e torna-se uno com Deus (ou ainda “pode entrar no reino de Deus” – interpretações que variam de acordo com as traduções):

Obtêm-se a paz quando todos os desejos dissipam-se dentro da mente sem criar qualquer distúrbio mental, como as águas de um rio entram no oceano pleno sem criar qualquer distúrbio. Aquele que deseja os objetos matérias jamais possui paz. (Bhagavad-Gita 2,70)

Ó Arjuna, este é o estado de superconsciência da mente. Alcançando tal estado, não se é enganado. Conquistando este estado, mesmo no fim da vida, uma pessoa alcança a verdadeira meta da vida humana, tornando-se uno com Deus. (Bhagavad-Gita 2,72)

Em comparação aos versos acima, há certo trecho, no capítulo quinze do taoísta Tao Te Ching, de Lao Tsé (Sublime Patriarca do Caminho, para os taoístas), que trata (de modo altamente subjetivo – acompanhante da dificuldade de tradução da língua chinesa) de um ‘controle’ (? – ou ‘convívio em com’) sobre as “águas turvas”: “[…] Entorpecidos como as águas turvas/ O turvo, através da quietude, torna-se gradualmente limpo […]”.

É o que mais se parece com a “felicidade”: um modo sem sequência, desprendido dos acontecimentos – camada do nosso ser, por ora oculta – fora dos duros limites do desejo e das razões horológicas. Não se imagina o perigo que ainda seria, algum dia, em alguma parte, aparecer uma coisa deveras adequada e perfeita. (ROSA, 2009, p. 653, grifos meus)

E se esse sono, fosse um não-sono, posto que Deus nunca dorme? A fuga das águas, o rompimento do dique, as forças livres, é plano Dele? Sono falso-sono proposital? (do poema, a lembrar: semi-sono. “Semi” de quase? Metade leviana…).

Deus quer os homens livres, criou os homens livres (“E Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou; e os criou homem e mulher” – Gênesis, 1, 27), já dotado de vontade, podendo comer os frutos de todas as árvores do Éden… menos da árvore do conhecimento do bem e do mal. Portanto, o homem já era livre nesse mundo (ou não, a liberdade é o ponto de vista… o homem era livre sob as ordens de Deus?), e, por gosto de Deus que fosse livre, ele mesmo, responsável, fez romper seu mundo para outro mundo, em mergulhar outras ânsias, outros desejos, graves, dos que aprisionam, e tornou-se escravo:

Então Jesus disse para as autoridades dos judeus que tinham acreditado nele: “Se vocês guardarem a minha palavra, vocês de fato serão meus discípulos; conhecerão a verdade, e a verdade libertará vocês.” Eles disseram: “Nós somos descendentes de Abraão, e nunca fomos escravos de ninguém. Como podes dizer: ‘vocês ficarão livres’?” Jesus respondeu: “Eu garanto a vocês: quem comete o pecado, é escravo do pecado. O escravo não fica para sempre na casa, mas o filho fica aí para sempre. Por isso, se o Filho os libertar, vocês realmente ficarão livres. […]” (João 8, 31-36)

Se o homem é o responsável por quebrar o primeiro-mundo, então não houve descuido de Deus, mas aconteceu sua própria vontade (de Deus ou do homem?). O homem é livre porque Deus o fez assim, porque é responsável por suas ações, ou não é livre porque não escolhe ser livre? Ou é livre porque escolhe ser livre porque Deus permitiu que escolhesse (e aí já não é mais livre de novo…?)? O que parece, sim, é estar no plano de Deus a possibilidade de incerteza das águas – e do homem -; colisão de destino e livre-arbítrio (“A liberdade só pode ser um estado diferente, e acima. A noite, o tempo, o mundo, rodam com precisão legítima de aparelho.” (ROSA, 2009, p. 633); “Mas a liberdade – aposto – ainda é só alegria de um pobre caminhozinho, no dentro do ferro de grandes prisões.” (ROSA, 2006, p. 307)). O rio-guia, condutor e conduzido, possibilidade e possibilitador, levador e levado. Pelas águas faz-se caminho de saída das serras, saída de primeiro-mundo (não se diga necessariamente físico), faz-se viagem na palavra, na própria palavra divina para a pessoa, ou a pessoa embarca nele a uma viagem condutória para diferente da palavra: o fora – (e daí outro rio – o do Bhagavad-Gita, fluxo de desejos -, até o mesmo também…). Certo é o rio fazer caminhos, florescer destinos (o rio “se descomporta”, desenhador, chacoalhador de certezas), do mar impossível – a Brejeirinha:

O que se queria, aqui, era a pequena angra, onde o riachinho faz foz. Abaixo, aos bons bambus, e às pedreiras de beira-rio, ouvindo o ronco, o bufo d’água. Porque, o rio, grossoso, se descomporta, e o rachinho porém também, seu estuário já feio cheio, refuso, represado, encapelado […] Porém, o fervor daquilo impunha-lhe recordações, Brejeirinha não gostando de mar: – “O mar não tem desenho. O vento não deixa. O tamanho…” (ROSA, 2001, p. 171)

[…]
e novos amores em busca de caminhos,
[…]
(ROSA, 1997, documento eletrônico)

Há então um fio que amarra as coisas, que não as deixa voar, ao menos voar num qualquer, que não é possível tanta ausência de motivos e porquês sem essa… força (?) atrazitando, transitando atrás, no fundomotivo das coisas?

Ameaçava o quê a quem, com seu estro catastrófico? – “Viver é impossível!” – o dito declarado assim, tão empírico e anermenêutico, só através do egoísmo da lógica. Mas, menos como um galhofeiro estapafúrdio, ou alucinado burlão, pendo a ouvir, antes em leal tom e generoso. E era um revelar em favor de todos, instruía-nos de verdadeira verdade. A nós – substantes seres sub-aéreos – de cujo meio ele a si mesmo se raptara. Fato, fato, a vida se dizia, em si, impossível. Já assim me pareceu. Então, ingente, universalmente, era preciso, sem cessar, um milagre; que é o que sempre há, a fundo, de fato. (ROSA, 2001, p. 193)

A luz continua avançando, “sempre mais longe/ nos milênios de treva do sem-fim”, preenchendo de claridão a ausência. Momento de criação?

No princípio, Deus criou o céu e a terra. A terra estava sem forma e vazia; as trevas cobriam o abismo e um vento impetuoso soprava sobre as águas.
Deus disse: “Que exista a luz!” E a luz começou a existir. Deus viu que a luz era boa. E Deus separou a luz das trevas: à luz Deus chamou “dia”, e às trevas chamou “noite”. Houve uma tarde e uma manhã: foi o primeiro dia. (Gênesis 1, 1-5)

Louvado seja Deus que criou os céus e a terra, e originou as trevas e a luz. Não obstante isso, os incrédulos têm atribuído semelhantes ao seu senhor. (Sura VI, 1)

Deus é germinador das plantas graníferas e das nucleadas! Ele faz surgir do vivo o morto e extrai o morto do vivo. Isto é Deus! Como, pois, vos desviais?
É Ele Quem faz despontar a aurora e Quem vos estabelece a noite para o repouso; e o sol e a luz, para cômputo (tempo). Tal é a disposição do Poderoso, Sapientíssimo. (Sura VI, 95-96)

A natureza material, ou a matéria, é Minha natureza inferior. Minha outra elevada natureza é o espírito, pelo qual este universo inteiro é sustentado, Ó Arjuna. Saiba que todas as criaturas desenvolvem-se a partir desta dupla energia, e que Espírito Supremo é a origem, bem como a dissolução, do universo inteiro. Não há nada superior ao Ser Supremo, Ó Arjuna. Todo o universo está atado ao Ser Supremo, como diferentes jóias estão amarradas no cordão de um colar. (Bhagavad-Gita 7, 5-7)

Se nascimento do sol: então entrada na primeira luz; enfim vida. Esse sol, simbólico – iluminação do existir. Os iniciais raios pela cegueira (no Alcorão está escrito que Deus arrasta os fiéis para a luz e os infiéis para as trevas, extingui-lhes a luz, os deixa cegos) – verbo irradiado? A realidade é criação da palavra (assim como fazia criar Nhinhinha de A menina de lá)?

Jesus é a Palavra que revela Deus aos homens – No começo a Palavra já existia:
a Palavra estava voltada para Deus,
e a palavra era Deus.
No começo ela estava voltada
para Deus.
Tudo foi feito por meio dela,
e, de tudo o que existe,
nada foi feito sem ela.
Nela estava a vida,
e a vida era a luz dos homens.
Essa luz brilha nas trevas,
e as trevas não conseguiram apagá-la.
(João 1, 1-5)

A realidade é expressa/construída pela palavra ou é expressão/construção da palavra? Eric Voegelin, para falar do Princípio (Ordem e história vol. V: em busca da ordem, 2010), cita o Gênesis (primeiros versículos do primeiro capítulo) e a procedência de Deus para criar (como a forma mais aproximada do princípio real de qualquer coisa: o “ato original de criar tudo”):

A realidade luz aparece neste versículo quando a injunção divina a invoca, em sua luminosidade existencial, chamando-a por seu nome. A palavra pronunciada, ao que parece, é mais que um mero signo que significa algo; é um poder na realidade que evoca estruturas na realidade mediante sua nomeação. (VOEGELIN, 2010, p. 41)

A evocação da realidade é feita pelos nomes, a palavra (pronunciada) é um poder – permitido – na realidade, que evoca estruturas na própria realidade-Isso, através da nomeação (a realidade-Isso seria uma espécie de vivência, a que “abrange os parceiros no ser, isto é, Deus e o mundo, o homem e a sociedade” (VOEGELIN, 2010, p. 38), “um grandioso conjunto de integrações” (VOEGELIN, 2010, p. 42). Palavra: uma coisa na realidade que cria coisas na realidade; evoca as coisas de que ela mesma fala. Para tanto, afirma Voegelin (2010), a palavra tem de ser inteligível para poder ser revelada (e aí fala da participação da consciência com o aspecto da luminosidade, experimentada como um evento de luminosidade da realidade participativa…), ela é um símbolo da linguagem encontrado para expressar adequadamente (com eficiência, a palavra) a experiência e estrutura da realidade-Isso (no Gênesis, ao menos). Claro, isso, dentro de uma (um tipo de, como coloca o autor certa hora) realidade em que a palavra quando proferida evoque as estruturas das quais fala. Há uma realidade em que isso é possível? Aparentemente sim, uma realidade vazia e amorfa comportaria tal criação pela palavra (palavra que não implica a representação apenas da coisa (nós, nossa realidade), mas a criação da coisa de fato – a coisa em si).

Deus pode descansar que tudo continuaria acontecendo – assim, depois de já feito -, tomando rumos: “a gente é portador” (de uma vontade, um algo, maior?)?:

Talvez adivinhasse que em suas mãos, dela, estivesse já decretado e pronto o seu fim. Queria-lhe, e temia-a – de um temor igual ao que agora incessante sente o cego Retrupé. Soubessem, porém, nem de nada. A gente é portador. (ROSA, 2001, p. 179)

Deus é possibilitador (criador?) de luz e de treva – e de novo o destino e o acaso; o determinismo/a prisão e o livre arbítrio; o bem que produz o mal é bem?; o mal que participa do bem é mal? É bem, e só bem, existindo? E lá se… “O copo com água pela metade: está meio cheio, ou meio vazio?” (ROSA, 2009, p. 536). Que luz é essa? E que treva?

Assim é que eu concebia a tua criação finita, cheia de ti, infinito, e dizia: “Eis aqui Deus, e eis aqui as coisas que Deus criou; Deus é bom, imenso e infinitamente mais excelente que suas criaturas; e, como é bom, fez boas todas as coisas; e vede como as abraça e penetra! Onde está pois o mal? De onde e por onde conseguiu penetrar no mundo? Qual é a sua raiz e sua semente? Será que não existe? E porque recear e evitarmos o que não existe? E se tememos em vão, o próprio temor já é certamente um mal que atormenta e espicaça sem motivo nosso coração; e tanto mais grave quanto é certo que não há razão para temer. Portanto, ou o mal que tememos existe, ou o próprio temor é o mal. De onde, pois, procede o mal se Deus, que é bom, fez boas todas as coisas? Bem superior a todos os bens, o Bem supremo, criou sem dúvida bens menores do que ele. De onde pois vem o mal? Acaso a matéria de que se serviu para a criação era corrompida e, ao dar-lhe forma e organização, deixou nela algo que não converteu em bem?
E por que isto? Acaso, sendo onipotente, não podia mudá-la, transformá-la toda, para que não restasse nela semente do mal? Enfim, por que se utilizou dessa matéria para criar? Por que sua onipotência não a aniquilou totalmente? Poderia ela existir contra sua vontade? E, se é eterna, porque deixou-a existir por tanto tempo no infinito do passado, resolvendo tão tarde servir-se dela para fazer alguma coisa? Ou, já que quis fazer de súbito alguma coisa, sendo onipotente, não poderia suprimir a matéria, ficando ele só, bem total verdadeiro, sumo e infinito? E, se não era conveniente que, sendo bom, não criasse nem produzisse bem algum, por que não destruiu e aniquilou essa matéria má, criando outra que fosse boa, e com a qual plasmar toda a criação? Porque ele não seria onipotente se não pudesse criar algum bem sem a ajuda dessa matéria que não havia criado.
Tais eram os pensamentos de meu pobre coração, oprimido pelos pungentes temores da morte, e sem ter encontrado a verdade. (AGOSTINHO, 2007, p. 59)

Mas Santo Agostinho (Confissões, 2007) ainda tenta solucionar a questão do mal e do bem e chega ao “tudo o que existe é bom”; o mal não é uma substância, porque se fosse seria um bem, pois seria corruptível (só pode se corromper aquilo que antes não estava corrompido, ou seja, um grande bem), a corrupção sim, é um mal. O que é incorruptível é o nada.

E pode que, ainda, seria em outras nessas, que o mundo é natural de dois, mistura de dia e noite, luz e treva (assim na Bíblia e no Alcorão), mistura do material e do espírito (assim no Bhagavad-Gita – o rio, fluxo de desejos, mencionado anteriormente, seria a força incontrolável que faz do homem prisioneiro do mundo material, e a solução para a paz seria não interromper esse fluxo nem aboli-lo, mas recebê-lo com calma, em águas serenas, conviver com a energia material e com a espiritual em equilíbrio, em controle). Dois e a dúvida, dois e a verdade desencontrada.

E mudança, que pode encostar-se em outra coisa. Se o poema é todo coração – dúvida -, então é (como, até) o de Riobaldo – tudo cabe, em não endurecimento, em crescer. A fuga toda seria dele (coração), dentro dele, das coisas dele nele mesmo, um perder-se em si, nas matas da pessoa própria, por motivo de algo que não se quer se acreditar, admitir, mas cresce – que é sentimento vivo (Diadorim? Otacília? Mistura de tudo? Ninguém? A vida?), transformado – e transborda no querer-se negado – do ódio o amor?:

Do ódio, sendo. Acho que, às vezes, é até com ajuda do ódio que se tem a uma pessoa que o amor é tido a outra aumenta mais forte. Coração cresce todo lado. Coração vige feito riacho, colominhando por entre serras e varjas. Coração mistura amores. (ROSA, 2006, p. 188)

Deus – o perguntado do porquê deixara, a luz – esses amores, coisas, misteriorados, interrogações, que dilatam o coração, que vão, e vão (nem não nem tão permitidos), talvez a destino ou acaso de Deus – ou do homem (ou sem eles, em propriedade mesma), mas em dois, mais até.

As águas são, em, – e a gente

Os grandes poemas ainda permanecem inéditos,
e as grandes palavras dormem nas línguas secas.
Foram ouvidas apenas algumas lamentações;
mas precisamos de blasfêmias que entremeçam o Cristo,
e de delírios da mais incruenta febre
ou então de gestos humildes que arranquem uma clemência d’ Ele
Entretanto disponho de uma constelação de braços
de todas as cores e de todas as tatuagens para trazer-vos aqui.

É neste vale que se conjura a treva
e onde o amigo vai e volta sempre na órbita amiga,
e quem dorme, dorme sossegado, sexo com sexo oposto,
sem pavor de adultério, de incesto ou de outros ambíguos climas
É aqui que se efetiva a urgência divina
que me une aos que morreram, aos que se lavam em chamas.
É aqui onde deságuam os rios
e onde os rios se surpreendem de haver terminado.
Aqui nessa Mesopotâmia
a gestação nunca foi estancada,
e as vozes mais tenras ressoam pelo interior do vale.
Aqui todos os seres têm órbitas donde os cometas nascem;
e aos lábios de qualquer virgem descem sempre androceus,
e dos ventres brita húmus – glória de Mesopotâmia
que o Senhor fez irrigar com sua saliva em fogo.
À noite, as flores são vísceras
e pulsam como sanguíneos vasos;
muitas descem da encosta para fecundar os peixes que, pela manhã, são aves
Se sois virgens nascerão de vossos flancos
constelações de gêmeos,
que imediatamente se transformarão em constelações de amigos,
só existentes nas cartas deste fecundo vale!

Se tendes filhos
eles se desdobrarão de lado,
porque o sopro divino ainda se infunde nos limos,
e repousa sobre as primeiras águas.
Porém, quando chegar o sétimo dia,
descansaremos para olhar, abraçados,
pupila contra pupila, dentro dos nossos seres,
a história da Criação começar outra vez.
(LIMA, 2006, p. 225-226)

Referências

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