A pregação de Vieira comentada em Bosi

Eliane Cristina Scandiuzzi Scarmim Lourencetti de Campos

RESUMO: O presente ensaio tem por objeto uma reflexão sobre a pregação de Vieira no “Sermão da Sexagésima” e sua relação com elementos políticos do período colonial, em confronto com apontamentos de Bosi em Dialética da Colonização. A linha de raciocínio que norteia a escrita deste ensaio é o contexto econômico, político e religioso evidenciado em ambos os textos. A pressão política da segunda metade do século XVII se sobressai no texto de Vieira sobre a arte de pregar, principalmente na escrita em forma de metáforas e parábolas. E, em Bosi, é destacada a visão paradoxal da colonização do Brasil e o contexto de transição à fase moderna como fator de contexto e influência na pregação dos jesuítas, incluindo Vieira. Este trabalho decorre das leituras feitas na disciplina de Literatura Brasileira, do curso de graduação em Letras-Português da UFSC.

PALAVRAS-CHAVE: pregação; retórica; colonialismo.

ABSTRACT: The present text object is a reflection on preaching Vieira on the “Sermão da Sexagésima” and its relationship with political elements of the colonial period, in comparison with notes of Bosi in Dialética da Colonização. The line of reasoning that guides the writing of this essay is the economic, political and religious evidenced in both texts. Political pressure in the second half of the seventeenth century stands in the text by Vieira on the art of preaching, particularly in writing in the form of metaphors and parables.And Bosi, is highlighted a paradoxical view of the colonization of Brazil and the context of the transition to the stage as a factor inmodern context and influence in the preaching of the Jesuits, included Vieira. This work follows the readings in the discipline of Brazilian Literature, of the undergraduate course in Portuguese Language of UFSC.

KEYWORDS: preaching; rhetoric; colonialism.

 

INTRODUÇÃO

Este ensaio tem por objetivo fazer uma reflexão sobre a pregação em Vieira, a partir do estudo do texto “Sermão da Sexagésima”.  Nesta reflexão, são observadas as relações entre os elementos presentes no texto de padre Antonio Vieira no “Sermão da Sexagésima” (1655), e nos comentários feitos por Alfredo Bosi em Dialética da colonização (1992), em face do período colonial. O foco deste texto limita-se, portanto, a comentários presentes no contexto econômico, político e religioso evidenciado em ambos os textos.

 REFLEXÕES SOBRE A PREGAÇÃO

O “Sermão da Sexagésima” reporta a uma pregação na capela real em Lisboa no ano de 1655, após o retorno do padre José Antônio Vieira de uma Missão no Maranhão. Trata-se de uma peça (oratória) composta de dez capítulos, a qual abre uma série de quinze volumes com foco na teoria da arte de pregar. A temática da pregação nesse texto foi abordada com enfoque em técnicas pedagógicas, cuja eficiência se assentou na retórica. Vieira fez uso intenso de metáforas e alegorias, com o resgate de parábolas cristãs, acredita-se, devido ao contexto político prevalente nas principais metrópoles da época, e, naquele momento, contra Portugal. Além disso, a providência em tratar do sermão e da pregação pareceu ser uma estratégia àquele momento (60 dias antecedentes à quaresma – Sexagésima), no qual as pregações poderiam ter maior alcance.

Em Dialética da Colonização, escrita pelo historiador e crítico da literatura brasileira, Alfredo Bosi, publicada em 1992, o autor ressaltou a tendência de domínio e imposição de valores próprios de um grupo ou classe sobre o sistema político da nação. Na obra de Bosi foram abordadas, entre outros aspectos, questões sobre a cultura que se desdobrou no Brasil, decorrente tanto de ideias como dos valores importados do estrangeiro, sobre os quais esse autor tem diferentes perspectivas a observar. Segundo ele, os detentores do poderio político determinaram a prevalência dos valores da classe social dominante. Assim, a cultura do nosso povo derivaria da presença compulsória dos valores políticos imanentes nesta cultura.

Para Bosi, naquele momento histórico – o século XVII – o desafio do jesuíta estava assentado essencialmente na capacidade de compor um discurso persuasivo, capaz de mobilizar tanto a fidalguia quanto o clero em direção à reconstrução de um reino ameaçado, por um lado, pela Espanha e, por outro, pela Holanda. Por isso, reiterou estar o emprego da retórica, na perspectiva de Vieira, voltado ao reerguimento desse “Império” ameaçado. Para ele, “[…] a sociedade ibérica do século XVII não conhecia ainda a plena hegemonia do pensamento burguês, que já se impusera com vigor nas práticas econômicas e na cultura da Inglaterra e da Holanda protestantes” (BOSI, 1992, p. 120).

Sobre esse período, há que se destacar a existência de conflitos religiosos entre Protestantismo e Catolicismo, com manifestações de diferentes origens; alvo da Igreja romana, como o foi em relação à religiosidade considerada pagã (feitiçaria, alquimia, magia), cujas condenações – pela Santa Inquisição – se estenderam a acusados de misticismo pertencentes à Companhia de Jesus. No que se refere ao sermão, Bosi destaca que “Vieira é drástico: cada um com suas ações” (1992, p. 127), lembrando que a Igreja do século XVII já havia arbitrado condenação aos “adeptos” de proposições místicas, inclusive em processos contra o ensino de doutrina subjetivista, ou seja, focada essencialmente na fé, sem considerar a ação.

Na peça de Vieira, em face do contexto quinhentista de avanço do protestantismo e da própria hegemonia e supremacia de algumas nações europeias imperialistas, sugere-se ter sido o seu interesse tanto manter a presença dos jesuítas no Brasil quanto ratificar a autonomia do Império, ao tratar do próprio sermão. Sob a ótica política, o interesse do jesuíta vislumbrou, pois, a defesa da Coroa e a permanência da Companhia de Jesus, atrelando o aspecto prático [pragmático] da política, voltado à “conversão” dos gentios, ao espírito da pedagogia catequista.

Pareceu-lhe conveniente reportar à “palavra” na pregação quando introduziu o objeto a ser tratado no sermão naquele momento antecedente à quaresma, conforme citação a seguir:

Nunca na Igreja de Deus houve tantas pregações, nem tantos pregadores como hoje. Pois se tanto se semeia a palavra de Deus, como é tão pouco o fruto? Não há um homem que em um sermão entre em si e se resolva, não há um moço que se arrependa, não há um velho que se desengane. Que é isto? Assim como Deus não é hoje menos omnipotente, assim a sua palavra não é hoje menos poderosa do que dantes era. Pois se a palavra de Deus é tão poderosa; se a palavra de Deus tem hoje tantos pregadores, porque não vemos hoje nenhum fruto da palavra de Deus? Esta, tão grande e tão importante dúvida, será a matéria do sermão.

Vê-se, nessa citação, o realce para o incremento na mensagem divina e a ineficácia de seu alcance, em face de haver tantos pregadores atuando; o que norteia o sermão apresentado, cujo foco tem ligação direta com o efeito pragmático da pregação. Nesse sentido, Bosi (1992) destaca que “só vale o pregador que prega [naquele momento], e não aquele que apenas traz o título” (p. 127), em reiteração à relevância circunstancial de o orador chamar para si a função verbal do ato de pregar.

Por meio do método de perguntas e respostas articuladas a partir da lógica, e com jogos de palavras e conceitos (profundos),Vieira expôs o tema de o porquê da palavra de Deus ter pouco alcance aos homens, procurando tecer analogias e comparações através das quais situou as possíveis falhas desse processo e suas consequências com bases em princípios clássicos da Igreja, reportando ao juízo final. Além disso, levou em consideração a diferença entre a pregação no Brasil e fora dele>:

Sabeis, Cristãos, a causa por que se faz hoje tão pouco fruto com tantas pregações? É porque as palavras dos pregadores são palavras, mas não são palavras de Deus […]. Aos que têm a seara em casa pagar-lhes-ão a semeadura; aos que vão buscar a seara tão longe, hão-lhes de medir a semeadura e hão-lhes de contar os passos. Ah Dia do Juízo! Ah pregadores! Os de cá, achar-vos-eis com mais paço; os de lá, com mais passos […].

Nas entrelinhas, evidenciam-se as circunstâncias hostis (político-econômicas) com as quais o pregador se deparou, e que se mostrariam passíveis de influenciar na missão a desempenhar e no ato de pregar, restando ao pregador a redenção por amor em face da missão cumprida; sob a ótica teológica. Tais reflexões foram dirigidas à eficácia da persuasão através da palavra, oferecendo respostas igualmente concatenadas, e sempre direcionadas ao eixo principal do texto: a pregação engendrada e ao mesmo tempo equiparada à parábola (bíblica) da semeadura.

Deve-se salientar que a aplicação do método pressupõe o conhecimento do que era e de como era usada a retórica. Além de um saber sobre o contexto teológico daquele momento e anteriores – de passagens bíblicas, por exemplo –, esse domínio possibilitou o acesso a elementos intrínsecos no próprio sermão, conferindo melhor entendimento dos princípios que prevaleciam no campo eclesiástico, e permitindo articulá-los à situação político-econômica por que passava Portugal diante da pressão internacional. Por ser hábil conhecedor da retórica e perspicaz na sua utilização, Vieira deixou a mensagem de que um dos requisitos fundamentais dessa técnica pedagógica era o desenvolvimento da memória, em essência, para informar que bons oradores são competentes na fala repetida e persuasiva.

Para Bosi, Vieira tinha consciência de que o domínio colonial era perene e, portanto, somente mantendo uma estrutura similar àquela dominante é que os jesuítas poderiam lograr algum êxito de permanência no país e, ao mesmo tempo, respaldar o poderio monárquico luso em face dos demais impérios. Em tal contexto, no século XVII, o padre estaria obrigado a defender a Companhia das Índias Ocidentais, diante da concorrência das Companhias das Índias Orientais, inglesa e holandesa, cujos pressupostos burgueses já se haviam imposto, e cujas bases se encontrariam nos valores políticos dominantes, contingenciados aos interesses econômicos mercantilistas. Em seu texto, Bosi deixou claro o paradoxo sobre o qual escreve Vieira acerca da pregação:

A mensagem cristã de base, pela qual todos os homens são chamados filhos do mesmo Deus, logo, irmãos, contraria, em tese, as pseudo-razões do particularismo colonial: este fabrica uma linguagem utilitária, fatalista, no limite racista, cujos argumentos interesseiros calcam o discurso do opressor. Ou seja, as razões orgânicas da conquista, que, com poucas variantes, se reproporia em escala ate a última fase do imperialismo colonial a partir dos fins do século XIX. (BOSI, 1992, p. 36).

Diante desse contexto, de múltiplos interesses e interessados em face da preservação do Reino, para Bosi (1992) o problema fundamental do Padre Vieira centrava-se na retórica e estaria voltado ao alcance de vários públicos, na medida em que pudesse “[…] compor um discurso persuasivo, isto é, suficientemente universal nos argumentos para mover particularmente a fidalguia e o clero a colaborar na reconstrução do Reino, até então escorada, sobretudo, pela burguesia e pelos cristãos-novos” (p.123).

Há a considerar que Vieira pertencia à Companhia de Jesus, cujos prepostos eram adeptos da intervenção e da ação, sob a base de raciocínio aristotélico. O que pressupõe não somente uma contemplação, mas, sobretudo, uma ação interventiva no seu contexto. Por isso, na medida em que o sermão se voltou à pregação, e à arte de pregar, parecia estar em defesa da Coroa Portuguesa e, por conseguinte, da permanência dos Jesuítas no nosso país. Vieira teve a noção da complexidade do mundo vivido e abordou os assuntos por diferentes pontos de vista, inclusive sob a perspectiva do reforço à ação como se vê na passagem a seguir, extraída do texto lido.

A maior [desgraça] é a que se tem experimentado na seara aonde eu fui, e para onde venho. Tudo o que aqui padeceu o trigo, padeceram láos semeadores. Se bem advertirdes, houve aqui trigo mirrado, trigo afogado, trigo comido e trigo pisado. […] Tudo isto padeceram ossemeadores evangélicos da missão do Maranhão. […] Para os semeadores, isto são glórias: mirrados sim, mas por amor de vós mirrados;afogados sim, mas por amor de vós afogados; comidos sim, mas por amor de vós comidos; pisados e perseguidos sim, mas por amor de vósperseguidos e pisados.

O padre sabia das dificuldades que os jesuítas enfrentavam em sua missão e almejou o encorajamento com seu texto. Ao mesmo tempo em que incentivou a pregação, ressaltou e admitiu o fato de haver problemas a enfrentar na missão a cumprir, os quais deveriam ser superados pelo amor a Deus e o serviço à Coroa, ou seja, com a permanência no território do Brasil-Colônia. Nesse processo, parecem imanentes os percalços pelos quais deveriam passar os “semeadores”, por isso o próprio exemplo da Missão do Maranhão, por Vieira vivenciada, serviu-lhe como referência para o relato dos fatos a constranger e, ao mesmo tempo, ir de encontro à pregação. Vieira tinha noção dos tipos de forças que agiam sobre os temas abordados, por exemplo, o poder político-econômico e o contexto religioso da época.

Em seus argumentos, Vieira chamou a atenção para as “ficções” emergidas dos sermões, que se voltariam mais a falácias do que à essência que estaria contida no próprio evangelho. Para ele, muitos são os semeadores a se apresentarem como pregadores, dos quais nem todos alcançariam legitimidade em sua pregação ao distorcerem a verdade e dar espaço à farsa, ilustrado em citação atribuída a São Paulo:

Virá tempo […] em que os homens não sofrerão a doutrina sã. Mas para seu apetite terão grande número de pregadores feitos a montão e sem escolha, os quais façam mais que adular-lhes as orelhas… São fingimento… Sem fundamento de verdade.

E alertou, ao final do seu sermão, que cabe tanto a pregadores como a ouvintes ter critérios em seus papéis: “para que os pregadores saibam como hão de pregar e os ouvintes a quem hão de ouvir”, recomendando, por derradeiro, que a percepção sensível esteja atenta à enganação.

Naquele período, havia um hiato entre a fase pré-moderna e o pré-capitalismo, engendrado pelo, então, momento mercantilista. Essa fase reportaria a “ordens de valor próprias” e à necessidade de bem articular princípios ético-religiosos e práticas imediatas da política. Do ponto de vista da “ficção”, Bosi lembrou que o sermão foi pregado às classes dominantes, assentando-se na pragmática e não na inércia; para ele, Vieira não recuaria diante das peculiaridades do momento, ao contrário, como ilustra na justificativa citada, fez a distinção entre fins, meios e seus usos com sua habilidade retórica: “[…] a bondade das obras está nos fins, não está nos instrumentos. As obras de Deus são todas boas; os instrumentos de que se serve podem ser bons e maus” (BOSI, 1992, p.123). Sabendo que o padre Vieira tenha estado ligado à literatura jesuítica por longo período no Brasil, praticando a literatura das missões voltada à conversão e à catequização, não se pode negar que sua oratória tinha por referencial um ideal de cunho religioso, uma vez praticante da retórica de base eclesiástica.  No entanto, os elementos religiosos de que tratou estavam sempre associados a questões cotidianas tal como a corrupção, apresentadas nas entrelinhas do seu texto. Sob a compreensão de que o contexto econômico, político e religioso daquele momento representava a relação metrópole-colônia em face do colonialismo, qualquer ameaça a esse propósito estaria na mira do poderio político dos “vencedores” dessa História.

Bosi, a despeito de recomendar um estudo que avalie o peso do mercantilismo sobre o discurso de Vieira, não deixou de reconhecer a grandeza desse pregador, ressaltando-lhe o mérito e a capacidade em lidar habilmente com uma situação melindrosa na qual se encontrava a Companhia de Jesus e seus pregadores à época histórica do século XVII, pressionados pelas forças político-religiosas e pelas forças do contexto econômico pré-capitalista (mercantil) que açodava a Coroa Portuguesa. Dentre suas considerações, deixou claro que se precipitavam as pressões das classes em ascensão – comerciantes e financistas – para inculcar (novos) valores ético-morais, os quais viriam, mais tarde, influenciar na conformação da cultura local e, consequentemente, na colonização do Brasil.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Verificou-se que o contexto econômico e político do século XVII foi um grande fator de pressão para que Vieira falasse – a exemplo de Jesus Cristo em sua época – na forma de parábolas, utilizando-se de vários recursos da retórica. Inclusive, evocando a parábola da semeadura, para discorrer sobre as dificuldades da pregação e de seu alcance em tempos difíceis, de perseguição político-religiosa. Isso envolveu uma série de mudanças dentre as quais a expansão da (nova) classe social que viria caracterizar o domínio burguês, e de deslocamento dos valores ético-morais, articulados na lógica de uma política de mercado, que nos séculos seguintes (XVIII-XIX) se consagraria na estrutura capitalista.

Se, naquele momento, a Coroa Portuguesa necessitava fortalecer seu domínio diante da expansão Imperialista e das ameaças que ela própria sofria, a Companhia das Índias Ocidentais seria uma “ficção” ideal com lastro na Companhia de Jesus, com vistas aos benefícios decorrentes das novas pregações e ao alcance político tanto almejado pela Coroa. O que é reconhecido por Bosi ao ressaltar a capacidade de Vieira em lidar habilmente com situação tão adversa à época, momento esse que envolvia questões de naturezas diversas e complexas no âmbito político, econômico, por derradeiro, religioso.

O domínio da retórica, na produção do “Sermão da Sexagésima”, certamente foi fundamental por dar conhecimento a aspectos e a elementos pedagógicos do próprio sermão. O contexto religioso no qual foi produzido, o domínio metodológico e a capacidade de aplicação de uma retórica de alto nível do padre Vieira – relacionando pregação e política – viabilizaram a exposição de suas ideias sobre a arte de pregar. A atuação do padre Vieira no século XVII teve sua parcela de contribuição, engendrando e articulando a pregação à prática cotidiana no contexto delicado pelo qual passava a Coroa Portuguesa no cenário internacional, e na tentativa de perpetuar a permanência dos Jesuítas, já ameaçada, no Brasil Colônia. Sua expertise merece elogio em face, principalmente, da compreensão alcançada dos aspectos político-religiosos sobre os quais se assentaram – sob o domínio metodológico da retórica – seus argumentos acerca da pregação.

REFERÊNCIAS

BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. 3. Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

VIEIRA, José Antonio. Sermão da Sexagésima. Disponível em: <http://www.dlnotes2.ufsc.br/document/read/181>. Acesso em: 15 abr. 2013.