Apontamentos sobre a recepção de Martín Fierro em três obras literárias brasileiras

Gabriela Aparecida Prior Ozelame

RESUMO: este artigo tem por objetivo o estudo da recepção da obra de José Hernández (1834-1886) no Brasil. Detemo-nos em identificar as leituras e as apropriações da obra poética Martín Fierro, de José Hernández, pelo sistema cultural brasileiro, particularmente em três obras literárias: o conto “O negro Bonifácio”, (1912) de Simões Lopes Neto (1865-1916), Antonio Chimango(1915), de Amaro Juvenal (1851-1916) e Martim Fera (1984), de Donaldo Schuler (1932). Estas citam direta e/ou indiretamente a obra do argentino. Com isso, pretendemos contribuir para o desenvolvimento do estudo da literatura argentina no Brasil.

PALAVRAS – CHAVE: Recepção. Sistema cultural. Literatura.

ABSTRACT: the objective of this article is the study of the acceptance of the work by José Hernández (1834-1886) in Brazil. It was focused the identification of readings and uses of the poetic work Martín Fierro, by José Hernández, in the Brazilian cultural system, particularly in three literary works: the tale “O negro Bonifácio”, (1912) by Simão Lopes Neto (1865-1916), “Antonio Chimango” (1915), by Amaro Juvenal (1851-1916) and “Martim Fera” (1984), by Donaldo Schuler (1932). They have direct and/or indirect citations of the argentinian’s work. With this, it is intended a contribute to the development of the study of Argentine literature in Brazil.

KEYWORDS: Reception. Cultural system. Literature.

 

1 Introdução

A aproximação cultural entre Brasil e Argentina é uma necessidade antiga que, por questões históricas e políticas, foi constantemente adiada. Disputas pontuais, e, também, pelo posto da liderança geopolítica da região, fizeram com que os dois países, mesmo com muitos traços culturais e históricos comuns, se distanciassem ao longo dos anos. O final do século XX marcou uma mudança na agenda do Brasil, da Argentina e dos respectivos vizinhos.

O Tratado de Assunção, de 26 de março de 1991, que lança as bases do MERCOSUL[i], foi um passo na direção contrária ao isolamento político e de disputas na região. Desde o acordo de fundação do mercado comum, iniciativas de diversas ordens têm proporcionado uma aproximação entre os países membros. Mesmo assim, ainda temos muito a fazer para garantir a efetiva integração entre os povos do Cone Sul.

“A fronteira é um espaço de separação, um marco de isolamento, mas também pode ser um lugar de encontros.” (LEENHARDT, 2002). Jaques Leenhardt lembrou-nos como a fronteira possui o duplo. Separa, mas também propicia a oportunidade de trocas e de apropriações culturais.

Este contato e esta separação são possíveis de identificação em diferentes campos. No campo literário, estas duas forças podem ser medidas pelo grande número de produções literárias que compartilham semelhanças e pelo número reduzido de estudos sobre as leituras e apropriações da obra de José Hernández no Brasil.

Estas semelhanças entre as produções literárias podem ser encontradas em diversas fases das literaturas argentina e brasileira. Parte desta similitude deriva da matriz europeia que as duas literaturas são tributárias. Outras partes provêm da adaptação ao meio. Parte do espaço argentino é muito semelhante ao da região Sul do Brasil. Também, a adaptação do homem europeu, e mesmo dos autóctones, a esta região foi muito parecida. Com isto, produziu-se um caldo de cultura comum em muitos aspectos, que abarca vestimenta, moradia, alimentação e técnicas produtivas.

Ainda como fator de união está a colonização ibérica, particular em cada espaço, mas que guarda grandes semelhanças no seu processo de desenvolvimento. Tanto nos primeiros momentos, na pré-independência, quanto ao final do século XIX e início do século XX, quando recebemos grandes levas de imigrantes europeus. Ademais, todos os países do Cone Sul e o Brasil- com destaque para a região Sul- guardam semelhanças demográficas.

Outro exemplo destes traços de união é a figura do gaucho e/ou gaúcho, figura que emerge como símbolo e desbravador destes pampas argentinos e/ou brasileiros. As obras de José Hernández, El gaucho Martín Fierro e La vuelta de Martín Fierro são fundamentais para a compreensão do imaginário regional e das representações construídas deste gaucho/gaúcho. Há uma clara citação ao universo deMartín Fierro no movimento gauchesco e regionalista do Brasil.

Esta pesquisa desenvolveu-se a partir da recepção do Martín Fierro, de José Hernández, no Brasil. Para o desenvolvimento da análise, foram utilizadas três obras produzidas por alguns autores do sistema literário brasileiro: o conto “O Negro Bonifácio” (1912), de João Simões Lopes Neto; Antonio Chimango (1915), de Amaro Juvenal e Martim Fera (1984), de Donaldo Schuler. As obras aqui estudadas reproduzem aqueles elementos e são importantes referencias do subsistema[ii] literário da região sul do Brasil.

2 Aspectos Iniciais

Pierre Bourdieu formula ao longo de sua vasta obra a ideia de campo literário. Em termos analíticos, um campo pode definir-se como uma rede ou configuração de relações objetivas entre posições e os diferentes campos que compõem o mundo social são um produto do processo de diferenciação na divisão do trabalho social que conduz à existência de campos autônomos. Como, por exemplo, o campo literário, o jurídico, o político, o empresarial, o acadêmico, etc. (TOVILLA, 2010).

A noção de campo literário nos ajuda a delimitar e contextualizar nosso objeto de pesquisa quando nos auxilia a indicar a existência de um campo literário do Cone Sul. O funcionamento deste campo é regulado pelas relações entre seus agentes e agências.

Ao conceito de campo, acrescentamos as ideias de Antonio Candido e Itamar Even-Zohar. Antonio Candido propõe com a sua obra Formação da Literatura Brasileira (1959) a noção de sistema literário. Segundo Candido, o que chamamos literatura nacional é um sistema articulado de relações entre produtores e receptores através de produtos – obras literárias – que circulam em determinado espaço e tempo.

O israelense Even-Zohar apresenta uma proposta de nova dinâmica para os estudos literários. Trata-se da tentativa de abordagem das produções literárias sob uma perspectiva espacial e geográfica que atuam na construção de um conjunto de bens e ferramentas culturais[iii]. Este fenômeno é assim apresentado por Itamar Even-Zohar:

Por supuesto, para poder trabajar en un marco parecido, se trata ante de todo de liberarse de la concepción de “la literatura” como sólo una colección de textos, sobre todo los “legitimizados”. Si se acepta la idea de que podría servirnos mejor el tratamiento de “la literatura” como una red, un complejo de actividades, la distinción entre “bienes” y “herramientas” en esta red sería un paso adelante para liberar el análisis de la “literatura” del aislamiento que ha resultado de tratarla como un fenómeno  sui generis. (EVEN-ZOHAR, 1990, p.29).

Os textos não só proporcionam explicações, justificativas ou motivos, mas esquemas de ações, ou seja, o receptor (leitor) recebe dos textos concepções e imagens que constroem e indicam significados para o que chamamos realidade. Deste modo, extraímos de nossas leituras e do conjunto de comportamentos culturais que compartilhamos os modos do nosso comportamento cotidiano. Este repertório cultural compartilhado é produto e produtor das referências culturais que construímos – bens e ferramentas – e conservamos para o futuro.

Segundo Even-Zohar, esses bens e ferramentas se organizam em sistemas e “polissistemas”. Organizados segundo as relações entre seus produtos e produtores:

La red de relaciones hipótetizadas entre una cierta cantidad de actividades llamadas “literarias”, y consiguientemente esas actividades mismas observadas a través de esta red o el complejo de actividades – o cualquier parte de él- para el que puedan  proponerse teóricamente relaciones sistémicas que apoyen la opción de considerarlas “literarias”. (EVEN-ZOHAR, 1990, p.25).

Itamar Even-Zohar divide os sistemas como estáticos e dinâmicos. Nos sistemas estáticos, concebe-se como uma rede estática de relações, isolado e sincrônico. Já os dinâmicos são os mais indicados para designar um sistema semiótico, como o literário. Os sistemas dinâmicos são sistemas de vários sistemas, com interconexões e sobreposições mútuas, formando o que podemos denominar de polissistemas.

Assim, teríamos um polissistema cultural do Cone Sul, composto pelas interconexões e sobreposições entre os sistemas culturais argentino, brasileiro, uruguaio, paraguaio e chileno.

Outra matriz teórica importante desta investigação foi a Teoria da Recepção, de Hans Robert Hauss, que ganhou força e surgiu das considerações teóricas realizadas pelo autor, em aula inaugural, em 1967, na Universidade de Constança. Na palestra, com o títuloO que é e com que fim se estuda a história da literatura? Jauss faz uma crítica à maneira pela qual a teoria literária vem abordando a história da literatura, considerando os métodos de ensino, até então, tradicionais e propondo reflexões e crítica dos mesmos. A conferência de Jauss é publicada, em 1969, com o título de A história da literatura como provocação à teoria literária.

A crítica de Jauss à história da literatura baseia-se no fato de que, em sua forma habitual, a teoria literária ordena as obras de acordo com tendências gerais; ora abordando as obras individualmente e em sequência cronológica, ora “seguindo” a cronologia dos grandes autores e apreciando-os conforme o esquema de “vida e obra”.  Jauss argumenta que a história da literatura, ao seguir um cânone ou descrever a vida e obras de alguns autores em sequência cronológica, deixa de contemplar a historicidade das obras, desconsiderando, portanto, o lado estético da criação literária.

Para fundamentar e reescrever a história da literatura, Jauss apresenta os fundamentos de sua teoria sobre a recepção a partir de sete teses.

A primeira desenvolve-se a partir da historicidade da literatura, à qual o autor demonstra que a mesma esta totalmente vinculada dinamicamente ao leitor e que antes de qualquer coisa o historiador da literatura deve-se ater e fazer-se no papel de leitor, desenvolvendo um caráter literário ligado a reflexão do conhecimento.

“O saber filológico permanece sempre vinculado à interpretação, e esta precisa ter por meta, paralelamente ao conhecimento de seu objeto, refletir e descrever a consumação desse conhecimento como momento de uma nova compreensão” (JAUSS, 1994). A historicidade, portanto, coincide com a atualização da obra literária, atualização esta sempre realizada pelo público leitor.

A obra literária não é um objeto que exista por si só, oferecendo a cada observador em cada época um mesmo aspecto. Não se trata de um monumento a revelar monologicamente seu ser atemporal. Ela é, antes, como uma partitura voltada para a ressonância sempre renovada da leitura, libertando o texto da matéria das palavras e conferindo-lhe existência atual. (JAUSS, 1994, p. 22).

Na segunda tese, Jauss afirma que o saber prévio de um público, ou o seu horizonte de expectativas, determina a recepção, e a disposição desse público está acima da compreensão subjetiva do leitor. O aspecto aqui apresentado é o conhecimento prévio do leitor, construído com base nas experiências do ledor, despertando lembranças e desenvolvendo nele uma “postura emocional”, tornando assim, a recepção um fato histórico e social.

Ademais, a obra que surge não se apresenta como novidade absoluta num espaço vazio, mas, por intermédio de avisos, sinais visíveis e invisíveis, traços familiares ou indicações implícitas, predispõe seu público para recebê-la de uma maneira bastante definida (JAUSS, 1994, p. 25).

A terceira tese demanda que o texto pode satisfazer o horizonte das expectativas do leitor ou causar estranhamento e romper com este horizonte.  “A maneira pela qual uma obra literária, no momento histórico de sua aparição, atende, supera, decepciona ou contraria as expectativas de seu público inicial oferece-nos claramente um critério para a determinação de seu valor estético” (JAUSS, 1994).

Por esse fator, o autor entende que serão grandes obras aquelas que conseguirem provocar seu público leitor e, acima de tudo, desenvolver sua leitura em qualquer tempo e fator histórico e que a cada passo aumente novas leituras.

Na quarta tese, Jauss examina as relações atuais do texto com a época em que foi escrito, averiguando como e qual era o horizonte de expectativas atingido pelo leitor e quais as necessidades apreendidas por esse público. Desse modo, a história da literatura recupera a historicidade da literatura e possibilita distintas interpretações da recepção do passado e da atualização do presente.

O literário na literatura não é determinado apenas sincronicamente – pela oposição entre as linguagens poética e prática -, mas o é também diacronicamente, por sua oposição àquilo que lhe é predeterminado pelo gênero e á forma que o precede na série literário. (JAUSS, 1994, p.17).

Nas três últimas teses, Jauss desenvolve um processo metodológico ao qual prevê o estudo da obra literária, abrangendo os temas do sentido diacrônico, sincrônico e sobre a relação entre literatura e vida.

Na quinta tese, Jauss aborda o aspecto diacrônico, o qual diz respeito à recepção da obra literária ao longo do tempo, sendo analisado não somente no momento da leitura, mas também com base em leituras feitas anteriormente, em diferentes períodos.

O aspecto sincrônico é abordado na sexta tese e é entendido por Jauss como um fator importante para a compreensão de um aspecto específico da historiografia da literatura, pois, ao se comparar obras de um mesmo período histórico, demonstra-se a “evolução literária” que prioriza um gênero em relação a outros contemporâneos.

A descrição da evolução literária como uma luta incessante do novo contra o velho, ou como alternância entre canonização e automatização das formas, reduz o caráter histórico da literatura à atualidade unidimensional de suas mudanças e limita a compreensão histórica à percepção destas últimas. Contudo, as mudanças da série literária somente perfazem uma seqüência histórica quando a oposição entre a forma velha e a nova dá a conhecer também a especificidade de sua mediação. (JAUSS, 1994, p. 42).

A relação entre literatura e vida, exposta pelo autor na sétima tese, pressupõe uma função social para a criação literária, abrindo assim novos caminhos para o leitor no campo da experiência estética, sendo essa provocada por aspectos diferenciados da vida cotidiana do leitor, pois, “a função social somente se manifesta na plenitude de suas possibilidades quando a experiência literária do leitor adentra o horizonte de expectativa de sua vida prática”. (JAUSS, 1994, p. 49).

Portanto, nossa aproximação ao estudo da recepção da obra poética de José Hernández considerou os conceitos de campo, sistema, polissistema e recepção literária.

3 Martín Fierro

Em 1872, José Hernández apresenta à sociedade argentina o poema El gaúcho Martín Fierro (1872), que desde o primeiro momento foi saudado e aclamado, conquista um grande número de leitores e admiradores. Porém, foi somente com a série de palestras proferidas por Leopoldo Lugones (1874-1938) em 1913 no Teatro Odeón em Buenos Aires, com o título El payador de Leopoldo Lugones (1874), que a obra hernandiana, no decorrer dos anos, transforma-se em um marco de referência da literatura argentina. Em 1879, Hernández continua o seu empreendimento poético com a publicação do poema La vuelta de Martín Fierro (1879).

José Hernández, assumiu as qualidades e o próprio nome da sua criatura. Foi por muito tempo conhecido pelo nome de Martín Fierro. Nasceu em Buenos Aires, em 10 de novembro de 1834. Desde pequeno, sempre teve ligação com a literatura e, em particular, com a poesia. Contudo, com seus dotes de observação, tornou-se estudante de direito, carreira na qual recebeu amplo reconhecimento nos anos posteriores. Um de seus biógrafos, Rafael Hernández, comenta: “Veinte años después, esas observaciones ampliadas con sus lecturas, fueron el caudal de conocimientos en materia de derecho constitucional que manifestó en el periodismo y en la Legislatura de Buenos Aires, en varios períodos de representación” (HERNÁNDEZ, 2001).

As repercussões das publicações de El gaúcho Martín Fierro e de La vuelta de Martín Fierro, logo ultrapassaram as fronteiras argentinas e produziram diversos estudos críticos. Entre estes, destacamos as palavras de Miguel Unamuno (1864 – 1936), uma das principais figuras do campo literário hispano-americano do final do século XIX. A citação é longa, pois Unamuno faz comparações extremamente interessantes:

He de confesar que los desmesurados encomios que dirigen a la obra los apologistas que a su cabeza la recomiendan, más bien me predispusieron en contra que en favor de ella. Escritor argentino dijo que si Italia tiene su Divina Comedia, España su Quijote y Alemania el Fausto, la República Argentina tiene su Martín Fierro; otro llegó a asegurar que las máximas de este poema son tan magníficas como las del Evangelio y que el poema argentino suple a la Biblia, a la novela, a la Constitución y a los volúmenes de ciencia; le han llamado proclama revolucionaria, catecismo, curso de moral administrativa para uso de los comandantes militares y comisarios pagadores, y a su autor, Hernández, Prometeo de la campaña, comparándole con Buda y con Leopardi, a los que se parece lo menos que pueden parecerse dos hombres. A ver si después de tan graciosos disparates quien se forme idea buena de Martín Fierro. (UNAMUNO, 2001, p.840).

O que parece exagero por parte de Unamuno nada mais é que a reprodução de falas correntes no primeiro período de circulação das obras de Hernández. As comparações sempre se colocaram ao nível das grandes obras e dos grandes autores.

A matéria prima do Martin Fierro é a vida do gaucho. Tanto na ida como na volta[iv], o gaucho∕gaúcho toma a palavra e canta∕conta a sua vida, em primeira pessoa, apelando por justiça e liberdade para todos.

Martín Fierro é um texto emblemático e também uma obra incômoda na cultura argentina. É a história de um gaúcho pobre e que é obrigado à marginalidade, capaz de se embebedar e sair lutando com a faca nas mãos, porém é decidido e um valente defensor do seu modo de vida e que, ao final dos cantos com “los consejos”, postula uma ética individual e social.

Un padre que da consejos
Más que padre es un amigo;
Ansí como tal les digo
Que vivan con precaución:
Naides sabe en que rincón
Se oculta el que es su enemigo.

Yo nunca tuve otra escuela
Que una vida desgraciada:
No estrañen si en la jugada
Alguna vez me equivoco,
Pues debe saber muy poco
Aquel que no aprendió nada.

Hay hombres que de su cencia
Tienen la cabeza llena;
Hay sabios de todas menas,
Mas digo, sin ser muy ducho:
Es mejor que aprender mucho
El aprender cosas güenas.
(HERNÁNDEZ, 2007, p. 126).

As estrofes apresentam as características essenciais da vida nos pampas e como ocorreram os processos de ocupação destes espaços. As adversidades que ali encontradas produziram sentimentos de heroísmo e independência, forjando um novo modo de vida – e de cultura – adaptado às condições que ali são encontradas.

Soy gaucho, y entiendanló
Como mi lengua lo esplica:
Para mí la tierra es chica
Y pudiera ser mayor;
Ni la víbora me pica
Ni quema mi frente el sol.

Nací como nace el peje
En el fondo de la mar;
Naides me puede quitar
Aquello que Dios me dio:
Lo que al mundo truye yo
Del mundo lo he de llevar.

Mi gloria es vivir tan libre
Como el pájaro del cielo;
No hago nido en este suelo
Ande hay tanto que sufrir,
Y naides me ha de seguir
Cuando yo remuento el vuelo.
(HERNÁNDEZ, 2007, p.13)

Era em meio às “pulperías” e acampamentos que o gaúcho herói era cantado em versos e se construía a argentinidade. O texto é considerado fundador por Carlos Astrada:

A los argentinos, Martín Fierro no deja, como precioso legado, toda una concepción de la vida y asimismo una concepción política de la estructura y lineamientos esenciales de nuestra comunidad nacional. Claramente nos advierte acerca de la intención y alcance de su canto, en el que cobra voz y sentido el mito de los argentinos, lo germinal y vernáculo de nuestra existencia histórica. (ASTRADA, 2007, p.25).

José Hernández, nos cantos de Martín Fierro, para interpretar simbolicamente o mito dos argentinos, o herói do povo, recorre a sua mais intensa essência poética. Continua a argumentação de Astrada:

Nuestro hombre, en esta lucha, tiene que interpretar el mito en que enraíza y del cual se nutre su propia existencia, liberando su fuerza latente, sus impulsos dormidos; vale decir que ha de afrontar la tarea reclamada por el destino que le incube forjar. En vez de abandonarse a la fuerza y poderío de las cosas, en el vórtice de la violencia arrebatada de los elementos que encuentran libre espacio en la pampa, debe centrarse en el conato de plasmación, interpretación y estructuración de su mito vital, fuente de toda creación perdurable. (ASTRADA, 2007, p.32).

É por toda esta magnitude que Martín Fierro aflora como a voz do mito argentino e como um herói nacional.

4 Obras Analisadas

Identificaremos as leituras e as apropriações da obra poética Martín Fierro, de José Hernández, pelo sistema cultural brasileiro, particularmente em três obras literárias: o conto “O negro Bonifácio”, (1912) de Simões Lopes Neto (1865-1916), Antonio Chimango(1915), de Amaro Juvenal (1851-1916) e Martim Fera (1984), de Donaldo Schuler (1932). Dividimos a análise das obras em ordem cronológica e procuramos apresentar pontualmente, em cada uma, as apropriações e representações da obra argentina.

4.1 “O negro Bonifácio”João Simões Lopes Neto

O conto “O negro Bonifácio” encontra-se no livro Contos gauchescos e lendas do sul (1912) de João Simões Lopes Neto (1865 – 1916). As histórias do livro são narradas por Blau Nunes, que sintetiza as virtudes identitárias do homem gaúcho tradicional e no prefácio do livro é apresentado: “Patrício, apresento-lhe Blau, o vaqueano[v].” (NETO, 2011, p.9).  O narrador assume a herança cultural recebida por suas gerações anteriores e se compromete em vivê-las, como algo profundamente próprio da vida pampiana.

A narrativa, Negro Bonifácio é o ápice do livro, principalmente por registrar também a presença dos negros como constituintes de uma tradição gaúcha. O personagem principal –Negro Bonifácio- é apresentado como um típico e independente campeiro, carregado pelo tradicionalismo gauchesco. Sendo negro, caracteriza-se como um contrabandeado do passado heroico do Rio Grande.

No inicio do conto apresenta-se os personagens principais, o Negro Bonifácio e a Tudinha. “Se o negro era maleva? Cruz! Era um condenado!… mas, taura, isso era, também!” (NETO, 2011, p.25).

alta e delgada, parecia assim um jerivá ainda novinho, quando balança a copa verde de leve por um vento pouco, da tarde. Tinha os pés pequenos e as mãos mui bem torneadas; cabelo cacheado, as sobrancelhas fi­nas, nariz alinhado.
Mas o rebenquedor, o rebenqueador … eram os olhos!…
Os olhos da Tudinha eram assim modo olhos de veado-virá assustado; pretos, grandes, com luz dentro, tími­dos e ao mesmo tempo haraganos… pareciam olhos que estavam sempre ouvindo…ouvindo mais, que vendo… (NETO, 2011; p.25-26)

O ambiente onde se desenvolve a história é a “carreira”, lugar de sociabilidade.  Em Martín Fierro também há presença do negro e do “pericón[vi]” lugar semelhante à “carreira”, citada por Simões Lopes Neto. “Pois para a carreira essa, tinha acudido um povaréu imenso.” (NETO, 2011, p.26).

Em Martín Fierro:

Riunidos al pericón
Tantos amigos hallé,
Que alegre de verme entre ellos
Esa noche me apedé. (HERNÁNDEZ, 2007; p.30)

O ponto chave é o negro. O negro de Martín Fierro dialoga com o negro do autor brasileiro. As duas obras servem de índice para a presença e posição social do negro, nas sociedades argentina e brasileira. A primeira forma como acontece o diálogo entre as duas obras, sendo o aspecto social que estes personagens desenvolvem nos dois produtos. Em Martín Fierro o desprezo pela raça negra fica evidente e pessoalmente o protagonista demonstra o seu repudio:

A los blancos hizo Dios,
a los mulatos san Pedro;
a los negros hizo el diablo
para tizón del inferno (HERNÁNDEZ, 2007; p. 30).

Em Simões Lopes Neto encontra-se outro aspecto social notório, como que se ao contrário do autor argentino, o brasileiro revelasse outra identidade – menos racista -, o caracterizando como um símbolo do universo campeiro. Porém, há o contraponto, sendo que o negro apresenta-se e desenvolve um papel que “se encaixa na perspectiva do negro mau, cuja convivência é um dano. Bonifácio é descrito como um negro forte, porém, feio, que gosta de farrear, jogar e beber. Ou seja, é um negro cheio de vícios, que não abre mão do truco e da cachaça”. (BAYER; GIROLA, 2009; p.11).

Lembramos que Martín Fierro é considerado por alguns um “gaucho malo” dentro da história, principalmente depois da morte do negro por pura maldade – no canto VII de “La ida” – mostrando o lado sombrio de sua heroicidade, da mesma forma com que o negro Bonifácio apresenta-se no decorrer do conto, onde mata dezenove adversários em um só confronto. A principal passagem em que fica evidente o aspecto de maldade de Bonifácio é quando o negro decepa os dedos do violeiro sem motivo aparente.

Vejamos os dois trechos em que estas duas passagens ocorrem nas duas obras. O primeiro se referindo a Martín Fierro e o segundo ao Negro Bonifácio:

“Me hirvió la sangre en las venas
Y me la afirmé al moreno
Dándole de punta y hacha
Pa dejar un diablo menos.

Por fin en una topada
En el cuchillo lo alcé
Y como un saco de güesos
Contra un cerco lo largué” (HERNÁNDEZ, 2007; p.31).

Perto do negro Bonifácio, sentado sobre um barril, sem ter nada a ver no angu, estava um paisano tacando viola: o negro – pra fazer boca, o malvado! – largou-lhe um revés, tão bem puxado, que atorou os dedos do coitado e o encordoamento e afundou o tampo do estrumento!… (NETO, 2011, p.29).

Além dos aspectos sociais, o ambiente e os personagens, outro ponto fundamental em que os dois textos interligam-se, é quandoNegro Bonifácio apresenta o facão[vii], que era o mesmo utilizado por Martín Fierro e enterra-se até o esse, nas duas obras.

Foi então que um gaúcho gadelhudo, mui alto, canhoto, desprendeu da cintura as boledeiras e fê-las roncar por cima da cabeça… e quando ia a soltá-las zunindo, com força pra rebentar as coste­las dum boi manso, e que o negro estava cocando o tiro, de facão pronto pra cortar as sogas… nesse mesmo momento e instante a velha Fermina entrou na roda, e ligeira como um gato, varejou no Bonifá­cio uma chocolateira de água fervendo, que trazia na mão, do chimarrão que estava chupando.O negro urrou como um touro na capa…, a rumo no mais avançou o braço, e fincou e suspendeu , le­vantou a velha, estorcendo-se, atravessada no facão até o esse…; ao mesmo tempo, mandado por pulso de homem um bolaço cantou-lhe na cabeça e logo outro, no costilhar, e o negro caiu, como boi desnu­cado, de boca aberta, a língua pontuda, mexendo em tremura uma perna, onde a roseta da chilena tinia, miúdo… (NETO, 2011; p. 30-31).

Yo tenia um facón con S,
Que era de lima de acero;
Le hice um tiro, lo quito

Y vino ciego el moreno;
Y en el medio de las aspas
Un planazo le asenté,
Que lo largué culebriando
Lo mesmo que buscapié.

Le coloriaron las motas
Con la sangre de la herida,
Y volvió a venir jurioso
Como una tigra parida.

Y ya me hizo relumbrar
Por los ojos el cuchillo,
Alcanzando con la punta
A cortarme en un carrillo. (HERNÁNDEZ, 2007; p.31)

Como vimos e demonstramos, o conto “O negro Bonifácio” de Simões Lopes Neto é a replicação de um episodio da obra de José Hernández. As passagens retratadas na obra brasileira revelam tantas semelhanças com Martín Fierro que podemos considerar o conto uma homenagem de Simões Lopes Neto a José Hernández.

4.2 Antonio Chimango – Amaro Juvenal

A segunda destas produções que diretamente faz referência à obra de Hernández é do início do séc. XX, 1915, e foi apresentada como um poemeto campestre intitulado Antonio Chimango (1915), assinado por Amaro Juvenal, que, na verdade, é o pseudônimo de Ramiro Barcellos (1851-1916).  O desenrolar da história, é um ataque direto ao então governador do Rio Grande do Sul, Borges de Medeiros[viii]. No que tange a história política do Rio Grande do Sul, o termo Chimango[ix] marcou o grupo governista e legalista da revolução de 1923[x], em oposição aos maragatos.

O poema é estruturado em sextilhas, como El gaúcho Martín Fierro sendo assim formados por 213 estrofes, totalizando 1278 versos, distribuídos em cinco rondas, verdadeiros cantos. Comparando-se aos clássicos da gauchesca é curto. Martin Fierro, de José Hernández contempla mais de 7.200 versos.

A estrutura do poema é simples. Já no início, como introdução, coloca os versos com o seguinte título: “Ao Rio Grande – OFERTA” mostrando que seu querer era mesmo fazer guerra contra os mandões de forma insaciável.

Velho gaúcho – Insaciável
De fazer aos mandões guerra,
Nestas páginas encerra
Por um pendor invencível –
Seu amor – Incorrigível
Às tradições desta terra. (JUVENAL, 1982; p.7)

Ramiro Barcellos não é um poeta popular. A exemplo dos clássicos da gauchesca é um poeta culto. José Hernández, no Martin Fierro, pede aos santos do céu que ajudem o seu pensamento, em Antonio Chimango, Tio Lautério, mulato que não toca viola, mas um “bandônio”[xi], socorre-se da “botija”, agarrando-se à proteção de “um trago de cachaça”:

Para contar a vida
Saco da mala o bandônio,
A vida de um tal Antônio
Chimango – por sobrenome,
Magro como lobisome,
Mesquinho como o demônio. (JUVENAL, 1915; p.12).

A primeira evidência do produto argentino em Antonio Chimango é a forma com que o poemeto campestre é apresentado, em sextilha, bem como a obra de Hernández. O poema de Ramiro Barcellos desenvolve-se em um ambiente muito parecido com o de Martín Fierro, entre gaúchos e gauchos, símbolos da comunidade cultural do pampa.

Todavia, a principal comprovação da presença de Martín Fierro em Antonio Chimango é o episódio em que se refere aos conselhos e o tom cínico com que estes se dão, de Tio Lautério, na quarta ronda com os conselhos de Vizcacha em La vuelta de Martín Fierro.

Sobre esta questão Rita Canter afirma:

Não acreditamos que seja mera coincidência essa que ocorre mesmo motivada por temas limitados. Concordamos em que, quanto ao sentido original, não há termo de comparação. Mas, se o tom cínico dos conselhos já coincide, é porque algo aproximado existe. (CANTER Apud CHIAPPINI, 2001; p. 726).

Para dar início aos conselhos em Antonio Chimango, Amaro Juvenal indica:

O retovo[xii] são conselhos
E normas de proceder
Que tu precisas saber
E conhecer bem a fundo
Todos vivem neste mundo
Mas poucos sabem viver. (JUVENAL, 1982; p.46)

Em Antonio Chimango, o objetivo dos conselhos é ensinar ao rapaz – Chimango – “as manhas de governar” e a cargo disto fica Aureliano, velho amigo da família.

Então chamou o Aureliano
Partido velho muito antigo,
Que conservava consigo
Assim como secretário,
Espécie de relicário
De família, muito amigo.

Tu que és um conhecedor
De como tudo se faz,
Ensina-me a este rapaz
As manhas de governar,
Que ele vai desempenhar
O cargo de capataz. (JUVENAL, 1982; p.47).

Os conselhos apontados na obra fazem alusão à forma clientelista de fazer política entendendo o ato político não somente por sua definição plena – ciência do governo-, mas sim, recorrendo também a seu significado social, – a arte de se relacionar.

Foram selecionados alguns dos conselhos com mais cinismo, assim como os de Hernández:

Para pegar um pescoceiro
Que há sempre algum na tropilha,
Desses que pouco se encilha,
Não precisas ter cansaço;
Que os bobos puxem o laço,
Fica-te tu na presilha.

Quando um erro cometeres
(o que bem pode se dar)
Não deves ignorar
Como se sai da rascada:
A culpa é da peonada;
O patrão não pode errar.

A regra é – cabresto curto –
Pra ter tudo nos seus eixos;
Sofrenaço pelos queixos,
De vez em quando, convém…
Mesmo aos que procedem bem,
Queixa-te dos seus desleixos.

Predominar sobre todos,
E mandar como um arrojo;
Da adulação não ter nojo,
E tirar dela partido.
Fica disto convencido:
Quem ordenha bebe o apojo[xiii].

Não percas isto de vista:
C’os cotubas ter paciência,
C’os fracos muita insolência,
Com milicos muito jeito;
Não ter amigos – do peito;
Nisto está toda a ciência. (JUVENAL, 1982; p. 49 – 51).

Na obra de José Hernandez os conselhos aparecem no canto XV, de “La vuelta de Martín Fierro”. Os conselhos são narrados pelo “Hijo segundo de Martín Fierro” que apresenta sua vida a partir da separação entre pais e filhos. Ele conta como foi sua criação e por quem foi criado.

Me llevo consigo un viejo
Que pronto mostró la hilacha,
Dejaba ver por la facha
Que era medio cimarrón[xiv],
Muy renegao, muy ladrón,
Y le llamaban Vizcacha.

Viejo lleno de camándulas,
Con un empaque a lo toro,
Andaba siempre en un moro
Metido no sé  en qué enriedos,
Con las patas con loro
De estribar entre los dedos.

Andaba rodiao de perros
Que eran todo su placer,
Jamás dejó de tener
Menos de media docena,
Mataba vacas ajenas
Para darles de comer. (HERNÁNDEZ, 2007, p.86).

São vinte e um conselhos que ensinam como tirar proveitos de algumas situações. Aqui foram selecionados somente alguns com maior ênfase ao jeito cínico da escrita. Os conselhos iniciam-se da seguinte forma:

El primer cuidao del hombre
Es defender el pellejo.
Lleváte de mi consejo,
Fijáte bien en lo que hablo:
El diablo sabe por diablo,
Pero más sabe por viejo.

Hecéte amigo del juez;
No le des de qué quejarse;
Y cuando quiera enojarse
vos te debés encoger,
pues siempre es gueno tener
pelenque ande ir a rascarse.

No andés cambiando de  cueva;
Hace las que hace el ratón.
Conserváte en el rincón
En que empezó tu esistencia:
Vaca que cambia querencia
Se atrasa en la parición.

No te debes afligir
Aunque el mundo se desplome.
Lo que más precisa el hombre
Tener, según yo discurro,
Es la memoria del burro,
Que nunca olvida ande come.

A naides tengás envidia:
Es muy triste el envidiar;
Cuabdo veás a otro ganar,
A estorbarlo no te metas:
Cada lechón en su teta
Es el modo de mamar. (HERNÁNDEZ, 2007; p. 88-90).

Antonio Chimango, de Amaro Juvenal, pode ser entendido como uma replicação de outro episódio da obra de José Hernández. A passagem que faz menção a obra argentina, refere-se indiretamente aos conselhos do velho Vizcacha que são apontados no canto XV deMartín Fierro. Nas duas obras, os conselhos interligam-se pelo cinismo e coligados por dois personagens importantes no desenrolar das histórias, tanto na obra argentina como na brasileira.

4.3 Martim Fera – Donaldo Schuler

A outra referência poética direta à obra de José Hernandéz é Martim Fera, de Donaldo Schüler, publicado em 1984. Além da clara citação do nome, a referência também aparece no desenvolvimento da narrativa, quando um esforçado e honesto gaúcho tenta produzir e conseguir a posse de sua terra. Impossibilitado pelo poder vigente, é obrigado a se marginalizar e encontrar seus próprios meios de justiça e sobrevivência. A criação de Schuler, ademais de inspiração na produção de Hernández, acrescenta um elemento novo, a poesia de cordel, de origem Ibérica, praticada no Nordeste do Brasil.

Em uma entrevista concedida em junho de 2010 à revista SIBILAPoesia e Crítica Literária, Donaldo Schuler é indagado sobre a universalidade de Martim Fera: “Por falar na Argentina, Leopoldo Lugones classifica Martín Fierro como “o livro nacional dos argentinos”. Como você classifica o seu poema “Martim Fera”, que me parece mais “um herói universal?” (SIBILA, 2010).

E a resposta de Schuler apresenta a familiaridade entre as duas obras:

Martim Fera” é mesmo um herói universal. Não quis identificá-lo com a cultura gaúcha, apenas. O meu projeto literário é universal, mesmo tendo plena consciência de estar à margem. Não há como fugir disso. Estamos à margem, e isso não significa ser maior ou menor de quem está no centro. O centro também tem suas margens que se desdobram em outras margens. Martín Fierro é um livro de resistência. Martim Fera também. (SIBILA, 2010).

O poema divide-se em dez partes. A primeira apresenta o cantador, no seu próprio canto. Na segunda, sua viagem, “partida, exílio, errância e fome de gaúcho livre”. Na terceira, seu namoro com Zeferina. Na quarta, casamento. Na quinta, fazenda. Na sexta, “a catástrofe amplia-se as feridas dos pobres da América”. Na sétima, o luto, a morte de Zeferina. Depois, segue com a vingança, despedida, balanço e fim.

A parte da vingança é a mais significativa e vem à tona a presença mais forte da obra hernandiana. Conforme Chiappini:

Martim Fera foge para as trilhas do cangaço, e o parentesco da gauchesca com o cordel se explicita. Martim Fera cai no mundo e aponta a expansão da violência contra o pobre e da injustiça social ao nível de todo o globo. Lutador contra a injustiça, ele agora luta não apenas no pago mas no mundo. Globalização pelo lado de baixo. Faz parte dessa globalização, a retomada de gregos, romanos, bretões; de Hércules, César, os 12 Pares de França. El Cid, Quixote, Fausto, Hamlet e Martín Fierro. (CHIAPPINI, 2001, 728.)

Há, inclusive, uma passagem em que Martim Fera encontra o seu mais famoso correspondente literário:

Encontrei o amigo Fierro
Nos pampas da Argentina
Eu trovei e sentei praça
Fera e Fierro, coisa Fina
Fomos presos e trancados
eu e ele na latrina. (SCHULER, 1984, p. 68)

Neste trecho, percebe-se a recepção explícita do poema, o gaucho brasileiro falando diretamente com “el gaucho” argentino, aproximando a sina igualitária da vida pampiana.

A obra Martim Fera faz menção diretamente à obra de José Hernández, tanto em seu desenvolvimento, em suas aventuras e até o próprio nome, mas, principalmente, quando o personagem brasileiro conversa com o personagem argentino revelando aí a recepção direta com Martín Fierro.

 5 Considerações Finais

Este artigo buscou demonstrar que há uma presença muito forte da obra Martín Fierro em nosso meio literário e que esta transferência cultural faz parte da nossa história, marcando e desempenhando um papel fundamental em nosso polissistema cultural brasileiro e no polissistema cultural do Cone Sul.

Esta análise auxilia na continuidade dos estudos da produção literária argentina no Brasil. Em particular, a de José Hernández. Indicamos que os registros da recepção da obra hernandiana são algo sólido em nossa cultura e, mais que isso, as representações e apropriações da obra poética de José Hernández aqui do outro lado do Rio Uruguai são constituintes da memória de um povo marcado pelo tradicionalismo.

Jauss define muito bem isso, quando se refere ao horizonte de expectativa: “a literatura como acontecimento cumpre-se primordialmente no horizonte de expectativa dos leitores, críticos e autores, seus contemporâneos e pósteros, ao experienciar a obra.” (JAUSS, 1994; p.24).

Portanto, este breve trabalho buscou suprir parte da carência de estudos sobre a obra literária de José Hernández e suas relações com a literatura produzida no Brasil.

Referências

CHIAPPINI, Lígia. Martín Fierro e a cultura gaúcha do Brasil. In: LOIS, Élida e NUNES, Àngel (Orgs.)  Martin Fierro (edición crítica).Madrid: Scipione: 2001. p.691-730.

EVEN-ZOHAR, Itamar. Teoría de los polisistemas. Tel Aviv: Universidad de Tel Aviv – Laboratorio de investigación de la cultura.Disponiível em: http://www.tau.ac.il/~itamarez/works/papers/trabajos/ . Acesso em: 18 jun 2013, às 15h58.

_____________. Factores y dependencias en la cultura. Una revisión da la  Teoría de los polisistemas. In: SANTOS, Montserrat Iglesias (Org.). Teoría de los polisistemas. Madrid: Arco Libros, 1999. p. 23-52.

_____________. El sistema literario. Tel Aviv: Universidad de Tel Aviv – Laboratorio de investigación de la cultura. Disponiível em: http://www.tau.ac.il/~itamarez/works/papers/trabajos/ . Acesso em: 19 jun 2013, às 15h33.

GUAZELLI, César Augusto Barcellos. Fronteiras de sangue no espaço platino: recrutamentos, duelos, degolas e outras barbaridades. Pois então degola”: representações da barbárie sobre campeiros e milicianos no século XIX. Disponível em: http://www2.ufpel.edu.br/ich/ndh/downloads/historia_em_revista_10_cezar_guazzelli.pdf Acesso em: 06 nov 2013, às 11:44.

HERNÁNDEZ, Rafael. José Hernández. In: LOIS, Élida e NUNES, Àngel (Orgs.)  Martin Fierro (edición crítica). Madrid: Scipione: 2001. p. 848-855.

HERNÁNDEZ, José. Martin Fierro (edición crítica). Madrid: Scipione: 2001. p. 1 – 491.

JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. São Paulo, Editora Ática, 1994.

JUVENAL, Amaro. Antônio Chimango. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1998.

LEENHARDT, Jacques. Fronteiras, fronteiras culturais e globalização. In: MARTINS, Maria Helena (Org.). Fronteiras culturais. São Paulo: Ateliê Editorial: 2002. p. 27-34.

LOPES NETO, João Simões. Contos Gauchescos & Lendas do Sul. Porto Alegre: L&PM, 2011.

LUGONES, Leopoldo. El payador. In: LOIS, Élida e NUNES, Àngel (Orgs.)  Martin Fierro (edición crítica). Madrid: Scipione: 2001. p. 866-886.

NÚÑES, Ángel. La heroicidad de Martín Fierro y del pueblo gaucho. In: LOIS, Élida e NUNES, Ángel (Orgs.) Martín Fierro (edicicón crítica). Madrid: Scipione: 2001, p. 783-822).

SCHULLER, Donaldo. Donaldo Schuler. SIBILA: 2010. Disponível em: http://sibila.com.br/critica/donaldo-schueler/3783  Acesso em: 16 out 2013 às 14:40.

SCHULER, Donaldo. Martin Fera, História de Cordel. Porto Alegre, Movimento, 1984.

TOVILLA, Pablo. Bourdieu, una introducción. Buenos Aires: Quadrata, 2010.

UNAMUNO, Miguel de. El gaucho Martín Fierro, poema popular gauchesco de D. José Hernández (argentino). In: LOIS, Élida e NUNES, Àngel (Orgs.)  Martin Fierro (edición crítica). Madrid: Scipione: 2001. p. 839-848.

 

[i] O Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), formado pelo Brasil, Argentina, Uruguai, Venezuela e Paraguai.

[ii] Subsistema cultural da região Sul do Brasil – esta classifcação está relacionada com a proposição de um sistema cultural brasileiro que pode ser classificado como polissistema, pois é formado por outros subsistemas regionais. O estudo dos sistemas culturais e suas relações foi proposto por Itamar Even- Zohar, em Factores y dependências em la cultura. Uma revisão da Teoria dos polissistemas (EVEN-ZOHAR, 1999, p.23-52).

[iii] En la concepción de la cultura como herramientas, la cultura se considera un conjunto de herramientas para la organización de vida, a nivel colectivo e individual. Estas “herramientas” son básicamente de dos tipos: las herramientas “pasivas” son los procedimientos con cuya ayuda la “realidad” se analiza, se explica, y llega a “tener sentido” para los humanos. Y las herramientas activas son los procedimientos con la ayuda de los cuales un individuo puede manejar cualquier situación ante la que se encuentre, así como producir también cualquier tipo de situación. (ZOHAR, 1997a, p.28).

[iv] El gaucho Martin Fierro (1872) y La vuelta de Martín Fierro (1879), leva este nome devido a sua continuação, escrita pelo autor em 1879. Ambos os livros são considerados como o livro nacional da argentina, com o título genérico El Martín Fierro.

[v] Que significa ser um bom guía, por conhecer a região. Uma pessoa que tem prática, habilidade, destreza, para qualquer trabalho ou arte.

[vi] Conforme a Real Academia Española, pericón designa: Baile popular típico de la Argentina y del Uruguay que se ejecuta acompañado de guitarras y se interrumpe para que los bailarines digan coplas.

[vii] O uso da faca não se dava apenas no trabalho, e era motivo permanente de queixas a presença de malentretenidos nos boliches e pulperias, aproveitando-se da ociosidade para confusões e arruaças. Nesses locais, estimulados pelas apostas no truco ou no jogo da taba, ou disputando os favores das chinas, eram freqüentes os duelos de arma branca. (GUAZELLI, César Augusto Barcellos, p.2).

[viii] Antônio Augusto Borges de Medeiros (1863 -1961)  foi um advogado e político brasileiro, tendo sido presidente do estado do Rio Grande do Sul por 25 anos, durante o período conhecido como República Velha. Borges de Medeiros também atuou no levante constitucionalista de 1932, quando apoiou os paulistas, no movimento legalista. Antigo partidário de Getúlio passou a discordar deste após a Revolução de 1930, principalmente devido à política de centralização do poder no governo federal, em detrimentos dos governos estaduais, adotada por Vargas. Opondo-se ao governo federal, Borges elegeu-se deputado federal à Assembléia Nacional Constituinte de 1933. No ano seguinte, foi candidato à Presidência da República, em eleição indireta no Congresso Nacional. Obteve 59 votos contra 174 obtidos por Getúlio Vargas.

[ix] Chimango é um termo regional, que no Rio Grande do Sul, designava o partido “moderado” durante o período das Regências Trinas. Também eram assim chamados os membros deste partido, que era oposto ao “farroupilha” (exaltado) e ao “restaurador”. Chimango, também é uma ave, também chamada de gavião e que pertence a família dos Falconídeos. Mede 40 cm e tem plumagem marrom-claro.

[x] A Revolução de 1923 foi um movimento armado ocorrido durante onze meses no estado do Rio Grande do Sul. Brasil, em que lutaram. De um lado, os partidários de Borges de Medeiros que tinham como distintivo ou característica o lenço de gaúcho, ao pescoço na cor branca, e, de outro, os aliados de Joaquim Francisco de Assis Brasil os maragatos que tinham como distinção, o lenço gaúcho ao pescoço na cor vermelha.

[xi] Espécie de acordeão quadrado, semelhante à concertina em mecanismo e teclado.

[xii] Conforme alguns dicionários, retovo significa uma espécie de forro de couro com que se forra qualquer objeto (cabo de relho, bengala, lombilho etc.): “… uma velha, que já tinha os olhos como retovo de bola” (João Simões Lopes Neto, “Chasque do imperador” in Contos gauchescos). Couro de cria morta com que se cobre outro bezerro ou potro, para que a mãe do que morreu aceite amamentá-lo.

[xiii] O leite mais grosso tirado da vaca, depois de se tirar o primeiro, que é pouco espesso.

[xiv] Dito de um animal: Selvagem, não domesticado.