Aspectos da literatura fantástica em Seminário dos Ratos, de Lygia Fagundes Telles

Leonardo Teixeira de Freitas Ribeiro Vilhagra

RESUMO: O objetivo deste trabalho é examinar e promover reflexões sobre aspectos constitutivos do gênero fantástico tomando como exemplo o conto “Seminários dos ratos” contido na obra de mesmo nome da escritora paulistana Lygia Fagundes Telles. Com o intuito de contribuir para tal proposta, empregarei, principalmente, conceitos teóricos de Tzvetan Todorov ([1970] 2007) e, como material auxiliar, lançarei mão de Rodrigues (1988), Pawels & Bergier (1989) e Aguiar e Silva (1983).

PALAVRAS-CHAVE: Lygia Fagundes Telles; Literatura Fantástica; Literatura Brasileira.

ABSTRACT: The aim of this paper is to examine and promote reflection on constitutive aspects of the fantastic genre taking as an example the short story “Seminário dos Ratos” (Rats’ Seminar – in a free translation) from the same book of Lygia Fagundes Telles, a writer from São Paulo – Brazil. Aiming to contribute to this proposal, theoretical concepts of Tzvetan Todorov ([1970] 2007) will be employed, and, as an auxiliary material, Rodrigues (1988), Pawels & Bergier (1989) and Aguiar & Silva (1983).

KEY WORDS: Lygia Fagundes Telles; Fantastic Literature; Brazilian Literature.

Lygia Fagundes Telles compôs obras predominantemente no campo da prosa com uma significativa consistência. A temática que prevalece em seus livros é a respeito de questões humanas, abordando personagens que habitam as grandes cidades, cujos dilemas familiares produzem tensões e contendas. Esses fatos, no entanto, são retratados a partir de um aspecto mais introspectivo, expondo sensações psíquicas da própria consciência das personagens.

Embora a autora paulistana seja mais lembrada e reconhecida pelas suas narrativas longas (As meninas, Ciranda de pedra etc.), os seus contos também apresentam, se não mais, uma qualidade estimável inserida em sua produção ficcional. Dentro desses contos, inclusive, destaca-se o livro Seminário dos ratos (1998), no qual, não apenas estende a temática prevalecente da autora em seus romances como já anteriormente citei, mas também introduz ao leitor produções de natureza fantástica.

Essa exploração do gênero fantástico ocorre em alguns contos, como, por exemplo, em Trigrela e As formigas. No entanto, ater-nos-emos em seu conto Seminário dos ratos, que leva o mesmo nome do livro, a fim de examinarmos os aspectos do gênero fantástico que permeiam essa pequena narrativa.

Precedentemente, iremos determinar o conceito de fantástico lançando mão de estudos elaborados por Tzvetan Todorov (1970; 2007), Pawels & Bergier (1989) e Rodrigues (1988), com o intuito de fornecer um arcabouço teórico auxiliar para, aí então, partir para a análise desse fenômeno literário no conto de Lygia Fagundes Telles.

A realidade do Fantástico

Comparando o conto do escritor alemão E. T. A Hofmman com o romance do escritor colombiano Gabriel García Márquez, Selma Calansans Rodrigues pondera acerca do Fantástico. Para ela

O termo fantástico (do latim phantastica, por sua vez do grego phantastikós, os dois oriundos de phantasia) refere-se ao que é criado pela imaginação, o que não existe na realidade, o imaginário, o fabuloso, aplica-se, portanto, melhor a um fenômeno artístico, como é a literatura, cujo universo é sempre ficcional por excelência, por mais que queira aproximá-la do real (RODRIGUES, 1998, p. 9).

Notamos, diante da asserção proposta pela autora, que o Fantástico seria o produto direto do plano imaginário, sem qualquer respaldo racional e, assim, desvinculado a realidade que nos rodeia. Inclusive, Louis Pauwels e Jacques Bergier (1989) dialogam com a proposta de Rodrigues (1988). Para eles, o Fantástico seria “como uma violação das leis naturais, como a aparição do impossível” (PAUWELS; BERGIER, 1989, p. 18).

Decerto que a manifestação de fenômenos inexplicáveis, cuja racionalidade não se consegue abarcar, como no caso citado por Selma Rodrigues ao mencionar a casa mal assombrada de Hoffman e a subida aos céus da personagem de Garcia Marquez, causa aos seres humanos, aparentemente os únicos seres vivos munidos de raciocínio lógico, estupefação e espanto, pelo menos a princípio.

O fantástico, contudo, não foi uma temática muito abordada ao longo da história da literatura ocidental como um todo. Vitor Manuel de Aguiar e Silva demonstra que, nas poéticas clássicas – A República, de Platão, e A Poética, de Aristóteles – a produção literária, e artística de uma maneira genérica, era pautada no conceito de verossimilhança. Ele endossa tal proposta citando uma passagem de A poética na qual ele relaciona o verossímil juntamente com a aproximação do poeta ao do historiador, em questão de expressar o conteúdo de teor complacente com realidade em seus escritos.

Inclusive, esse princípio de negação do Fantástico renova-se em poéticas que sucedem às clássicas, cujo conteúdo teve significativa influência e inspiração. Aguiar e Silva, ao citar diretamente um trecho de Art poétique, de Boileau, reforça essa oposição: “Jamais au spectateur n’offrez rien d’incroyable / Le vrai peut quelquefois n’être pás vraisemblable”[i] (BOILEAU apud AGUIAR E SILVA, 1983, p. 515).

De modo sucinto, Aguiar e Silva (1983) arremata: “O princípio da verossimilhança exclui da literatura tudo o que seja insólito, anormal, estritamente local ou puro capricho da imaginação” (p. 515).

Essa proposta de verossimilhança predomina em outras escolas literárias ocidentais. Embora haja alguma produção insuficiente no período Romântico e também no período Simbolista, será apenas nos movimentos vanguardistas que irão romper com tal princípio, conforme aponta Selma Rodrigues: “É preciso, as vanguardas do começo do nosso século, a literatura e a arte, de modo geral, se haviam libertado definitivamente das regras clássicas, especialmente da noção de verossimilhança” (RODRIGUES, 1988, p. 13).

Assim que os movimentos vanguardistas se fortificaram na conjuntura internacional artística, suplantando a herança passadista do século XIX, abre-se espaço para um desenvolvimento literário sem quaisquer amarras e de um conteúdo altamente diversificado. Nessa conjuntura libertária e inovadora, o búlgaro Tzvetan Todorov, entre seus trabalhos efetuados na área da linguística e da literatura, engendra uma obra essencial para os estudos da literatura fantástica, denominada Introdução à literatura fantástica.

Com o intuito de buscar uma definição sobre o Fantástico, Todorov analisa o dilema da personagem protagonista do escritor francês Jacques Cazotte, Le diable amoureux [ii], cujo drama é pautado na desconfiança de Alvare em relação à Biondetta, que aparentemente demonstra estar possuída por um ente demoníaco.

Diante da nebulosa situação é que Todorov infere acerca do fantástico:

Somos assim transportados ao âmago do fantástico. Num mundo que é exatamente o nosso, aquele que conhecemos, sem diabos, sílfides nem vampiros, produz-se um acontecimento que não pode ser explicado pelas leis deste mesmo mundo familiar. Aquele que o percebe deve optar por uma das duas soluções possíveis; ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto da imaginação e nesse caso as leis do mundo continuam a ser o que são; ou então o acontecimento realmente ocorreu, é parte integrante da realidade, mas nesse caso esta realidade é regida por leis desconhecidas para nós (TODOROV, 1992, p. 30).

Ademais, ele aprofunda seu raciocínio expondo outros dois conceitos íntimos ao Fantástico:

O fantástico ocorre nesta incerteza; ao escolher uma ou outra resposta, deixa-se o fantástico para se entrar num gênero vizinho, o estranho ou o maravilhoso. O fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural” (TODOROV, 1992, p. 31).

Para o teórico búlgaro, no entanto, essa experiência do fantástico não se restringe só às personagens, existe, também, uma coexistência do leitor, compactuando, no momento da leitura, com o teor sobrenatural inserido na produção literária. Segundo ele: “O fantástico implica, pois, uma integração do leitor no mundo das personagens; define-se pela percepção ambígua que tem o próprio leitor dos acontecimentos narrados” (TODOROV, 1992, p. 37).

Incluindo o leitor à definição do fantástico, Todorov chega a uma possível condição de precisar o conceito de fantástico, para ele:

Este exige que três condições sejam preenchidas. Primeiro, é preciso que o texto obrigue o leitor a considerar o mundo das personagens como um mundo de criaturas vivas e a hesitar entre uma explicação natural e uma explicação sobrenatural dos acontecimentos evocados. A seguir, esta hesitação pode ser igualmente experimentada por uma personagem; desta forma o papel do leitor é, por assim dizer, confiado a uma personagem e ao mesmo tempo a hesitação encontra representada, torna-se um dos temas da obra; no caso de uma leitura ingênua, o leitor real se identifica com a personagem. Enfim, é importante que o leitor adote uma certa atitude para com o texto: ele recusará tanto a interpretação alegórica quanto a interpretação “poética”. Estas três exigências não têm valor igual. A primeira e a terceira constituem verdadeiramente o gênero; a segunda pode não ser satisfeita. Entretanto, a maior parte dos exemplos preenchem as três condições (TODOROV, 1992, p. 39).

Posto, enfim, as condições fundamentais para a ocorrência do fantástico dentro dos textos literários, tais propostas nos parecem satisfatórias e definidas. Porém, apenas aparentemente. Devemos, ainda, distinguir um ponto central que, mais adiante, será essencial para o entendimento do conceito e também a análise do conto de Lygia Fagundes Telles.

Todorov afirma que o fantástico se situa entre outros dois gêneros bastante similares entre eles, contudo, ainda resguardam diferenças constitutivas. No caso, presenciando um fenômeno de ordem sobrenatural, a personagem do texto literário, primeiramente, assume uma postura de hesitação. Posterior a esse estágio de indecisão é que, dependendo da inclinação expressada pelo leitor ou pela personagem, declaramos se o fenômeno é Estranho ou Maravilhoso. Isto é, caso eles tomem o fenômeno como produto de uma realidade sólida e passível de explicação, estamos no gênero estranho. Caso eles concluam o fenômeno como fruto de novas leis da natureza, fora do campo de explicação natural, encontramo-nos no gênero maravilhoso.

A fim de ilustrar melhor essa proposta, Todorov desenvolve um esquema gráfico bem elucidador.

Estranho
Puro
Fantástico-
Estranho
Fantástico-
maravilhoso
Maravilhoso-
puro

(TODOROV, 1992, p. 50).

O Fantástico localizar-se-ia entre dois gêneros: O Maravilhoso puro e o Estranho puro. Por consequência, ele ainda se avizinha a outros subgêneros, o Fantástico-maravilhoso e Fantástico-estranho. Irei explicá-los sucintamente, uma vez que, além de realçar a coexistência do gênero Fantástico com outros gêneros similares, evidenciarei também as características de cada um que, por sua vez, auxiliarão em sua própria definição. O Fantástico-estranho se definiria, segundo o pensador búlgaro, como

Acontecimentos que parecem sobrenaturais ao longo de toda a história, no fim recebem uma explicação racional. Se esses acontecimentos por muito tempo levaram a personagem e o leitor a acreditar na intervenção do sobrenatural, é porque tinham um caráter insólito (TODOROV, 1992, p. 50-51).

Aduzindo em relação ao tema, o autor menciona a obra Manuscrit trouvé à Saragosse (1815), do escritor polonês Jan Potocki. No final do romance, Alphonse, protagonista da obra, recebe uma explicação racional de todos os milagres existentes ao longo da narrativa. Neste viés, temos o Estranho puro, que, consoante a Todorov, mantém as características do Fantástico-estranho, porém, nas obras que se situam nesse gênero

relatam-se acontecimentos que podem perfeitamente ser explicados pelas leis da razão, mas que são, de uma maneira ou de outra, incríveis, extraordinários, chocantes, singulares, inquietantes, insólitos e que, por esta razão, provocam na personagem e no leitor reação semelhante àquela que os textos fantásticos nos tornam familiar (TODOROV, 1992, p. 53).

Embora carregue esse teor fantástico, o Estranho puro se baseia nas descrições de algumas reações sentimentais das personagens, essencialmente a do Medo, e “não a um acontecimento material que desafie a razão” (TODOROV, 1992, p. 53). O autor toma como exemplo o conto de Edgard Allan Poe, A queda da casa de Usher. O conto gira em torno de um encontro sobrenatural do narrador e da personagem Roderick Usher com a irmã deste, dias após a sua morte, cujo corpo foi jazido no subterrâneo da mesma casa. Nele, Poe focaliza os efeitos instigados pela manifestação sobrenatural no plano mental, característica própria do Estranho puro. Inclusive, Todorov arremata sua asserção ao citar um comentário de Baudelaire a respeito da obra de Poe. Em suas palavras: “Ele [Poe] escolhe quase sempre a mais excepcional realidade, coloca sua personagem na mais excepcional situação, no plano exterior ou psicológico” (BAUDELAIRE apud TODOROV, 1992, p. 54).

No que diz respeito ao Fantástico-maravilhoso, Todorov o define como as histórias

que se apresentam como fantásticas e que terminam por uma aceitação do sobrenatural. Estas são as narrativas mais próximas do fantástico puro, pois este, pelo próprio fato de permanecer sem explicação, não-racionalizado, sugere-nos realmente a existência do sobrenatural (TODOROV, 1992, p. 58).

Embora o próprio autor reconheça que o limite entre o Fantástico-maravilhoso e o Fantástico puro se mostre como incerto, existe um detalhe que permite decidir com maior precisão cada um. Todorov faz menção às duas obras, La morte amoureuse, de Théophile Gautier, cuja história gravita em torno de um amor condenável entre o monge Romuald e a cortesã Clarimonde. Após a sua morte, esta começa a visitá-lo em seus sonhos, porém, ao custo de sua energia vital. Ao longo da narrativa, a dúvida paira em sua mente, tendo sua certeza vacilando entre obra de entidades malignas ou simplesmente obra do acaso. Mas, com a aparição de um outro monge, ele descobre que a sua amada realmente foi possuída por forças das trevas. A segunda obra é Véra, de Villiers de L‘Isle-Adam. Nessa novela, também ocorre um dilema do protagonista, o Conde. Ele oscila entre acreditar na vida após a morte, ou na própria sanidade. Porém, a partir de um acontecimento, ele descobre que sua amada realmente seria uma morta-viva.

Por fim, temos o Maravilhoso puro. Consoante à proposta de Todorov, o Maravilhoso puro agregaria elementos

sobrenaturais que não provocam qualquer reação particular nem nas personagens, nem no leitor implícito. Não é uma atitude para com os acontecimentos narrados que caracterizam o maravilhoso, mas a própria natureza desses acontecimentos. (TODOROV, 1992, p. 60).

O Maravilhoso puro é quando fenômenos fantásticos se manifestam no cotidiano, sem maiores explicações, como se fossem naturais àquele ambiente. Em seguida, o autor búlgaro, a fim de afastar dúvidas referentes ao Maravilhoso puro, elenca alguns tipos de narrativa, no qual “o sobrenatural recebe ainda uma certa justificação” (TODOROV, 1992, p. 60). São eles: Maravilhoso hiperbólico, maravilhoso exótico, maravilhoso instrumental e maravilhoso científico.

Posterior às contribuições de Todorov a respeito dos gêneros e os subgêneros que coexistem com o Fantástico, podemos alcançar uma conclusão pertinente para a proposta deste trabalho. Embora esses gêneros e subgêneros guardem aparentes similaridades, fica evidente que o fator Hesitação se comprova como o elemento chave do gênero Fantástico, sendo condição distintiva para tal, destacando-se entre os outros. Após a experiência de um evento sobrenatural, a tomada de posicionamento do leitor, como também da personagem, definirá se a obra do autor se configura como Fantástica ou não. Sabendo-se disso, vamos prosseguir para a constatação desse fenômeno no conto da autora paulistana e como ele se manifesta em seu decorrer.

O Fantástico no conto Seminário dos ratos

Iremos, neste momento, analisar como esse fator Hesitação, segundo a proposta de Todorov, desenvolve-se na curta narrativa. Essa análise não só enriquece a crítica literária em relação à obra de Lygia Fagundes Telles, apontando novos caminhos e horizontes temáticos, como também serve de amostra dessa característica em questão do gênero fantástico, de maneira que contribua para a discussão e enriquecimento do tema.

O conto é narrado em terceira pessoa por meio de um narrador onisciente. O ambiente onde se sucede o conto é uma mansão reformada recentemente, a fim de abrigar o VII Seminário dos Roedores, cujo objetivo é discutir medidas públicas contra o crescimento desordenado e alarmante da população roedora nas grandes cidades que, segundo os indícios encontrados no livro, são brasileiras. No início dele, encontramos uma epígrafe alusiva ao poema Edifício Esplendor de Carlos Drummond de Andrade (1955), da qual se provém um clima insólito introdutório: “Que século, meu Deus! / – exclamaram os ratos e começaram a roer o edifício”. Ratos ganham voz e atitudes humanas, passando, em seguida, a consumir, a carcomer o edifício.

A primeira personagem apresentada é o Chefe de Relações Públicas “um jovem de baixa estatura, atarracado, sorriso e olhos extremamente brilhantes que se ruboriza facilmente e possui má audição” (TELLES, 1998, p. 153.). A ênfase dada à ocupação e ao cargo da primeira personagem mostra que se trata do responsável pela coordenação dos assuntos que dizem respeito ao relacionamento com o público em geral. Em outras palavras, sua função está ligada aos tópicos referentes à mídia, à comunicação com o coletivo.

No decorrer do conto, o Chefe de Relações Públicas entra no cômodo da segunda personagem, o Secretário do Bem Estar Público e Privado: ”homem descorado e flácido, de calva úmida e mãos acetinadas […] voz branda, com um leve acento lamurioso” (TELLES, 1998, p. 153). Ambas as personagens carecem de nomes próprios, privilegiando somente os seus papéis sociais, fatos que, mais adiante, justificaram tal emprego.

O Secretário solicita notícias ao Chefe de Relações Públicas sobre o coquetel que ocorrera à tarde, ao que este respondeu ter sido bem-sucedido e que os convidados foram deixados na ala da piscina, desfrutando da área de lazer e também, segundo o Secretário, do crepúsculo, que “está deslumbrante, Excelência, deslumbrante” (TELLES, 1998, p. 154). O narrador, não só situa os leitores no tempo cronológico do tempo, como também demonstra uma passagem de um tempo claro, para o escuro, dia/noite. Isto é, mudando o momento do dia, produz-se um ambiente obscuro e tenebroso, propício a esse gênero.

Continuando a conversa, o Secretário cobra explicações sobre a cor cinzenta destinada aos aposentos de um dos convidados, o Diretor das Classes. Em resposta, o jovem Chefe de Relações Públicas explica os motivos de suas escolhas para distribuir os participantes. Depois, ele indaga ao Secretário pelo não gosto da cor cinza, ao que ele responde com uma associação, lembrando tratar-se da: “[…] cor deles. Rattus alexandrius” (TELLES, 1998, p. 154). O narrador lançou mão de um eufemismo ao fazer menção aos ratos chamando-os pelo nome científico, denunciando sua repulsa em relação a eles. Aqui nesse trecho, temos a primeira aparição dos ratos, mesmo que de maneira indireta.

Ao comentar sobre todos os participantes do VII Seminário dos Roedores, o Secretário discorda da nomeação do representante estadunidense para resolver a situação. Conforme ele explicita “Por que botar todo mundo a par das nossas mazelas? Das nossas deficiências? Devíamos só mostrar o lado positivo não apenas da sociedade, mas da nossa família” (TELLES, 1998, p. 155). Nessa passagem, notamos novamente o abafamento, encobrimento da situação por parte da personagem. Vimos que, apesar de convocar o encontro para solucionar o problema, a postura das autoridades é de escamotear ao máximo esse problema. Isso não só implica em uma crítica social e política, tais fatos também demonstrar-se-ão como um reflexo em relação à postura hesitante das personagens frente aos fenômenos insólitos que seguirão.

No entanto, conversando a respeito do crescimento da população roedora nas favelas e zonas de periferia e como isso traria consequências para o governo, o Secretário intervém na conversa de maneira atônita:

O secretário parecia pensar em outra coisa quando murmurou evasivamente um “enfim”. Levantou o dedo pedindo silêncio. Olhou com desconfiança para o tapete. Para o teto.
– Que barulho é esse?
– Barulho?
– Um barulho esquisito, não está ouvindo?
[…]
– Não estou ouvindo nada…
– Já está diminuindo – disse o Secretário, baixando o dedo almofadado. – Agora parou. Mas o senhor não ouviu? Um barulho tão esquisito, como se viesse do fundo da terra, subiu depois para o teto… Não ouviu mesmo? (TELLES, 1998, p. 156-157).

Neste momento da narrativa, inicia-se um clima de apreensão por parte do Secretário e também principia um estado de suspense. Embora o Chefe de Relações Públicas não tenha manifestado preocupação alguma, aquele começa entrar em um estado de aflição. No entanto, ele atribui o ruído a possíveis grampos instalados com a finalidade de monitoramento. Aliás, a fim de ratificar sua posição, ele comenta: “Não me espantaria nada se cismassem de instalar aqui um gravador. O senhor se lembra?, esse Delegado americano…” (TELLES, 1998, p. 157). Nessa fala, pode-se inferir o episódio histórico de Watergate, ocorrido em 1972, no qual um grupo ligado ao presidente Richard Nixon implantou escutas clandestinas no partido rival ao então presidente republicano.

Com o intuito de retomar o controle da situação, em seguida ao fato, o Secretário solicita ao Chefe de Relações Públicas um telefonema para os meios de comunicação dizendo que “estrategicamente os ratos já se encontram sob controle. Sem detalhes, enfatize apenas isto, que os ratos já estão sob inteiro controle.” (TELLES, 1998, p. 158).

Todavia, contrariando essa postura de aparente estabilidade e segurança, ocorre o segundo evento

– Bueno […] Peço já, Excelência?
O Secretário foi levantando o dedo. Abriu a boca. Girou a cadeira em direção da janela. Com o mesmo gesto lento, foi se voltando para a lareira.
– Está ouvindo? Está ouvindo? O barulho. Ficou mais forte agora!
O jovem levantou a mão à concha da orelha. A testa ruborizou-se no esforço da concentração. Levantou-se e andou na ponta dos pés.
– Vem daqui, Excelência? Não consigo perceber nada!
– Aumenta e diminui. Olha aí, em ondas, como um mar… Agora parece um vulcão respirando, aqui perto e ao mesmo tempo tão longe! Está fugindo, olha aí… Tombou para o espaldar da poltrona, exausto. Enxugou o queixo úmido. – Quer dizer que o senhor não ouviu nada? (TELLES, 1998, p. 159).

O segundo evento, maior que o primeiro, aumenta ainda mais o cenário de suspense e de expectativa do conto. Diferente do primeiro, este é mais forte e de maior intensidade. Aliás, a própria personagem, comparando o barulho a fenômenos naturais destrutivos, inicialmente em ondas do mar e em um vulcão logo em seguida, dá sinais da potencialidade do evento. O fato de o evento ter um caráter oscilante – “aumenta e diminui […] aqui perto e ao mesmo tempo tão longe” (TELLES, 1998, p. 162) –, também produz ansiedade, fazendo a aflição crescer. O barulho que persegue o Secretário demonstra-se como uma severa ameaça, como se fosse um augúrio iminente.

Corroborando com o estado de aflição do secretário, ele rememora duas situações sucedidas em seu passado. Uma na revolução de 32 e outra no Golpe de 64, onde em ambos os casos, ele participou como membro, ativo. Inclusive, em um episódio no qual o grupo foi cercado, ele foi o mais atento, o primeiro do grupo “a pressentir qualquer anormalidade” (TELLES, 1998, p. 159). O interessante deste trecho é o emprego da palavra “anormalidade”. A escolha lexical foi proposital, pois, simultaneamente é utilizada para suas experiências passadas, como também é utilizada para a atual, reafirmando para a iminência de um acontecimento anormal, de um acontecimento Fantástico.

Posteriormente, encontramos, nas falas de ambas as personagens, intertextualidades com elementos relacionados ao universo do período da Ditadura Militar no Brasil, visto que, apesar da essência do conto ser Fantástica, existe uma coexistência com uma crítica social do período. Aliás, juntamente com o conto, o livro foi feito durante o Regime. Passados todas essas citações e menções, assim que o Secretário opina sobre o jantar do Seminário, o barulho retorna, e retorna com um grau imenso, abalando, não só as estruturas do edifício, como também a segurança de cada uma das personagens.

– Está ouvindo agora? Está mais forte, ouviu isso? Fortíssimo!
O Chefe das relações públicas levantou-se de um salto. Apertou entre as mãos a cara ruborizada.
– Mas claro, Excelência, está repercutindo aqui no assoalho, o assoalho está tremendo! Mas o que é isso?!
– Eu não disse, eu não disse? (TELLES, 1998, p. 161).

O terceiro evento confirma o cenário de mistério e aflição que está por vir. Aliás, com a vinda do jantar anteriormente citado, vem a noite. Instala-se um ambiente favorável para os fenômenos Fantásticos. Embora o estado de preocupação que o Secretário assumiu após o inusitado evento, o Chefe de Relações Públicas empenha-se em tranquilizar a situação, aliás, ele até ironiza levemente a fala do Secretário, a qual dizia que o evento era um fenômeno natural catastrófico: “Meu deus, zona vulcânica?!…” (TELLES, 1998, p. 161).

Ao sair do quarto para averiguar a situação, ele se encontra com a única personagem feminina, Miss Glória da delegação estadunidense. Depois de uma rápida conversa em inglês, o Chefe de Relações Públicas busca amainar a situação, fato que se repete assim que ele encontra com o outro personagem, o Diretor das Classes Conservadoras Armadas e Desarmadas. Neste momento, ocorre outra manifestação do singular evento:

O Diretor das Classes Conservadoras Armadas e Desarmadas farejou o ar:
– E esse cheiro? O barulho diminuiu, mas não está sentindo um cheiro? Franziu a cara. – Uma maçada! (TELLES, 1998, p. 162).

Anteriormente, na suíte do Secretário, o evento se manifestou apenas no plano sonoro, através de um barulho que vai aumentando paulatinamente. Agora, ele já se expressa no plano da olfação, através do faro. Outro dado que fornece contornos de aflição é que os telefones do edifício foram cortados, tornando a mansão incomunicável com o mundo exterior. Seguindo para a escada, a fim de ir mais a fundo no que estava acontecendo, o Chefe de Relações Públicas dá de cara com o Cozinheiro-Chefe, o responsável pelo jantar do Seminário, ofegante e apressado para se evadir do local. Ao pará-lo, o Chefe de Relações Públicas indaga-o:

– Como o senhor entra aqui neste estado?
[…]
– Aconteceu uma coisa horrível, doutor! Uma coisa horrível!
– Não grita, o senhor está gritando, calma- e o jovem tomou o Cozinheiro-Chefe pelo braço, arrastou-o a um canto. – Controle-se. Mas o que foi?Sem gritar, não quero histerismo, vamos, calma, o que foi?
– As lagostas, as galinhas, as batatas, eles comeram tudo! (Grifos nossos). (TELLES, 1998, p. 162-163).

Neste trecho, o narrador chega ao ápice do suspense, dando contornos obscuros e sinistros. Ademais, colocar o pronome pessoal do caso reto “Eles” não foi uma escolha aleatória. Consoante a Antunes, esse processo anafórico lançando mão de conectores, principalmente os pronomes, é denominado substituição gramatical, ou seja: “É um recurso reiterativo, uma vez que promove a retomada de referências feitas em segmentos presentes no texto” (ANTUNES, 2005, p. 90). Esse artifício linguístico retoma algo. Porém, esse algo não foi expresso na narrativa, promovendo, não só a indeterminação do sujeito, como também promove um clima de mistério ao motivo de agitação por parte do Cozinheiro-Chefe.

No entanto, no momento em que o Chefe de Relações Públicas pergunta quem comeu tudo, o Cozinheiro-Chefe responde de maneira abrupta, desvelando o evento misterioso.

– Mas quem comeu tudo? Quem?
– Os ratos, doutor, os ratos!
– Ratos?!… Que ratos? (TELLES, 1998, p. 163).

Agora, temos o primeiro contato com a essência do evento que chacoalhou – literalmente – todo o edifício e também causou pânico entre as pessoas do Seminário. Um dado interessante é como o Cozinheiro-Chefe tratou o evento. Ele utiliza o termo “aquela nuvem”, e ainda dizendo que, quando chegaram à cozinha, eles consumiram tudo: “até os panos de prato eles comeram” (TELLES, 1998, p. 163). E, ainda, “Uma trempe deles virou o caldeirão de lagostas e a lagostada se espalhou no chão, foi aquela festa, não sei como não se queimaram na água fervendo.” (TELLES, 1998, p. 163) . Além de terem uma forma aterradora e terrificante, eles possuíam uma fome que consumia tudo, ignorando até a água escaldante. Tais características são típicas do gênero Fantástico.

No entanto, depois do relato preocupante e temeroso do Cozinheiro-Chefe, o Chefe de Relações Públicas demonstra maior interesse com o jantar em si, ignorando todo o evento sobrenatural ocorrido com o responsável pelo jantar, inclusive ainda orienta o funcionário a abafar o caso, manter as aparências, pois “o importante é que os convidados não fiquem sabendo de nada” (TELLES, 1998, p. 164). Tentando controlar a situação, ele ainda insiste junto ao Cozinheiro-Chefe que ele iria à cidade para trazer mantimentos para o jantar e também escolta armada para lidar com os ratos. No entanto, para o espanto dele, o responsável pelo banquete alertou que todos os carros presentes no local foram danificados “O José experimentou um por um, viu? Os fios foram comidos, comeram também os fios” (TELLES, 1998, p. 164). Percebe-se o comportamento anormal dos roedores. A fim de prejudicar a fuga, eles deterioraram o principal veículo de retirada dos participantes do local.

Nesse ponto da narrativa, começa a encaminhar para o seu ápice, no qual se manifestam as principais consequências do evento insólito.

O jovem encostou-se na parede, a cara agora estava lívida. “Quer dizer que o telefone…” – murmurou e cravou o olhar estatelado no avental que o Cozinheiro-Chefe largou no chão. As vozes no andar superior começaram a se cruzar. Uma porta bateu com força. Encolheu-se mais no canto quando ouviu seu nome: era chamado aos gritos. Com o olhar silencioso foi acompanhando um chinelo de debrum de pelúcia que passou a alguns passos do avental embolado no tapete: o chinelo deslizava, a sola voltada para cima, rápido com se tivesse rodinhas ou fosse puxado por algum fio invisível. (TELLES, 1998, p. 164-165).

Essa passagem da narrativa detém uma imagem dúbia. Não se sabe ao certo se o Secretário de Relações Públicas está sendo arrastado junto com o chinelo, ou se o chinelo é o que restou do corpo devorado pelos ratos. De qualquer maneira, nesta passagem, a personagem está vivenciando, participando do evento sobrenatural, embora, desde quando ele procurava a fonte do alvoroço todo, ele tentava ocultá-lo.

Posterior a essa cena, os alicerces do edifício são abalados severamente, tendo suas luzes apagadas deixando o local totalmente entregue às trevas. Daí, o cenário que se segue é de terror e desespero.

Então, deu-se a invasão, espessa como se um saco de pedras borrachosas tivesse sido despejado em cima do telhado e agora saltasse por todos os lados numa treva dura de músculos, guinchos e centenas de olhos luzindo negríssimo. (TELLES, 1998, p. 165).

Diante da nova investida dos roedores em sua forma negra e destrutiva, o Chefe de Relações Públicas se encontra coagido, aumentando ainda mais o pânico e o temor Com o intuito de se proteger, ele se entrincheira no último refúgio que ainda não fora afetado, a geladeira.

Ele correu sobre o chão enovelado, entrou na cozinha com os ratos despencando na sua cabeça e abriu a geladeira. Arrancou as prateleiras que foi encontrando na escuridão, jogou a lataria para o ar, esgrimou com uma garrafa contra dois olhinhos que já corriam no vasilhame de verduras […]. Fechou a porta, mas deixou o dedo na fresta, para que a porta não batesse. Quando sentiu a primeira agulhada na ponta do dedo que ficou fora, substitui o dedo pela gravata (TELLES, 1998, p. 165).

Encaminhando para seu desfecho, o narrador nos expõe um flashback. Ele nos informa que, após a manifestação total do evento sobrenatural, houve um inquérito por parte das autoridades, sendo que a principal testemunha era o Chefe de Relações Públicas, aparentemente o único que sobreviveu ao ataque dos ratos naquela mansão. Ele não conseguiu indicar a duração do tempo que ficou lá dentro. Porém, ao sair vagarosamente, observando que não havia nada mais por perto, apenas uma fraca luz do luar que invadia timidamente a cozinha, tomando coragem, foi galgando aos poucos até a saída da casa. No entanto, quando ia abandonar o local, percebe um murmúrio oriundo da Sala de Debates. A partir daí, ele teve, segundo o narrador,

A intuição de que estavam todos reunidos ali, de portas fechadas. Não se lembrava sequer de como conseguiu chegar até o campo, não poderia jamais reconstituir a corrida, correu quilômetros. Quando olhou para trás, o casarão estava todo iluminado (TELLES, 1998, p. 165).

O conto se encerra de maneira emblemática e extraordinária, instigando vários questionamentos e discussões sobre os fatos e eventos manifestados ao longo de suas páginas. Entre uma delas, temos o Fantástico, cujo fenômeno é o alvo deste trabalho. Rememorando a principal característica apontada por Todorov, discutida na parte inicial deste trabalho, podemos constatar que o elemento distintivo e único do Fantástico é a Hesitação, não só por parte do leitor, como também das personagens da narrativa que vivenciam o fenômeno sobrenatural, o qual a ciência e a lógica não conseguem explicar. Essa Hesitação, porém, deve permanecer nas personagens e no leitor, uma vez que, caso eles busquem explicações racionais para o fenômeno, o Fantástico passa a se tornar Estranho. Ou, caso eles enquadrarem o mesmo fenômeno em um fato inédito dentro das leis naturais e racionais, ele passa a ser Maravilhoso.

Portanto, o evento sobrenatural, mas também a postura que se tem diante dele, que, no caso, seria a Hesitação, será o elemento diferenciador, e também o que enfocarei e identificarei no conto nesta parte final do trabalho, contribuindo para a definição do pensador Búlgaro sobre o Fantástico.

O evento sobrenatural do conto é o comportamento anormal dos roedores na mansão. Nele, os ratos agem de maneira ordenada, aplicando até estratégias de guerra, culminando com a organização de um debate feito apenas por eles. Aliás, uma de muitas ironias do conto. Nesse caso, o VII Seminário dos Roedores, que ocorria naquele local, tinha como intuito resolver os problemas ocasionados por eles. Ao longo do conto, esse evento foi se manifestando de maneira progressiva, tendo o Chefe de Relações Públicas como principal espectador. A manifestação se sucede de modo gradual a partir de quatro fases: 1) inicia-se com um barulho (TELLES, 1998, p. 156); 2) passa-se para um cheiro (TELLES, 1998, p. 162); 3) desenvolve-se por uma aparência disforme e, por fim; 4) é sentida por meio da mordida (TELLES, 1998, p. 165).

Essas quatro fases representam quatro dos cinco sentidos que o ser humano possui que, no caso, é apreciado pelo Chefe de Relações Públicas no conto. Primeiro, ele ouve o barulho dentro da suíte do Secretário. Segundo, ele sente o odor do evento assim que encontra com o Diretor de Classes Armadas e Desarmadas. Na parte final do conto, após o Cozinheiro-Chefe fugir do local, ele vê a massa de roedores saindo de todos os lugares do cômodo e, ao se esconder dentro da geladeira, ele sente a mordida de um deles.

Esse encadeamento de fatos simboliza um período de pré-hesitação, representado pela Audição e pelo Olfato, depois, pelo período de hesitação em si, representado pela Visão e pelo Tato. Existe uma progressão de sentidos, que o narrador apresenta a nós leitores. À medida que ele narra o aumento da hesitação da personagem, nós experimentamos esse aumento simultaneamente. Aliás, essa indecisão e perplexidade diante do evento acompanha o personagem e a nós também até a conclusão do conto, visto que não há registro de tomada de postura alguma, ou de questionamento referente ao evento sobrenatural no texto.

O próprio nome Chefe de Relações Públicas, inclusive, designado para essa personagem, é uma característica metafórica pertinente. Na verdade, não há um nome específico relacionado a ele, e sim um papel social que o nomeia. Tal papel representa um cargo responsável pela comunicação externa, com o público em geral. No entanto, no decorrer do texto, ele tenta de todas as maneiras ocultar o evento que está se manifestando, até senti-lo diretamente, materializado pela mordida do roedor. Essa postura de aparente estabilidade é quebrada, dando lugar à hesitação que o acompanha até o desfecho da narrativa.

Outro fato pertinente é a inversão lógica provocada pelo evento sobrenatural. Os ratos, principais vetores do Fantástico na narrativa, invocam inúmeros símbolos. Dentro eles, destacamos dois. O da destruição e o da covardia. Chevalier e Gheerbrant nos informam que, em uma passagem da Ilíada, o deus Apolo é invocado sobre o nome de Sminteo o qual deriva de uma palavra que significa “rato”.

A ambivalência do nome atribuído a Apolo corresponderia a um duplo símbolo: o rato que propaga a peste seria o símbolo de Apolo da peste […]; Apolo, por outro lado, protege contra os ratos, enquanto deus das colheitas (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2000, p. 870).

Em relação ao conto, predominaria a representação da peste, como força epidêmica e de devastação, por meio do signo do rato. Decerto, essa proposta é sinalizada desde o epílogo com o poema drummondiano, caminhando até a sua conclusão. Por consequência, esse símbolo possibilita o aparecimento de um segundo símbolo. Sabe-se, no imaginário popular, por exemplo, que há uma associação da figura do roedor com atitudes de covardia, de pusilanimidade. No texto, porém, devido ao comportamento antinatural que os ratos possuem no conto, quem acaba se acovardando são os seres humanos, principalmente em duas passagens. Uma, na fala do Cozinheiro-chefe:

[…] eu pulei em cima da mesa, […], taquei o vidro de suco de tomate com toda a força e ele botou a galinha de lado, ficou de pé na pata traseira e me enfrentou feito homem. Pela alma da minha mãe, doutor, me representou um homem vestido de rato! (TELLES, 1998, p. 163).

E a outra no refúgio do Chefe de Relações Públicas: “Quando sentiu a primeira agulhada na ponta do dedo que ficou fora, substitui o dedo pela gravata” (TELLES, 1998, p. 165). A gravata representa o status, o prestígio dos homens de negócio. Sem ela, a pessoa perderia essa posição, e, ainda mais, cingida, totalmente encurralada pelos animais.

Ambos os símbolos, que o signo do Rato traz, contribuem para a inversão dos valores entre os seres humanos e os roedores, tendo a tomada do poder como último patamar dessa transposição. Ao consumir tudo que estava pela frente, expulsando tudo e todos do local, assumindo o controle do VII Seminário de Roedores, os ratos se apoderam de uma posição que, naturalmente, pertenceriam aos homens.

A tomada do poder e, por sua vez, o desfecho do conto, alicerçam o princípio da hesitação. Não há quaisquer indícios de como o evento se sucedeu, ou o porquê dele se manifestar. A atmosfera de tensão e medo diante de um fato que se desconhece, e, principalmente, de algo que não se pode controlar, não possui resolução ou definição. Ou seja, todos os elementos dentro da narrativa constituem e propiciam o gênero literário Fantástico.

Comentários Finais

Ao longo de sua narrativa no conto Seminário dos ratos, nota-se a significativa presença do gênero Fantástico, principalmente ao elemento da Hesitação posterior à vivência de um evento antinatural, promovendo um diálogo entre o racional e o irracional, a realidade e a fantasia, o inverossímil e o verossímil. Tal Hesitação, consoante a Rodrigues (1998)

[…] mostra o homem circunscrito à sua própria racionalidade, admitindo o mistério, entretanto, e com ele se debatendo. Essa hesitação que está no discurso narrativo contamina o leitor, que permanecerá, entretanto, com a sensação do fantástico predominante sobre explicações objetivas. A literatura, nesse caso, se nutre desse frágil equilíbrio que balança em favor do inverossímil e acentua-lhe a ambiguidade (p. 11).

Em todos os eventos manifestados no conto, essencialmente, o comportamento anormal dos ratos na mansão que sedia o VII Seminário dos Roedores, simultaneamente, com a não tomada de posicionamento das personagens e, por sua vez, as dos leitores, fica evidente a presença do Fantástico no conto da escritora paulista.

Portanto, após as reflexões teóricas a respeito do Fantástico, e também a análise literária do conto Seminário dos ratos, nota-se que a proposta de Todorov, tendo como característica essencial o fator Hesitação produzido pelo contato do evento sobrenatural, inexistente em nosso mundo racional, é substancial para a definição do gênero Fantástico.

REFERÊNCIAS

AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel de. Teoria da literatura. 5ª Ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1983, p. 515.

ANTUNES, Irandé. Lutar com palavras: coesão e coerência. São Paulo: Parábola Editorial, 2005.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos: (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números). Trad.: Vera da Costa e Silva. 15 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000.

PAWELS, Louis; BERGIER, Jacques. O Despertar dos Mágicos In: Introdução ao Realismo Fantástico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

RODRIGUES, Selma Calasans. O Fantástico. São Paulo: Ática, Série Princípios, 1988.

TELLES, Lygia Fagundes. Seminário de Ratos. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. trad. Maria Clara Correa Castello, 2a ed., São Paulo: Perspectiva, 1992.

 

[i] “Nunca ofereça ao espectador nada de incrível / A verdade pode, às vezes, não ser inverossímel”.

[ii] O diabo apaixonado foi um dos principais livros do escritor francês Jacques Cazotte.