Deslocamentos e desterriorialização em duas narrativas contemporâneas

Carlos Henrique Vieira

RESUMO: Este trabalho analisa as narrativas O filho da mãe (2009) e Lorde (2009), respectivamente de Bernardo Carvalho e João Gilberto Noll, para mostrar como os autores abordam questões típicas da contemporaneidade, como a desterritorialização, a facilidade de deslocamentos e as noções problemáticas de nação e identidade. Os deslocamentos compulsórios dos personagens evidenciam a sensação de não pertencimento as suas nações, a viagem se configura como uma tentativa de fuga da precariedade e da marginalidade e, ao mesmo tempo, revelam a busca constante por pertencer a algum lugar ou a alguém. Por outro lado, os deslocamentos empreendidos revelam que o espaço ficcionalizado pelos autores é a cidade-global que compartilha tanto a configuração do espaço cosmopolita quanto as mesmas formas de exclusão.

PALAVRAS-CHAVE: Deslocamentos; desterritorialização; O filho da mãe; Lorde.

ABSTRACT: This work analyzes the narratives O filho da mãe (2009) and Lorde (2004), by Bernardo Carvalho and João Gilberto Noll, respectively, to show how the authors address typical contemporary issues such as deterritorialization, the facility of displacement and problematic concepts of nation and identity. The characters’ compulsory displacement underlines the feeling of not belonging to their nations the trip is configured as a chance to escape from marginality and precariousness, and reveals the frequent search for belonging to somewhere or someone. On the other hand, displacement undertaken by the characters show that the space fictionalized in these narratives is the global city that shares the overall configuration of cosmopolitan space and kinds of exclusion.

KEY-WORDS: Displacement; deterritorialization; O Filho da mãe; Lorde.

                 

Personagens à deriva, em trânsito contínuo, que manifestam o desejo de evasão, bem como a impossibilidade de permanência são recorrentes nas obras de Bernardo Carvalho e João Gilberto Noll. Em suas narrativas, ambos os autores têm explorado o espaço urbano globalizado no qual as distâncias foram diminuídas e as fronteiras dissolvidas, sobretudo, pela facilidade de deslocamento. Por outro lado, a reconfiguração do mundo moderno permite ainda que estes escritores problematizem questões como o pertencimento a uma determinada nação, a alteridade vivenciada no estrangeiro e a contínua sensação de inadequação, muitos dos personagens de Carvalho e Noll são outsiders independentemente do local onde estejam.

Podemos encontrar este tipo de personagem nas narrativas que analisaremos neste artigo, a saber, O filho da mãe (2009) eLorde (2004), de Carvalho e Noll, respectivamente, e em outros livros dos autores, como, Nove Noites (2002,) Mongólia (2003) e O sol se põem em São Paulo (2007), de Carvalho, ou em Berkeley em Bellagio (2002) e Solidão Continental (2012), de Noll.

O filho da mãe faz parte do projeto “Amores Expressos”, no qual escritores brasileiros passaram um mês em diferentes cidades do mundo com a missão de escreverem uma história de amor, além de manterem um blog durante o período em que permanecessem na cidade de destino. Desde a leitura do blog mantido por Carvalho, durante a sua estadia na cidade russa de São Petersburgo, podemos perceber que o autor não buscava representar no seu romance a beleza da cidade turística. Pelo contrário, ao escrever o seu último texto para o blog, ele conta entre outras coisas uma visita aos “guetos” da cidade russa e afirma:

E, por incrível que pareça, é entre essa sucessão deprimente de enormes blocos de apartamentos, alguns em estado avançado de decrepitude, margeando uma imensa avenida, um mundo na maior desolação, que pela primeira vez reconheço a vida que eu procurava para o meu romance, a do outsider, que de alguma maneira tem a ver com a minha própria experiência na cidade e é a única que eu consigo entender. (Carvalho, no blog)[i].

A partir desta procura por vidas outsiders, Carvalho constrói a trama de sua narrativa centrada em São Petersburgo. É nela que ocorre o encontro de dois jovens: Ruslan é um imigrante tchetcheno que vai para São Petersburgo fugindo da guerra, a Segunda Guerra da Tchetchênia que serve como pano de fundo para a história, e em busca da mãe que o abandonara ainda criança; Andrei é de Vladivostok, extremo oriente da Rússia, e vai a São Petersburgo para servir o exército, mas depois de se tornar um desertor, conta apenas com a ajuda de Marina, uma das mulheres do “Comitê das mães dos soldados de São Petersburgo”, e a companhia de Ruslan, enquanto espera o seu passaporte para poder fugir da Rússia.

Deste improvável encontro de jovens que compartilham sentimentos parecidos, como a solidão, a orfandade, o medo da guerra e o desejo de evasão, surge uma deslocada relação homoafetiva, fadada a ser destruída.

Lorde é resultado da temporada que Noll passou em Londres, entre os meses de fevereiro a abril de 2004, como escritor residente no King’s College. Tal como seu autor, o narrador de Lorde é um escritor que vive em Porto Alegre até receber o convite de uma instituição britânica para ir a Londres. Instalado em Londres o escritor passa a buscar outra identidade que o faça pertencer àquela cidade, mas não obtém sucesso em sua busca. Regressar a Porto Alegre deixa de ser uma opção e, ao final da narrativa, o escritor dá continuidade ao seu trânsito compulsório partindo para Liverpoll.

O que observamos em ambas as narrativas é que estes personagens manifestam uma relação não idealizada com suas nações de origem e ao iniciarem os deslocamentos em busca de um lugar onde possam ocupar além das margens reforçam o processo de desterritorialização, eles passam a rejeitar qualquer possibilidade de regresso e manifestam o desejo de seguir em frente com as suas buscas, mesmo que estas não se realizem satisfatoriamente.

Assim, Ruslan e Andrei dão início as suas trajetórias de fuga ao saírem de suas cidades, Grózni e Vladivostok, respectivamente, para radicarem-se em São Petersburgo, cidade que marca o início e também o fim de qualquer possibilidade de evasão do domínio russo. Em São Petersburgo Ruslan passa a furtar turistas que andam desprevenidos pelas ruas da cidade, com o intuito de conseguir roubar um passaporte estrangeiro e com isso poder deixar para sempre aquele país.

Ao contrário de outros personagens da literatura contemporânea, que sofrem com a sensação de não pertencimento estando fora de seu país, Ruslan e Andrei, apesar de migrarem de uma República que busca a sua independência e do extremo oriente da Rússia, respectivamente, não se encontram separados de sua terra de origem, mas ambos tornam-se estrangeiros dentro de seu próprio país. Isto é, são personagens apátridas, que não se sentem parte da sociedade à qual deveriam pertencer.

Como bem salientou Vidal (2012), os personagens de O filho da mãe vivenciam a exclusão e a marginalização a despeito dos limites de um único Estado-Nação, ela reconhece a representação de um “outsider desterritorializado” (VIDAL, 2012, p. 87); e ressalta: “há um deslocamento da representação do outro para uma experiência comum; e por sua vez essa experiência comum tem a ver com uma margem desvinculada do imaginário nacional” (VIDAL, 2012, p. 87).

O desejo de evasão é maior do que a preocupação com o que possam vivenciar em outro país, como fica claro a partir do seguinte diálogo entre Ruslan e Andrei. Ruslan diz:

– Na minha cidade são as crianças que roubam, pedem esmolas e se vendem. Não quero voltar para lugar nenhum. Só quero sair daqui.
– Pra onde?
– Não sei. Não importa. Para longe deste lugar, para fora deste país.
-E por que não sai?
-Ainda não juntei todo o dinheiro. Vou comprar um passaporte. Se não conseguir roubar um de verdade antes. Um dia, talvez, com sorte eu consiga roubar o passaporte de um turista. (CARVALHO, 2009, p. 136, grifos meus).

Andrei, por sua vez, depois de abandonar o exército fica à espera de seu próprio passaporte, para partir para o país de seu pai, o Brasil. Enquanto isso, ele chega até mesmo a imaginar como seria sua vida fora da Rússia, no Brasil e ao lado de Ruslan:

Imagina uma casa na praia, longe do mundo que até hoje ele conhece, no país do seu pai, onde ele nunca esteve, onde vivem os inocentes. É a casa de que seu pai lhe falava quando Andrei era pequeno. Ele a imagina branca. E, nessa casa, ele imagina a vida possível. Imagina o batedor de carteiras a seu lado. (CARVALHO, 2009,  p. 157).

No entanto, a chegada do passaporte de Andrei é o marco inicial da separação do recruta e do batedor de carteiras tchetcheno, “o passaporte sela a separação entre os dois” (CARVALHO, 2009,  p. 158). Ironicamente, o marco da ruptura é um símbolo material da possibilidade de deslocamento na contemporaneidade. Assim, o desejo de Andrei jamais chega a ser realizar, uma vez que nenhum dos personagens consegue sair da Rússia.

Em Lorde o descolamento é realizado em virtude do convite de um inglês, que permite ao escritor trocar Porto Alegre por Londres e posteriormente por Liverpool. O motivo da viagem não é revelado nem ao escritor-personagem, nem aos leitores, no entanto, o que se observa é que o aceite do escritor deve-se mais a uma espécie de repulsa à sua cidade de origem, que alguma atração pela cidade de destino. E ainda, a viagem revela-se uma tentativa de fuga da solidão e da precariedade. Lemos no início do romance:

Então eu vim. Parece fácil dizer “então eu vim” – alguém todo preparado para atravessar o Atlântico de uma hora para outra, sem ter nada o que deixar que carecesse de sua presença. Mas afirmo que essa é uma das frases mais espinhosas que já pronunciei nesta já não tão curta existência: “Então eu vim”. Poderia dizer que antes eu teria de resolver isso e aquilo. Não, que nada, eu teria apenas de trocar minha solidão de Porto Alegre pela de Londres. E ter na Inglaterra uma graninha extra para me sustentar. (NOLL, 2004, p. 10).

Depois de instalado em Londres, o escritor brasileiro inicia uma alucinante perseguição em busca de outra identidade, uma identidade mais próxima da britânica, ainda que artificial. Assim, quando numa conferência surge uma memória da sua infância no Brasil, o país que já se tornara uma abstração em suas lembranças, o escritor lança mão de recursos artificiais, como pó compacto e tintura para o cabelo, na tentativa de forjar uma identidade diferente da sua. Afinal, a pele mais branca pela maquiagem e o cabelo mais claro pela tintura, lhe permitia se sentir “idêntico a tantos homens que andavam pelas ruas de Londres” (NOLL, 2004, p.32).

Essa busca por uma nova identidade revela-se de acordo com uma característica da sociedade contemporânea, regida pela lógica do consumo, o que implica na busca pelo novo, tornando produtos, pessoas, e mesmo identidades e ideologias descartáveis mais facilmente. Como ressaltou Bauman (1998):

o mundo construído de objetos duráveis foi substituído pelo de produtos disponíveis para imediata obsolescência. Num mundo como esse, as identidades podem ser adotadas e descartadas como uma troca de roupa. (BAUMAN, 1998, p. 112, grifo meu).

Consequentemente, para o escritor-personagem Londres torna-se a cidade à qual ele deve adaptar-se em detrimento de Porto Alegre, o que o conduz a tentar sobreviver naquela nova cidade, com uma nova e imprecisa identidade, tornando-se “parte daqueles autores imigrantes, sem nacionalidade precisa, sem bandeira para desfraldar a cada palestra, conferência” (NOLL, 1998, p. 33). Ao contrário do que possa parecer, Londres não é representada como a cidade ideal, afinal ela também apresenta problemas e espaços semelhantes como os da capital gaúcha abandonada pelo personagem, como a violência e a exclusão social, além de existir uma espécie de alerta constante das forças de segurança contra a ameaça de algum ato terrorista. Tanto que após o suicídio do inglês, que garantia a estadia do escritor naquela cidade, ele parte para Liverpool, levando consigo os mesmos desejos que carregava ao desembarcar na capital inglesa. Portanto, o trânsito deste personagem mostra-se ininterrupto, sempre em busca de um lugar onde possa viver menos precariamente, ainda que tal busca mostre-se mal sucedida.

Para Brasileiro (2010), as viagens nas obras de Noll são também metáfora da incursão no interior do próprio narrador-personagem; logo, o deslocamento se torna tanto físico quanto subjetivo, o que invariavelmente resulta na crise e no esfacelamento de noções antes estabelecidas como a da própria identidade. Segundo ele,

As novas realidades a que os personagens de Noll se deparam, geralmente em torno dos grandes centros urbanos, provoca um abalo no quadro de referência do sujeito. Diante deste abalo, velhas identidades, baseadas em paradigmas de classe, gênero, raça ou nacionalidade entram em crise. A representação dessa crise de paradigmas que Noll constrói em seus textos se apresenta como uma oposição discursiva e artística aos fundamentalismos ideológicos que ganharam força nas últimas décadas do século XX e início do século XXI. (BRASILEIRO, 2010, p. 84-5)

Acerca da viagem nas narrativas de Noll publicadas entre as décadas de 1980 e 1990, Avelar (1999) já havia ressaltado o quão diferente elas se configuram, sobretudo, se comparadas com a tradição da literatura moderna que também tratou da viagem, de acordo com o crítico:

Ao contrário das viagens que constituíram um dos gêneros privilegiados da modernidade, de Swift a Humboldt e Jack Kerouac, as viagens de Noll não adotam nenhuma função libertadora, pedagógica ou edificante. A arquitetura do texto de Noll – a deriva constante, o foco na primeira pessoa, a tentativa individual de extrair significado do passado, a natureza temporalizada de tudo – convida uma aproximação com oBildungsroman, exceto que nunca se estabelece nenhum Bildung, posto que os personagens perderam a capacidade de aprender com a experiência (AVELAR, 1999, p. 177).

Assim também se apresentam as viagens dos livros mais recentes do autor, tanto em Lorde, quanto em Solidão Continental, por exemplo, onde os inúmeros deslocamentos não se dão em virtude de alguma daquelas funções salientadas por Avelar, mas em razão da impossibilidade de se manter fixo a um lugar, o trânsito é compulsório e os personagens aparecem reduzidos ao seu corpo. Invariavelmente, o corpo de um homem maduro, oriundo do sul do Brasil e muitas vezes em decomposição como a própria memória e a identidade dos personagens.

Logo, os protagonistas de O filho da mãe e o narrador-personagem de Lorde apresentam-se como cidadãos do mundo, mas, por outro lado, são também sujeitos de lugar nenhum. Afinal, para os personagens de Carvalho e Noll não há um “lar” para o qual voltar ou onde permanecer com segurança. A transitoriedade e incerteza quanto ao futuro é evidenciada também pelos lugares que ocupam. Pois, ocupam lugares provisórios, ou “não-lugares”, segundo o conceito de Marc Augé (2005), como apartamentos emprestados ou hotéis, onde a permanência é invariavelmente temporária.

Como a permanência e o pertencimento aos lugares onde se encontram mostram-se impraticáveis, esses personagens passam a buscar no corpo do outro o amparo desejado. O que lhes possibilita, ao menos, o estabelecimento de algum vínculo. Mesmo porque, como apontou Butler (2009) ao analisar as vidas precárias da contemporaneidade, a capacidade de sobrevivência de qualquer sujeito não depende apenas dele, mas da sua relação com o outro. Assim, ela defende que

se a minha capacidade de sobrevivência depende de uma relação com os outros, com um “você” ou “vocês” sem os quais não posso existir, então a minha existência não é só minha, mas encontra-se fora de mim, neste conjunto de relações que precedem e ultrapassam os limites de quem eu sou. (BUTLER, 2009, p. 44) (tradução minha)[ii].

Pois, a ausência de vínculos torna o corpo ainda mais vulnerável e a sua capacidade de sobrevivência ainda mais incerta. Portanto, podemos entender que os personagens passam a buscar ansiosamente no corpo do outro algum alento, pois tentam, como última saída, diminuir a já latente vulnerabilidade, mesmo que este outro corpo seja igualmente vulnerável.

Em O filho da mãe se qualquer envolvimento afetivo entre Andrei e Ruslan parece improvável, sobretudo, em razão de como acontece o encontro dos dois, a princípio, um tornando-se vítima do outro, a fugaz relação homoafetiva que os une surge da percepção de que compartilham a solidão, o desamparo e o abandono, “há um reconhecimento” (CARVALHO, 2009, p. 124). Logo, para Ruslan a

ideia de uma vulnerabilidade maior que a sua lhe desperta o amor. Para Andrei, ao contrário, a euforia silenciosa vem da descoberta e da estranheza, da novidade de intuir que ali de alguma forma, em meio ao que resta do mundo perdido à sua volta, compartilha a memória afetiva do homem ao seu lado. E que está menos só. (CARVALHO, 2009, p.139).

Assim também em Lorde, desde a chegada do escritor em Londres ele busca, sem sucesso, um companheiro para a sua jornada. A princípio, o inglês representa este possível companheiro: “Aquele homem poderia ser o companheiro que lá no centro imune do meu desconsolo eu me acostumara a sentir sem esperar” (NOLL, 2004, p. 13), mas antes mesmo do suicídio do inglês ele conclui que só “podia amá-lo como a um amigo a quem se deve a vida” (NOLL, 2004,p. 74). O segundo a representar a possibilidade de companhia é Mark, um professor de Estudos Latino-Americanos, da Empire University, no entanto, o escritor foge diante da possibilidade de um envolvimento, foge, pois, já não sabia dividir sua nudez com ninguém. Nudez que pode ser entendida como a física, a do corpo envelhecido ou “maduro in extremis” (NOLL, 2004, p. 46-7), mas também como uma nudez mais subjetiva que possa surgir a partir do envolvimento afetivo, transparecendo as dores, medos, desejos e fracassos desse homem acostumado a viver solitariamente. Apenas em Liverpool, quando conhece George, um ex-estivador do porto da cidade, igualmente solitário – “havia uma solidão nele que podia acompanhar a minha” (NOLL, 2004, p. 106) – o escritor acredita ter encontrado o que buscava: “Eu tinha encontrado a cidade, o meu lar, o meu homem” (NOLL, 2004, p. 106).

A partir das ideias de Bauman podemos pensar essas personagens como produtos de uma condição moderna, haja vista que, segundo ele, a modernidade está diretamente relacionada ao nomadismo, onde os habitantes deste mundo moderno colocam-se em constante movimento, devido ao desejo de fixar-se a algum lugar e a impossibilidade se sua concretização.

Em outras palavras, a modernidade é a impossibilidade de permanecer fixo. Ser moderno significa estar em movimento. Não se resolve necessariamente estar em movimento – como não se resolve ser moderno. É-se colocado em movimento ao se ser lançado na espécie de mundo dilacerado entre a beleza da visão e a feiura da realidade – realidade que se enfeitou pela beleza da visão. Nesse mundo, todos os habitantes são nômades, mas nômades que perambulam a fim de se fixar. (BAUMAN, 1998, p. 92).

Segundo o sociólogo, os deslocamentos e o desenraizamento dos sujeitos se intensificam na contemporaneidade, tanto que opõem dois tipos de viajantes, a saber, o turista e o vagabundo (vagabond). Segundo ele, os turistas são aqueles que viajam porque querem, partem atraídos pela busca de lugares excitantes e experiências diversas, uma vez que “acham o lar maçante ou não suficientemente atrativo” (BAUMAN, 1998,p. 116), eles mantêm relações superficiais com os locais e com as pessoas, pois, “abandonam o local quando novas oportunidades não experimentadas acenam em outra parte” (BAUMAN, 1998,p. 114). Enquanto, os vagabundos se movem, desejando fixar-se em algum lugar; afinal, se eles estão em movimento é porque foram impelidos a isso, no entanto, em nenhum lugar no qual eles param são bem-vindos.

Logo, a partir desta oposição pensada por Bauman, podemos entender os personagens de Carvalho e Noll, como representativas deste segundo tipo, haja vista que os deslocamentos observados em ambas as narrativas estão distantes de serem aqueles realizados pelos turistas, mas são semelhantes aos que impelem os vagabundos a deslocarem-se. Pois, enquanto

os turistas se movem porque acham o mundo atrativo, os vagabundos se movem porque acham o mundo insuportavelmente inóspito […] Os turistas viajam porque querem; os vagabundos, porque não têm nenhuma outra escolha. Os vagabundos, pode-se dizer, são turistas involuntários. (BAUMAN, 1998, p. 118) (grifos do autor).

Os deslocamentos empreendidos por estes personagens nos revelam ainda como o espaço urbano recriado pelos autores é a cidade global. Como ressaltou Lopes (2002), a supremacia da imagem no século XX, devido à fotografia, o cinema, à TV e ao computador provocou “uma indissociabilidade entre imagem e cidade” (LOPES, 2002, p. 173), o que resultou na necessidade de repensar as relações de proximidade e distância, uma vez que as fronteiras foram alargadas, “a ponto das cidades se misturarem” (LOPES, 2002, p. 173). Assim, os viajantes, bem como suas representações literárias descolam-se entre continentes desterritorializados e cidades globalizadas.

Os personagens de Carvalho e Noll deambulam por grandes centros urbanos, as megalópoles do século XXI, nas quais se pode observar o constante e veloz fluxo de pessoas, mercadorias e capitais, no entanto, eles estão à margem de tudo isso e ocupam os espaços periféricos destes grandes centros. Consequentemente, não é preciso muito para notar que São Petersburgo, Moscou, Londres, Liverpool ou Porto Alegre, cidades presentes nas narrativas aqui analisadas, apresentam espaços e problemas semelhantes de qualquer centro urbano do século XXI, como bairros periféricos onde se alocam imigrantes e pessoas de baixa renda; pontos turísticos típicos de qualquer cidade (rios, museus, avenidas principais, parques etc.) que dividem espaço com a degradação e a miséria; áreas centrais movimentadas e efervescentes durante o dia, mas que à noite são tomados por excluídos e marginais que habitam seus guetos e becos; ou até mesmo os seus McDonalds[iii].

Uma vez que os protagonistas dessas narrativas são outsiders, há a recorrência de espaços periféricos, como os becos abandonados de São Petersburgo, ou os bairros londrinos de imigrantes; assim, não só as fronteiras das cidades foram expandidas, mas também a desigualdade e exclusão social, o que consequentemente, nos leva a entender que estes espaços urbanos apresentam-se reconfigurados, pelo o que Santiago (2004) definiu como “cosmopolitismo do pobre”. Tal termo, segundo ele, refere-se a:

uma nova e até então desconhecida forma de desigualdade social, que não pode ser compreendida no âmbito legal de um único estado nação, nem pelas relações oficiais entre governos nacionais, já que a razão econômica que convoca os novos pobres para a metrópole pós-moderna é transnacional (SANTIAGO, 2004, p.51) (grifos do autor).

Para concluir, podemos destacar que ambos os autores problematizam em suas literaturas questões centrais do mundo contemporâneo. Nas narrativas aqui analisadas as noções de nação, identidade e pertencimento, por exemplo, já aparecem reformuladas pelas transformações que conduziram a este início de século XXI. E, como bem observou Santos (2006), ao tratar de assuntos como estes a

literatura contemporânea evidencia a dúvida lançada sobre os limites e as divisas entre culturas e nacionalidades: põem-se em xeque “certezas” como a compreensão naturalizada de nação. Consequentemente, ser cidadão do mundo seria a expressão por excelência do homem contemporâneo seduzido pelo canto da sereia que lhe oferece possibilidades infinitas em um contexto em que o trânsito é a glória de um mundo integrado pelo comércio internacional ou mesmo pela acolhida do ciberespaço. (SANTOS, 2006, p.191).

Consequentemente, podemos entender que os deslocamentos transnacionais são empreendidos pelos tipos sociais representados em virtude da própria constituição dessas vidas, a saber, corpos vulneráveis que anseiam pela possibilidade do deslocar-se, a fim de fugir da precariedade e da solidão. Logo, eles são impelidos ao nomadismo pelo desejo de encontrar no incerto percurso algum lugar ou alguém que lhes deem segurança ou o conforto do pertencimento, uma vez que a nação de origem ou as cidades pelas quais eles passam não cumprem mais a função de abrigá-los, mas, ao contrário, os expulsam para as suas margens e para além de suas fronteiras.

Referências

AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma Antropologia da Sobremodernidade. Trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa: 90 Graus Editora, 2005.

AVELAR, Idelber. “João Gilberto Noll e o fim da viagem”. In: Travessia, revista de literatura. Florianópolis, n. 39, 1999, p. 168-192.

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Tradução: Mauro Gama, Cláudia Martinelli Gama; revisão técnica Luís Carlos Fridman. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

BRASILEIRO, Marcus Vinícius Câmara. Deslocamento e subjetividade em João Gilberto Noll, Silviano Santiago e Bernardo Carvalho. 2010. 243 f. Tese – Faculty of the Graduate Scholl, University of Minnesota, Minneapolis. 2010.

BUTLER, Judith. Frames of war: When is life grievable?. New York: Verso, 2009.

CARVALHO, Bernardo. O filho da mãe. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

__________. Blog do Bernardo Carvalho. Projeto “Amores expressos”. Disponível em: <http://blogdobernardocarvalho.blogspot.com/>. Acesso em: 10 de maio de 2010.

LOPES, Denílson. O homem que amava rapazes e outros ensaios. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002.

NOLL, João Gilberto. Lorde. São Paulo: Francis, 2004.

SANTIAGO, Silviano. O Cosmopolitismo do pobre. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.

SANTOS. Claudete Daflon dos. “A Veneza possível”. In: Matraga. nº 18. Rio de Janeiro: Editora Caetés, 2006. p. 191-215.

VIDAL, Paloma. “Viagem e experiência comum: O filho da mãe, de Bernardo Carvalho”. In: DALCASTAGNÈ, Regina. MATA, Anderson Luís Nunes da. (organizadores).  Fora do retrato: estudos de literatura brasileira contemporânea. Vinhedo: Editora Horizonte, 2012. p. 81-92.

 

[i] Trecho do último post do blog do autor: “Brincando de mímica em russo”. Disponível em: . Acesso em: 10 de maio de 2010.

[ii] Inglês [EUA]: “if my survivability depends on a relation to others, to a “you” or a set of “yous” without whom I cannot exist, then my existence is not mine alone, but is to be found outside myself, in this set of relations that precede and exceed the boundaries of who I am” (BUTLER, 2009, p. 44).

[iii] Refiro-me, particularmente, a um episódio de O filho da mãe, no qual o encontro entre Marina, uma das mães do Comitê das mães dos soldados, e Olga, mãe de Andrei, acontece num McDonald’s de Moscou.