O discurso de memórias ficcionalizado em Heranças, de Silviano Santiago

José Olivir de Freitas Junior

RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo analisar o romance Heranças, de Silviano Santiago, primeiramente tendo em vista a possibilidade de leitura da obra como ficção histórica. Além disso, avaliaremos a constituição da narrativa como discurso de memórias (Ricœur, 2007 e 2010). Num segundo momento, apresentaremos o procedimento discursivo do romance sob a perspectiva dos estudos sobre (auto)biografia (Lejeune, 2008). Por fim, trataremos brevemente sobre a figuração do sujeito e da fragmentação da identidade (Hall, 2006) no romance.

PALAVRAS-CHAVE: Heranças; Ficção histórica contemporânea; Discurso de memórias.

ABSTRACT: The present work aims to analyze the Silviano Santiago’s novel Heranças, primarily owing to the possibility of reading the novel as historical fiction. In addition, we will evaluate the construction of the narrative as memories discourse (Ricœur, 2007 and 2010). Secondly, we will present the discursive procedure of the novel from the perspective of the studies on (auto)biography (Lejeune, 2008). Finally, we will discuss briefly the figuration of the individual and the identity fragmentation (Hall, 2006) in the novel.

KEYWORDS: Heranças; Contemporary historical fiction; Memories discourse.

 

Descobrimos a criação das formas e, desde então,
falta sempre remate final àquilo que as nossas
mãos lassas e desencorajadas abandonam.
Georg Lukács

Ficção histórica contemporânea

Não é atual a vertente dos estudos literários que trata de circunstâncias históricas. Georg Lukács publicou, em 1937, o estudo ORomance Histórico[i], que trata da narrativa histórica “clássica”[ii], inaugurada pelo escritor Walter Scott. Para Lukács, oromance histórico configurava uma narrativa que buscasse a figuração da história através da apreensão do passado pelanarrativa, de modo que aquela demonstrasse os motivos e circunstâncias passadas que deram origem ao presente da escrita.(LUKÁCS, 2011, p.117-136). Por outro lado, o crítico húngaro afirmava que a narrativa ficcional que representasse o passado nãodeveria ter ligação com o tempo de vida do autor, isto é, o romance tinha que tratar do passado distante, não presenciado peloescritor, como na narrativa épica. (LUKÁCS, 2011, p. 282-306).

Mas não é sobre o romance histórico de Scott que trataremos. É preciso citar Lukács para poder rever sua análise do romancehistórico, que condenava ao desaparecimento este tipo de narrativa, já que as narrativas realistas e naturalistas procediam aooposto do modelo ideal apresentado pelo crítico. O período que se seguiu ao fim da Segunda Guerra Mundial (de 1945 em diante)revelou uma produção literária bastante plural a partir do procedimento dito “vanguardista” que o Modernismo consagrou. Neste trabalho, interessa-nos avaliar, em especial, os romances do período que abrange o fim do século XX, essencial para apreensãoda ficção do início do século XXI, ainda que se dê para o recorte temporal citado a definição genérica de “contemporaneidade”.

Os romances contemporâneos apresentam as mais diversas configurações. Entre narrativas fantásticas e relatos quasebiográficos, encontramos a ficção que se realiza através do entrelaçamento entre a ficção e as circunstâncias históricas[iii], umentrelaçamento, diga-se, diferente daquele que Lukács percebeu no romance histórico clássico. Marilene Weinhardt destaca que

não se pode negar que, na literatura contemporânea, há uma linhagem significativa de romances voltados para o passado, ainda queas expressões mais criativas já não se conformem aos padrões de excelência lukacsianos. O romance histórico contemporâneo não seconfunde com o de Walter Scott, nem com o de Flaubert, respectivamente modelo e antimodelo para Lukács. (WEINHARDT, 2011, p. 42)

O que apreendemos é que, seguindo uma tendência à pluralidade de discursos nas narrativas contemporâneas, o romancehistórico se configura de maneira diversa do que Lukács descreveu. A nova configuração é objeto de estudo de vários críticos,incluindo alguns que negam a existência de um romance histórico[iv]. No âmbito da investigação sobre como se dá a escrita daficção histórica, Weinhardt indica:

[…] para situar o lugar da narrativa que comporta o cruzamento dos dois campos discursivos, é possível formular uma conjectura:se é um dado empírico que existem narrativas ficcionais que não são históricas, narrativas históricas e, entre essas duas formaçõesdiscursivas, narrativas de ficção histórica, pode-se entender estas últimas como uma necessidade resultante de uma carência naescrita da história, não porque a historiografia como tal não dá conta da tarefa que lhe é própria, mas porque há carências em quecabe à arte investir, e só a ela, porque pode indagar sobre verdades sem a expectativa de uma resposta conclusiva (WEINHARDT,2011, p. 51).

Percebemos então que, no campo da História, a investigação concentra-se na questão da narrativa histórica quando atribuído ovalor de “verdade” em relação ao passado, isto é, aquilo que estava posto é reavaliado, discutido, de modo a perceber outrasperspectivas. Na Literatura, a mesma questão se funda na ficcionalização de tal verdade, ainda que não haja nenhumanecessidade de a Literatura responder, checar ou obter respostas às demandas históricas. Além da interseção entre as duasáreas, ocorre também o diálogo. A narrativa ficcional recorre à História para se concretizar enquanto discurso que requerconfirmação ou efetivação do seu caráter indagador. A História, por sua vez, eventualmente usa dos recursos da Literatura parase realizar enquanto discurso, tendo em vista a dificuldade em completar as lacunas que se abrem entre a documentaçãoremanescente e a verdade histórica deixada no passado.

A produção literária brasileira das últimas duas décadas do século XX recebeu significativa contribuição de autores para a ficçãohistórica. Em decorrência disso, também se intensificou a produção de estudos a respeito deste “subgênero”[v], conforme explicaWeinhardt:

Nas últimas décadas, a abundância de títulos ficcionais que dialogam com a história, provocou correspondente intensificação nosestudos críticos, não exclusivamente sobre escritores brasileiros. Eventualmente envereda-se para reflexões mais generalizantessobre ficção contemporânea e sobre aspectos teóricos, mas sem proposta de tratamento mais demorado de uma perspectiva teórica.(WEINHARDT, 2011, p. 39)

Devemos considerar também que, por se tratar de período muito recente, é relativamente pequeno o número de estudiosos quese lançam a procurar características gerais e conceitos, formulando teorias a respeito da produção literária corrente, sobretudoem relação ao subgênero citado. Merecem destaque alguns teóricos da Literatura que realizam uma caracterização da narrativahistórica, ainda que de modo específico e tratando apenas de parte da produção literária ocidental, mas que apresentamsignificativa conceituação sobre a produção recente.

Linda Hutcheon, em sua Poética do Pós-Modernismo, propõe o conceito de metaficção historiográfica para designar a parte daprodução ficcional que se apropria da história. Na introdução do estudo, ela diz:

com este termo [metaficção historiográfica] refiro-me àqueles romances famosos e populares que, ao mesmo tempo são intensamenteautorreflexivos e mesmo assim, de maneira paradoxal, também se apropriam de acontecimentos e personagens históricos.(HUTCHEON, 1991, p. 21).

Em seguida, a autora detalha o conceito:

[…] A metaficção historiográfica incorpora todos esses três domínios (literatura, história e teoria), ou seja, sua autoconsciênciateórica sobre a história e a ficção como criações humanas (metaficção historiográfica) passa a ser a base para seu repensar e suareelaboração das formas e dos conteúdos do passado. (HUTCHEON, 1991, p. 22).

Weinhardt sintetiza o postulado de Hutcheon da seguinte maneira: “[metaficção historiográfica] se distingue da ficçãohistoriográfica por comportar uma aguda autoconsciência de seu processo de constituição” (WEINHARDT, 2011, p. 44). Apesquisadora brasileira completa com as palavras da própria Hutcheon que “[romances metaficcionais historiográficos] não sóidentificam no passado causas para o que veio depois, mas também investigam o processo pelo qual, lentamente, essasmudanças começam a produzir seus efeitos.” (HUTCHEON apud WEINHARDT, 2011, p. 44).

Perry Anderson acredita que o romance histórico é uma das manifestações romanescas contemporâneas. Entretanto, a avaliaçãodo crítico ruma para a configuração de um romance histórico da contemporaneidade diverso do “clássico” descrito por Lukács. Emvez de enredar a narrativa com um pano de fundo que remete à história (incluindo aí personagens e acontecimentos históricos), oromance histórico “reinventado para pós-modernos”

pode misturar livremente os tempos, combinando ou entretecendo passado e presente; exibir o autor dentro da própria narrativa;adotar figuras históricas ilustres como personagens centrais, e não apenas secundárias; propor situações contrafactuais; disseminaranacronismos; multiplicar finais alternativos; traficar com apocalipses. (ANDERSON, 2007, p. 217)

Baseados na afirmação acima e no conceito cunhado por Linda Hutcheon, passaremos, na próxima seção, à análise do romanceenquanto obra que pode ser lida como ficção histórica contemporânea.

Relações entre história e ficção em Heranças

Heranças, publicado em 2008, é o oitavo romance de Silviano Santiago. Sua produção artística é tão vasta quanto a acadêmica,já que o autor é também estudioso de Literatura[vi]. Apesar do risco a que nos expomos ao associar dados biográficos àprodução literária do autor, podemos dizer que, em alguma medida, suas inúmeras viagens ao exterior tiveram reflexo na suaescrita ficcional. As obras Keith Jarret no Blue Note (contos, 1996) e Stella Manhattan (romance, 1985), por exemplo, podem terreflexos da temporada do autor nos Estados Unidos e Viagem ao México (romance, 1993) pode ter ligação com o fato de o autorter estado por algum tempo no país que aparece no título. Mas, reiteramos, são apenas suposições. Por outro lado, há umaestreita relação entre o trabalho ensaístico e acadêmico do autor e a sua produção artística. Esta relação se dá porque,voluntariamente ou não, os trabalhos ficcionais apresentam muito da reflexão acadêmica de Santiago sobre Literatura. Aípodemos incluir a maioria dos seus trabalhos ficcionais, com destaque para o romance Em Liberdade (1981), que parodia a vozautoral de Graciliano Ramos através do pastiche[vii]. Neste e nos demais textos ficcionais, percebemos o constante diálogo coma literatura já produzida e com os escritos críticos sobre esta. Prova disso é a ficcionalização do autor de Memórias do Cárcere noEm Liberdade. Ali, Santiago transpõe à voz do escritor consagrado o contexto social brasileiro à época da escrita do romance(lembremos que o romance foi publicado em fins do período ditatorial brasileiro) e, ao mesmo tempo, coloca em diálogo ocânone literário, ao inserir Cláudio Manuel da Costa como interlocutor, especialmente sobre o tema do encarceramento.

Inferimos do conjunto de textos literários[viii] de Santiago que, em grande medida, o diálogo com outros textos – literários ounão –, particularmente com as circunstâncias históricas que permeiam a narrativa ficcional, são uma constante. O diálogo éinevitável, pois a criação literária referencia-se por outras obras, de modo que o texto nunca é novo, mas um trabalho que podetanto ratificar, quanto questionar textos anteriores. Sobre isso, Gérard Genette diz que o diálogo entre o hipotexto (ou textoprimordial do qual surgem todos os demais) e o hipertexto (o texto que faz referência ao hipotexto) se dá através da“transtextualidade, ou transcendência textual do texto, que definiria já, grosso modo, como ‘tudo que o coloca em relação,manifesta ou secreta com outros textos’”(GENETTE, 1982, p. 08). Neste sentido, o romance que analisamos aqui também podeser lido como uma figuração hipertextual de diferentes narrativas que o precederam, de modo que sua constituição se dá tantopelo enfrentamento ou negação do “padrão” estilístico quanto pela validação da realização estética de escritos anteriores. Oprocedimento descrito acima serve como base para a apresentação das leituras realizadas do romance, que seguem no próximoparágrafo.

A primeira leitura do romance Heranças nos mostra uma narrativa de ficção em primeira pessoa, em que o narrador éprotagonista. Num olhar preliminar, sem pretensões analíticas mais profundas, a ideia que vem à cabeça do leitor é de que setrata de uma “autobiografia ficcional”[ix], isto é, o narrador (que não é o autor empírico, como constatamos quando vemosdiscrepância entre o nome que aparece na capa do livro e aquele com que o narrador se autodenomina) conta a história daprópria vida. Uma segunda leitura, mais atenta e com objetivo de encontrar traços e marcos específicos, mostra que estamosdiante de um romance em que, diferentemente da listagem de acontecimentos na vida de uma personagem (comum às biografiase autobiografias não ficcionais), há uma análise crítica do “narrador-autor” em relação aos próprios atos e aos “acontecimentos” -presentes e passados – que marcaram a sua “existência”.

A “visão crítica” do narrador aponta para uma reflexão sobre a própria narração do fato. Em diversas passagens do texto onarrador cita seu “relacionamento” com a escrita – e consequente exposição – sobre si mesmo: “A copeira bate à porta doescritório e interrompe bruscamente o diálogo que mantenho comigo na tela do computador. Ainda nos estranhamos todos. Osdedos e o teclado. As palavras e a tela” (SANTIAGO, 2008, p. 12). Temos então a primeira parte do “binômio” hutcheoniano: ametaficção. A segunda parte do binômio tem lugar quando a relação que o texto estabelece com outros textos anteriores seapresenta com maior evidência. No caso de Heranças, uma das fontes de referência é a obra de Machado de Assis, que se dápelo “empréstimo” dos recursos discursivos do consagrado autor, como o tom irônico, os desvios no plano do enredo através dedigressões e as constantes alterações do tempo da narrativa pelo uso de analepses e prolepses. Outras fontes, menos explícitas emais ligadas aos procedimentos linguísticos adotados na escrita e no formato da narrativa, serão abordadas mais adiante.

A narrativa romanesca não deve fidelidade à realidade, ao mundo empírico. A memória é um ente volátil, por isso pode trazerconsigo outros aspectos da história na construção do texto de ficção, como o imaginário e a supressão de determinados “fatos”que talvez não sejam interessantes para a narrativa. De fato, construir uma narrativa que se atém ao relato de acontecimentostal como eles ocorreram não parece uma opção sedutora ao escritor, que vai além do corriqueiro, do trivial, para atrair o leitor.Partindo deste pressuposto, concluímos que o narrador de Heranças parece estar mais interessado em apresentar “como” do que“quando e onde” os acontecimentos da sua vida tiveram lugar.

Imbricada no tempo cronológico da narrativa há uma série de evocações a acontecimentos direta ou indiretamente ligados àtrajetória individual do narrador, mas que tiveram destaque no tempo histórico, isto é, no período do tempo empírico em que anarrativa se baseia. Em primeiro lugar, temos a descrição do presente da narrativa: ano de 2007. A personagem é um magnatajá aposentado do mercado imobiliário de Minas Gerais. Logo nas primeiras páginas ele se apresenta como tal, ao mesmo tempoem que descreve o ambiente em que se encontra, um apartamento confortável, à beira-mar, no Rio de Janeiro. Também nesse“primeiro ato”, já indica a que veio: está a escrever a própria “biografia”. Tece algumas considerações sobre o estágio de vidaem que se encontra, parecendo estar cansado de viver, considerando que até escolheu o cemitério em que quer ser enterrado:“Elegi a cidade, escolhi o cemitério. Decidi passar os últimos anos de vida no Rio de Janeiro e ser enterrado no S. João Batista”(SANTIAGO, 2008, p.07). Em seguida, inicia a trajetória de retorno ao passado através da lembrança de sua vida na BeloHorizonte desde a década de quarenta. As memórias, no decorrer da narração, são cuidadosamente apresentadas pelo narrador esurgem em ordem relativamente cronológica, ainda que não haja marcos temporais constantes. Intercaladamente às memórias,comparecem à escrita algumas considerações do narrador sobre estas, num trabalho de autoavaliação.

Não é por acaso que o narrador foi apresentado até agora como incógnito, nomeado como apenas “narrador”. Como se trata deuma narrativa em primeira pessoa e o narrador, como já dissemos, trata da própria vida, o designamos como narradorautodiegético. Entretanto, em algumas passagens, esse narrador, que se chama Walter, sai da posição de protagonista paraassumir o encargo de contar outras histórias que direta ou indiretamente assumem papel importante na sua história. Entre estas,incluímos as das várias amantes que Walter manteve e a de Filhinha, irmã falecida em um controverso acidente automobilístico.

Nas primeiras páginas do romance, Walter indica que pretende contar ao “possível leitor” toda a sua história, para que este leitorsaiba como e por que o rico empresário da construção civil aposentado chegou ao patamar social em que se encontrava nomomento da escrita, no ano de 2007. A narração, portanto, começa in medias res. Interessa-nos aqui o procedimento dealternância entre a rememoração do passado e a autoanálise do narrador, enquanto faz estas incursões pela memória. Mas esteassunto (a memória) será discutido mais adiante.

Walter se autodenomina um “filhinho de papai” ou, com uma expressão francesa que ele repete muito, um parvenu, isto é, seuestilo de vida teve uma mudança drástica depois da morte do pai e da irmã, seus únicos parentes. Os dois trabalhavam numaloja de aviamentos para costura no centro de Belo Horizonte, na época que vem antes do surgimento das grandes lojas dedepartamento. A loja rendeu uma considerável fortuna a Walter, que não hesitou em se livrar do estabelecimento quando as lojasde departamento começaram a espocar aos montes, em lugar dos refinados ateliês de costura. O protagonista nunca precisoutrabalhar, já que era sustentado financeiramente pela família. Como o pai tinha boa reputação no comércio, o jovem conviveucom pessoas da alta sociedade belo-horizontina, aproveitando a não necessidade de trabalhar para aprimorar a joie de vivreenquanto o pai e a irmã trabalhavam.

A respeito da peripécia do jovem burguês, destacamos suas incursões pelo submundo da cidade, onde começou seu percurso devirilidade – cabe lembrar aqui que o narrador dedica um capítulo às “princesas venéreas” (SANTIAGO, 2008, pp.69-73) quepassaram por sua vida. Chama a atenção outro detalhe: se, por um lado, Walter apresenta o percurso de sua vida até o tempopresente, por outro, o narrador nos apresenta flashes do desenvolvimento da cidade onde viveu, do país e do mundo. Naverdade, o que acontece é que a construção da narração se dá em um “meio do caminho” entre a personalidade do indivíduo quenarra e as circunstâncias históricas em que, de alguma maneira, este indivíduo esteve envolvido. Por enquanto, deixaremos delado este assunto, pois será o tema da penúltima seção deste artigo.

Além do texto propriamente dito, chamamos a atenção para os paratextos[x]. Aqui cabe retomar o que dissemos acima arespeito da transtextualidade. O leitor identifica o texto como romance porque é a marca premente da capa do livro, logo abaixodo título. São duas epígrafes advindas de provérbios populares. A primeira tem relação direta com o que o leitor encontrará arespeito da relação entre Walter e Filhinha: “quem tem irmão não precisa ter inimigo”. A segunda epígrafe, um provérbioespanhol, apresenta o instrumento de armazenamento da escrita (papel) como o herói do livro, já que o que vem nele escrito écomparável a outras coisas que fazemos com este tipo de material, inclusive a higiene pessoal: “el papel todo lo aguanta; hastaque se limpien con él”. Cada um dos provérbios apresenta a síntese de uma parte do conteúdo dentro do livro. O que apareceprimeiro sumariza o meio pelo qual Walter obteve sua fortuna, ainda que na narrativa não tenhamos um mea culpa explícitosobre a morte da irmã. O segundo, supomos, deixa claro que nem tudo que é escrito é bom, podendo esta afirmação serestendida à própria narrativa que vem em seguida.

Há pouco indicamos que uma das “fontes de referência” para Heranças é a obra de Machado de Assis. Citamos que no romancede Santiago podemos encontrar o “empréstimo” de recursos discursivos do outro autor. Fica clara, então, a noção detranstextualidade, se compreendermos que o texto anterior molda o novo, mas ao mesmo tempo o texto novo transgride regras,revê e transforma o anterior. Isso vem ao encontro do que Anderson alinhavou a respeito do romance histórico. O entretecimentode diferentes planos temporais se dá, não somente pela alternância entre o passado e o presente narrados, mas também pelaintrodução das características discursivas de Machado, que é um dos elementos-chave na construção da metaficçãohistoriográfica descrita no início do nosso trabalho.

As marcas do pastiche da narração machadiana presentes na narrativa de Santiago contribuem não somente para a construção dotexto do último como narrativa que dialoga com o passado, mas também com a caracterização do narrador autodiegético.Exemplos do uso dos recursos machadianos é a digressão. Apesar de o romance ser constituído por muito menos capítulos do quenormalmente os de Machado tinham – são apenas trinta e três –, são inúmeras as passagens do romance em que há “desvios” dofio narrativo, particularmente quando muda o plano temporal. Este transcrito abaixo é bastante peculiar. Além de parodiar oprocesso de digressão, há também a “conversa com o leitor”, outro elemento característico da obra machadiana:

Compete ao primeiro leitor, que é também autor, saber se se deve deixar que bom senso e autocensura se abracem. Prometo ao queme acompanhou até aqui. Se porventura vier a refugar vocábulos, passagens ou páginas deste manuscrito, deixarei escrito nesteexato lugar:
Algumas passagens foram censuradas pelo autor.
Promessa é promessa. É dívida. Embora não a possa pagar na hora da leitura, já que estarei na cova espiritual, onde o vil metal nãoconta. (SANTIAGO, 2008, p. 110)[xi]

O citado pastiche, que envolve o uso ou a recorrência ao texto referencial, não serve como único modelo. A narrativa de Santiagonão apenas pratica o mesmo tipo de procedimento, mas também trabalha com a apropriação desse procedimento, referendando ooriginal e reconhecendo sua importância. Daí o uso do procedimento discursivo de outro autor não implicar necessariamente naridicularização ou na tentativa de romper com o modelo. Por isso, o efeito produzido pelo referendo cabe em outra nomenclatura:a paródia. Na acepção tradicional, dicionaresca, paródia é a apropriação que, em lugar de referendar o modelo, o subverte, demodo que o que se configura é a crítica, a ironia. No romance, como dissemos, o que se percebe é o endosso do texto anterior. Adubiedade da afirmação é explicável. Linda Hutcheon, no estudo intitulado Uma teoria da Paródia, afirma que a paródia é a

repetição, mas repetição que inclui diferença; é imitação com distância crítica, cuja ironia pode beneficiar e prejudicar ao mesmotempo. Versões irônicas de “transcontextualização” e inversão são os seus principais operadores formais, e o âmbito de ethospragmático vai do ridículo desdenhoso à homenagem reverencial. (HUTCHEON, 1989, p. 54)

Notemos que a autora atribui à paródia mais do que apenas os conceitos de ironia e quebra de paradigmas. A “versão” do textopredecessor pode tanto favorecê-lo quanto arruiná-lo. Aí a ironia serve como ferramenta para a segunda opção. Identificamosque a ironia, entretanto, é o objeto de “cópia” por parte da narrativa de Santiago. Então, a primeira opção é a mais adequada emrelação à “aplicação” do procedimento machadiano no romance, especialmente porque, em vez de satirizar ou ironizar oreferencial, o texto absorve a ironia (que, junto com a digressão e a conversa com o leitor, é característica essencial de Machadode Assis) e a apresenta nos mesmos moldes do texto de referência. O título do romance – Heranças – corrobora a paródia. Talqual Esaú e Jacó, (ASSIS, 1904) título que antecipa o tom de galhofa do texto (lembremo-nos que o título pode ser lido comoironia referente tanto à parábola bíblica quanto à conversão do Império em República no Brasil), o título do romance de Santiagoironiza a trajetória da personagem protagonista, que herdou loja de armarinhos da família e, devido ao bom caráter do pai e àhonestidade da irmã, herdou também sérios desvios de caráter.

Bem, a honestidade no caráter é consequência da falta de largueza de Nossa Senhora dos Partos na confecção da genitália masculina.O bom crédito na praça e a opção pelo casamento monogâmico são efeito da parte baixa masculina, e não, como se divulga,consequência da personalidade masculina, moldada pela tradição familiar e a formação religiosa e educacional. (SANTIAGO, 2008, p. 131)

No trecho acima, temos exemplo do uso de ironia por parte do narrador-protagonista. Há aí uma sátira sobre os padrões sociais, que consiste em comparar as medidas da genitália masculina à maior ou menor propensão ao bom caráter.

História recontada

Certamente que reconstruir a história tal como ela ocorreu não é o intento original da ficção. Entretanto, a narrativa ficcionalpode servir como meio de revisão, confirmação ou interpretação do pensamento e do fazer histórico. Neste sentido, a ficção tema capacidade de dar conta daquilo que a história não pode “contar”, seja por não ter subsídios comprobatórios suficientes, sejapor não ter liberdade para tal. Na segunda opção reside a supressão citada no início do subtítulo anterior, ainda que lá elejamos aescolha do autor como principal causa para a “falta” de informações e o lugar da supressão seja a ficção, não a história.Transportando o termo para a história, veremos que a “escolha” não se dá por conveniência da narrativa, mas pelo efeito que osuprimido pode ter sobre o leitor da narrativa histórica (não-ficcional) em sua época de escrita. Ricoeur, no volumoso estudoTempo e Narrativa (2010), explica o caráter libertador da ficção sobre a história, no sentido de que aquela pode trazer à luzaquilo que esta não pôde ou não conseguiu:

Embora seja verdade que uma das funções da ficção, misturada com a história, é liberar retrospectivamente certas possibilidades nãorealizadas do passado histórico, é por meio de seu caráter quase histórico que a própria ficção pode exercer a posteriori sua funçãolibertadora. O quase-passado da ficção torna-se assim o detector dos possíveis escondidos no passado efetivo. O que “poderia teracontecido” – o verossímil segundo Aristóteles – abarca tanto as potencialidades do passado “real” como os possíveis “irreais” da puraficção. (RICOEUR, 2010c, p. 327)

Inferimos que a verossimilhança e o “poderia ter acontecido” são duas partes fundamentais na leitura da ficção histórica, demodo que até mesmo as narrativas “irreais”, isto é, aquelas que, sob o ponto de vista histórico, têm pouca ou nula chance de teracontecido podem de alguma maneira representar uma possibilidade de elucidação dos “escondidos do passado efetivo”. Emseguida, o filósofo também indica que

essa profunda afinidade entre o verossímil da pura ficção e as potencialidades não realizadas do passado histórico talvez explique,por sua vez, porque a liberação da ficção das imposições da história – imposições resumidas na prova documentária – não constitui[…] a última palavra no que concerne à liberdade da ficção. (RICOEUR, 2010c, p. 327)

Concluímos, então, que a ficção de fato não deve nem precisa figurar a história do modo com que já enunciamos no início destesubtítulo. Ricoeur declara que reside na verossimilhança o caráter de dar vazão às “potencialidades não realizadas” do passadohistórico, sem obrigatoriamente usar a prova documental como confirmação de seu discurso. Na visão do filósofo, não hásomente um uso pela ficção da potencialidade não realizada, mas inclusive um uso pela própria história do que a ficção deixa delado. Sobre isso, Ricoeur afirma que

[…] o entrecruzamento entre história e ficção na refiguração do tempo repousa, em última análise, nessa sobreposição recíproca, como momento quase histórico da ficção trocando de lugar com o momento quase fictício da história. (RICOEUR, 2010c, p. 328)

Partindo desta afirmação, tecemos aqui alguns comentários sobre a sobreposição que Ricoeur afirma existir entre o passadohistórico e a figuração ficcional deste passado, particularmente sobre o nosso objeto de análise.

Em Heranças, o entrelaçamento entre o que é ficção e o que é histórico acontece muito subjetivamente, isto é, podemos perceberque existe ligação entre os acontecimentos do passado ficcional e o passado histórico. Mencionamos anteriormente que onarrador realiza um retorno ao passado através da lembrança ocasionada por fatos do presente da narrativa. Dentre lembrançasde cunho pessoal ou familiar, vez ou outra aparecem lembranças que não estão exatamente enquadradas numa memóriaindividual, mas na coletiva. Para poder contar sobre a experiência da passagem da fase juvenil para a adulta, Walter evoca aprópria história do seu local de crescimento, traçando, ainda que não intencionalmente, um paralelismo entre a sua trajetória devida e o desenvolvimento urbano da ainda jovem Belo Horizonte. É evidente na narrativa o estabelecimento do paralelismo,especialmente quando o narrador apresenta a maneira com que a cidade cresceu. Por exemplo, onde antes era um bairrodormitório[xii] (Walter cita alguns bairros, como Funcionários, Lourdes e Savassi, locais empíricos que, conforme o relatoficcional, eram bairros limítrofes da cidade e, com o crescimento do perímetro urbano, tornaram-se bairros centrais), num tempofuturo (mas ainda passado em relação ao presente da narrativa), se tornaria um centro comercial e residencial de classe mediaalta.

Consideramos necessária uma contextualização, ainda que bastante pontual, do passado histórico da capital mineira parapodermos traçar mais claramente o paralelismo entre o passado narrado e o passado histórico que serve de pano de fundo àação do narrador. A partir de fontes históricas documentais[xiii], sabemos que a capital de Minas Gerais foi uma das primeirascidades brasileiras a ter um planejamento anterior à sua construção. O processo de criação da nova capital, que sucedeu OuroPreto como cidade sede do governo mineiro, começou em fins do século XIX, quando a recém-instalada República ainda estavaem vias de consolidação enquanto regime de governo no Brasil. Como forma de demonstrar o progresso que o regimerepublicano traria à nação – ideia esta advinda do pensamento positivista trazido da Europa – o governo encampou a bandeira damodernização. Não por acaso, esta modernização também apagava – ou pretendia apagar – as marcas que o período monárquicodeixou, inclusive no planejamento urbano do país.

Em Minas Gerais, o esforço dos republicanos se concentrou na mudança da capital para uma cidade totalmente nova, de modoque nem Ouro Preto, cidade com configuração tradicional e nos moldes imperiais, nem outras cidades mineiras com origemparecida poderiam ser capital, senão uma nova cidade, projetada para ostentar o poder inovador e modernizador da república,em detrimento do suposto “atraso” do regime anterior. O projeto e a construção da nova cidade foram encabeçados peloengenheiro Aarão Reis, entre os anos de 1894 e 1897. O engenheiro esperava que a população da cidade não crescesse emnúmero superior a cem mil habitantes em cem anos. A população da nova capital, que não era maior que 12.000 habitantes em1897 (SOUZA, 2008, p. 42), cresceu a ponto de chegar a 140.000 habitantes trinta e três anos depois (setenta anos antes doprevisto por Reis, portanto). Esse crescimento se deu de forma descontrolada, o que resultou na desfiguração do plano original dacidade. A partir da década de 1940, a explosão demográfica e a expansão do perímetro urbano para muito além da “Avenida doContorno”[xiv].

Sobre o termo “modernização”, vemos que as décadas seguintes a 1940 foram marcadas por sucessivas alterações no cenáriourbano de Belo Horizonte, como o surgimento dos bondes elétricos, a construção do complexo arquitetônico da Pampulha, aconstrução de vários arranha-céus no centro da cidade, entre outras. É natural que uma cidade em crescimento invista naadequação de seu espaço para comportar um novo statu quo. Chamamos a atenção para esta condição, porque é daí que parte aperspectiva do narrador quando trata das etapas da sua vida. Este é o ponto de encontro entre o passado narrado individual e oda coletividade. Entre um e outro sumário sobre a adolescência do narrador, são feitas longas descrições dos bairros e da cidade,dos edifícios e do quotidiano das ruas de BH, entremeadas por comentários sobre a situação econômica da época e dos anosseguintes. Este procedimento é frequente e dele também vêm outros traços do passado histórico.

Como dissemos na breve contextualização acima, Aarão Reis é um dos fundadores de Belo Horizonte. Não é por coincidência,portanto, que o primeiro negócio próprio de Walter seja batizado com o nome do engenheiro-fundador. É claro que o fato de aempresa ser uma construtora também é muito relevante para tal escolha, sobretudo porque é na mesma cidade projetada porReis que o parvenu mineiro vai enriquecer às custas da especulação sobre imóveis. Neste caso, Walter se torna o próprio AarãoReis, com poderes de modelar a cidade ao seu prazer. Não podemos nos esquecer das descrições do bairro da juventude deWalter: Lourdes. O narrador apresenta o bairro em duas épocas diferentes, mostrando a discrepância entre o passado e opresente, falando sobre os antigos casarões de tradicionais famílias (período equivalente às décadas de 1940 a 1960) e a“floresta de concreto” (da década de 1970 em diante) que se armou sobre os escombros daquelas casas, em especial a da própriafamília do narrador.

A adolescência de Walter é tema bastante explorado no romance. Há pouco, citamos as “princesas venéreas”, que representam aparte menos glamourosa da vida sexual do narrador. Mas também havia uma contraparte. O jovem, assim como outros da suaépoca, cobiçava as moças “casadoras”, mas ele não tinha a mesma intenção, como vemos no trecho abaixo:

Depois de ter transladado aos trancos e barrancos o núcleo familiar para a vida urbana, o patriarca sobrevivia na competição com osfilhos de estrangeiro e com os estrangeiros naturalizados. Durante a Segunda Grande Guerra e a partir dela, os estranhos ao soloferruginoso é que emprestaram novo e inédito movimento a Belo Horizonte. A metrópole se modernizava hierarquicamente. Decontrapeso, como dizem os açougueiros, o patriarca era acompanhado da prole numerosa e exigente. Com o capital interiorano àmíngua e com o trabalho mal remunerado de funcionário público, com os filhos presos às despesas escolares ou à procura deprofissionalização, o que o pai de família podia oferecer em troca à generosidade dos enricados pela modernização? […] Na sala devisitas, à janela ou no alpendre, havia uma preciosidade, a que os maldosos companheiros de juventude chamavam de mariposa e ospoetas românticos, de flor. Mariposa ou flor, a pedra preciosa era guardada a sete chaves dentro das paredes do lar e, quandoexposta ao público em roupagem de donzela virgem, tornava-se atraente aos olhos desvirginados e injuriados pela Princesa Venéreada Vida. Passei a adquirir na capital do estado o delicado e precioso produto comercial, manufaturado e embalado senhorilmente nascidades do interior. Eu dava uma mãozinha ao patriarca em apuros. (SANTIAGO, 2008, p. 120-121)

Aqui, podemos perceber claramente o entrelaçamento entre o passado individual e o histórico. O interesse do jovem era pelamoça, mas o senhor que narra esta experiência percebe a “negociata” que o falido patriarca do interior se obriga a fazer paranão cair nas graças da penúria. A filha tornava-se objeto de barganha para a sanha do jovem abastado, que queria“experimentar” outros quartos, para além dos seus conhecidos na região do meretrício. Além disso, o trecho selecionado sintetizaperfeitamente o processo pelo qual passa o país inteiro no período histórico que se inicia com a alavancagem da industrializaçãoe que teve por consequência o êxodo de boa parte da população rural para as cidades. Isso obviamente aumentou a procura porimóveis nas cidades, o que corrobora com a perspectiva mercadológica apresentada pelo narrador, que lucra com o aumento dademanda imobiliária e também com a decadência do modelo político antes forte, representado pelos antigos senhores dasfazendas do interior, que perderam o prestígio de outrora para os industriais.

Notemos que, desde o princípio de nossa análise, fica evidente que o processo de narração enfatiza um discurso baseado nalembrança, na memória, ainda que saibamos que é uma memória criada, fictícia. Até agora, afirmamos que é possível fazermuitas relações entre a narrativa e o passado histórico. Apresentamos, é claro, apenas algumas das possíveis relações. Todavia,cremos que o que apresentamos é suficiente para dar subsídio ao que trataremos na próxima seção: o discurso de memórias.

Memória: usos e abusos

Esta seção será dedicada a tratar do discurso de memórias enquanto procedimento narrativo em Heranças. Dissemosanteriormente que o romance apresenta na sua tessitura relações com o passado histórico. Entre os modos de abordar a históriana narrativa de ficção, a opção neste romance foi pela exposição das lembranças do narrador na medida em que ocorria aescrita, ou melhor, o que lemos é um relato da personagem sobre sua vida, mas não de maneira prescritiva ou baseada emelementos verificáveis em documentos. Observemos, porém, que o tipo de narrativa que se utiliza com mais frequência desteprocedimento é a narrativa autobiográfica, que pode ou não ser ficcional. Philippe Lejeune (2008) indica dois modos de encarar amemória enquanto discurso:

Existem duas atitudes diametralmente opostas em relação à memória. Sabe-se que ela é uma construção imaginária, ainda que sejapelas escolhas que faz, sem falar de tudo que inventa. Alguns optam por observar essa construção (fixar seus traços com precisão,refletir sobre sua história, confrontá-la a outras fontes…). Outros decidem continuá-la. (LEJEUNE, 2008, p. 105-106)

Apreendemos desta afirmação uma distinção muito específica entre ficção e não-ficção, no que se refere à narrativamemorialística. Na ficção não há um contrato com a verdade, com a confirmação da realidade. Não arriscaremos dizer queacontece o contrário na autobiografia não-ficcional, até porque Lejeune não diz isso. Diz, na verdade, que o contrato daautobiografia é com a reflexão a respeito do passado, ainda que a (re)construção dele não seja possível na sua totalidade. Enfim,temos aqui uma confirmação do caráter volátil da narrativa que pretende dizer o passado, exatamente o que Ricoeur disserasobre o passado histórico. Também não ousamos dizer que a ficção não possa exercer a mesma função da autobiografia, nosentido de guardar (no texto escrito) o passado individual, mesmo que este passado não possa ser resgatado na sua totalidade.Neste sentido, Paul Ricoeur (2007) corrobora com o conceito de parcialidade da memória na tentativa de expressar o passado:

Se podemos acusar a memória de se mostrar pouco confiável, é precisamente porque ela é o nosso único recurso para significar ocaráter passado daquilo de que declaramos nos lembrar. (RICOEUR, 2007, p. 40)

A pouca confiabilidade reside justamente no fato de não podermos alcançar a totalidade do passado. A memória, da mesmaforma, encontra na ficção a possibilidade de preencher lacunas que a visão parcial do passado deixa, assim como acontece com aficção que figura o passado histórico. Por outro lado, também existe falta de confiabilidade na narrativa histórica não-ficcional,exatamente pelo fato de esta também não abranger uma totalidade, mas apenas um ponto de vista.

Para além do caráter parcial, existem outras maneiras de definir a memória. Ricœur, no estudo A Memória, a História, oEsquecimento, declara que é preciso entender a memória não somente como um “reservatório de lembranças”, mas como umaforma de representação do passado e da experiência do sujeito. Essa representação é capaz, seja em qual forma estiver, defazer do seu próprio ato de enunciação uma maneira de significar as coisas, apresentar a realidade para os outros. A memóriapode trazer o conteúdo mnemônico (aquilo que é passado), ausente no presente, novamente à luz, mas sempre de modo arepensar este passado, ressignificá-lo. Ricoeur diz que o ato de memorizar é a economia de um reaprender tal coisa novamente,mas isso exige do sujeito um trabalho penoso de treinamento da sua memorização, de modo que o que está sendo memorizadonão caia em esquecimento.

Para falarmos de todas as acepções de memória, precisaríamos fazer um trabalho dedicado exclusivamente a isso. No nossocaso, decidimos por escolher, do trabalho do filósofo francês, dois aspectos específicos do estudo sobre a memória econcentrarmos neles a nossa análise do romance de Santiago: os “usos” e os “abusos” da memória. No primeiro deles (o uso),trabalhamos com o conceito de “rastros de memória”, largamente estudado por Ricoeur no capítulo “A condição Histórica”(RICOEUR, 2007, p. 297-462) do estudo supracitado. Os rastros de memória se constituem por três diferentes condições: oapagamento, a distorção e a permanência. A condição de apagamento é aquela em que, por motivos outros, faz com que osujeito simplesmente não tenha lembrança de algo que de fato aconteceu. O apagamento pode ser tanto patológico quanto porescolha. Quando é por escolha, ele carrega o esforço do indivíduo em esquecer ou, pelo menos, não lembrar. A distorção, por suavez, é a maneira encontrada pelo sujeito para dissimular, seja por amenização, seja por culpa, a lembrança, muito emboratambém seja possível que a distorção venha pelo viés da memória coletiva, que, de uma maneira ou outra, subtrai conteúdos damemória da comunidade por interesse da própria coletividade. A permanência, ao contrário das outras duas condições, é a que sefaz pela persistência da lembrança sobre o esforço empreendido pela tentativa de distorção ou apagamento.

No romance estudado encontramos pelo menos um exemplo de cada forma de rastro de memória. O apagamento, obviamente, émais recorrente, seja porque o sujeito, conforme dissemos, não pode nem consegue lembrar de tudo, seja porque a memóriaconstante da narrativa é sempre selecionada, então o que a escrita acolhe é o que o autor (aqui refiro-me a Walter, já que nãosão as memórias de Silviano Santiago as que estão no romance, segundo a perspectiva adotada no processo de criação) escolheupara figurar a sua memória. A distorção aparece por um processo muito semelhante ao apagamento, mas tem outras razões.Neste caso, o exemplo mais significativo é o episódio da morte de Filhinha. O modo com que Walter narra as circunstâncias doacidente é que evidencia a distorção:

[…] seria ridículo privilegiar uma das versões que explicam o acidente automobilístico na BR-3. Mais ridículo seria apadrinhá-la. Setomada isoladamente, versão alguma elucida a contento a morte de Filhinha. É tolice partir do fato acontecido e caminhar para oexame de hipótese única. Quando muito, a tática levará a excluir essa ou aquela situação como improvável, fantasiosa oufanfarronesca. Até aí morreu Neves. A avaliação final dos fatos advirá da soma de todas as versões. Quero trabalhar todas as versõesexplicativas do acidente, assim como quis as duas Princesas Venéreas. Excluir simplifica. Empobrece. Nada é simples nesse mundo, anão ser a frágil casca de ovo de galinha. Ninguém é pobre nas intenções. Não me dou trégua, tampouco a transmito ao leitor. Aotrabalho! (SANTIAGO, 2008, p. 125)

Observemos que o narrador não se esquiva da responsabilidade pelo acidente, mas também não a assume. O esfumaçamento dalembrança para mantê-la como incerta é a característica fundamental da distorção. Em contrapartida, a permanência dalembrança sustém aquilo que a distorção tenta mudar e o apagamento tenta afastar. Por outro lado, é a permanência aresponsável pelo ato de lembrar, isto é, o exercício da memória se dá pela persistência da lembrança em estar presente. EmHeranças a trama é sustentada em grande medida pela rememoração do passado, portanto o principal recurso é o da lembrança,enfatizado pela permanência que, de toda maneira, é capaz de trazer ao presente o vulto do passado, seja qual for o caráterdeste vulto.

A respeito dos abusos da memória[xv] – o segundo aspecto que escolhemos – são sistematizadas por Ricoeur outras trêscaracterísticas da memória. A primeira delas, “memória impedida”, é o estado em que o sujeito não tem condições de acesso àmemória. O impedimento se dá pela via patológica, de modo que não é uma escolha, mas uma impossibilidade do sujeito de tera lembrança trazida ao presente por meio do exercício de lembrar[xvi]. Não é o caso do nosso objeto de estudo.

A segunda característica é a “memória manipulada”. Aqui tratamos da memória enquanto produto de uma coletividade, mas queé representado num indivíduo só. Esta representatividade só pode existir porque o sujeito a que nos referimos não é empírico.Daí podermos atribuir a este sujeito a mesma noção de memória que Ricoeur atribui a um coletivo. No caso do narrador deHeranças, a manipulação é muito parecida com o que indicamos acima a respeito da distorção. Entretanto, ali é o caso de umamemória subjetiva demais para ser ampliada ao coletivo. Um exemplo melhor para a manipulação é a o tratamento dado pelonarrador a um período político brasileiro: a ditadura militar. Não há menção direta a nenhum eventual benefício que Walter tenharecebido do governo enquanto trabalhou com especulação imobiliária em Belo Horizonte. Entretanto, há uma ênfase nasinformações sobre o rendimento financeiro da empresa de Walter no período que, no passado da narrativa, coincide com operíodo histórico da ditadura no Brasil. A manipulação não reside nos negócios da empresa de Walter com o regime, mas sim na– talvez proposital – não menção de outros aspectos do mesmo período, como os que, na literatura engajada da década de 1970para cá, em larga escala eram abordados na ficção, como a tirania dos militares, as guerrilhas, entre outros.

A “memória obrigada”, terceira característica do abuso da memória, não é tão marcada no romance quanto as duas anteriores.Isso se dá porque a ênfase do enredo de Heranças não é na exploração de coisas recorrentes em outras narrativas sobre omesmo período (em especial às escritas durante – e não depois – o regime militar), mas em aspectos que, do ponto de vista doleitor comum, nada têm de relação com a ditadura em si, mas que, se observados a fundo, são uma crítica tão dura – senãomais – quanto aquela que os romances de denúncia se propunham fazer. Nesses romances, a vontade de se fazer presente umpassado engavetado à força foi determinante para que se fosse dada visibilidade aos acontecimentos ocorridos no períodohistórico. No romance de Santiago, a visão é duplamente crítica. Por um lado, o autor empírico empresta do passado um tipo deindivíduo da classe social dominante, não afeito a rebeldias de ordem política. Essa escolha é de claro cunho crítico à própriaclasse social da personagem, considerando que esta classe era a que apoiava o regime. Por outro lado, a personagem apresentao passado sob o ponto de vista da classe dominante, sem melindres para falar da posição privilegiada em relação àscircunstâncias históricas e sem se preocupar com eventuais manifestações de desagrado à sua versão. Aliás, a crítica ao“sistema” está perfeitamente entranhada no comportamento do narrador, especialmente na sua atitude perante as outraspessoas. As pessoas de poder aquisitivo menor que o dele, a maioria das mulheres, os empregados e várias outras personagensque podem ser vistas como representantes de classes sociais são descritas pelo narrador através da ênfase nas característicaspejorativas. Por exemplo, Mariazinha, a doméstica de Walter, é sempre mostrada como preguiçosa e pouco qualificada para oemprego. Já as mulheres, de uma maneira geral, são tratadas pelo narrador como objeto de troca, como mercadoria. Exemplodisso é o mesmo trecho que selecionamos no final da seção “História recontada”. Neste trecho, percebemos que, depois deconhecer a “princesa venérea da vida”, o interesse do jovem Walter se deslocou para a caça das mulheres que não tinham aexperiência das que ele pagava para ter.

[…] a pedra preciosa era guardada a sete chaves dentro das paredes do lar e, quando exposta ao público em roupagem de donzelavirgem, tornava-se atraente aos olhos desvirginados e injuriados pela Princesa Venérea da Vida. Passei a adquirir na capital do estadoo delicado e precioso produto comercial, manufaturado e embalado senhorilmente nas cidades do interior. Eu dava uma mãozinha aopatriarca em apuros. (SANTIAGO, 2008, p. 120-121)

O narrador deixa claro que, em vez de seguir o protocolo social do casamento, ele queria mesmo é continuar o que praticava nassuas incursões noturnas, mas com mulheres que nada tinham de parecido com as anteriores, à exceção do pagamento, que saíada mão dos cafetões para a mão do pai das jovens.

Este sumário demonstra que, num jogo inverso à obrigação de lembrar (dos desgostos causados pela ditadura, no caso), anarrativa faz o mesmo trabalho de crítica, mas busca o instrumento de crítica no contraponto dos atores da sociedade do período ditatorial, isto é, no representante da classe social dominante e detentora do poder. A crítica se faz pelo discurso do próprio produtor do sofrimento grandemente detalhado pelas vítimas nas narrativas-depoimento escritas durante e depois dos “anos de chumbo”. A memória, aí, serve de elemento que confirma a crítica, justamente pelas escolhas do uso da memória que o narradorfaz. A construção do discurso do narrador pelo processo de rememoração do passado – somada à manipulação e o supostoesquecimento de parte da história que se pretendia contar – corrobora para a efetivação do que indicamos no início deste artigosobre a figuração do passado e para o que falaremos adiante sobre a autobiografia.

Autobiografia e identidade

Cumprida a etapa de análise sob a perspectiva de Ricoeur a respeito do discurso de memória, avaliaremos o romance deSantiago sob os aspectos da narrativa biográfica, sem esquecer, é claro, de que estamos tratando de uma obra de ficção. PhilippeLejeune, no livro O Pacto Autobiográfico (2008) organiza em um sistema diferentes formas das narrativas do eu. A primeiradivisão é entre o romance (narrativa ficcional) e a biografia. A biografia, primordialmente, é perceptível ao leitor através de umasérie de indicações extratextuais, como a relação entre o nome que consta da capa do livro e o nome daquele que se diz autor ounarrador, por exemplo. O estudioso francês dedica especial atenção àqueles livros que se apresentam como “memórias de umapessoa”, mesmo que esta pessoa não seja empírica. Este tipo de narrativa, no sistema proposto, é um híbrido de romance combiografia, pois está ao mesmo tempo nas duas categorias.

Sobre a biografia standard, Lejeune destaca que é o conjunto de obras feitas por outrem sobre uma pessoa, geralmente umafigura histórica. Outro conjunto de biografias, mais específico, é aquele em que se encontram as obras escritas por uma pessoasobre si mesma, que são chamadas de autobiografias. Vale lembrar que, para o autor, a autobiografia é uma “narrativaretrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular ahistória de sua personalidade.” (LEJEUNE, 2008, p. 14). Nessa perspectiva, autobiografias fictícias não seriam possíveis, pois osuposto autor não é uma pessoa empírica. Por isso, Lejeune inclui este tipo de narrativa na categoria da ficção. Outrasnarrativas, especialmente as que são escritas por outrem, estão em terceira pessoa e não têm indicação – paratextual ou não -de que se trata de texto biográfico, também são incluídas na categoria da ficção.

Para organizar a aplicação dos conceitos formulados, o teórico defende um sistema bastante rígido para classificar cada obra.Todavia, sua perspectiva é de que, na medida em que a narrativa é a tentativa de expressão de uma verdade, fica mais difícilagrupar algumas obras em uma ou outra categoria apenas, sobretudo quando se trata de textos em que, mesmo não sendoidentificados como autobiográficos, há indícios de que o autor empírico acrescenta sua voz no discurso. Sobre a busca por uma“verdade”, Lejeune diz:

Certamente é impossível atingir a verdade, em particular a verdade de uma vida humana, mas o desejo de alcançá-la define umcampo discursivo e atos de conhecimento, um certo tipo de relações humanas que nada têm de ilusório. A autobiografia se inscreveno campo do conhecimento histórico (desejo de saber e compreender) e no campo da ação (promessa de oferecer essa verdade aosoutros), tanto quanto no campo da criação artística. (LEJEUNE, 2008, p. 104)

Portanto, mesmo a autobiografia sendo uma escrita do “eu” empírico, pode ser inscrita no “campo da criação artística”, já que anarrativa por si só é tratada por este viés. Lejeune também demonstra como descobrir se uma narrativa supostamenteautobiográfica o é de fato, como é o caso de Heranças. Para ele, o autor empírico deixa pistas para o leitor identificar a relaçãoautobiográfica. Uma das mais explícitas é quando, na narrativa em primeira pessoa, o nome do autor (que aparece na capa dolivro, geralmente) é identificado com o mesmo nome do narrador e da personagem protagonista. Não é, obviamente, o queacontece no romance. O narrador, que se apresenta como autor, não é a mesma pessoa que o autor empírico, embora nãodescartemos a vivência deste último na construção do romance[xvii], mesmo porque esta é uma das possibilidades que Lejeuneexplora, mas no sentido inverso, isto é, o crítico acredita que a narrativa não tem que necessariamente partir da vivência ou daexperiência empírica do autor, mas de uma construção da identidade narrativa através da própria narrativa:

o que é impressionante é a dissociação esquizofrênica entre a autobiografia como valor (reivindicado) e como realidade (recusada).Por que seria, aliás, interessante ou necessário que uma ficção expressasse o eu profundo do autor? Essa afirmação não seria umaespécie de ilusão de recepção […]? O que é recebido pelo leitor com intensidade e utilizado por ele para a construção de suaidentidade narrativa parece-lhe não poder vir senão do eu profundo do autor. O intenso parece “verdadeiro”, e o verdadeiro só podeser autobiográfico. (LEJEUNE, 2008, p. 106)

Anteriormente, citamos os elementos extratextuais (na terminologia de Genette, o termo é paratexto) para falar a respeito dareferência – direta ou não – que o texto pode vir a fazer a outros anteriores. Estes elementos são elencados por Lejeune comocomprobatórios da inscrição ou não de narrativas nas categorias ficção ou biografia não-ficcional. Obviamente, o romance deSantiago, cujo narrador se chama Walter, não pode ser uma biografia não-ficcional.

Stuart Hall, no estudo A identidade cultural na pós-modernidade (2006), realiza um breve estudo a respeito da configuração dosujeito nos tempos atuais. O título do trabalho usa o termo “pós-modernidade” para se referir a este sujeito, mas a discussãofeita no corpo do trabalho usa o termo “modernidade tardia” para falar do mesmo período. A variação na terminologia pareceacompanhar a fragmentação que o autor atribui ao sujeito deste período. Dos três tipos de sujeito que Hall estabelece no ensaio(sujeito do Iluminismo, sujeito sociológico e sujeito pós-moderno), trabalhamos com o terceiro, já que o tempo abrangido pelonosso trabalho não ultrapassa o início do século XX. O sujeito do romance (ressaltamos que sempre temos em vista que oromance é uma representação do sujeito) pode ser incluído na definição sujeito pós-moderno. A principal característica destesujeito é a fragmentação, no sentido de que, diferentemente do sujeito sociológico, que é construído pelas relações deste com ooutro, o sujeito pós-moderno não é definido necessariamente por estas relações, tampouco pelo estático sujeito do Iluminismo,mas pela indefinição, pelo deslocamento em relação aos dois tipos anteriores. Hall afirma que

um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas no final do século XX. Isso está fragmentandoas paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidaslocalizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a ideia queternos de nós próprios como sujeitos integrados. Esta perda de um “sentido de si” estável é chamada, algumas vezes, dedeslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento — descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundosocial e cultural quanto de si mesmos — constitui uma “crise de identidade” para o indivíduo (HALL, 2010, p. 09)

Esta “crise de identidade” se dá das mais diversas maneiras. Numa figuração do discurso identitário no âmbito ficcional, como é ocaso da narrativa objeto de nosso estudo, há que se ter o cuidado de não perder de vista esta condição de representação dosujeito. Em Tempo e Narrativa, Ricoeur estabelece a diferença entre a identidade do eu e a identidade narrativa do eu:

O rebento frágil proveniente da união da história e da ficção é a atribuição a um indivíduo ou a uma comunidade de uma identidadeespecífica que podemos chamar de identidade narrativa. “Identidade” é tomado aqui no sentido de uma categoria prática. A históriacontada diz o quem da ação. Portanto, a identidade do quem não é mais que uma identidade narrativa. Sem o auxílio da narração, oproblema da identidade pessoal está, de fato, fadado a uma antinomia sem solução: ou se supõe um sujeito idêntico a si mesmo nadiversidade de seus estados, ou então se considera, na esteira de Hume e de Nietzsche, que esse sujeito idêntico não passa de umailusão substancialista, cuja eliminação faz aparecer tão somente um puro diverso de cognições, emoções e volições. O dilemadesaparece se a identidade entendida no sentido de um mesmo (idem) for substituída pela identidade entendida no sentido de um si-mesmo (ipse); a diferença entre idem e ipse não é outra senão a identidade substancial ou formal e a identidade narrativa (RICOEUR,2010c, p. 418-419)[xviii]

A partir desta consideração de Ricoeur, confirmamos que o sujeito não é o mesmo quando é ficcionalizado, mas umarepresentação do sujeito empírico. De qualquer modo, a fragmentação que Hall discute pode ser observada em ambos os casos.O deslocamento se dá pela não estabilidade do sujeito na sua identificação com todas as outras coisas do mundo. Hall enfatizaque não existe um sujeito com identidade estável, imutável e é a temporariedade a característica marcante:

Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendocontinuamente deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porqueconstruímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora “narrativa do eu” (veja Hall, 1990). A identidadeplenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação erepresentação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidadespossíveis, com cada unia das quais poderíamos nos identificar — ao menos temporariamente (HALL, 2010, p. 13)

Heranças constrói uma representação do sujeito tal qual Stuart Hall descreveu como “pós-moderno”. Os nichos de identificaçãodo sujeito, como o sexo, a raça e a posição social, são apresentados na narrativa sob um viés dúbio, em constante mudança.Isso se dá, por exemplo, no modo como o narrador se posiciona enquanto participante de uma classe social que se mostra comotendo determinado modus operandi em teoria, mas que na prática tem outro. Mais ainda, o outro é atribuído a outra classesocial, geralmente de menor poder aquisitivo. É o jogo da inversão de valores que mostra que o sujeito está numa arritmia entreo que é, o que gostaria de ser e o que diz que é. A manifestação da crise de identidade se dá pelo fato de o meio social em quese encontra o narrador ter concepções de moral, ética e comportamento frente aos demais meios, mas se comporta de maneirabastante diversa dessas concepções. É por isso que Walter se denominou um parvenu enquanto jovem: porque sua atitudeperante os membros do grupo social ao qual ele se associou era oposta ao padrão de aceitabilidade imposto pelo grupo, aindaque, na prática, ninguém conseguisse se adequar.

Foi doloroso chegar à conclusão de que a vida em sociedade – para ficar com uma única expressão – não pode ser apanhada entre osrestos jogados pelo vizinho na lata de lixo, nem despenca dos céus como um dom de deuses e reis. (SANTIAGO, 2008, p. 25)

A alternativa encontrada pelo narrador foi a que poderia ter um efeito amenizador do seu comportamento “desaprovável”: odinheiro. Ele usou do dinheiro para preencher o que lhe faltava em educação formal (um dos constituintes do padrão). A falha docaráter, entretanto, permaneceu, justamente porque o dinheiro virou o meio pelo qual o narrador se afirmava enquanto parte deum grupo, mesmo que suas outras atribuições fossem dignas de não inclusão dele neste grupo. O que o narrador nos conta é queele “subornou a moral” alheia por capricho seu:

Restava uma alternativa ao milionário orelhudo da colina de Lourdes. Dar fim útil e agradável à parte dos lucros que, desde a trágicamorte de Filhinha, vinha engrossando as contas bancárias dos Armarinhos São José. Para bem compreender a vida em sociedadenada como compará-la a produto manufaturado. Como qualquer produto feito no Brasil ou no estrangeiro, a vida em sociedadepoderia ser mercadoria no balcão comercial, bem ao alcance de minha bolsa. Custaria dinheiro ao jovem parvenu bronco, mas, emcompensação, poderia render-lhe algumas moedas extras, de precioso valor na praça provinciana da vaidade. Nada comocompartilhar lucros, desde que o ato de caridade trouxesse algum rendimento, digamos moral. (SANTIAGO, 2008, p. 118)[xix]

Esse comportamento do narrador é uma forma de fragmentação, de descentramento. O sujeito é deslocado entre o fato de estar e não estar ao mesmo tempo num grupo. O que o faz participar deste grupo também corrobora para a afirmação: não háinteresse por parte dele em ser bem-sucedido socialmente, mas sim um desejo de demonstrar ter um status social com o qualteria vantagens pessoais, de modo a não ter que prestar contas sobre suas ações, especialmente numa circunstância histórica emque havia o favorecimento daquele grupo social.

Considerações finais

Apresentamos neste trabalho uma breve análise do romance Heranças, de Silviano Santiago. A análise demandou a evocação devárias teorias, obviamente porque uma narrativa de ficção não tem um tema único. Essa demanda, entretanto, teve que serrecortada e ajustada para que pudéssemos fazer uma sistematização dos temas abordados no romance. Sabemos que ainda hámuitos assuntos não abordados aqui, mas isso é trabalho para uma pesquisa de maior fôlego, talvez com resultado em umadissertação. Tentamos explicitar a maneira como a história está representada no romance, tendo como ponto de partida umaescolha teórica (a existência de uma ficção histórica contemporânea e a inserção do romance estudado neste tipo de ficção).Também vimos o procedimento narrativo do discurso de memórias, tendo como desdobramento a configuração de uma narrativaque se constrói nos moldes da biografia. Por fim, buscamos evidenciar o problema da identidade do sujeito pós-modernoenquanto representado na ficção, buscando no comportamento do sujeito ficcional a confirmação da fragmentação afirmada porStuart Hall. Não há uma conclusão sobre nenhuma das discussões feitas aqui, principalmente porque elas foram desenvolvidasaté determinado ponto. Eventuais desdobramentos, não tratados aqui menos por falta de interesse que por necessário recorte,certamente contribuirão para o aprofundamento do debate dos temas expostos neste artigo.

Referências

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BAIRROS DE BELO HORIZONTE. Disponível em: <http://bairrosdebelohorizonte.webnode.com.br/news/a-classica-historia-de-bh-/>. Acesso em 12 Nov. 2011.

GENETTE, Gérard. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Extratos traduzidos por Luciene Guimarães e Maria AntôniaRamos Coutinho. Belo Horizonte: Faculdade de Letras UFMG, 2006.

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[i] Traduzido para o português em 2011, publicado pela Boitempo Editorial.

[ii] “Clássico” é o termo que Lukács usou para falar do romance que, ao tomar as circunstâncias históricas como pano defundo, lida com personagens fictícias no eixo principal, mas pode trazer figuras históricas à narrativa, tanto de um modosecundário quanto por ter sido a figura histórica (empírica) que participou de determinados momentos chave na história não-ficcional tomada como base para a ficção.

[iii] Entendemos que “circunstância” é mais adequado, tendo em vista que “fato” e “acontecimento” são termos que, para otrabalho do historiador, podem não representar exatamente o sentido do trabalho de narrar o passado, isto é, não há uma únicahistória, construída por fatos ou acontecimentos verificáveis, mas várias versões da história, apresentadas sob diferentes pontosde vista. Mas não é objetivo deste trabalho abordar as questões inerentes à busca da verdade histórica, mas sim a investigaçãodo uso da história na tessitura da narrativa de ficção.

[iv] Fredric Jameson apresenta conferência em 2004 (publicada pelo CEBRAP na revista Novos Estudos) defendendo a tesede que o romance histórico tem seu lugar no passado e que na contemporaneidade o que se produz é outra coisa, que não faz aligação ou o enlace crítico entre a história e seus desdobramentos até o presente, mas trabalha com o questionamento da noçãode “verdade” que a história tradicional (disciplina) tinha para si antes.

[v] Consideramos o romance contemporâneo, talvez até o romance de um modo geral, um gênero abrangente ediversificado a ponto de ter subgêneros.

[vi] Silviano Santiago é professor aposentado pela Universidade Federal Fluminense. Além disso, trabalhou no exterior comoprofessor visitante. Ao longo de sua carreira, inclusive até o presente, Santiago também se dedicou a atividades como tradutor,crítico literário, ensaísta e poeta.

[vii] Aqui, nos referimos a pastiche como o procedimento de “colagem” ou aproveitamento do texto de outrem como partedo próprio de modo a dar outro sentido ao escrito original. Santiago apresenta um Graciliano ficcionalizado, mas não é só isso, jáque a escrita de Santiago é comparável à do próprio Graciliano, em termos de procedimentos estéticos e narrativos.

[viii] Insistimos em usar “texto literário” ou “produção ficcional” para as obras de Santiago para não haver confusão com aprodução acadêmica do autor. Neste trabalho não abordaremos atentamente esta última, muito embora a consideremosimportante elemento na trajetória do ficcionista e a citemos en passant no decorrer do nosso trabalho.

[ix] Sobre o conceito de autobiografia dedicaremos, mais adiante, uma parte deste trabalho à discussão sobre as relaçõesentre ficção e a autobiografia.

[x] É o conjunto de informações, textos e outros detalhes que não estão no texto diretamente, mas podem exercerinfluência neste. Gerard Genette diz que o paratexto não se encontra no interior nem no exterior do texto principal, mas no limiarentre o texto impresso e a interpretação desse texto.

[xi] Grifos do autor

[xii] Denominação comum no jargão do Urbanismo e da Geografia, bairro ou cidade dormitório é o local em que o comércioé incipiente e há uma hierarquia demográfica que privilegia a residência, especialmente porque os moradores trabalham emregião prioritariamente industrial ou comercial.

[xiii] Dados pesquisados no sítio eletrônico da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte (queira ver a referência no final dotrabalho) indicam que Belo Horizonte não surgiu de uma cidade pré-existente, mas que foi criada para ser a capital. Comoveremos em seguida, a cidade teve local e projeto de construção definidos de modo que a nova capital ficasse numa regiãocentral do Estado. Também utilizamos como fonte para esta contextualização a tese sobre demografia da região de BH, defendidaem 2008 por Joseane de Souza, na Faculdade de Economia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

[xiv] A Avenida do Contorno era o marco proposto por Aarão Reis para demarcar um “cinturão” que delimitava a cidade e aseparava da área rural. No entanto, com o crescimento acelerado, logo a Avenida foi engolida pela metrópole nascente.

[xv] Ricoeur fala da memória enquanto prática coletiva. O objeto de nosso trabalho é a interseção entre o individual e ocoletivo através da caracterização de uma memória coletiva pela observação de um indivíduo que, por ser fictício, poderepresentar a coletividade a que o filósofo se refere.

[xvi] Em outras palavras, é o estado de enfermidade que impede o acesso à memória.

[xvii] A discussão crítica sobre a influência da vivência do autor na construção da narrativa parece bastante tentadora. Mas,como há que se ter um objeto mais concreto e redutível ao estudo monográfico, sem fugir ao objetivo proposto inicialmente,deixaremos este tópico para outro estudo.

[xviii] Grifos do autor.

[xix] Grifos do autor.