O possível carácter homossexual do personagem Procópio Dias em Iaiá Garcia, de Machado de Assis

Luiz Felipe Ungaretti

RESUMO: Este ensaio tem por objetivo apresentar uma possibilidade de leitura do personagem machadiano Procópio Dias do romanceIaiá Garcia, onde, através das sutilezas que são características do autor, podem-se notar traços homossexuais na figura em análise. Para tanto, parte-se das distinções entre as escolas realista e naturalista, seguidas de um breve estudo da forma com que Machado descreve a sociedade carioca do século XIX na sua obra e uma discussão de prováveis indícios de homossexualidade em seu trabalho.

PALAVRAS CHAVES: Machado de Assis; Procópio Dias; homossexualidade.

ABSTRACT: This essay aims to present a reading possibility of the character Procópio Dias from the novel Iaiá Garcia, where, through the subtleties that are characteristic of the author, can be noted homosexual traits in the figure analyzed. To do so, we start from the distinctions between realist and naturalist schools, followed by a brief study on the way Machado describes the carioca society of the nineteenth century in his books and a discussion of probable evidence of homosexuality in his work.

KEYWORDS: Machado de Assis; Procópio Dias; homosexuality.

 

Um realismo nada naturalista

A porção mais elogiada da obra de Machado de Assis é aquela que mais se aproxima do movimento literário chamado Realismo. Tal escola defendia a total representação do homem e da sociedade, sem contudo mascarar o lado desagradável dessa realidade. Machado foi mestre nessa técnica e em seus livros representou o Brasil como poucos até hoje fizeram, usando, para tanto, de uma sutilidade que virou sua principal característica.

O Realismo surge como uma contracorrente ao Romantismo, um movimento literário que procura ser “imune a tentações da fantasia [e distante] dos enredos inverossímeis” (BOSI, 2012, p. 180). Nas páginas realistas de Machado, nota-se “um permanente alerta para que nada de piegas, nada de enfático, nada de idealizante se pusesse entre o criador e as criaturas” (BOSI, 2012, p. 190). Em sua obra só havia espaço para o que era real e representativo do seu tempo e seu mundo.

Como vertente extrema do Realismo, temos o Naturalismo. A obra O Romance Experimental e o Naturalismo no Teatro, de Émile Zola, é tida como o manifesto do movimento literário. Nela, o francês defende a metodologia aplicada nos processos de investigação científica como modelo para a criação da Literatura, que é por ele denominada naturalista. Segundo Zola (1984, p. 31), assim como o cientista, o romancista deve guiar-se da observação e da experimentação em seus escritos, onde “apresenta os fatos tal qual os observou” representando exatamente a natureza, para em seguida instituir a experiência ao fazer “as personagens evoluírem numa história particular” conforme o determinismo do que foi observado no meio social.

Por apresentar ao seu leitor a pura realidade constatada sem sequer coá-la nos filtros da moral, o Naturalismo foi, por muitos, tachado de obsceno e excessivamente descritivo. O escritor naturalista, ao fotografar e revelar a natureza, muitas vezes reproduzia com objetividade temas vistos com maus olhos pela sociedade de então (como sexo, por exemplo). Sobre o movimento literário, Veríssimo (1998, p. 350) escreveu que é caracterizado por “livros que traziam todas as vulgaridades da vida ordinária […] na descrição minudenciosa”.

As características da escrita naturalista afastam-se do estilo marcado pela subjetividade de Machado de Assis, porém, apesar dessa divergência, nada impede que ambos abordem os mesmos temas; é somente na forma com que tocam suas matérias que se distinguem. O que difere Machado dos naturalistas está na sutileza e sugestão com que o escritor pinta suas observações do meio social, no lugar da explicitação descritiva que o movimento literário defendia. Vale recordar que as escolas realista e naturalista coexistiram no Brasil da segunda metade do século XIX e, portanto, estavam com os olhos voltados para uma mesma sociedade.

Ao falar da narrativa do escritor, Candido (2011, p. 19) ressalta que Machado “timbrava nos subentendidos, nas alusões, nos eufemismos, escrevendo contos e romances que não chocavam as exigências da moral familiar” em um “momento em que os naturalistas atiravam ao público assustado a descrição minuciosa da vida fisiológica”. E completa ao frisar que, enquanto “Zola preconizava o inventário maciço da realidade, observada nos menores detalhes”, Machado de Assis cultivava “livremente o elíptico, o incompleto, o fragmentário”, deixando espaço para que o leitor preenchesse com sua imaginação as lacunas do que fora apenas sugerido, e que no Naturalismo era rigorosamente descrito.

Um exemplo da sutilidade de Machado ao expor um assunto tipicamente naturalista pode ser tirado de Memórias Póstumas de Brás Cubas, onde o personagem-título conta o que sucedeu entre ele e sua amante Virgília na casa em que alugara para servir de teto aos seus furtivos encontros amorosos:

Veja bem o quadro: numa casinha de Gamboa, duas pessoas que se amam há muito tempo, uma inclinada para a outra, a dar-lhe um beijo na testa […]. Há aí, no breve intervalo, entre a boca e a testa, antes do beijo e depois do beijo, há aí largo espaço para muita coisa – a contração de um ressentimento, a ruga da desconfiança, ou enfim o nariz pálido e sonolento da saciedade… (ASSIS, 2011b, p. 163)

Brás Cubas está, na presença de uma ausência, contando ao seu leitor o que consumava com a esposa de outro. O modo machadiano de “dizer calado” insinua aquele que é um dos temas preferidos a serem explorados em descrição pelos autores naturalistas: o ato sexual. Apesar de tratar de um objeto que, por si só, já é vulgar, Machado consegue contar o que se passa em tom de elegância, sem descrever minunciosamente os suores, os tremores, os cheiros ou os gemidos dos seus personagens, como a escola naturalista provavelmente descreveria. Candido (2001, p. 23) aponta que a técnica de Machado de Assis “consiste essencialmente em sugerir as coisas mais tremendas da maneira mais cândida”. Um mesmo objeto; duas formas de ser dito.

Outra evidência dessa suavidade machadiana pode ser observada em um episódio de Quincas Borba. Segundo Araripe Jr. (1892,apud GUIMARÃES, 2004, p. 277), na passagem da obra em que Sofia Palha é assediada por Rubião no jardim de sua casa, ao invés de pintar “uma cena de canibalismo amoroso”, Machado descreve o assédio preservando as aparências, não fazendo uso das descrições cruas e carnais que eram características dos romances naturalistas.  Assim, o autor expõe um tema que poderia também ser retratado pelo Naturalismo – assédio sexual – sem no entanto cair nas cenas pornográficas típicas da escola, mas mantendo o seu recato e contenção.

Conforme aponta Silva (2006, documento eletrônico), Machado de Assis é mestre em uma “escrita marcada pela concisão no limite do apenas aludido ou denotado”. Através de sua subjetividade, o autor discretamente descreve a realidade social de sua época somente sugerindo os assuntos em evidência, sem temer abordar os temas mais naturais, criando o que pode ser caracterizado como “um realismo nada naturalista”.

A representação da homossexualidade na obra machadiana como característica da sociedade do Rio de Janeiro no século XIX

Em seu estudo sobre a presença da paisagem social brasileira nos romances de Machado de Assis, Santos (2003, p. 178-179) reconhece a peculiaridade do escritor em “evitar a descrição, inserindo o ambiente na trama e nas personagens”. Segundo aponta, Machado pinta o Brasil com “a intenção, de base realista, de representar a realidade política e social do país”, sem no entanto recorrer ao cliché do cenário tropical, mas apresentando o “ambiente como extensão dos personagens”. Veríssimo (1900, apud GUIMARÃES, 2004, p. 278-279) ressalta que nos livros de Machado, a essência brasileira não está nos pássaros e palmeiras, mas faz-se presente nas personalidades criadas pelo escritor que, sendo figuras vivas de um país, são sua maior expressão.

Como exemplo dessa representação da sociedade brasileira em seus tipos, podemos analisar uma passagem do romance Quincas Borba em que Machado transcreve as crenças africanas trazidas pelos escravos que permeavam a nossa sociedade e mesclavam-se ao Brasil, assim constituindo um de seus traços. Como era de seu estilo, o escritor não produz essa representação de forma direta e explícita, mas sim sutil e subjetivamente através de seus personagens. No livro, o protagonista Rubião desconfia que o espírito do seu falecido amigo Quincas Borba está presente no corpo de seu antigo cão, que por ordem de Quincas ficou aos cuidados de Rubião e leva o mesmo nome do finado:

Vai senão quando ocorreu-lhe que os dois Quincas Borba podiam ser a mesma criatura, por efeito da entrada da alma do defunto no corpo do cachorro, menos a purgar os seus pecados que a vigiar o dono. Foi uma preta de São João del-Rei que lhe meteu, em criança, essa ideia de transmigração. Dizia ela que a alma cheia de pecados ia para o corpo de um bruto; chegou a jurar que conhecera um escrivão que acabou feito gambá… (ASSIS, 2011c, p. 68)

Dentro da escola naturalista, a relação homoafetiva masculina foi abordada na literatura brasileira na polêmica obra O Bom-Crioulo, de Adolfo Caminha, que narra o relacionamento amoroso entre um marinheiro negro e um jovem grumete, não poupando o seu leitor dos detalhes sórdidos da intimidade de seus protagonistas. Conforme os preceitos do movimento literário, tal tema foi narrado em um romance por ser observado no meio social brasileiro do período, o que nos leva a concluir que já no século XIX a homossexualidade era evidentemente presente na sociedade do país.

De acordo com o relato do médico Pires de Almeida (1906, apud TREVISAN, 2011, p. 175), higienista da época, eram frequentes e de conhecimento de todos os “abusos dos uranistas nos jardins públicos do Rio de Janeiro […] – fosse o largo do Rossio, o largo do Paço ou o Campo de Sant’Ana que constituíam à noite o mais pavoroso cenário da imoralidade”. Segundo Trevisan (2011, p. 181), a situação era tão preocupante que alguns defendiam a importação de prostitutas estrangeiras numa tentativa de modificação de um ambiente social propício a tais inversões sexuais. De fato, em 1846, com a ajuda do cônsul português no Rio de Janeiro – barão de Moreira -, deu-se a primeira importação das prostitutas europeias.

Essa sociedade carioca não era somente a que Machado conhecia e pertencia, mas a que representava em muitos de seus livros. Dessa forma a homossexualidade presente no Rio de Janeiro não seria excluída da representação social de sua cidade em seus contos e romances. Possivelmente, os então chamados pederastas devem ter recebido algum espaço dentro da extensa obra machadiana.

Entre os contos publicados por Machado de Assis na obra Relíquias da Casa Velha, está um que é tido por muitos como uma narrativa homoerótica. A história de Pílades e Orestes explora a relação de dois homens amigos desde a universidade que possuem uma estranha dependência entre si. Quintanilha é um herdeiro rico com uma obsessão não especificada pelo jovem advogado Gonçalves. Ele faz o que pode para ajudar no sucesso profissional e financeiro de seu amigo, que em contrapartida lhe replica as boas ações com atenção e zelo ao colega. Pouco depois de escrever o testamento que gratifica Gonçalves como seu único herdeiro, Quintanilha vai ao escritório do amigo e lhe confessa o desejo de casar com a própria prima, Camila. Gonçalves não reage à notícia com a felicidade esperada pelo futuro noivo e perturba Quintanilha a ponto de provocar nele um sonho onde vê o colega, antes de cair em lágrimas, arrancar o coração do próprio peito e colocá-lo em sua boca para que mastigue o órgão do desesperado. Após o pesadelo, ao visitar Gonçalves, Quintanilha é surpreendido com a devolução de seu testamento por parte do amigo que ainda demonstra sinais de melancolia. O rico herdeiro então desiste de casar-se com sua prima e arranja o casamento do próprio Gonçalves com Camila. O conto termina fazendo uma relação dos protagonistas com os personagens do mito grego que dá título à narrativa.

O personagem Quintanilha é desenhado como detentor de um carinho desproporcional a outro homem, um sentimento que em nenhum momento tem explicitado a sua origem. Já Gonçalves é contido no relacionamento com seu amigo, o que é reproduzido através de uma narrativa que nada traz do íntimo do jovem advogado e que deixa o leitor em dúvida quanto as suas intenções. Conforme aponta Silva (2006, p. 3, grifos do autor), o narrador “se concentra exclusivamente nas ‘cautelas e pensamentos’ de Quintanilha, que acaba exagerando nos ‘carinhos’ para com o outro – a ponto de levantar suspeitas de homossexualidade”. De fato, em dada passagem do conto, este narrador revela sobre o relacionamento dos dois amigos: “A união dos dois era tal que uma senhora chamava-lhes os ‘casadinhos de fresco’ […]” (ASSIS, 1994, documento eletrônico, grifo do autor).

Gonçalves parece temer os boatos a respeito de sua amizade. Sem uma estabilidade financeira e dependendo em parte da opinião pública para o seu sucesso profissional, ele tem muito a perder com a difamação que corre entre o povo. Tal temor pode ser observado no comentário que o personagem faz a Quintanilha quando este conta a indignação de um parente seu com a sua preferência a Gonçalves: “Uma só coisa desejo [diz Gonçalves], é que nos separemos, para que não se diga…”. (ASSIS, 1994, documento eletrônico). Nas reticências da fala está implícito esse medo de que lhe descubram o íntimo. Em outra passagem, ao receber de Quintanilha um quadro com o retrato dos dois, Gonçalves argumenta, sem aparente propriedade mas com objetivos implícitos, que a pintura é horrenda, e induz o amigo a rasgar a tela. Quintanilha então destrói o que poderia vir a ser uma prova física do estranho relacionamento dos dois, deixando com essa atitude satisfeito o seu colega.

Alguns defendem que o interesse de Gonçalves no herdeiro é apenas financeiro, mas esquecem-se de que, no momento de sua chateação com a notícia do casamento, ele devolve o testamento que lhe gratificava com a fortuna do amigo – ação que não condiz com a racionalidade má intencionada com que lhe interpretam.

O casamento é peça chave no conto Pílades e Orestes. Toda a interpretação da insatisfação de Gonçalves com o matrimônio é feita por Quintanilha. Em nenhum momento o advogado demonstra qualquer afeição por Camila. A partir desse momento, Quintanilha abre mão de seu casamento pela suposta realização amorosa de seu grande amigo, ou seja, seu zelo por Gonçalves é tamanho a ponto de escolher a felicidade do advogado a sua, demonstrando ter mais afeição com esse do que com a própria noiva. Por fim, o casamento de Gonçalves com Camila é a solução para ambos os amigos: Quintanilha fica satisfeito com a satisfação de Gonçalves e acaba por unir-se indiretamente com este ao estreitarem-se os laços familiares entre os dois, enquanto Gonçalves realiza-se em ver Quintanilha solteiro e em afastar as suspeitas do estranho relacionamento, que tanto lhe eram prejudiciais.

Por fim, Machado dá o verniz de seu conto com o título, remetendo a dois personagens da mitologia grega que cresceram juntos e tornaram-se amigos inseparáveis. Além de algumas sutis semelhanças nas histórias, temos o conhecimento da presença de relações homossexuais na Grécia Antiga. Conforme atesta Spencer (1996, p. 41), o relacionamento entre um homem mais velho e um mais jovem era comum e exaltado como um rito de passagem onde  o menino era iniciado na vida adulta por seu amante. O que Machado faz é apropriar-se da cultura e do mito grego para criar uma narrativa em que exprime elementos de sua própria sociedade (MACIEL, 2006, p. 3).

Pode-se concluir que existe uma abordagem sugestiva ao tema da homossexualidade que permeia todo o conto, atestando que o autor não era cego a tais comportamentos sociais. Segundo aponta Maciel (2006, p. 6):

Se não há no conto a consumação do relacionamento homoerótico dos personagens principais, pelo menos, há para além das insinuações do narrador a presença de um jogo de desejo que é expresso pelos olhos umedecidos [de Quintanilha] e pelas emoções de ambos […].

O narrador brinca com o fato real e o fato imaginado nas entrelinhas de seu relato. Para além das palavras escritas, temos insinuações que, vindas de Machado, não parecem ser despropositadas. Trevisan (2007, p. 168) comenta:

Dadas as características de uma sociedade como aquela […] (patriarcal, marcada pelo cunho repressor da religião, passível de enquadramento de indivíduos “desajustados” no quadro institucionalizado das patologias psíquicas, favorecedora da ascensão ou queda dos homens conforme sua adaptabilidade a padrões visíveis de conduta…), claro está que um afeto tão próximo e excludente entre dois homens não poderia para sempre passar impune diante dos olhares de todos.

Em comparação com o romance naturalista O Bom-Crioulo, as obras assemelham-se em matéria – homossexualidade –, mas distinguem-se na forma com que a abordam e no objetivo de tal. Enquanto o romance naturalista apresenta de maneira explícita e vulgarmente crua o que foi observado na natureza, Machado traduz com seu típico realismo elegante e contido, expondo o assunto de forma suave e abstrata como característico em seu estilo, sem pecar em cair na descrição fotográfica dos primeiros, mas apenas sugerindo sutilmente o traço de seu povo que ambicionava representar.

O escritor, como mestre na pintura da paisagem social brasileira, aborda uma prática que era vista nas ruas e comentada nas rodas, e assim expõe ao seu leitor – que deve aceitar o inconfesso – mais uma das marcas características da sociedade de sua época. Ao sugerir um relacionamento amoroso entre homens no conto Pílades e Orestes e mostrar-se ciente do assunto, o autor não exclui em absoluto a possibilidade de ter tratado o tema também em um dos seus romances.

Evidências homossexuais no personagem Procópio Dias de Iaiá Garcia

O romance Iaiá Garcia, publicado em 1878, marca o fim das influências do romantismo na chamada “primeira fase” de Machado e dá indícios dos novos horizontes que o autor iria mais tarde explorar. Apesar de ser por muitos considerada uma obra romântica, a ficção já apresenta toques do realismo machadiano que consagrou o escritor.

O livro conta a história de Jorge – um aristocrata do Rio de Janeiro no final do século XIX – que apaixona-se pela jovem Estela. A menina, de origem humilde, opta por casar-se com Luís Garcia, que assemelhava-se a ela na condição social. Sua enteada nesse casamento, Iaiá Garcia, é uma menina petulante e juvenil que, no decorrer da trama, irá trazer à Estela as eventualidades de seus passado.

Em meio ao enredo surge um personagem secundário que chama atenção por suas particularidades. Procópio Dias é apresentado apenas no capítulo VII, já quase na metade do romance, como um conhecido de Jorge dos tempos em que este lutou na Guerra do Paraguai. A figura é de um homem rico, mais velho, que fez fortuna ao retirar seu capital dos bancos antes da crise do mercado financeiro de 1864, investi-la na guerra e triplicar seu capital. Cabe aqui analisar a primeira parte do parágrafo em que Machado descreve Procópio Dias:

Os olhos de Procópio Dias eram cor de chumbo, com uma expressão refletida e sonsa. Tinha cinquenta anos esse homem, uns cinquenta anos ainda verdes e prósperos. Era mediano de carnes e estatura, e não horrivelmente feio; a porção de fealdade que lhe coubera ele a disfarçava, quando podia, por meio de qualidades que adquirira com o tempo e o trato social. […] Além dessa particularidade, havia o feitio do nariz, que representava um triângulo de lados iguais, ou quase: nariz a um tempo sarcástico e inquisidor. Não obstante a expressão dos olhos, Procópio Dias tinha a particularidade de parecer simplório, sempre que lhe convinha […]. (ASSIS, 2011a, p. 112)

Na descrição física do personagem, Machado reproduz sua deformada essência. Procópio enriqueceu com uma guerra, o que demonstra falta de caráter ético ao lucrar com um sangrento conflito que trouxe a tragédia para muitos. Na caricatura que é criada pelo autor, Machado “vincula à alma do capitalista a feiura corporal e moral” (CUNHA, 2013, p. 22). A cor de seus olhos – cor de chumbo – representa o metal que lhe fecha o olhar para o que é correto e bloqueia sua consciência moral; seu nariz grande demonstra a capacidade do personagem de farejar oportunidades como um animal (remetendo as oportunidades de lucro com a crise financeira dos bancos, com a Guerra do Paraguai e, mais tarde, com a morte de seu irmão que lhe agraciava com uma herança) (CUNHA, 2013, p. 22). Machado nos apresenta uma figura moldada “pelo cálculo, ambição e penetração aguda do espírito alheio, prática de quem sabe aproveitar a oportunidade […] em favor de seus interesses” (CUNHA, 2013, p. 6). Temos então um ser canalha, moralmente inferior, deformado em sua ética.

Ao analisar a segunda parte do mesmo parágrafo que descreve a figura de Procópio Dias, podemos chegar a observações que vão ao encontro das expostas acima:

Não usava barba; ele próprio a fazia com o maior esmero. […] As roupas, graves no corte e nas cores, eram da melhor fazenda e do mais perfeito acabado. Naquela manhã trazia uma longa sobrecasaca abotoada até metade do peito, deixando ver meio palmo de camisa, infinitamente bordada. Entre o último botão da sobrecasaca e o único colarinho, fulgia um brilhante vasto, ostensivo, escandaloso. Um dos dedos da mão esquerda ornava-se com uma soberba granada. A bengala tinha o castão de ouro lavrado, com as iniciais dele por cima, de forma gótica. (ASSIS, 2011a, p. 112)

Tal descrição física, acrescida da imoralidade já discutida do personagem, assemelha-se a imagem tida dos homossexuais da época. Em livro publicado em 1894, o jurista José Viveiros de Castro (1894, apud TREVISAN, 2011, p. 179) apresentava características dos “invertidos sexualmente” de seu tempo: “Têm como as mulheres a paixão da toilette, dos enfeites […]. Depilam-se cuidadosamente. […] Mentira, delação, covardia, obliteração do senso moral, tal é o seu apanágio.” Procópio Dias é quem faz a própria barba com muita precisão; suas roupas são de alguém que entende de moda, e seus enfeites são exagerados, escandalosos. Completando o estereótipo do homossexual do século XIX, Dias é apresentado como alguém sem o menor senso moral.

O que supostamente Machado faz é colocar em seu personagem dois dos traços que observou em sua sociedade: a imoralidade e a homossexualidade. Através das duas características – que se completam, na visão da época -, Machado possivelmente representa alguns dos aspectos que marcavam o Rio de Janeiro. A provável “pederastia” de Procópio Dias viria a acrescentar na pintura do desvirtuado personagem e, consequentemente, na desvirtuação moral – não restringindo-se aqui a sexualidade – dentre alguns do povo carioca. Conforme ressalta Candido (2001, p. 32): “o senso machadiano dos sigilos da alma se articula […] com uma compreensão igualmente profunda das estruturas sociais […]. E os seus alienados no sentido psiquiátrico correspondem certas alienações no sentido social e moral”. Ou seja, a homossexualidade – ainda na época vista como um “ismo” psiquiátrico – correspondendo também como a falta de ética e carácter – alienações sociais e morais – do personagem, que por sua vez representa uma parcela da sociedade que Machado observava para descrever.

Em dada passagem do romance, o autor acrescenta informações à personalidade de Procópio:

Procópio Dias tinha dois credos. Era um deles o lucro. […] A não ser o segundo credo, é provável que Procópio Dias só liquidasse com a morte. […] Ora, o segundo credo era o gozo. Para ele, a vida física era todo o destino da espécie humana. Nunca fora sórdido; desde as primeiras fases da vida, reservou para si a porção do gozo compatível com os meios da ocasião. Sua filosofia tinha dois pais: Lúculo e Salomão – não o Lúculo general, nem o Salomão piedoso, mas só a parte sensual desses dois homens, porque o eterno feminino não o dominava menos que o eterno estômago. (ASSIS, 2011a, p. 113)

Além do lucro, Procópio Dias preserva o prazer da vida física, que pode ser subentendido como o prazer sexual. Seus dois heróis nessa concepção eram homens que ele admirava por suas sensualidades. Machado insere na descrição do personagem uma frase ambígua que pode ser entendida como que as características femininas de Procópio dominavam-o num instinto descontrolado tal qual a fome.

Trevisan (2001, p. 173) aponta que no século XIX o Estado necessitava de “filhos da pátria” para combater em seus conflitos e que, portanto, os papéis masculinos e femininos identificavam-se respectivamente com paternidade e maternidade. Tudo que fugisse a isso era anormal. É a partir daí “que os médicos da época condenavam insistentemente os libertinos, celibatários e homossexuais”, vistos como irresponsáveis socialmente. Conforme nossa suspeita, todas as três características dos tidos como desvirtuados são apresentadas por Machado na figura de Procópio Dias, sendo duas delas – libertino e celibatário – incontestáveis.

Na trama, apesar da dissimulação de Procópio em esconder seus traços, os outros personagens do romance parecem estar cientes das condições imorais do excêntrico senhor. Em dada passagem, ao considerar as dificuldades entre o casamento de Procópio Dias e Iaiá Garcia, Jorge reflete consigo: “Naquela idade um pretendente é uma espécie de boneca – dizia Jorge atando a gravata -; o que é preciso, a todo transe, é fazer da boneca um esposo” (ASSIS, 2011a, p. 147). O pensamento do personagem pode ser lido como outro exemplo de frase ambígua de Machado. Num primeiro momento, o leitor interpreta a frase como falando de Iaiá, de sua pouca idade, e de como teria que largar as bonecas para preocupar-se com um esposo. Já numa leitura onde considera-se que Jorge está se referindo à Procópio – e não Iaiá -, pode-se entender que, por sua avançada idade e seu estado civil de solteiro, um homem com os traços de Procópio era tido como uma “boneca” [1] e que o necessário, a todo custo, era transformar a “boneca” em um esposo (ou seja, em um homem).

Lido pelo ângulo aqui exposto, o personagem Procópio Dias no romance Iaiá Garcia revela diversos aspectos que alimentam a suspeita construída. Contudo, não é objetivo do presente estudo esmiuçar individualmente cada um desses aspectos, mas sim levantar em linhas gerais a suspeita de que Procópio é mais que uma figura secundária no romance.

Assim como todos os seus personagens, Machado usa de Procópio Dias como uma tela para pintar o Brasil de sua época e apresenta-o sutilmente destacando essas características representativas. De acordo com Santos (2003, p. 179), “as curtas descrições, muitas vezes resumidas em uma frase, têm importância desproporcional a sua extensão, pois ampliam a compreensão das personagens e sugerem nuanças sobre o significado dos acontecimentos”.

Na fala do narrador de Iaiá Garcia, “a vida de Procópio Dias teve sempre uma outra ordem de interesses…” (ASSIS, 2011a, p. 162).

Conclusão

Com uma escrita sutilmente realista, Machado de Assis aborda características que representam a vida social de sua época sem cair nas cruas obscenidades naturalistas. O autor alcança em suas obras até os assuntos mais vulgares, traduzindo-os no seu modo machadiano de dizer elegantemente subjetivo. Conforme ressalta Candido (2001, p. 18):

[o autor Machado] recobria os seus livros com a cutícula do respeito humano e das boas maneiras para poder, debaixo delas, desmascarar, investigar, experimentar, descobrir o mundo da alma, rir da sociedade, expor algumas das componentes mais esquisitas da personalidade. Na razão inversa da sua prosa elegante e discreta, do seu tom humorístico e ao mesmo tempo acadêmico, avultam para o leitor atento as mais desmedidas surpresas.

A presença da homossexualidade em sua obra é no mínimo suspeita como mais um dos traços sociais brasileiros que o autor desejava representar através da Literatura. As características das figuras de Machado não são mais dos personagens do que são do povo de seu país. Candido (2011, p. 33) escreve:

Não procuremos na sua obra uma coleção de apólogos nem uma galeria de tipos singulares. Procuremos sobretudo as situações ficcionais que ele inventou. Tanto aquelas onde os destinos e os acontecimentos se organizam segundo uma espécie de encantamento gratuito, quanto as outras, ricas de significado em sua aparente simplicidade, manifestando, com uma enganadora neutralidade de tom, os conflitos essenciais do homem consigo mesmo, com os outros homens, com as classes e os grupos. (grifo do autor)

O personagem Procópio Dias do romance Iaiá Garcia, de 1878, aparentemente apresenta traços de homossexualidade como para acrescentar mais uma característica a sua lista de características imorais. Tal suposta ambição de Machado de Assis pode ser interpretada como para apontar aos seus leitores da época os problemas recorrentes em sua sociedade. De acordo com Trevisan (2001, p. 253):

De fato, a partir de 1870, nossos escritores incorporaram-se à luta pela “renovação das estruturas sociais” […]. Tal “missão civilizatória” acabou aproximando o discurso literário do discurso médico, na tentativa de trazer à tona os desvãos mais escuros da sociedade, para assim reabilitar […] o desviante.

O presente ensaio não tem a pretensão de comprovar nada, mas sim de estimular uma reflexão e levantar uma suspeita que, após ser analisada com maior propriedade, pode vir a tornar-se fato ou ao menos manter-se como suspeita, pois, afinal, conforme atesta seu Dom Casmurro, somos incapazes de confirmar algo em absoluto baseados apenas nos elementos linguísticos deixados pelo magnífico Machado de Assis. Ficamos com as palavras de Candido (2001, p. 18):

Nas obras dos grandes escritores é mais visível a polivalência do verbo literário. Elas são grandes porque são extremamente ricas de significado, permitindo que cada grupo e cada época encontrem as suas obsessões e as suas necessidades de expressão. […] O mais curioso é que provavelmente todas essas interpretações são justas, porque ao apanhar um ângulo não podem deixar de ao menos pressentir os outros. (grifo nosso)

Referências:

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BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 48 ed. São Paulo: Cultrix, 2012.

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[1] Aqui no sentido da época de “figura de mulher”, conforme o Diccionario da Lingua Brasileira (PINTO, 1832, documento eletrônico).