Reflexos da alma: o espelho em Virginia Woolf, João Guimarães Rosa e Machado de Assis

Carla Lento Faria

RESUMO: O presente artigo busca aproximar, por meio da análise da metáfora da alma refletida no espelho, o conto The lady in the looking-glass: a reflection, de Virginia Woolf (1929/1993), e os contos homônimos de João Guimarães Rosa (1962/2005) e Machado de Assis (1882/2011), O espelho. Apesar dos três autores pertencerem a projetos literários e tempos de produção distintos, pretende-se verificar uma temática que é lugar-comum em suas obras: a preocupação com a eterna discussão em torno das questões relativas à alma humana. Para tanto, é utilizada como base uma interpretação de viés fantástico, levando em consideração a perspectiva adotada em cada conto e a singularidade com que os autores trabalham o momento em que o ser humano é levado a encarar-se como realmente é diante do espelho. Logo, pretende-se verificar que os diferentes meios utilizados por Virginia Woolf, João Guimarães Rosa e Machado de Assis conduzem ao mesmo fim.

PALAVRAS-CHAVE: espelho; alma; literatura fantástica; identidade.

ABSTRACT: From the point of view of the metaphor of the soul reflected in the mirror, this article aims at analysing the short story The lady in the looking-glass: a reflection, by Virginia Woolf (1929/1993), and the homonymous stories by João Guimarães Rosa (1962/2005) and Machado de Assis (1882/2011), O espelho. Even though the three authors belong to distinguished literary projects and times of production, the purpose is to investigate an issue that is commonplace in their works: the eternal concern with affairs of the human soul. To this end, the fantastic as framework is used as basis of interpretation, always taking into account the perspective adopted in each short story and uniqueness with which each author chose to address the moment when the human being is forced to face himself as he really is before the mirror. Therefore, the article aims at discussing how the different means used by Virginia Woolf, João Guimarães Rosa, and Machado de Assis lead to the same end.

KEYWORDS: mirror; soul; fantastic literature; identity.

 

A alma do espelho – anote-a – esplêndida metáfora.
(ROSA, 2005, p. 115)

Ceserani (2004/2006) e Furtado (1980) definem o fantástico como o gênero literário da ambiguidade; a invasão do sobrenatural, do irreal e do inexplicável na realidade mais cotidiana, até então supostamente normal. O leitor é levado a navegar por uma constante incerteza intelectual durante toda a narrativa, e até mesmo quando esta acaba ele muitas vezes se vê com menos certeza do que tinha no início de sua leitura. Para tanto, faz-se uso da chamada fenomenologia metaempírica, ou seja, aparecem na trama fenômenos que estão além daquilo que é “[…] verificável ou cognoscível a partir da experiência, tanto por intermédio dos sentidos ou das potencialidades cognitivas da mente humana, como através de quaisquer aparelhos que auxiliem, desenvolvam ou supram essas faculdades” (FURTADO, 1980, p. 20).

Somente o fantástico confere duplicidade à ocorrência metaempírica, na qual o real e o irreal convivem sem anular um ao outro, sendo fundamental a convivência desses dois elementos que aparentemente são impossíveis de coexistirem. A ambiguidade que resulta dessa simultaneidade nunca pode ser desfeita no curso narrativo. De fato, “[…] a primeira condição para que o fantástico seja construído é a de o discurso evocar a fenomenologia meta-empírica de forma ambígua e manter até o fim uma total indefinição perante ela” (Idem, p. 36). Todas as estruturas da narrativa devem ser organizadas de forma que esse debate sem solução seja sempre alimentado. A partir daí, os elementos contraditórios ganham intensidade na narrativa, deixando sempre a dúvida prevalecer.

É objeto de análise do fantástico tudo aquilo que é estranho e inexplicável racionalmente ao ser humano. Segundo Ceserani (2006), o fantástico é responsável por projetar as imagens de angústias e horrores, que até então só são conhecidas nos sonhos e pesadelos. Aquilo que não poderia aparecer toma forma e coloca a alma humana diante de potências inferiores do além-mundo. Logo, levando-se em consideração que, para Jung (1971/2008), as imagens presentes nos sonhos são nada mais, nada menos, que a manifestação do próprio inconsciente, pode-se dizer que o fantástico tem o poder de colocar o ser humano de frente com aquilo que é matéria desconhecida em si mesmo, tornando visível sua própria escuridão.

Uma das maneiras pelas quais esses conteúdos obscuros da mente podem ganhar forma na narrativa é por meio da presença de um espelho. A cena da imagem refletida no espelho é uma das mais recorrentes na tradição da literatura fantástica, como discute Rank (1939 apud IGNATTI, 2011, p. 57). De Poe a Dostoiévski, de Bram Stoker a contos de fadas, como Branca de Neve e os Sete Anões, várias são as narrativas em que as personagens se deparam com espelhos e com a sensação de estranhamento que a visão de um duplo de si mesmo, ou ausência de tal visão, pode suscitar. Sinônimo de calafrio, o espelho – na grande maioria das histórias em que aparece – é responsável pela introdução de algum elemento sobrenatural no curso da narrativa, o qual sutilmente rompe com a ordem natural e subverte o real. Isso porque a existência do espelho nas narrativas fantásticas realiza-se como desdobramento das questões da dualidade humana:

[…] esta dualidade, antítese, cisão, remete, em termos do imaginário, ao fenômeno especular inscrito no duplo: espelhos, duplos, e reflexos habitam as lendas, as histórias de magia e as tradições populares, articulando um profundo sentimento de insegurança individual, social ou comunitária. Esta temática faz parte dos temas literários com profundas raízes mitológicas. No mundo em que a diferença é articulada através do sentido e do valor, a noção do duplo, da réplica, perturba e inquieta a identidade porque testemunha a insuficiência do ser. (MARTINHO, 2003, p. 01)

Assim, o fenômeno sobrenatural pode ocorrer de formas muito variadas, desde a imagem assombrosa de um fantasma/espectro, até a ausência absoluta do reflexo de uma personagem quando diante do espelho. A presença do espelho põe em cena as armadilhas da mente humana no jogo entre aparência e realidade. As questões da subjetividade, da perspectiva e da alucinação são representadas por esse “objeto mediador(CESERANI, 2006, p. 74), capaz de colocar a personagem em contato com diferentes percepções da realidade.

As narrativas The lady in the looking-glass: a reflection[1], de Virginia Woolf (1929/1993), e os contos homônimos de Guimarães Rosa (1962/2005) e Machado de Assis (1882/2011), O espelho, apesar de pertencerem a projetos literários e a tempos de produção muito distintos, são histórias que têm em comum esse objeto mediador[2] o espelho – figurando como peça central da narrativa. Os três contos colocam em cena personagens que em determinada situação são levadas a encararem-se diante de um espelho. Neste momento, todos os elementos que até então permaneciam inconscientes são transpostos para a superfície do espelho como uma erupção da própria alma de cada um deles. Desse modo, o objeto acaba por refletir muito mais do que a imagem concreta da pessoa diante dele, reflete um duplo da personagem, o seu inconsciente, o qual conduz a narrativa face ao desconhecido, ao sobrenatural, ao fantástico. Em cada conto, as imagens refletidas estão diretamente relacionadas aos pensamentos e à relação íntima que cada personagem tem com o mundo, de modo que o espelho surge como uma metáfora da alma humana, que expõe as angústias e os conteúdos mais profundos até então reprimidos.

Nos contos em questão, a subversão do real é desencadeada pela presença desse simples objeto. Nos três casos, durante toda a narrativa, será por meio do espelho que teremos um vislumbre das transformações pelas quais as personagens passam. Como resultado, as narrativas se mostram tão tortuosas quanto os caminhos para a definição do eu, funcionando como um espectro do inconsciente. Pouca coisa é clara e nítida, tudo é muito confuso e indefinido, incluindo a própria imagem das personagens refletidas no espelho. As questões da alma parecem então ser infindáveis e inexplicáveis pela própria realidade, criando um debate sem solução característico do fantástico.

The lady in the looking-glass: a reflection[3] (1993), de Virginia Woolf, foi publicado pela primeira vez em dezembro de 1929 na revista Harper’s Magazine e, postumamente, em 1943, no livro de contos A Haunted House. O espelho é figura recorrente nas narrativas de Woolf e, assim como em The new dress (1925) ou Fascination with the pool (1929), o conto em questão apresenta uma necessidade do protagonista de escapar do espelho, pois este funciona como um olhar crítico que reflete as emoções reprimidas difíceis de serem encaradas. Segundo Pontieri (2009), Woolf sempre alimentou grande interesse pela tradição da Ghost Story, chegando inclusive a publicar artigos e resenhas sobre o tema. Além disso, Woolf buscava refletir “sobre as respostas possíveis do gênero às transformações ocorridas no século XX” (PONTIERI, 2009, p. 917), de modo que os efeitos dos textos do gênero que antes eram óbvios haviam se tornado muito mais sutis. Portanto, fundamental para a compreensão da relação de Woolf com as histórias de fantasma e com a temática do sobrenatural e do terror é a sua ideia em torno da atmosfera fantástica, pois, segundo Woolf, “[é] pelos fantasmas que estão dentro de nós que estremecemos, e não por corpos decadentes de barões ou pelas atividades subterrâneas dos espíritos do mal” (apud. PONTIERI, 2009, p. 917), o que se reflete na importância do psicológico e da relação da mente com o mundo em suas histórias.

O conto em questão, The lady in the looking-glass, apresenta a história de Isabella Tyson, uma mulher solteira entre 55 e 60 anos de idade que aparentemente teria tudo: casa, dinheiro, amigos. No entanto, conforme o decorrer da narrativa, é possível verificar que Isabella não é feliz, que se sente vazia e solitária. O conto trata, portanto, da busca pela verdade sobre Isabella, a qual é metaforicamente descrita por Woolf como um muro escondido por uma “ipomeia”[4] (WOOLF, 2005, p. 316). Sendo assim, para descobrir a verdade sobre Isabella é preciso antes chegar a esse muro, é preciso despi-la de todas as aparências e excessos que a encobertam e a escondem perante o mundo.

A narrativa em terceira pessoa inicia o conto em tom profético, fornecendo pistas de que haverá um espelho e uma possível confissão: “Ninguém deveria deixar espelhos pendurados em casa, assim como não se devem deixar abertos talões de cheque ou cartas que confessem algum crime horroroso”[5] (Idem, p. 315). Logo em seguida, o espelho já é introduzido na narrativa juntamente com a ambientação do conto. O narrador descreve uma tarde de verão quando uma pessoa – que está sozinha na casa e sentada numa sala de vistas – observa um espelho pendurado do lado de fora, no vestíbulo, refletindo um trecho do jardim à frente. Ao que tudo indica, o espelho estar pendurado ali consistia em “Pura combinação do acaso”[6] (Idem, p. 315).

Esse alguém sentado no canto da sala não é revelado em momento algum, tal pessoa é sempre referida com um pronome indefinido – alguém[7] –, de forma que a ambiguidade já se estabelece no primeiro parágrafo, ou seja, trata-se de “[…] um início calculado, que provoca o leitor a se solidarizar com o observador”[8] (ŠKRBIC, 2000, p. 173). Além disso, segundo Toth (2001), a utilização do pronome em terceira pessoa permite que a voz narrativa amplie-se para além do eu. Nesse sentido, conforme o conto se desenvolve, os olhares narrativos vão se intercalando, isso porque apesar da voz ser sempre em terceira pessoa, as perspectivas doalguém e de Isabella parecem se alterar e fundir em determinados momentos, como se o narrador penetrasse na mente deles, uma técnica de “circulação contínua de focos de narração” (PONTIERI, 2009, p. 920) – que já havia sido empregada por Woolf alguns anos antes em outro conto que também remete ao fantástico, de nome A haunted house (1921) – em que “[…] o narrador em terceira pessoa assume, ao mesmo tempo o ponto de vista externo à narrativa […] e um ponto de vista interno” (Idem, p. 921). Logo, o pronome permite a indefinição necessária ao texto para que a circulação entre foco externo – o alguém – e foco interno – Isabella – seja possível e ao mesmo tempo ambígua.

Juntamente com a indefinição do foco narrativo, há toda a ambiguidade presente na atmosfera criada no início da narrativa, fundamental para a compreensão da personagem. O ambiente descrito sob o olhar dessa pessoa na sala remete a um sonho, em que a realidade é preenchida com elementos fantasiosos e imaginativos. Não é possível distinguir se a descrição está sendo imaginada, sonhada, ou mesmo causada por um estado de vigília:

Estando a casa vazia, sentia-se alguém, sendo esse alguém a única pessoa na sala de visitas, como um desses naturalistas que, cobertos de capim e folhas, deitam para observar os animais mais tímidos – texugos, lontras, martins-pescadores – e, por não serem vistos, podem se mover à vontade. Nessa tarde a sala estava cheia de criaturas tímidas, luzes e sombras, cortinas ao vento, pétalas caindo – coisas que nunca acontecem, ao que parece, se alguém estiver olhando. […] E havia também uns pontos negros e jatos obscuros, como se repentinamente uma siba impregnasse o ar de sépia; e a sala tinha suas paixões e invejas e raivas e mágoas a sobrepujá-la e encobri-la, como um ser humano. Nada continuava o mesmo em dois segundos juntos.[9] (WOOLF, 2005, p. 315-316)

Ao detalhar o que está acontecendo na sala, o narrador funde elementos reais, como os móveis, por exemplo, com imagens típicas do subconsciente humano. As ações das criaturas noturnas são descritas por comparação com animais reais, mas em momento algum sabe-se o que elas são. Além disso, a sala está cheia de pontos indefinidos e obscuros e chega a sentir coisas assim como um ser humano. Tem-se, portanto, segundo Furtado (1980, p. 120), o chamado espaço alucinante, caracterizado pela introdução de dados anormais no cenário que desfiguram o espaço que antes parecia familiar.

Enquanto isso, do lado de fora da sala de visitas e do vestíbulo, no reflexo do jardim no espelho, as coisas parecem muito fixadas na realidade “[…] pareciam mesmo estar lá, em sua inescapável realidade”[10] (WOOLF, 2005, p. 316). Há um contraste entre o interior da sala cheia de criaturas e a imagem refletida no espelho em que “[…] as coisas tinham parado de respirar e jaziam imóveis no transe da imortalidade”[11] (Idem, p. 316). É em meio a essa oposição que Isabella Tyson, a dona da casa, é apresentada.

O narrador diz que sob a perspectiva do alguém pouco se sabia sobre Isabella; esta seria como um muro tomado por uma planta que cresceu desordenadamente, onde, é possível ver a planta, mas não o muro. Daí que “[n]o entanto, era estranho que, conhecendo-a depois de tantos anos, ninguém pudesse dizer qual a verdade referente a Isabella”[12] (Idem, p. 316), pois as plantas são como ervas daninhas problemáticas que só servem para encobrir a verdade sobre ela em vez de definir Isabella. O que se pode dizer sobre ela são, então, coisas mais fatuais, como ela ser rica, solteirona e ter viajado muito.

Os móveis de Isabella parecem saber muito mais sobre ela do que o certo alguém, e sob o estresse de pensar nela, a sala se torna “[…] mais sombria e simbólica; os cantos pareciam mais escuros, as pernas das cadeiras e mesas, mais espichadas e hieroglíficas”[13] (Idem, p. 317). Nesse sentido, segundo Toth (2011), os objetos da sala parecem participar de forma ativa em sua relação com Isabella, de modo que “[o]s objetos na sala se tornam elementos mediadores, dotados de entendimento sobre Isabella”[14](TOTH, 2011, p. 04). Entretanto, os objetos jamais revelam os segredos e a verdade sobre Isabella, mas funcionam como “[…] sinais enigmáticos, ‘hieróglifos’ de uma língua desconhecida, resistindo a tentativas de transformá-los em vetores transparentes da subjetividade que codificam”[15] (Idem, p. 04).

Em determinado momento do conto, as reflexões do alguém são bruscamente interrompidas por uma sombra preta que aparece no espelho e altera o quadro por completo, deixando tudo desfocado – mais tarde é identificada como o carteiro que veio deixar as cartas. Assim, sob o foco do alguém, o narrador passa a imaginar as verdades sobre Isabella a partir dessas cartas, ele imagina que Isabella entraria, pegaria as cartas, as leria uma por uma e as esconderia para que ninguém a conhecesse de verdade. De acordo comŠkrbic (2000, p. 160), os envelopes são importantes para a narrativa na medida em que são uma metáfora da segurança da identidade humana, a verdade que insiste em se esconder do espelho permanece envelopada e assegurada. As cartas, portanto, são matéria da busca pela verdade sobre Isabella, que pode ser imaginada sem que a verdade seja atingida.

Nesse momento, o foco da narrativa passa para o olhar de Isabella. O narrador diz que ela não quer ser descoberta, mas que também não tem mais como escapar se escondendo atrás das trivialidades do dia a dia: “Tal ideia servia como um desafio. Isabella não queria ser conhecida – mas não conseguiria escapar. Era absurdo, era monstruoso”[16] (WOOLF, 2005, p. 318). Aqui, os pensamentos superficiais de Isabella se alternam com os mais reflexivos sobre sua vida, de forma que também a perspectiva de Isabella e do alguémparecem se misturar. Segundo Toth (2011), esse movimento do ponto de vista da poltrona para o jardim é perceptível através dos tempos verbais no sétimo parágrafo do conto; saindo da sala a voz narrativa passa do condicional “ela haveria de estar na ponta dos pés” para o afirmativo “ela erguia a tesoura”[17] (WOOLF, 2005, p. 318-319).

Finalmente, no ápice do conto, Isabella se vê parada diante do espelho do vestíbulo e, justamente quando parece que a verdade sobre ela finalmente será revelada ao leitor, a narrativa toma um rumo surpreendente. A mente na qual se tentava penetrar estava vazia, nenhum pensamento, nenhum sentimento:

Finalmente lá estava ela, no vestíbulo. E ali parou completamente. Parou sem nem se mexer. De imediato o espelho passou a verter por cima dela uma luz que a parecia fixar; que era como um ácido a corroer o que fosse superficial e indispensável, deixando apenas a verdade. Era um fascinante espetáculo. Tudo de si caía – nuvens, vestido, cesta, diamante –, tudo que se havia chamado de trepadeira e ipomeia. Ali estava a parede dura por trás. Ali estava a própria mulher, desnuda, e em pé na luz impiedosa. E nada havia. Isabella estava completamente vazia. Não tinha ideias. Não tinha amigos. Não se importava com ninguém.[18] (Idem, p. 320-321)

No momento culminante, percebe-se que, mesmo removendo as plantas por cima do muro, pouco foi revelado sobre Isabella. Um final que, segundo Škrbic (2000, p. 185), é antirromântico e reflete o projeto literário da Woolf contista, em que, diferentemente da preocupação de Edgar Allan Poe com uma unidade de efeito e impressão, a inconclusividade e a fascinação pelo irrepresentável combinam-se para não alcançar nada em absoluto.

Diferentemente do conto de Woolf, O espelho: esboço de uma nova teoria da alma humana[19] (1882/2011), de Machado de Assis, apresenta diálogo considerável com a obra de Edgar Allan Poe. O conto foi publicado em 1882 na Gazeta de Notícias e posteriormente, em 1884, no livro de contos Papéis Avulsos. É posterior à publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1880) e pertence, portanto, à segunda fase machadiana, em que “[…] importa-lhe cunhar a fórmula sinuosa que esconda (mas não de todo) a contradição entre parecer e ser, entre a máscara e o desejo, entre o rito claro e público e a corrente escusa da vida interior” (BOSI, 2007, p. 84). De acordo com Philippov (2011), a intertextualidade entre Poe e Machado é significativa para a produção desse período, isso porque figuram também em Papéis Avulsos a quase novela O Alienista e outros contos fundamentais de sua obra, como A Chinela Turca e Teoria do Medalhão. Ainda segundo a autora, essas três narrativas são marcadas fortemente pelo fantástico e ecoam características presentes na obra de Poe, como a preocupação com o universo da mente, o duplo, o sonho, o humor ou sarcasmo, a intromissão onírica dentro da realidade, etc. Trata-se, portanto, de um período de produção fortemente marcado por referências fantásticas nos contos machadianos, abrangendo inclusive o conto em questão.

O espelho conta a história de Jacobina, um homem entre 40 e 50 anos de idade que, durante uma noite em uma roda de amigos, resolve contar um acontecimento vivenciado por ele aos 25 anos para exemplificar a sua teoria de que todas as pessoas têm duas almas, uma exterior – que poderia mudar conforme o decorrer da vida e ser qualquer coisa – e outra interior. Dessa forma, a narrativa coloca o leitor na história dentro da história, um momento de grande mudança na vida de Jacobina que o levou a vivenciar um choque entre sua alma externa e interna.

O começo da narrativa é contado por um narrador em terceira pessoa que apresenta o ambiente, onde ocorre um debate ameno sobre “questões de alta transcendência” entre “quatro ou cinco cavalheiros”, que seriam investigadores tentando resolver problemas árduos do universo. O ambiente é uma sala pequena, iluminada pela combinação das luzes de velas e do luar que “se fundiam misteriosamente”, um espaço aparentemente realista que, quando absorvido por essa penumbra, ganha pequenos traços alucinantes de modo a complementá-lo e torná-lo um espaço híbrido, dúbio, constituído por luz e sombra e característico do fantástico:

É por isso que, agindo em complementaridade no que toca à construção do espaço fantástico, estas duas modalidades da sua representação (a ‘alucinante’ tendendo para os interiores, o obscuro e o delirante; a ‘realista’ preferindo as grandes zonas abertas, a claridade e a representação ‘objetiva’ do mundo) deverão ser combinadas de forma a instalarem na narrativa uma nunca resolvida antinomia entre o aparente real e o meta-empírico, a qual pela sua permanente indefinição, propicie a ambiguidade exigida pelo género (FURTADO, 1980, p. 126).

Em meio a essa atmosfera noturna obscura, o leitor é apresentado a Jacobina, um homem que absolutamente abomina discussões. Ele permanece todo o tempo “[…] calado, pensando, resmungando, cochilando” (ASSIS, 2011, p. 134), em um estado de vigília que sugere a possibilidade de todos os acontecimentos subsequentes não passarem de um sonho. Isso porque Jacobina seria o quinto dos “quatro ou cinco cavalheiros” (Idem, p. 134) que participavam da discussão, de forma que a indefinição do número demonstra que ele pouco participava da conversa. Assim, quando no meio da noite os cavalheiros entram em desacordo sobre assuntos da alma e pedem para Jacobina ajudar dando sua opinião, ele diz que pode contar uma história para ajudar desde que todos permaneçam calados, não abrindo muito espaço para diálogos durante todo o tempo em que expõe sua teoria.

Jacobina apresenta então uma teoria de que os seres humanos possuem duas almas, uma exterior e uma interior:

— Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro […] A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa […] Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas complementam o homem, que é metafisicamente falando, uma laranja (Idem, p. 135).

Além disso, diz que quem perde uma dessas metades perde metade da existência, ou até mesmo a existência inteira; como exemplo menciona o personagem da peça O Mercador de Veneza, de Shakespeare, o agiota judeu Shylock, que perdendo seus “ducados” perderia sua vida. Durante toda a narrativa, percebe-se que o foco é direcionado para uma maior explanação da alma exterior e de que maneiras suas transformações podem afetar ou influenciar a alma interior.

Sendo assim, para melhor ilustrar sua teoria, ele conta uma história de quando tinha 25 anos, acabara de se tornar alferes da guarda nacional e fora passar um tempo com sua tia, D. Marcolina e um cunhado dela, os quais “[…] morava[m] a muitas léguas da vila, num sítio escuso e solitário” (Idem, p. 137). Nesse momento, começa a história dentro da história, em que Jacobina passa a narrar em primeira pessoa o momento em que se tornara alferes. A presença de dois narradores no conto reflete a ambiguidade da história, são dois pontos de vista diferentes, pois o primeiro narrador conta a história em terceira pessoa, enquanto que o segundo é um narrador-ator. A combinação dos dois narradores resulta em uma dualidade interna do discurso, representando a visão externa e a interna ao acontecimento, o que ecoa a dualidade da alma humana exposta na teoria de Jacobina.

Jacobina então diz que era de origem simples, e o fato de ter conseguido um cargo de alta patente fora de grande orgulho para ele e seus familiares. A partir de então passou a ser muito paparicado, e com sua tia não era muito diferente, pois “era alferes para cá, alferes para lá”, sempre muito orgulhosa do sobrinho. Ele sentava-se no melhor lugar da mesa, era sempre servido primeiro e todos se dirigiam a ele com muito respeito, diz ainda que insistia para que o chamassem de Joãozinho como antes, mas não tinha jeito. A tia queria tanto agradá-lo que mandou colocar no quarto de Jacobina a melhor peça da casa: um espelho grande com borda de ouro, que destoava do resto da mobília modesta da casa, e de origem da corte de D.João VI, quando este viera para o Brasil em 1808. Diz então que nesse momento o alferes eliminou o homem e lhe sobrou pouco de humanidade, sua alma exterior mudou de natureza e passou a ser as cortesias que estava recebendo. Assim, fica perceptível a importância dada ao status social, a tal ponto que inclusive o nome de Jacobina já não era o mesmo, demonstrando que mudanças significativas e profundas haviam ocorrido.

Quanto mais a consciência de alferes ganhava espaço, mais indiferente ao mundo Jacobina ficava. Até que certo dia sua tia precisou viajar para ajudar uma filha, pedindo ao cunhado que a acompanhasse na viagem. Nesse momento, Jacobina sentiu a alma exterior se reduzir por não ter mais quem a alimentasse, até mesmo os escravos da casa fugiram deixando-o sozinho “diante do terreiro deserto e da roça abandonada” (Idem, p. 139). Jacobina se vê preso à casa e sozinho até que sua tia volte. O foco do conto nesse momento passa para a ambientação do sítio e a dificuldade da personagem de ficar sozinha em um lugar abastado. Ele acostumara-se ao ambiente socialmente abundante da cidade, no conto representado pela sala em que os cavalheiros se encontram no começo da narrativa, mas se vê obrigado a lidar com o sítio abastado e solitário de sua tia. Pode-se dizer a alma exterior está representada pela cidade e a sociedade, enquanto que a alma interior é representada pelo sítio e a exclusão social, o que explicaria a dificuldade de Jacobina em permanecer sozinho no sítio.

Durante o período em que Jacobina fica só, ele também fica bem inquieto, diz ele que as horas não passavam e a casa era toda silêncio, “era de enlouquecer”. Comia pouco e dormia para aliviar a sensação inexplicável de ser um defunto perambulando pela casa; dormia porque nos sonhos ele voltava a ser o alferes tão querido pelos parentes, nos sonhos não precisava de outras pessoas para alimentar sua alma exterior. A descrição dos dias longos e solitários de Jacobina é enriquecida por elementos que corroboram com a ambientação do fantástico. Entre eles o poema The Old Clock on the Stairs (1845), de Longfellow, em referência à recusa do tempo em passar e o som do relógio, que segundo Jacobina “não eram golpes de pêndula, era um diálogo do abismo, um cochico do nada” (ASSIS, 2011, p. 140), e a lenda francesa do Barba Azul em referência à falta de um sinal de regresso de seus parentes; na lenda, duas irmãs esperam muito tempo até serem resgatadas por seus irmãos no castelo do Barba Azul.

Diz Jacobina que durante sete dias não tinha se olhado no espelho uma vez sequer e que isso “era um impulso inconsciente, um receio de achar-me um e dous” (Idem, p. 141). É então que ele decide encarar o espelho, exatamente para ver se encontrava algo além dele em meio àquela solidão toda. O resultado é um pouco diferente do que ele esperava: “Olhei e recuei. O próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo; não me espantou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra” (Idem, p. 142). Jacobina não consegue se ver, pois precisa do olhar do outro sobre si mesmo; sua alma se reduziu à sua máscara social, que quando confrontada com a solidão se esvaneceu:

Pode-se notar que o próprio Jacobina entende que, pelas leis da física, sua imagem deveria estar nitidamente refletida no espelho, mas sua percepção não era capaz de captá-la corretamente. Portanto, o problema estaria em sua capacidade de enxergar a si próprio. (IGNATTI, 2011, p. 48)

Jacobina logo teve a ideia de vestir a farda e ao voltar a olhar no espelho lá estava sua imagem: “o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior” (ASSIS, 2011, p. 142). Ele diz que se sentiu como alguém que passa por um sonho terrível, mas que quando acorda tudo volta ao normal. A partir daí, Jacobina sempre passava um tempo de farda na frente do espelho diariamente durante os seis dias a mais que passou no sítio. O ato de vestir a farda devolve a Jacobina a sua máscara social, “o artifício de vestir concretamente a máscara de alferes e de se colocar diante do espelho permitiu-lhe ver-se como um outro o veria” (SILVA, 2011, p. 07). Na ausência de outras pessoas para ajudá-lo a se ver, a personagem utiliza-se da farda diante do espelho para revitalizar sua alma exterior.

Segundo Bosi (2007), a farda de Jacobina (ou seu cargo) é símbolo e matéria do status social, o espelho reflete aquilo que Jacobina é quando está sozinho, sua alma interior, quando na verdade ele gostaria de se ver e se sentir como os outros o veem. Até o momento da viagem de sua tia, Jacobina não acreditava ainda naquilo que tinha se tornado, ele era um alferes, mas não se sentia como um, daí precisar de outras pessoas para lembrá-lo disso o tempo todo. Durante o tempo em que fica sem a tia, Jacobina é levado a encarar-se e perceber que a sua alma interior e exterior não estão de acordo. A interior não se sentia da mesma forma que a alma exterior, que agora era o seu cargo de alferes. Diante do espelho, ele sofre um processo de cisão das duas almas para finalmente tornar-se o que já era socialmente.

Por fim, Jacobina termina sua narrativa, levanta e vai embora, de modo que “Quando os outros voltaram a si, o narrador tinha descido as escadas” (ASSIS, 2011, p. 14). O papel dos amigos de Jacobina é o de narratário do discurso; segundo Furtado trata-se de um “receptor imediato e fictício do discurso narrativo” (FURTADO, 1980, p. 75), responsável por aceitar a história contada pelo narrador e a “possibilidade de coexistência de duas fenomenologias antinômicas” (Idem, p. 80):

Perante a irrupção do acontecimento inexplicável na aparentemente normalidade do cotidiano, o narratário (e, por via dele, o leitor real) deverá ser presa da dúvida, experimentando uma percepção ambígua que ora lhe aponte o sobrenatural como uma séria possibilidade, ora lhe recorde que as leis naturais não podem ser infringidas e que qualquer ocorrência que simule superá-las não passa de pura ilusão. Resulta daí a incerteza entre aceitar ou recusar os fenômenos meta-empíricos que se traduz no destinatário pelo estado de desnorteamento angustiante. (FURTADO, 1980, p. 80)

Aparentemente, os amigos de Jacobina ficaram desnorteados, mas não se sabe em momento algum se acreditaram ou não em sua história, deixando a dúvida e a ambiguidade do discurso de Jacobina permanecerem no ar.

Já o conto O espelho (1962/2005), de Guimarães Rosa, foi publicado no livro Primeiras estórias, em 1962, alguns anos depois deGrande Sertão Veredas (1956). Primeiras estórias aborda “o fascínio do alógico, são contos povoados de crianças, loucos e seres rústicos que cedem ao encanto de uma iluminação junto à qual os conflitos perdem todo o relevo e todo sentido” (BOSI, 1995, p. 489). Assim, o conto O espelho reflete a temática que circunda as narrativas do livro Primeiras estórias e outras obras de Rosa, como a representação do mito, da psique humana, do sonho e da loucura, de modo a explorar os limites entre o real e o surreal, isso porque “sua obra se situa na vanguarda da narrativa contemporânea que se tem abeirado dos limites entre o real e o surreal […] e tem explorado com paixão as dimensões pré-conscientes do ser humano” (Idem, p. 488).

O espelho conta a história de um homem que após ver-se refletido em um jogo de dois espelhos e ter tomado um susto, resolveu dedicar-se a procurar o eu por trás de si mesmo. Desse modo, o narrador conduz o leitor por uma verdadeira reflexão metafísica acerca do objeto espelho e conta sobre a sua jornada em busca de seu próprio eu. O conto trata, portanto, da dificuldade do indivíduo de se desapegar de tudo o que lhe é excesso, encarar a verdade sobre si e ficar apenas com a essência do ser.

O conto em primeira pessoa é apresentado em tom científico: o protagonista diz que irá narrar uma experiência que o induziu a “uma série de raciocínios e intuições” (ROSA, 2005, p. 113) para expor um conhecimento “que os outros ainda ignoram” (Idem, p. 113). Nesse sentido, em diversos momentos ele dirige-se diretamente ao leitor, como se estivesse ensinando e esclarecendo algum assunto: “O senhor, por exemplo, que sabe e estuda, suponha nem tenha ideia do que seja na verdade – um espelho” (Idem, p. 113). Assim, o conto remete ao gênero ensaístico, e é de certa forma destoante do resto do livro, pois o narrador apresenta

[…] uma linguagem amaneirada, certo ar pedante, junto a uma argumentação que a tudo apela, misturando, de pronto, positivismo, mistério, cultura ocidental, mitologia greco-romana, crendices populares, kardecismo […]. (PACHECO, 1978, p. 222)

Contudo, trata-se de um ethos construído sob o propósito de causar desconcerto. A função do narrador, que segundo Furtado (1980) é caracterizado como um narrador-ator autodiegético, é a de tentar dar credibilidade à história que narra, assim confirmando a fenomenologia metaempírica por meio de seu próprio testemunho. O narrador expõe sua história ao narratário – o leitor – que se vê sem outras fontes de confirmação ou negação dos fatos e permanece do começo ao fim da história desconcertado pela ambiguidade que o discurso do narrador em primeira pessoa traz à narrativa. Segundo Pacheco (2006), o narrador acredita ser portador de um conhecimento único, que os outros ignoram e ele precisa transmitir e ter a aprovação do narratário.

Em seguida, o narrador começa então a fazer uma longa exposição sobre os espelhos, diz que alguns podem ser bons e outros maus, podem favorecer ou distrair, mas sempre enfatizando que aquilo de que vai tratar é a ponta de um mistério em meio a “fenômenos sutis”. Além disso, diz que os espelhos dependem muito do olhar, mas que os olhos são “a porta do engano”. Mais além, quando o narrador acredita ser possível estar perdendo créditos com o leitor, ele apela para o caráter mítico que os espelhos têm, enfatizando como os espelhos sempre foram sinônimo de medo para a cultura popular:

Temi-os desde menino, por instintiva suspeita. Também os animais negam-se a encará-los, salvo as críveis exceções. Sou do interior, o senhor também; na nossa terra, diz-se que nunca se deve olhar em espelho às horas mortas da noite, estando-se sozinho. Porque, neles, às vezes, em lugar de nossa imagem assombra-nos alguma outra visão. […] O espelho inspirava receio supersticioso aos primitivos, aqueles povos com a ideia de que o reflexo de uma pessoa fosse a alma. […] Não se costumava tapar os espelhos, ou voltá-los contra a parede quando morria alguém da casa? (ROSA, 2005, p. 113)

Após a exposição sobre toda a superstição com relação ao espelho, o narrador começa a contar a história vivenciada por ele quando ainda era moço. Um dia, estava em um lavatório de edifício público e ao olhar no espelho viu uma imagem horrível refletida, até que percebeu que era ele mesmo:

Descuidado, avistei… Explico-lhe: dois espelhos – um de parede, o outro de porta lateral, aberta em ângulo propício – faziam jogo. E o que enxerguei, por um instante, foi uma figura, perfil humano, desagradável ao derradeiro grau, repulsivo senão hediondo. Deu-me náusea, aquele homem, causava-me ódio e susto, eriçamento, espavor. E era – logo descobri… era eu mesmo! O senhor acha que algum dia ia esquecer essa revelação? (Idem, p. 115)

A partir daí passou a procurar esse eu por trás dele mesmo que era trazido à tona nos espelhos. Vale ressaltar que O espelho é a única narrativa de Primeiras estórias que tem como plano de fundo a cidade grande, portanto, pode-se dizer que “o narrador-protagonista, que assim como seu ouvinte, veio do interior, narra uma ‘experiência’ (de massificação ou perda de identidade) típica do novo contexto no qual se encontra” (PACHECO, 2006, p. 223).

Quando o narrador começou seu processo de tentar se desvincular da “máscara” e do “rosto externo”, conseguiu certo progresso, de modo que com o tempo as “partes excressantes” foram deixando de ser reproduzidas no espelho. Entretanto, começou a sofrer de dores de cabeça enquanto sua imagem escurecia diante do espelho e parou de se olhar nele por um tempo. Considerando que “[a] retirada da máscara da persona, constitui uma etapa dolorosa do processo de individuação” (IGNATTI, 2011, p. 10), é possível dizer que as dores de cabeça são um reflexo da dificuldade da personagem de desvencilhar-se de tudo que lhe é a mais, conforme a sua imagem foi se escurecendo ele começou a hesitar, tanto que o próprio narrador se questiona: “Será que me acovardei, sem menos?” (ROSA, 2005, p. 118).

Um dia, quando voltou a se olhar no espelho, deparou-se com a ausência completa de reflexo: “Não vi nada, só o campo, liso, às vácuas, aberto como o sol, água limpíssima, à dispersão da luz, tapadamente tudo. Mas o visto. O ficto. O sem evidência física. Eu era – o transparente contemplador?” (Idem, p. 118). Passou então a se questionar, “[s]eria eu um… des-almado?”, pois tudo o que o definia eram apenas influências externas fingindo a existência de um eu. Nesse sentido, “o conto rosiano narra o processo em que a máscara da persona vai sendo aos poucos, pela própria vontade do indivíduo, apagada” (SILVA, 2011, p. 10).

Durante muito tempo nada se refletiu, até que um dia o narrador viu refletido no espelho uma pequena luz. Nessa época, o narrador diz que “já amava – já aprendendo, isto seja, a conformidade e a alegria” (ROSA, 2005, p. 120). Foi então que finalmente pode ver novamente o seu rosto, mas este estava muito diferente:

E… sim, vi, a mim mesmo, de novo, meu rosto, um rosto; não este, que o senhor razoavelmente me atribui. Mas o ainda-nem-rosto – quase delineado, apenas – mal emergindo qual uma flor pelágica, de nascimento abissal… E era não mais que: um rostinho de menino, de menos-que-menino, só. (Idem, p. 120)

Desse modo, o narrador termina o conto expondo um questionamento ao “Senhor”: seria a vida uma intersecção de planos, e necessariamente um despojamento daquilo impede a alma de crescer? E, por fim, pede para que o interlocutor diga o que acha sobre tudo isso. Ao pedir a opinião desse suposto narratário, o narrador evoca o fato de acreditar ou não nele e em sua experiência. Uma situação comum nos textos fantásticos, pois

em certos casos, o modo fantástico vai procurar as áreas de fronteira dentro de nós, na vida interior do homem, na estratificação cultural no interior da personagem, frequentemente protagonista da experiência do duplo e da aventura cognoscitiva, quase sempre pertencente, pela formação mental ou pela profissão, à cultura dominante; os protagonistas são muitas vezes médicos ou cientistas dotados de uma dedicação oitocentista pela sua ciência e os seus paradigmas de juízo […]. (CESERANI, 2006, p. 104)

A personagem, símbolo de racionalização e conhecimento, é colocada de frente com o insólito, vivendo uma experiência perturbadora e reveladora que põe em xeque tudo aquilo em que acreditava até então.

As noções de espaço e tempo inespecíficas colaboram para o convencimento do narratário por parte do narrador: apesar de haver uma sequência cronológica e a descrição do lavatório de edifício público, não há referências claras, o narratário fica limitado muito mais à reflexão do narrador e a referências pontuais. O narrador sábio dialoga então com esse suposto narratário, também conhecedor da ciência, como uma forma de confirmar sua experiência sobrenatural.

Pode-se dizer que todo o tempo dedicado pelo narrador ao estudo do objeto espelho também foi o tempo que ele levou para ter uma mínima noção de si mesmo. Aquilo que ele vê refletido no espelho nada mais é do que a consciência que ele tem do seu eu, “[o] desaparecimento do rosto no espelho é sugerido pelo narrador como o resultado de um ‘consciente… despojamento de tudo o que obstrui o crescer da alma, o que a atulha e soterra’ (ROSA, s/d, p. 72), etapa necessária para dar o salto mortale nos abismos interiores” (SILVA, 2011, p. 10).

A comparação entre os três contos remete a alguns aspectos comuns, sendo que o espelho figura como principal elemento e também como desencadeador de alguns outros. Entre os principais tópicos desencadeados pela leitura comparada dos textos verificam-se a temática do duplo, os desdobramentos da alma humana e o desenvolvimento psicológico por meio do autoconhecimento dos indivíduos. As especificidades de cada obra se devem muito mais ao contexto histórico e ao projeto e estilo literário do que à temática proposta, de maneira que cada um dos três autores dialoga com a presença do espelho e a metáfora da alma refletida nele ao seu próprio modo.

O período de maior produção da inglesa Virginia Woolf situa-se entre os anos de maior produção de Machado e Rosa. Quando Woolf publica seu primeiro romance, The Voyage Out (1915), Machado já havia morrido sete anos antes, e quando Rosa publica o seu primeiro romance, Sagarana (1946), Woolf também havia morrido cinco anos antes. Contudo, mesmo vivendo em países – no caso de Woolf – e contextos distintos, os três autores apresentam algo em comum: são grandes investigadores da alma humana. Suas obras são compostas de um simbolismo profundo advindo da tentativa de entender a vida por meio da compreensão do homem. Nessa busca, os tópicos da identidade e das coisas indizíveis ganham foco e se tornam motivos de investigação dos abismos da alma, dos desdobramentos da personalidade e dos vastos terrenos inexplorados da mente humana.

Verifica-se que, semelhantemente, os três autores optaram por representar em suas narrativas um momento de revelação e descortinamento da alma de suas personagens, em que o acesso a esses conteúdos possibilitou uma verdadeira epifania em suas vidas. E se, conforme definiu Cortázar (1993), o conto trata de uma imagem limitada ou um único acontecimento significativo, pode-se dizer que o foco das narrativas consiste na imagem limitada do momento em que o ser humano se acha diante do espelho e no acontecimento significativo e inescapável que é o encarar a si mesmo. Nos três contos, há um choque entre as coisas reais e objetivas da existência e as etéreas e para além do cognoscível.

Perante esse choque, a dualidade da alma humana é enfatizada durante todo o tempo, e está presente nas narrativas por meio do duplo. Nos textos fantásticos, o tema do duplo é um dos mais recorrentes, isso porque “[…] no fantástico, o tema é fortemente interiorizado, e ligado à vida da consciência, das suas fixações e projeções” (CESERANI, 2006, p. 83); além disso, o embate conscienteversus inconsciente parece encontrar a sua forma de representação ideal na temática do duplo, pois

o tema, nos textos fantásticos, se torna mais complexo e se enriquece, por meio de uma profunda aplicação dos motivos do retrato, do espelho, das muitas refrações da imagem humana, da duplicação obscura que cada indivíduo joga para trás de si, na sua sombra. (Idem, p. 83)

De acordo com Ignatti, a análise do duplo no texto literário gira em torno da “[…] ideia de que o ser humano possui uma essência cindida a qual busca um equilíbrio, mas, sob determinadas circunstâncias, entra em conflito e gera o sofrimento e o desajuste do indivíduo” (IGNATTI, 2011, p. 51). Portanto, os duplos de Isabella, Jacobina e do narrador de Rosa são as suas próprias imagens refletidas no espelho, que representam os conteúdos do inconsciente até então reprimidos; a duplicidade de suas próprias personalidades. O duplo surge nos três contos como um “[…] observador crítico das ações das personagens e de sua incapacidade de realização dos seus desejos” (Idem, p. 59).

Em The Lady in the looking-glass, o duplo de Isabella é representado pela visão desse alguém de sua vida. Neste caso, o duplo de Isabella funciona como uma visão exterior a ela de sua própria personalidade, como ela se parece perante a sociedade e aos olhos dos outros, ou seja, seu duplo é reflexo da persona que Isabella construiu e que, ao tomar consciência dele, ela também reconhece o que realmente é para si mesma. Isabella sabe que está vazia exatamente pela falta de identificação com aquilo que ela parece ser. Oalguém, portanto, seria uma projeção da mente de Isabella diante de um processo de autoanálise da personagem.

Tal processo é sustentado por diversos elementos da narrativa que refletem a dualidade de sua personalidade. A título de exemplo, têm-se as descrições da casa, que sugerem a representação do que se passa na mente da própria Isabella, combinando surreal e real – conforme os sentimentos e pensamentos oscilam, também o ambiente o faz. Além disso, o duplo de Isabella também é fortalecido pelos dois olhares da narrativa, pela questão da aparência versus a essência e do mundo fixo do espelho versus o mundo imaginativo e movimentado fora dele.

De maneira semelhante, o conto de Machado “[…] reflete a relação dialógica do ser com o mundo” (IGNATTI, 2011, p. 47). Seu duplo, ou ainda, a sua imagem refletida no espelho, é fruto direto da relação de Jacobina com as outras pessoas. A sensação que Jacobina tem de perder a identidade é resultado da ausência das pessoas ao seu redor que até então sustentavam a sua imagem de alferes. Esse processo é demonstrado no espelho, pois conforme Jacobina perde sua identidade, a imagem no espelho também é perdida, se tornando esfumaçada e etérea. Portanto, a projeção que o inconsciente realiza do duplo da personagem reflete a dificuldade que ele tem de enxergar a si próprio, pois a imagem de alferes servia apenas como uma autoafirmação perante a sociedade.

A narrativa é pautada pela ideia de cisão do eu, da dualidade da alma e da percepção de Jacobina sobre sua própria identidade, de modo que a “[…] relação entre a alma interior e a alma exterior tem como mediadora a relação com o outro, ou melhor dizendo, a relação dialógica” (Idem, p. 48). Nesse sentido, o conto apresenta duplicidade em vários aspectos que corroboram com a teoria da dualidade da alma humana, pois é constituído por dois narradores, duas histórias, duas almas e dois Jacobinas – o jovem e o velho. Além disso, a alma exterior de Jacobina se reflete nos aspectos psicológicos presentes no conto, inicialmente em seu contentamento por ser bajulado e depois pelo tédio, pelo medo e pelo terror de ficar sozinho. Logo, a alternativa encontrada pela personagem para a sua falta de reflexo no espelho é fardar-se e criar sozinho a sensação de alma exterior que antes estava sendo proporcionada pelas outras pessoas, conseguindo um equilíbrio interno.

O duplo no conto de Rosa também aparece como algo assustador para o narrador inicialmente, mas, após ver-se diante do espelho pela primeira vez, o narrador se concentra em anular a persona refletida no espelho e encontrar seu verdadeiro eu. O duplo representado pelo reflexo no espelho transforma-se conforme a própria personalidade e os conteúdos psicológicos da personagem mudam, isso porque o duplo não passa de uma representação inconsciente da personagem, então é natural que se transforme conforme o decorrer de sua vida. De acordo com Pacheco (2006, p. 243), o que antes da busca pelo eu era um monstro passa pelo nada e se torna um “rostinho-de-menos-que-menino”. Na tentativa de evitar ser um desalmado, o narrador também tenta se desvencilhar desse monstro inicial por meio da busca de sua verdadeira identidade.

O narrador de Rosa percebe sua duplicidade e tenta eliminá-la para tornar-se uno, quando, na realidade, o que ele precisava era que sua imagem refletida fosse coerente com o seu eu, logo, “mais do que livrar-se do que é socialmente, o protagonista d’ ‘O espelho’ narra a tentativa de livrar-se daquilo que não é” (PACHECO, 2006, p. 254). Além disso, o discurso objetivo do narrador versus a subjetividade da experiência que vivencia acentuam a dualidade da alma do narrador, que ao mesmo tempo em que busca despir-se metodologicamente do parecer ser, descobre-se antimetodológico e complexo. No seu discurso “nota-se o avesso da espontaneidade ou da fraqueza que corresponde-se, no âmbito da expressão, ao que seria o ‘verdadeiro rosto’ na experiência” (Idem, p. 227), toda a sua tentativa de explicar e fundamentar o que viveu parece não ser suficiente comparado com a própria experiência.

O conto funciona como um desdobramento dos contos de Woolf e Machado, já que no primeiro a narrativa é interrompida no momento em que Isabella está diante do espelho e no segundo Jacobina se identifica exatamente com aquilo que o narrador de Guimarães quer deixar para traz. Se em Woolf o momento diante do espelho só acontece nos últimos momentos do conto, em que a personagem se vê completamente esvaziada de si mesma por viver apenas de sua persona, em Machado há um momento posterior ao do espelho que não reflete nada, em que a personagem se identifica e reconhece a sua persona e, em Rosa, o momento do espelho que não reflete nada se dá no meio do processo de tentativa de livrar-se da persona. De fato, o duplo nos três contos é uma representação do inconsciente das personagens que se reflete no espelho, permitindo que as personagens se conscientizem do que se passa de verdade em sua mente, mas que aparece de formas distintas em cada um deles.

Nos três contos, as personagens são retratadas em um processo de individuação. De acordo com Silva (2011), individuação seria o processo em que o centro da psique se desloca do ego para o self (eu/si mesmo). O ego, centro da consciência, passa a dar ouvidos ao self, este advindo do inconsciente mais profundo, que se torna então o centro da personalidade. O inconsciente, afirma Jung (1971/2008), inclui não apenas conteúdos reprimidos, mas todo o material psíquico que está por traz do limiar da consciência. Além do material reprimido, o inconsciente é morada de tudo aquilo que é relativo às percepções subliminais dos sentidos.

Há no inconsciente uma camada mais específica chamada inconsciente pessoal. Os materiais contidos nessa camada são de natureza pessoal, e são considerados assim quando é possível reconhecer no passado os seus efeitos, manifestação parcial ou sua origem específica. Parte integrante da personalidade, a perda desse inconsciente pessoal produziria na consciência uma inferioridade. Mas o inconsciente também contém componentes de ordem coletiva que aparecem sob forma de categorias herdadas ou arquétipos. É o que Jung chama de inconsciente coletivo e que envolve aquilo que os homens consideram como geral: a compreensão das coisas, o que existe no mundo e o que os outros falam e dizem. Nesse sentido, para descobrir o que é individual é necessária uma profunda reflexão, porque a descoberta da própria individualidade se mostra bem difícil.

Tem-se então a persona, uma máscara da psique coletiva que aparenta uma certa individualidade e tem a função de convencer aos outros e a si mesma que tem uma certa individualidade. No fundo, ela não tem nada de real, apenas representa um compromisso entre o indivíduo e a sociedade, representando algo secundário à individualidade da pessoa. É o resultado de um compromisso no qual os outros têm uma quota maior do que a própria pessoa. À medida que o ser toma consciência de si mesmo, a camada do inconsciente pessoal que recobre o coletivo vai se reduzindo. É fundamental para a individuação que o indivíduo aprenda a distinguir entre o que parece ser para si mesmo e o que é para os outros. É preciso reconhecer que a realidade vem tanto do exterior quanto do interior. Sendo assim, pode-se considerar que o indivíduo precisa se adaptar aos dois, realizando uma concessão aos dois mundos.

As imagens produzidas pelo inconsciente devem ser levadas a sério. Jung diz que a fantasia é uma expressão de algo que é real, mas desconhecido. Portanto, a assimilação dessas fantasias por meio do consciente pode causar efeitos profundos na atitude consciente, e a essa mudança Jung chama de função transcendente. O centro da personalidade deve ser não mais o eu, mas um ponto entre consciente e inconsciente, garantindo uma base mais sólida para a própria personalidade. Nada é tão difícil quanto suportar a si mesmo, e para atingir esse ponto específico entre consciente e inconsciente precisa-se entrar em contato com muitas coisas que talvez não agradem ao indivíduo.

Em Woolf, pode-se dizer que há um reconhecimento por parte da personagem da existência de sua persona e da dificuldade que é retirar essa máscara após certa idade. O momento retratado é o da percepção de Isabella, em que por meio do inconsciente o ego toma conhecimento de seu self, e a personagem se sente vazia porque o centro de sua personalidade estava todo depositado na identificação com a persona. De maneira similar, a teoria de Machado da alma exterior/alma interior corresponde aos eixos ego-self/ego-persona, havendo uma identificação no jovem Jacobina do ego com a persona. Num primeiro momento, quando Jacobina é confrontado com a solidão do sítio, a alma se reduziu à persona. Jacobina utiliza-se do artifício de vestir a farda para conseguir ver-se como os outros o veriam, e então a máscara torna-se o rosto. O ego se distancia do self, pois a alma de Jacobina passa a emitir somente um reflexo exterior. Mas quando Jacobina percebe que pode tirar e colocar sua máscara (farda de alferes) quando quiser, ele inicia o processo de desidentificação de ego e persona. Já no caso de Rosa, há um processo de retirada da máscara da persona aos poucos, por vontade do próprio indivíduo de vislumbrar o self. A personagem inclusive passa para a próxima etapa, a do confronto com a anima, que se dá pela experiência do amor (ego/masculino + anima/feminino) que harmoniza as duas metades.

O fato de as três personagens serem de meia-idade também é simbólico – no caso de Machado, o narrador. De acordo com a teoria junguiana, o desenvolvimento psicológico do ser humano ocorre em duas partes: na primeira metade da vida há uma separação de ego e self, em que há um movimento para fora do inconsciente, em direção ao mundo externo (desenvolvimento do ego e dapersona); na segunda, o desenvolvimento do ego deve voltar-se para o mundo interior realizando o movimento oposto ao da primeira metade da vida (aproximação do ego e self).

O debate sem solução de caráter antinômico suscitado pela narrativa fantástica representa muito bem o caráter contraditório da alma humana. As oposições entre o mundo empírico e metaempírico que, de acordo com Furtado, são mantidas nas narrativas por oposições constantes entre “real/imaginário; racional/irracional; verossímil/inverossímil; transparência/ocultação; espontaneidade/sujeição à regra; valores positivos/valores negativos, etc.” (FURTADO, 1980, p. 36) refletem o embate que o ser humano trava consigo perante a oposição constante que é viver.

Metalinguisticamente, a própria narrativa fantástica é uma narrativa de muitas faces, que usa uma máscara de realidade para apresentar uma situação aparentemente verossímil, mas que esconde uma verdade intrincada aos fenômenos metaempíricos. A narrativa fantástica esconde dentro de uma aparente plausibilidade tantos segredos e dimensões como a própria alma humana: tudo é vago ao mesmo tempo em que se enche de significados. O fantástico não se explica racionalmente – assim como o ser humano também não –, em vez disso utiliza-se da realidade e da razão para tentar abrir caminhos possíveis para o desconhecido. No caso dos três contos, o desconhecido que se esconde dentro da própria personalidade humana. Não se trata de encontrar uma solução, mas de aprender a lidar com a falta dela, reconhecendo a limitação da pequenez humana.

[…] devido à própria índole do debate que procura suscitar e manter, o género contém em si uma acentuada disponibilidade para a discussão de aspectos fulcrais da condição humana e, até, para a subversão de muitos dos princípios de que tem sido veículo frequente. Com efeito (e aqui se estabelece de novo a indefinição), embora deixem quase sempre transparecer uma incontida preferência pelo irracional, certas obras surpreendem por vezes pelas virtualidades polémicas que revelam e, até, pelo alcance dos problemas que são suscetíveis de equacionar. Daí que a narrativa fantástica também possa ser encarada como um meio onde (muito embora partindo de premissas falsas e privilegiando até certo ponto o adormecimento da razão) se analisa e se interroga o processo do conhecimento, as formas de estabelecer a relação cognitiva e os erros ou recuos a que esse processo eventualmente dá lugar. Mais do que isso ela não raro aflora questões fundamentais da existência do homem, sobretudo a atitude (quase sempre ambígua) deste perante o universo, o seu próprio abismo interior e o grande limite, a morte. (FURTADO, 1980, p. 138)

Os três contistas apropriam-se de elementos fantásticos para criar a ambiguidade adequada aos relatos da alma humana. O que é matéria desconhecida no próprio ser humano se traduz nos contos como um duplo que não passa de um vislumbre da ponta do mistério muito maior que é a mente humana. O ser humano no decorrer de sua vida passa por constantes transformações que podem demorar anos para serem racionalizadas. É por esse motivo que os embates psicológicos são fruto de algo para muito além do cognoscível: são uma tentativa de resposta da nossa mente ao que aparentemente é inexplicável e foge do alcance.

O momento do irreconhecimento diante do espelho implica muito mais do que o horror de uma imagem amorfa, significa que a pessoa diante do espelho é obrigada a reconhecer que já não sabe mais quem é, que em algum momento deixou a sua própria personalidade escorrer pelas mãos, que o mundo das aparências e das coisas objetivas não corresponde ao mundo da essência e das coisas subjetivas. O objeto espelho representa simbolicamente nas narrativas os momentos de autorreflexão profunda da vida de todo ser humano, são momentos que funcionam como encruzilhadas que demandam uma decisão de caminho a ser tomado, mesmo que muitas vezes isso signifique voltar atrás e começar tudo outra vez.

Por fim, considerando que a palavra espelho tem sua origem etimológica na palavra speculum (PACHECO, 2006, p. 227), que também deu origem à palavra especulação, parece natural que a presença de tal objeto na narrativa seja geradora de tantos questionamentos e revelações e desencadeadora do fantástico. O ser humano teme o espelho porque este, sem o conhecer, reflete exatamente o que se passa em sua mente. O fantástico apenas reproduz o medo para além do espelho, o medo de tomar consciência de todos os conteúdos que as pessoas insistem em esconder delas mesmas, ou seja, o espelho reflete aquilo que conscientemente as pessoas evitam saber sobre si mesmas, mas que o inconsciente insiste em mostrar. A partir disso, as palavras de Woolf parecem, então, fazer todo sentido: “É pelos fantasmas que estão dentro de nós que estremecemos”. (apud. PONTIERI, 2009, p. 917).

Referências

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WOOLF, V. Contos Completos – Virginia Woolf. Trad. Leonardo Froés. São Paulo: Cosac Naify. 2005.

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[1] A dama no espelho: reflexo e reflexão (WOOLF, 2005).

[2] Grifo meu.

[3] Doravante referido como The lady in the looking-glass.

[4] No original: “convolvulus” (WOOLF, 1993, p. 76); trata-se de um tipo de planta que cresce desordenadamente por cima de outras plantas, podendo ser uma erva-daninha problemática.

[5] No original: People should not leave looking-glasses in their rooms any more than they should leave open cheque books or letters confessing some hideous crime” (WOOLF, 1993, p. 75).

[6] No original: “Chance had so arranged it” (WOOLF, 1993, p. 75).

[7] No original: “one”.

[8] No original: “[…] a calculated beginning that teases the reader into solidarity with the observer”. [Tradução minha].

[9] No original: “The house was empty, and one felt, since one was the only person in the drawing-room, like one of those naturalists who, covered with grass and leaves, lie watching the shyest animals – badgers, otters, kingfishers – moving about freely, themselves unseen. The room that afternoon was full of such shy creatures, lights and shadows, curtains blowing, petals falling – things that never happen, so it seems, if someone is looking. […] And there were obscure flushes and darkenings too, as if a cuttlefish had suddenly suffused the air with purple; and the room had its passions and rages and envies and sorrows coming over it and touting it, like a human being. Nothing stayed the same for two seconds together” (WOOLF, 1993, p. 75).

[10] No original: “[…] they seemed held there in their reality unescapably” (Woolf, 1993, p. 75).

[11] No original: “[…] things have ceased to breathe and lay still in the trance of imortality” (Idem, p. 75).

[12] No original: “Yet it was strange that after knowing her all these years one could not say what the truth about Isabella was” (Idem, p. 76).

[13] No original: “[…] shadowy and simbolic; the corners seemed darker, the legs of chairs and tables more spindly and hierogliphic” (Idem, p. 77).

[14] No original: “The objects in the room become mediating elements, endowed with na understanding of Isabella”. [Tradução minha].

[15] No original: “[…] enigmatic signs, ‘hieroglyphs’ in a unknown languagee, resisting attempts to transform them into transparent vectors of the subjectivity they encode”. [Tradução minha].

[16] No original: “The thought served as a challenge. Isabella did not wish to be known – but she would no longer escape. It was absurd, it was monstrous” (WOOLF, 1993, p. 78).

[17] No original: “she would be standing under the high edge “; “she stood with her scissors raised” (Idem, p.74-75).

[18] No original: “At last there she was, in the hall. She stopped dead. She stood by the table. She stood perfectly still. At once the looking-glass began to pour over her a light that seemed to fix her; that seemed like some acid to bite off the unessential and superficial and to leave only the truth. It was an enthralling spectacle. Everything dropped from her – clouds, dress, basket, diamond – all that one had called the creeper and convolvulus. Here was the hard wall beneath. Here was the woman herself. She stood naked in that pitiless light. And there was nothing. Isabella was perfectly empty. She had no thoughts. She had no friends. She cared for nobody” (WOOLF, 1993, p. 80).

[19] Doravante referido como O espelho.