O Espólio do Senhor Cipriano e os Novelos da Tia Filomela: Cultura Popular em Júlio Dinis

Bruna Luisa Schmitz dos Santos, Isabella Almeida Spigolon

RESUMO: Este artigo tem por objetivo problematizar a apropriação da cultura popular pela classe erudita no cenário intelectual do Oitocentos Português, com enfoque na obra do escritor portuense Júlio Dinis. Para tanto, será estabelecida uma análise comparativa entre dois de seus contos, a saber, O espólio do Senhor Cipriano e Os novelos da Tia Filomela, tendo como base teórica a proposta de Roger Chartier (1995), que caracteriza a cultura popular como uma “categoria da classe erudita”.

PALAVRAS-CHAVE: Júlio Dinis; cultura popular; século dezenove; Portugal.

ABSTRACT: This article aims to discuss the appropriation of popular culture by the erudite class in Portugal through the Nineteenth Century, focusing on the work of the Porto writer Julio Dinis. Therefore, a comparative analysis will be established between two of his short stories – O Espólio do Senhor Cipriano and Os novelos da Tia Filomela -, taking as theoretical basis the Roger Chartier’s proposal (1995), that characterizes the popular culture as an “erudite category”.

KEYWORDS: Júlio Dinis; popular culture; nineteenth century; Portugal.

 

Seria negligente propormos qualquer discussão acerca da presença da cultura popular em Júlio Dinis antes mesmo de problematizarmos o conceito do qual se parte. Para tanto, recorremos ao historiador Roger Chartier que, em seu trabalho Cultura popular: revisitando um conceito historiográfico (1995), parte do pressuposto de que esta é uma categoria erudita, cujo objetivo é delimitar uma série de bens simbólicos exteriores à cultura letrada, surgidos a partir de uma “alteridade cultural ainda mais difícil de ser pensada que a dos mundos ‘exóticos’” (CHARTIER, 1995, p. 179). A partir daí, Chartier destaca dois modelos de descrição e interpretação correntes no meio erudito para tal categoria: o primeiro deles coloca-a positivamente como uma manifestação autônoma e independente da cultura letrada; o segundo enfatiza os mecanismos de subordinação aos quais ela está sujeita, remontando ao caráter centralizador da cultura erudita, o que coloca a cultura popular em uma situação de dependência e, assim sendo, inferioridade em relação a uma cultura dominante.

Embora haja uma oposição evidente entre as duas descrições, Chartier ressalta que há uma frequente alternância entre elas, mesmo em um único autor. Deslocando-nos até o Oitocentos Português, notamos uma condensação entre as duas interpretações: a cultura popular é tida como uma manifestação autônoma, ignorante em relação à cultura erudita, mas que, ao mesmo tempo, depende desta para ser preservada. Em alguns casos, é até possível inverter a noção de subordinação que coloca a cultura popular em desvantagem em relação à erudita: a associação que dela se faz a um primitivismo e a um gene nacional é capaz de subverter a escada hierárquica, colocando a antes desfavorecida como originária do bem simbólico de uma nação. Não esqueçamos, no entanto, olhando a distância, de que aquele que a delimita, categoriza e ressignifica é o meio erudito, corroborando o princípio de que, mesmo ela – a cultura popular -, é uma categoria da cultura dominante.

No século XIX, em Portugal, quando emerge entre os literatos um ideário de cultura popular – a partir da constituição da fábula –, podemos observar que o revolvimento histórico de cunho ficcional objetiva a constituição genética de uma nação. Confundem-se nesse momento, portanto, ficção e realidade, ao passo em que se almeja, através da busca do verossímil, estabelecer a identificação do agora cidadão português com uma reminiscência existencial ressignificada que se pretende sua. Centraliza-se na orquestração desta cena o autor romântico, onde, nele próprio, confunde-se a missão do historiador à do folclorista, o academicismo positivista à busca pelo primitivo. Por trás da composição da obra literária, está o intelectual perscrutador e de fim determinado: cumprir, através da literatura, seu dever civil de pedagogização e doutrinação das massas.

Assim como no domínio político lhe é pedido que directa ou indirectamente a assume pelo voto, assim culturalmente, o que a Pátria é ou não é, interpela o escritor com uma força e uma urgência antes desconhecidas. Cada escritor consciente da nova era escreverá […] o seu pessoal discurso à sua nação, cada um se sentirá profeta ou mesmo messias de destinos pátrios, vividos e concebidos como revelação, manifestação e culto das respectivas almas nacionais. (LOURENÇO, 1992, p. 81)

Os mais notáveis autores, românticos ou realistas – e, mais frequentemente, bambeando entre realistas e românticos – do Oitocentos Português, estiveram no olho do furacão da dita “nova era”. Destacam-se, entre eles: Almeida Garrett, Alexandre Herculano, Antero de Quental, Eça de Queirós e o próprio Júlio Dinis, que certamente não se mostra alheio à responsabilidade cívica, pois númeras provas disso são dadas em Inéditos e Esparsos, composição póstuma que reúne escritos de naturezas diversas do autor – desde textos literários inacabados a observações de cunho político.

Há livros que são monumentos e livros que são instrumentos. Os primeiros levantam-se a perpetuar a memória de uma literatura, ainda mesmo que se extinga a nacionalidade a que pertencia. Primorosamente trabalhados, constituídos por os materiais mais duráveis, é antes para o futuro que eles se erigem do que para os contemporâneos, cuja maioria nem sempre os compreende. […] Os livros instrumentos são, pelo contrário, para andarem nas mãos de todos, para o uso quotidiano, para educarem, civilizarem e doutrinarem as massas. (DINIS, 1879, p. 553)

Não há dúvidas de que Dinis, em O Espólio do Senhor Cipriano e em Os novelos da Tia Filomela dedica-se a uma literatura de instrumento: o caráter moralizante dos contos, combinado ao fervor intelectual da época e às anotações postumamente publicadas evidenciam essa questão. Evidencia-a também a presença do fator popular nos textos: naquela época, isto estava em voga como via certa para a completude de tal fim civilizador. Há, no entanto, um desconforto no lugar-comum do intelectual oitocentista, gerado pela demanda, por um lado, de um resgate de uma cultura primitiva genuína como elemento protonacionalista essencial, e, por outro, da superação do primitivismo em proveito do progresso. A oposição dos dois contos em estudo ilustra com perfeição o limite entre esse contraste: a recuperação da tradição a partir de uma cultura primitiva e a superação do primitivo como via ao progresso.

Já na introdução d’O espólio do Senhor Cipriano, Dinis (que se confunde, na configuração da narrativa, com o narrador) discorre acerca da temática que atravessa o conto: a dita cultura do povo. Aí já destacamos a relação que o autor estabelece entre história e tradição: nota-se, no discurso do narrador-autor, a superação do fato em proveito da tradição, destacada como via emancipadora da história.

De historiadores e biógrafos se ri [o povo]: não há provas nem documentos que valham para lhe fazer ver as coisas diferentes de como as imaginou; mais vezes aqueles cedem até, sacrificando a exactidão à poesia, e admitindo em seus escritos a colaboração da pena popular. Por isso nas crónicas dos tempos passados é através das lendas que se pode procurar a história. (DINIS, 1879, p. 135, grifo nosso)

Alexandre Herculano, em semelhante caráter introdutório do conto O bispo negro, torna à oposição tradição-história, afirmando que “a história conta-nos o fato; a tradição os costumes. A história é verdadeira, a tradição verossímil; e o verossímil é o que importa ao que busca as lendas da pátria.” (HERCULANO, 1959, p. 818). Dessa vez, no entanto, não se coloca a tradição como via para o registro histórico em detrimento do fato.  Em vez disso, Herculano, de certa maneira, as opõe – história e tradição – destacando que a segunda é importante para a composição das lendas da pátria (supõe-se, portanto, que não da história). Revela-se, na comparação entre os dois excertos, a inconsistência do limite entre tradição e história – termos que, a essa altura, ora se condensam, ora se distanciam, embora sirvam sempre, em qualquer dos casos, à missão civilizadora empreitada por ambos os autores.

Tornando ao Espólio de Dinis, cumpre destacar certa entidade que se revela força motriz de toda ação da narrativa: o boato.

Os boatos! Aí temos um desses problemas que desafiam toda a ciência humana. De onde partiram estas, deixem-me assim chamar-lhes, emanações subtis que aspiramos todos, os crédulos e os espíritos fortes, os ignorantes e os ilustrados, como todos contraímos a epidemia, cujo foco se desconhece? (DINIS, 1879, p. 136)

Por trás do boato, revela o narrador, opera como que uma espécie de instinto popular, que, embora sem provas fatuais (desconhece-se o “foco” da “epidemia”), seria capaz de chegar à verdade (confirmando, portanto, a suposição).

Concedam pois também ao povo instintos, instintos que o fazem adivinhar factos ocultos, como a ave pressente o Inverno; instintos sobre os quais se elevam juízos, que a razão prudente repele ao princípio, mas que tantas vezes o futuro vem confirmar mais tarde. (DINIS, 1879, p. 136, grifo nosso)

É o que ocorre na trama protagonizada pelo Senhor Cipriano: corria, na Província do Minho, um boato de que esse senhor, que não aparentava ser mais que um miserável, era na verdade proprietário de uma vasta quantia. O povo, indignado com tamanha avareza, cumpriu dar ao Cipriano a mais jocosa das famas, chamando-o de “unha-de-fomes”, “sovina”, dentre outras alcunhas. Certo dia, morre o velho, deixando na miséria sua irmã, Maquelina. Recorrendo à máquina pública para dar funeral ao seu irmão, Maquelina se vê desamparada, posto que absolutamente ninguém acredita que pode ela não ter dinheiro para tanto, sendo herdeira de quantia fabulosa. Supera-se, no entanto, essa breve aversão à irmã ao se levantar a hipótese de que seria ela, na verdade, uma vítima de Cipriano que, de tão avarento, teria escondido suas riquezas. Decide-se a população a ir às pás e cavar todo terreno da casa dos irmãos, em busca de um baú de tesouros dourados. Posto que nada se encontra, dá-se a busca por encerrada. É nesse momento que chega, vindo do Brasil, o afilhado de Maquelina; é ele que ao fim, já com a madrinha em leito de morte, encontra a grande riqueza: ao contrário do que se esperava, o dinheiro estava emitido em notas (que Maquelina andava queimando para poupar carqueja) guardadas em uma gaveta ao lado da cama, dando às vistas e sem chaves. Endossa-se, portanto, o boato popular, com origem situada no instinto do povo.

O instinto do povo não o enganara dessa vez. […]Maquelina era ignorante, e nem imaginava sequer que se pudesse ter uma riqueza em papéis. Na sua inteligência, como na das crianças, a ideia de riqueza andava associada à de muito dinheiro em ouro e prata […] e por isso ia queimando agora lentamente aquele tesouro que o irmão acumulara, e isto com o fim de poupar carqueja! (DINIS, 1879, p. 152, grifos nossos)

Ao contrário d’O espólio do Senhor Cipriano, em Os novelos da Tia Filomela o boato não se confirma; é ainda ele o fio condutor da trama, com um acréscimo relevante: a superstição. Tia Filomela era uma senhora que, na vizinhança da província, tinha fama de bruxa. A superstição acerca de tais “sinistras relações com espíritos ruins” justificava-se pelo fato de que, desde que veio a velha se assentar àquele lugar, sucedeu uma série de mortes de crianças. A partir daí, e com a necessária participação do Reitor da província – que endossou a teoria – na conspiração, passou o pleito a repudiar a velha e engrossar histórias das mais agourentas a seu respeito. Eis que um jovem (o narrador), descrente da fantasia, decide conhecer a feiticeira – e descobre nela uma senhora extremamente resignada, com histórico de largos sacrifícios.

Cumpre destacar, nesse diferenciado caso, uma questão: por que, afinal, ao contrário do que ocorre no caso do Cipriano, o boato acerca de Filomela mostra-se injurioso? Essa questão nos faz retornar à contradição em que se encontra o intelectual oitocentista: ao passo em que se busca resgatar uma cultura primitiva, em prol de uma unidade nacional, é necessário o afastamento do primitivismo em proveito do progresso positivista. O elemento superstição pode ser tido, portanto, como determinante para a oposição entre os dois contos: a superstição, afinal, opõe-se ao progresso positivo, de cunho racionalista e cientificista. O pároco, autoridade responsável por fortalecer a ideia de que Filomela é uma bruxa, possui, nessa interpretação, caráter altamente simbólico: é ele o mau líder, o líder sem conhecimento que, apoiado em noções primitivas (supersticiosas e, portanto, irracionais), conduz a vizinhança ao julgamento equivocado.

Há apenas dois anos que vim para esta abadia. O meu predecessor era, pelo que pude saber dele, um santo homem, esmoler e honrado, mas de uma superstição grosseira, eivado de erros e de preconceitos que a falta de instrução e nenhuma cultura de espírito haviam feito pulular. Era ele o primeiro a acreditar em todas as tradições de duendes e de almas penadas e a usar de esconjuros, amuletos e ervas contra feitiçoes. Na residência deparou-se-me uma abundante coleção desses objetos, com que o bom do homem julgava prudente munir-se contra os ataques dos maus espíritos e das feiticeiras. Faça ideia de como devia andar a imaginação desta gente, quando um pároco, que residia aqui havia perto de dezoito anos, lhe dava tais exemplos. (DINIS, 1879, p. 189)

A fala supracitada é do novo Reitor, simbolicamente contrastante ao anterior e decisivo para esta interpretação. A última cena do conto é ambientada em uma biblioteca – a biblioteca do novo Reitor – e trata de um diálogo entre este e o narrador-personagem que, ao adentrar o lugar, depara-se com diversas leituras menos ortodoxas.

Junto à cabeceira do leito e ao lado do velador encontrei, ainda aberto, o Gênio do Cristianismo, outros livros, porém, menos ortodoxos, cobriam a mesa, as cadeiras e até o pavimento. Fácil me foi descobrir a um lado o Jocelyn, mecionado pela cúria no Indez librorum prohibitorum; junto dele, o Eurico, de igual imoralidade; mais além, os Lusíadas – não obstante a sua escandalosa amálgama de religiões; sobre o Paradise lost, o pagão do Homero; ao lado dos Mártires, a Eneida; de envolta com a Crónica de S. Domingos e a Vida do Arcebispo, a História dos Girondinos; a Guerra dos trinta anos, em contacto íntimo com os Anais da propagação da fé; o Memorial de Santa Helena, ao pé da Imitação de Jesus Cristo; e o Teatro de Vítor Hugo, de Schiller e de Garrett, não muito longe dos Sermões de Vieira, das obras de Fénelon e Nova Floresta de Bernardes. (DINIS, 1879, p. 197)

É este novo reitor o único da aldeia a repudiar, desde o início, as acusações feitas a Filomela; é este reitor, com leituras proibidas pela igreja católica, que mantém relações amistosas com a senhora e que reza missas exclusivas para ela, temerosa em aparecer ao público. Destacando, portanto, a atuação dos reitores, é evidente o deslocamento feito da responsabilidade do povo sobre as injúrias para as autoridades. Embora, num primeiro momento, diante da forte superstição da população, o novo Reitor não tenha tido sucesso em desfazer o boato acerca de Filomela, é sob sua liderança que se dá, num segundo momento, a grande reviravolta da trama: a velha, antes tida como bruxa, passa a ser vista como uma santa, após sua morte.

Fez-se justiça, ainda que tardia, a Filomela, e já corriam todos para a casinha do pinhal, como para uma ermida de Senhora aparecida. Duas velhas beatas disputaram, quase a murro, a posse do gato [o gato de Filomela, antes tido como membro do conluio de bruxaria], que no resto da vida se tornou o mais benquisto da aldeia. A fantasia popular, tão fecunda em inventar lendas milagrosas, como traças do Satanás e de seus adeptos, refere agora virtudes da tia Filomela, que deixavam a perder de vista as antigas façanhas de feiticeira que lhe atribuíam. (DINIS, 1879, p. 200)

Cumpre tornar, portanto, à questão posta anteriormente: fora colocado, no início, que a comparação entre estes dois contos ilustraria perfeitamente o contraste entre a recuperação da tradição através da cultura primitiva e a superação do primitivo como via ao progresso. Cabe, para enriquecer esta discussão, esclarecer e ilustrar a questão do primitivismo presente na cultura popular.

Desde que uma crença consegue radicar-se verdadeiramente na imaginação do povo, difícil é ao poder dos séculos ou à evidência dos factos desarreigá-la. Parece que à medida que um por um se vão quebrando os laços que a prendiam à razão e diminuindo a plausibilidade que dos espíritos sensatos a fazia ainda aceite, mais atractivos ela ostenta à fantasia popular, sempre afeiçoada ao maravilhoso e impelida a correr atrás de uma destas sedutoras ilusões, como as crianças a perseguirem as borboletas através das campinas. (DINIS, 1879, p.135, grifo nosso)

O excerto acima, retirado da introdução d’O Espólio do Senhor Cipriano, revela a crença popular como desprovida de razão (“quebram-se os laços que a prendiam à razão”) e plausibilidade (“que dos espíritos sensatos a fazia ainda aceite”) e marcada pela ilusão e pelo maravilhoso. Metaforiza-se, ainda, no trecho grifado, o “povo” como “crianças a perseguirem as borboletas através das campinas”.

O povo é uma grande criança collectiva, é o eterno infante. No seu conceber as cousas, no seu sentir, no seu dizer, estão ainda presentes, como o estão nas crianças, aquellas faculdades intuitivas que presidiram, ha muitos seculos, ao alvorecer do espírito humano e produziram os mythos, as lendas, os cantos heroicos, com que, no seu berço, se embalou tão poeticamente a humanidade. Dizer popular é pois dizer infantil. (QUENTAL, 1883, p. 9, grifos nossos)

Encontramos a mesma ideia em Antero de Quental, na introdução do Tesouro poético da infância. O primitivismo popular, aí, novamente associa-se ao primitivismo infantil, como se o povo representasse o “alvorecer do espírito humano” da mesma maneira que a criança representa o alvorecer da existência individual. Cumpre ressaltar, no entanto, a necessidade, naquele momento histórico, de superação de tal primitivismo. Não se deve ignorar, também, que o que nos revelam os contos de Júlio Dinis são relatos de tradição ressignificados para a ficção. O autor oitocentista possui, portanto, um afastamento de uma tradição popular fatual, ao passo em que a ficcionaliza em sua obra. Em outras palavras, o intelectual jamais será um ator das práticas concernentes à cultura popular, e os atores, se existem, tampouco se sentirão pertencentes à categorização de cunho erudito.

[…] os debates em torno da própria definição de cultura popular foram (e são) travados a propósito de um conceito que quer delimitar, caracterizar e nomear práticas que nunca são designadas pelos seus atores como pertencendo à ‘cultura popular’. (CHARTIER, 1995, p. 179)

Este excerto de Chartier demonstra certa mística a ser superada acerca da cultura popular, que é, afinal, uma categoria erudita. Com este trabalho pretendíamos, pois, deslocar tal afirmação para a realidade do século dezenove em Portugal: Júlio Dinis, como outros autores aqui citados, dá-se ao trabalho da apropriação e ressignificação de uma suposta cultura popular fatual (que não pode escapar da constituição da história) para uma categoria erudita (a dita cultura popular) através da ficção. A transposição – do fatual para o ficcional – gera um afastamento de uma cultura primitiva (mas necessária ao enriquecimento de um processo de autoconhecimento nacional) que pretende dar abertura ao progresso. O passado relatado é, portanto, superado, em proveito do futuro.

À época, tal ficcionalização tinha importância capital para a disseminação de um “gene português”: promover a identificação do público era, afinal, essencial para cumprir um programa de soberania nacional. Tratava-se, além disso, de um momento em que a burguesia passava a compor um público consumidor massivo de literatura, o que encerrava um quadro propício para a divulgação de uma “literatura de instrumento”. Júlio Dinis, ao passo em que engrossava a lista de escritores folhetinescos, revelava na intenção de seus contos o retrato do popular erudito (o idílico, campesino e primitivo). Servia-se, portanto, dessa temática, a fim de doutrinar o público consumidor de uma cultura de massa, compondo, enfim, uma espécie de romance de costumes cuja verossimilhança é latente e permeada de moralidade: trata-se, pois, da literatura não só como ferramenta pedagógica, mas também (e, talvez, principalmente) como um espaço onde a memória popular (tradição) e a história possam ser preservadas.

REFERÊNCIAS

CHARTIER, Roger. “Cultura popular”: revisitando um conceito historiográfico. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 8, n. 16, 1995, p. 179-192.

DINIS, Júlio. O espólio do Senhor Cipriano. In:__________. Obras de Júlio Dinis Vol. II. Porto: Lelo & Irmão-Editores, 1879.

DINIS, Júlio. Os novelos da Tia Filomela. In:__________. Obras de Júlio Dinis Vol. II. Porto: Lelo & Irmão-Editores, 1879.

DINIS, Júlio. Inéditos e Esparsos. In:__________. Obras de Júlio Dinis Vol. II. Porto: Lelo & Irmão-Editores, 1879.

HERCULANO, Alexandre. O bispo negro. In:__________. Alexandre Herculano Obras I Poesia, teatro, ficção. São Paulo: Editora Saraiva, 1959.

LOURENÇO, Eduardo. “Da literatura como interpretação de Portugal”. In:__________. O labirinto da saudade. Lisboa: Publicações Dom Quixote Ltda, 1992.

QUENTAL, Antero de. Thesouro poetico da infancia. Porto: Ernesto Chadron-Editor, 1883.

Data de envio: 29 de janeiro de 2015