Da retomada da experiência à profanação da mídia: uma análise da crônica “A eterna imprudência” de Humberto de Campos

Kleber Kurowsky

RESUMO: Este ensaio tenciona fazer uma análise da crônica “A eterna imprudência”, do escritor Humberto de Campos, tanto como uma narrativa propriamente dita quanto no contexto do Brasil no início do século XX. Busca-se, então, apresentar como a crônica em questão realiza uma retomada da experiência – como proposta por Walter Benjamin – e a profanação da mídia, segundo os preceitos oferecidos por Giorgio Agamben.

PALAVRAS-CHAVE: Humberto de Campos; crônica; mídia; experiência; profanação.

ABSTRACT: This essay intends to analyse the chronicle “A eterna imprudência”, by the author Humberto de Campos, both the narrative itself as well as studying it in the context of the XX century first half in Brazil. Then, we want to show how the short story recaptures the experience – as proposed by Walter Benjamin – and the media desecration, following the precepts offered by Giorgio Agamben.

KEYWORDS: Humberto de Campos; short story; media; experience; desecration.

 

O uso da ironia e do sarcasmo como formas de estabelecer uma crítica social ácida é uma constante em toda a obra do escritor Humberto de Campos; é, talvez, na crônica “A eterna imprudência”, que se encontra no livro Sombras que Sofrem, publicado originalmente em 1934, que isso seja mais evidente; quem sabe, até mesmo, mais pessimista.

Publicada na primeira metade do século XX, a crônica em questão narra a história de vida de Ezequiel, homem pobre da classe proletária, e como a notícia de sua morte é deturpada pelo veículo de comunicação mais popular da época: o jornal, ou seja, a notícia impressa.

Importante atentar, desde o início, para o fato de que o texto estabelece uma crítica mordaz aos métodos muitas vezes elitistas da imprensa, mas ele próprio é produzido seguindo o modelo de crônica jornalística, que possui o intento de ser uma leitura rápida e, na maioria dos casos, facilmente consumida, construída a partir de temas cotidianos. Existe, portanto, a incorporação mútua de elementos artísticos e noticiários. Cria-se, então, uma tentativa de profanação tanto do meio quanto da forma; mas esse aspecto será estudado mais adiante, primeiro, é necessário nos familiarizarmos com as estratégias empregadas na obra.

Primeiro, o autor apresenta as características socioeconômicas da realidade na qual o protagonista está inserido, que remetem à vida suburbana do Rio de Janeiro: fome, pobreza, desemprego e doença. Esses elementos correspondem aos limites do mundo no qual o protagonista está inserido; é como se a crônica tentasse transmitir uma mensagem fatídica, de que os personagens estão encarcerados por essas espessas paredes sociais, rejeitados e à parte do resto do mundo. Isso fica mais claro quando se tem em mente que o pai de Ezequiel – pedreiro, assim como o filho – morre ao sofrer uma tontura devido à febre, fazendo com que caísse do andaime no qual estava trabalhando. Seu filho, ao final da crônica, é vítima de um destino semelhante quando, sofrendo de febre, acaba caindo do trem que o transportava de volta para casa ao final de um dia de trabalho. Em ambos os casos, eles são levados a trabalhar, mesmo doentes, pois sabem que são a única fonte de renda da família. É como se os personagens tivessem sido condenados a um ciclo, este que eles são incapazes de romper.

Uma questão importante quando se estuda o personagem de Ezequiel é o prazer que ele sente ao ver concluídos os prédios e casas em que trabalhou. O narrador deixa bastante claro os sofrimentos pelos quais o personagem passa, mas isso não parece diminuir a felicidade que sente ao ver seu trabalho terminado.

Mas também, que alegria a sua, quando terminada a obra, a via, graciosa, ou gigantesca, entregue ao proprietário! Com que orgulho a mirava, contente, após a retirada dos andaimes, pelos quais se movera durante meses, pondo um pouco de sua alma na volúpia com que ligava o cimento ou no cuidado com que fixava um ladrilho! A colher com que alisava o barro possuía a sensibilidade humana dos seus dedos, e corria por ele como se acariciasse lentamente, sensualmente, um corpo de mulher ardente e moça. (CAMPOS, 1983, p. 97-98)

Esta é a primeira manifestação de uma paixão que é reiterada em diversos outros momentos da narrativa, e é, possivelmente, a principal para se entender o aspecto em questão. O narrador compara o deleite que o personagem sente com o prazer físico e sexual. Existe amor em ver o resultado de seus esforços. Um pouco adiante, o amor que ele sente pelas casas que construiu é comparado com aquele que um pai sente pela filha:

Aos domingos, vinha para a cidade, e percorria diversos bairros, a fim de contemplar cada uma, a ver como iam, e a sofrer quando as achava com a pintura descorada, ou sem trato, como a mágoa de um pai que vai visitar a filha casada e a encontra enferma ou brutalizada pelo genro. (CAMPOS, 1983, p. 98)

E, novamente, em: “No domingo seguinte descia, de novo, do Sampaio, da casinhola de taipa em que morava, para fiscalizar, com ciúme paterno, os arranha-céus, os bangalôs e os palacetes alheios.” (CAMPOS, 1983, p. 98).

Seu trabalho, sua obra são apresentados pelo narrador como parte da família de Ezequiel – ou, pelo menos, ele as vê assim. Ora, isso não é de se estranhar, afinal de contas, ele é um dos responsáveis pela existência daquelas construções, graças a ele – e a outros como ele – elas estão de pé; natural que haja carinho por sua obra.

Isso nos leva a outra questão importante: em certo momento, o protagonista passa horas em frente a uma casa que ele ajudou a construir, contemplando-a. Um dos moradores da casa chama a polícia e Ezequiel acaba tendo que passar o resto do domingo na cadeia. Essa atitude, essa expulsão do protagonista, forçando-o a se afastar de sua própria criação, pode ser vista não apenas como um sintoma de preconceito, mas como um resumo da própria posição do indivíduo pobre na sociedade: ele é visto como algo insignificante, rejeitado por aqueles que dependem dele, que vivem em construções que ele ajudou a erigir.

Outro ponto importante, e para o qual o autor dedica boa parte da crônica, é o trem que transporta os personagens aos locais de trabalho, mas não apenas o veículo em si, e sim o que representavam – simbolicamente – aqueles meios de transporte. Talvez o principal elemento que caracterize os trens nessa narrativa seja a aglomeração de indivíduos. Em todos os momentos em que o trem aparece na crônica, ele está cheio de gente, todos tendo que se empurrar para conseguir um lugar lá dentro, onde ficam prensados uns contra os outros como animais. Os que não conseguem são forçados a ocupar espaços exteriores dos vagões, inclusive o teto; em muitos casos, à custa de suas vidas.

Essa visão de um espaço repleto, que não comporta os viajantes que se comprimem dentro dos vagões, que a crônica transmite sobre os trens, é uma excelente forma de englobar os ambientes de trabalho no final do século XIX e começo do século XX: época em que os trabalhadores eram desprovidos de dispositivos de segurança.

Entretanto, além de um depósito móvel de seres humanos, o trem representa a distância entre o homem da classe proletária e o homem que vive em Copacabana. Para que Ezequiel possa trabalhar, ele precisa utilizar um veículo que seja capaz de transportá-lo por longas distâncias, levá-lo a uma realidade distinta, da qual ele é uma parte vital, embora invisível. Isso se confirma pela seguinte passagem, que trata daqueles que eram forçados a ficarem no teto do trem, correndo o risco de perderem a cabeça:

— Tira a cabeça do caminho, senão vai também!
— Olha o teu miolo que foi dentro do chapéu, desgraçado!
— Segura o pescoço, banana! Fiau!
Não raro, em lugar do chapéu, ia o dono. Mas o trem não parava. O “rabecão” da Polícia vinha buscar o morto para o necrotério. E a viagem continuava. E a vida também. (CAMPOS, 1983, p. 100)

Essa passagem é uma verdadeira síntese das condições humanas das classes mais baixas, assim como parece resumir com precisão a mensagem central da crônica; alguém podia ter morrido, mas o trem não parava, continuava seu trajeto como se nada tivesse acontecido. Assim, a viagem do trem simboliza também a vida daquelas pessoas, que não podia parar, não tinha como parar, seguindo um destino inevitável, do qual não podiam escapar, pois não podiam se dar ao luxo.

No ritmo incessante do trem, assim como no ritmo sempre constante da vida dos operários, não havia tempo para parar e pensar. Ao final da crônica, é justamente nessas condições que Ezequiel perde sua vida; fraco e doente, o personagem começa a pensar em diversas questões referentes à sua condição como trabalhador, na injustiça que a vida lhe impunha, e é no meio de suas reflexões que ele acaba sendo arremessado do trem, caindo nos trilhos, acabando em sua morte. Isso resulta numa notícia de jornal, transcrita, aqui, na íntegra:

A ETERNA IMPRUDÊNCIA
— Mais uma horrível morte por imprudência verificou-se ontem em um dos trens da Central do Brasil. Não obstante as tristes ocorrências que testemunhavam quase todos os dias, o pedreiro Ezequiel Antônio dos Santos, brasileiro, casado, de cor parda, contando quarenta anos, não perdia o costuma de viajar na plataforma do carro. Ontem, procurando o seu lugar preferido, sucedeu-lhe descuidar-se, tombando na linha, perecendo esmagado. Ao que parece, Ezequiel se achava em estado de embriaguez, pois que fora visto, pouco antes, a cambalear na estação Pedro II. (CAMPOS, 1983, p. 102-103)

Essa notícia – que vai servir como base para o restante das argumentações aqui propostas – é um exemplo e um dos motivos da invisibilidade que envolve a classe proletária. O discurso proposto no texto jornalístico distorce e manipula as informações, culpando os próprios trabalhadores e isentando os verdadeiros responsáveis de qualquer culpa. Importante ressaltar que o narrador coloca que, de todas as notícias que foram escritas sobre o acidente, esta foi a mais longa, sendo que as outras possuíam apenas três ou quatro linhas, deixando ainda mais evidente o desinteresse geral pelos trabalhadores que viajavam naquele trem.

Tratando por um momento da questão estrutural do texto, observa-se o uso de um gênero popular no começo do século XX: a crônica. O autor emprega elementos textuais diretamente ligados às notícias de jornal, mas os utiliza para um efeito reverso; não se trata aqui apenas de comunicar, mas de discorrer sobre um evento que ao final da crônica nos é apresentado no formato de uma notícia de jornal. Isso reflete um sintoma das deficiências políticas e sociais que, embora já existisse previamente, começava a se agravar no momento histórico em que Humberto de Campos produz sua obra, mal estar este que impactou a arte diretamente. Luhmann (1996, p. 245) explica: “[…] a obra de arte afastou-se do mundo das coisas úteis e perigosas. Parece ser produzida especialmente para provocar processos de comunicação.”. O papel cada vez maior que a crônica adquire no decorrer do século XX é um exemplo disso.

Em uma análise contextual, faz-se necessário deixar claro o deslocamento de Humberto de Campos no contexto artístico brasileiro. Embora dotado de ideias inovadoras, sua obra não apresenta grandes indícios de ter aderido ao movimento modernista que teve início em 1922, mantendo-se mais inclinado aos ideais literários que orientaram a literatura do século XIX. Entretanto, suas estratégias narrativas apresentam o embrião do modernismo. A antropofagia, por exemplo, está presente em sua obra, com ele assimilando muitos conceitos e ideias exteriores à cultura nacional e mesclando-as para formar uma narrativa brasileira, embora dificilmente isso tenha ocorrido por um desejo do autor de participar de uma corrente literária nacional determinada. Como argumenta Alfredo Bosi:

Com o máximo de precisão semântica, dir-se-á que nem tudo que apresenta traços modernos (Lobato, Lima Barreto) será modernista; e nem tudo o que foi modernista (o decadentismo de Guilherme, de Menotti, de certo Oswald) parecerá, hoje, moderno. (BOSI, 2013, p. 354)

Agora, com uma maior compreensão da operabilidade da narrativa, é necessário analisar qual era o papel da mídia na primeira metade do século XX e como isso se reflete na crônica. Nossa hipótese primária é de que iremos localizar aversão a muitas das técnicas empregadas pela mídia e pela indústria cultural; entretanto, utilizando a análise proposta, esperamos ser capazes de apontar a viabilidade de uma solução quanto a um uso profanador da mídia, ou seja, um uso que opere a mídia de uma maneira que a isente de uma posição alienante e que utilize as ferramentas de comunicação com o intuito de retratar a posição do povo para assim poder melhorá-la. Como Agamben coloca:

A profanação implica, por sua vez, uma neutralização daquilo que profana. Depois de ter sido profanado, o que estava indisponível e separado perde a sua aura e acaba restituído ao uso. Ambas as operações [secularização e profanação] são políticas, mas a primeira tem a ver com o exercício do poder, o que é assegurado remetendo-o a um modelo sagrado; a segunda desativa os dispositivos de poder e devolve ao uso comum os espaços que ele havia confiscado. (AGAMBEN, 2007, p. 68)

Primeiro, é de suma importância ter em mente que o final do século XIX e começo do século XX foi um período de enorme efervescência política e social; novos veículos de comunicação de massa, assim como diversas outras tecnologias, estavam surgindo e se expandindo em ritmos nunca vistos antes. É já nesse momento histórico que a mídia adquire destaque como uma ferramenta de manipulação da sociedade. Como coloca Guy Debord, logo no início de sua obra A sociedade do espetáculo: “Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era diretamente vivido se esvai na fumaça da representação.” (DEBORD, 2003, p. 13).

A palavra chave aqui é representação; a forja de uma realidade deturpada através de uma indústria que começava a engatinhar. Isso nos leva a um ponto fundamental e que merece ser estudado mais de perto: a experiência, ou melhor, a perda da experiência. Essa representação, para Debord, significa a supervalorização das imagens e a forma como essas imagens assumiram um papel central no universo industrial no qual estamos inseridos, tornando-se, em muitos casos, mais importante que o produto que está sendo representado. A imagem prevalecendo sobre o material.

A experiência de Benjamin é explorada de diversas maneiras no decorrer de sua obra. João Gabriel Lima e Luis Antonio Baptista explicam:

Em seus primeiros escritos, considerou a experiência como um saber mascarado, opressor. Em seguida, após seus estudos da Crítica da razão pura, entendeu que o conceito kantiano de experiência era insuficiente para estruturar as diversas qualidades de experiência. Na década de 30, tempo de suas obras mais famosas, Benjamin concebeu ainda a experiência como o conhecimento tradicional, passado de geração em geração, e que vinha definhando com a modernidade. Por fim, em 1943, em um ensaio sobre Baudelaire, Walter Benjamintrouxe a experiência mais ao campo da sensibilidade, nomeando-a não mais como “experiência” (Erfahrung), mas sim como “vivência” (Erlebnis). (BAPTISTA; LIMA, 2013, p. 451).

Para tratar disso, é necessário relembrar alguns conceitos estudados por Walter Benjamin: “A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorrem todos os narradores.” (BENJAMIN, 1987, p. 198). Sabendo disso, a mídia deveria ser o conjunto de processos que facilitam esse intercâmbio de experiências – tendo em vista, é claro, que a transmissão de experiências permitisse a subtração do corpo presente –, uma forma de difundir conhecimento e informação, entretanto, não é isso que acontece. A mídia – como bem sabia Humberto de Campos – é, na maior parte dos casos, um mecanismo de controle do público. A visão de Walter Benjamin sobre a imprensa fica evidente na seguinte passagem:

Se fosse intenção da imprensa fazer com que o leitor incorporasse à própria experiência as informações que lhe fornece, não alcançaria seu objetivo. Seu propósito no entanto é o oposto, e ela o atinge. Consiste em isolar os acontecimentos do âmbito onde pudessem afetar a experiência do leitor. Os princípios da informação jornalística (novidade, concisão, inteligibilidade, e sobretudo falta de conexão entre uma notícia e outra) contribuem para este resultado do mesmo modo que a paginação e o estilo lingüístico. (D’ANGELO apud BENJAMIN, 2006).

Segundo Benjamin (1987), a experiência estaria em vias de extinção, isso explicaria as mudanças drásticas que estavam acontecendo na literatura do começo do século XX, assim como afetava diretamente a maneira do ser humano se comunicar e se relacionar com o meio. Essa perda da experiência estaria ocorrendo por vários motivos, dentre os quais estariam as conturbadas transformações políticas do mundo na época em questão e as velozes mudanças na técnica do homem. Para o filósofo, isso estaria diretamente refletido na ausência cada vez maior de narradores, de pessoas capazes de articular histórias oralmente, sem embaraços. Entretanto, não se trata somente de criar uma narrativa, mas de ser capaz de aplicar nela um aspecto utilitário. Como nos explicam João Gabriel Lima e Luis Antonio Baptista: “A capacidade de transmitir uma informação potencialmente útil através de uma história – sobretudo em sua forma mais elaborada, o conselho – é um importante atributo do narrador tradicional.” (LIMA; BAPTISTA, 2013, p. 467).

Ora, isso nos remete diretamente à crônica de Humberto de Campos; não no sentido da narrativa oral, mas de ser capaz de estabelecer um sentido utilitário através de uma história. O autor transmite um valor moral através da exposição de uma estrutura corrompida, nesse caso, a notícia de jornal, viabilizando uma nova visão a respeito do assunto. Existe, portanto, a queda de um corpus sacralizado, a profanação das estruturas que compõem uma notícia de jornal e, por extensão, da mídia do começo do século XX como um todo. Observa-se que não se trata de uma questão temática, afinal de contas, inúmeros outros autores também realizaram críticas à mídia, tanto antes quando depois de Humberto de Campo; a peça O beijo no asfalto, de Nelson Rodrigues, talvez seja um dos melhores exemplos de crítica à imprensa nacional, e assim como ele, existem outros, mas o que destaca a crônica de Humberto de Campos é justamente a já dita apropriação de estratégias oriundas de textos jornalísticos e “informativos”.

É esse tipo de atitude que Agamben (2007) defende; uma profanação de meios sacralizados pelo capitalismo, um retorno à esfera do uso daquilo que normalmente é visto como mecanismo inutilizável ou alienante. E a mídia é, possivelmente, um dos campos mais férteis para esse tipo de atividade.

Não é nenhuma novidade que a mídia e a indústria cultural são utilizadas com um motivo contrário do que realmente deveriam ser: ao invés de informar e educar, proporcionando a verdadeira experiência de que fala Walter Benjamin, elas nos bombardeiam com notícias distorcidas, irrelevantes e alienantes, sabotando o pensamento humano. Mas, como provou Humberto de Campos, profanar a mídia não é um objetivo inalcançável, é possível conservar a espinha dorsal de um determinado veículo de comunicação em massa e aplicá-lo a objetivos benéficos; não se deve condenar a mídia, e sim o uso que se faz dela. E talvez isso nunca tenha sido tão verdadeiro quanto no momento histórico que vivenciamos. Com a internet nos oferecendo esse amplo self service de informação, novas redes sociais surgindo mensalmente e, com elas, novas formas de comunicação, temos em mãos algo de muito precioso: oportunidade.

Vamos nos ater por um momento às redes sociais, mais especificamente ao Facebook. Não é necessário navegar no site por muitas horas para se deparar com uma orgia sensorial e informacional, diversas manifestações de vaidade e a necessidade de confirmação de uma identidade particular através de um ponto de vista externo, removendo o aspecto qualitativo em detrimento de um ponto de vista quantitativo; consequências óbvias que longas décadas de exposição à indústria cultural tiveram sobre a sociedade, fato para o qual Guy Debord já alertava. Mas eventos recentes provam que, não, o Facebook não é um meio impossível de ser profanado. Em 2011, no Egito, a rede social em questão foi vital para a organização do movimento que culminou na queda do então ditador Muhammad Hosni Mubarak.

De maneira geral, o Facebook facilitou o processo de troca de mensagens entre os revolucionários, tornando mais rápida e simples de divulgação de fatos novos, a discussão de ideias e a proposição de novas movimentações. Além disso, o Facebook teve papel importante como vitrine para dar visibilidade mundial ao movimento revolucionário. Como todas as mensagens podiam ser acessadas pelos usuários cadastrados, e entre estas mensagens haviam fotos e vídeos das manifestações, se tratava de uma fonte de informações extremamente importantes para que jornais do mundo inteiro pudessem noticiar os fatos sob a ótica dos revolucionários. (REIS; BARROS, 2011, p. 15)

Essa passagem resume vários dos aspectos que comprovam a enorme benesse que as redes sociais podem ter, quando bem aplicadas. As vantagens da profanação são evidentes, são viáveis.

Uma estratégia semelhante foi utilizada em 2012 nas manifestações da primavera árabe, positivando uma vez mais o impacto que as redes sociais podem ter. Mas não é apenas para movimentos revolucionários que elas podem ser úteis; diariamente surgem grupos e páginas voltadas para produção artística, aprendizado de língua e discussões sociais, acessíveis de qualquer lugar do mundo. Todos exemplos de uma profanação estrutural que muito se assemelha ao que Humberto de Campos fez com a crônica A eterna imprudência”. Claro, isso não diminuiu a potência sacralizante – ou seja, de confirmação de um poder dominante – que o Facebook ainda possui, e é provável que ela nunca se desfaça por completo, mas as ferramentas estão todas aí, basta saber utilizá-las. Como explica Agamben: “Todo dispositivo de poder sempre é duplo: por um lado, isso resulta de um comportamento individual de subjetivação e, por outro, de sua captura numa esfera separada.” (AGAMBEN, 2007, p. 79).

É necessário termos conhecimento daquilo que está à nossa disposição, é necessário profanar antes que – como diria Benjamin (2000) – nos tornemos os adultos mascarados pela prótese da experiência. Não imitemos o pai de Ezequiel: não sejamos a mente febril que se apoia no vácuo.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.

BAPTISTA, Luis Antonio; LIMA, João Gabriel. Itinerário do conceito de experiência na obra de Walter Benjamin. Princípios, Natal, RN, v. 20, n. 33, p. 449-484, jan./jun. 2013.

BARROS, Samuel; REIS, Lucas. Internet e revolução no Egito: o uso de sites de redes sociais durante a convulsão que derrubou o governo ditatorial egípcio em 2011. In: CONGRESSO LUSO AFRO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS, 11., 2011, Ondina, BA. Anais… Ondina, BA, 2011.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. Obras escolhidas I.
______. Early Writings (1910 – 1917). Massachusetts. The Belknap Press of Harvard University Press. 2011.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 49. ed. São Paulo: Cultrix, 2013.

CAMPOS, Humberto de. Sombras que sofrem. São Paulo: Opus Editora, 1983. Obras escolhidas VI.

D’ANGELO, Martha. A modernidade pelo olhar de Walter Benjamin. Estudos avançados. São Paulo, SP, v. 20, n. 56, jan./abr. 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40142006000100016&script=sci_arttext>. Acesso em: 20 jul. 2015.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. 2003. Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/socespetaculo.pdf> Acesso em: 20 jun. 2015.

LUHMANN, Niklas. A obra de arte e a auto-reprodução da arte. In: OLINTO, Heidrun Krieger. Histórias de literatura: as novas teorias alemãs. São Paulo: Ática, 1996. p. 241-271.

Data de envio: 22 de julho de 2015.