Mudanças identitárias da enigmática Rosalina, de Ópera dos Mortos

Maria Helena Castagnara, Mayara Cristina de Brito

RESUMO: O presente trabalho tem como objeto de estudo o romance Ópera dos Mortos, escrito por Autran Dourado em 1967. O objetivo centra-se na análise de Rosalina, principal personagem, cujos comportamentos e/ou mudanças no decorrer da narrativa aparentemente remetem à loucura. Para compreender a loucura de maneira geral, Michel Foucault (1972) forneceu o suporte necessário. Com relação às mudanças de identidade foram utilizados alguns apontamentos de Antonio da Costa Ciampa (2001). Empregou-se o estudo de Roberto Reis (1987) no que concerne às relações como um “círculo” que envolve as personagens e o meio social desse romance. Ademais, no decorrer da análise, houve a correlação entre elementos da mitologia grega e algumas peculiaridades de Rosalina. Enfim, foi possível constatar que Rosalina possui mudanças comportamentais devido à pressão/repressão da ordem patriarcal e à busca identitária.

PALAVRAS-CHAVE: Loucura; Identidade; Autran Dourado; Rosalina; Romance Brasileiro.

ABSTRACT: The present work has as its object of study the novel Ópera dos Mortos, written by Autran Dourado in 1967. The objective is focuses on the analysis of Rosalina, main character, whose behavior and/or changes during the narrative apparently refer to madness. To understand the madness in general, Michel Foucault (1972) provided the necessary support. In relation of the identity changes was used some appointments of Antonio da Costa Ciampa (2001). It was used the study of Roberto Reis (1987) with regard to relations as a “circle” that surrounds the characters and the social environment of this novel. Moreover, during the analysis, there was a correlation between elements from the Greek mythology and some Rosalina’s peculiarities. Finally, it was established that Rosalina has behavioral changes due to pressure/repression of the patriarchal order and identity search.

KEYWORDS: Madness; Identity; Autran Dourado; Rosalina; Brazilian Novel.

 

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Levando em consideração que a literatura nos permite explorar os mais diversos aspectos de vivência social, o presente artigo tem como objeto de estudo o livro Ópera dos Mortos (1967), de Autran Dourado, obra esta que possui personagens com características comportamentais um tanto quanto intrigantes. Em razão disso, propomo-nos a analisar mais a fundo a personagem Rosalina, filha do coronel João Capistrano Honório Cota, e patroa do andarilho Juca Passarinho.

Com relação a essa personagem feminina citada, o que nos chamou a atenção em investigá-la foi uma exclusão social que remonta ao pai, João Capistrano Honório Cota – espezinhado pela política local –, chegando ao paroxismo com as atitudes da filha de atribuir a culpa a todos os habitantes da cidade pelo que havia sucedido a seu pai.

Portanto, cuidadosamente, serão analisados tanto a identidade de Rosalina quanto seu espaço na sociedade, o que se relaciona com a ordem patriarcal descrita na obra e que será mais bem determinado a partir de Roberto Reis; autor este que, em seu livro A permanência do círculo (1987), explica tanto as metáforas quanto outros elementos constituintes da narrativa autraniana, chegando assim à relação entre personagens e sociedade.

No decorrer da análise, além de Roberto Reis, ainda buscamos fazer uma ponte com a mitologia grega, visto que o fato de Rosalina beber bastante nos fez relacioná-la com as mulheres de Tebas, presentes no mito de Dioniso. Para isso fizemos uso do livro O universo, os deuses, os homens (2000), de Jean-Pierre Vernant. Ainda, para dar aporte no que diz respeito ao comportamento de Rosalina, nos utilizamos de alguns apontamentos presentes na psicologia, que abordam sobre o transtorno obsessivo compulsivo (TOC), algo que aparentemente Rosalina possui, bem como relembramos alguns apontamentos de Foucault presentes na obra de Inês Lacerda Araújo, intitulada Foucault e a crítica do sujeito (2008).

É importante ressaltar, que Autran Dourado foi um escritor que fez parte da literatura contemporânea, que, por sua vez, descreve um pouco da sociedade na qual esteve inserido – Minas Gerais – e declara a dualidade como um dos elementos constante em sua produção literária:

Há duas Minas, duas vertentes principais mineiras na minha obra, desde que se excluam, como disse, A Barca dos Homens e A Serviço del-Rei. Melhor dizendo – três, se considerarmos como uma coisa autônoma a decadência. Quis fazer um painel da decadência de Minas Gerais, do qual fariam parte Ópera dos Mortos, Lucas Procópio, Um Cavalheiro de Antigamente e Os Sinos da Agonia. A segunda vertente é uma história inventada, uma espécie de autobiografia imaginária, dos mitos que povoaram a minha infância e adolescência mineiras. Esses mitos todos que eu fui destruindo ou tentando destruir, mas que me assaltam e continuam alimentando o meu inconsciente, através do qual eu procuro revivê-los e analisá-los, não freudianamente mas de uma maneira plástica, artística. (SOUZA, 1996, p. 33)

Havendo o interesse de pesquisar sobre a loucura presente nalguma obra literária, Ópera dos Mortos nos motivou a desenvolver o presente trabalho. Isto se deu pela forma como Autran Dourado constrói sua narrativa, ou seja, com elementos metafóricos, levando o leitor a certa reflexão sobre personagens e objetos descritos. Além do mais, o fato de a loucura não ser escancarada na obra (com exceção das páginas finais), nos deixou intrigadas de forma a sentir a necessidade de revelar o que é de fato loucura no romance.

1 A ENIGMÁTICA ROSALINA

Para a consecução das discussões sobre Rosalina, o presente subtítulo será dividido em três partes: na primeira, abordaremos brevemente algumas questões do patriarcalismo na obra. Na segunda parte, trataremos da dualidade de Rosalina, que será explanada com maiores detalhes através da apresentação dos fatos que a levam a ser dessa forma. E, na derradeira parte, será discutido sobre o acontecimento final que a deixa louca, bem como o seu luto que foge do normal.

1.1 QUESTÕES PATRIARCAIS

Elemento de grande importância e recorrência na obra, o patriarcalismo acompanha Rosalina desde seu nascimento. Primeiramente, vale deixar claro que a mãe de Rosalina, dona Genu, sofrera por longo tempo até conseguir dar um herdeiro ao marido. Porém não conseguiu atender as expectativas do coronel Honório Cota, pois ele queria um herdeiro homem, que permitisse a continuidade do clã.

Nem de longe dona Genu e o coronel Honório se permitiam pensar que podia ser um menino-homem, varão, para continuar aquela linhagem, que era o que ele mais queria. Se a vontade de Deus tem muitos caminhos, era melhor ir por aquele com toda a largueza e alma limpa. (DOURADO, 1999, p. 30)

Mesmo não sendo Rosalina tal herdeiro, ela faz de tudo para manter vivos alguns costumes daquela família, vendo nisso uma forma de conservar a honra do pai. “Por sua vez, ela, mulher que figura no centro, busca perpetuar seus antepassados, repetindo seus gestos rituais, preservando seus valores, como que recitando os mitos e mantendo as tradições da família” (REIS, 1987, p. 112, grifo do autor).

Quando dona Genu falece, notamos uma certa aproximação entre Rosalina e o pai. Essa aproximação não chega a ser exatamente física, sendo que os dois se avizinham cada vez mais com relação ao modo de agir. Rosalina assume o jeito calado do pai, com um ar meio melancólico. Isso se torna ainda mais forte quando o pai também morre. Assim como na morte de Lucas Procópio (avô paterno de Rosalina) e de dona Genu, novamente acontece o ritual de interrupção de um dos relógios da casa:

Abriu-se caminho para Rosalina. Quando a gente pensou que ela fosse primeiro para junto do pai, voltou-se para a parede e aquilo que ela trazia brilhante na mão era o relógio de ouro do falecido João Capistrano Honório Cota, aquele mesmo que a gente babava de ver ele tirando do bolso do colete branco, tão bonito e raro, Patech Philip dos bons, legítimo. Que ela colocou num prego na parede, junto do relógio comemorativo da Independência. Os relógios da sala estavam todos parados, a gente escutava as batidas do silêncio. Só na copa ouvia uma pêndula no seu trabalho de aranha. (DOURADO, 1999, p. 42)

Com a morte do pai, Rosalina fecha as portas do sobrado para toda a cidade de Duas Pontes, passando a viver isolada, tendo apenas Quiquina, empregada de plena confiança da família, como companhia. Isso sucede por ela querer tomar as dores do pai, que, falecido, não poderia mais defender a honra da família. Tal fato nos remete ao que ocorre após a morte de Lucas Procópio, quando, ao decidir reformar o casarão, João Capistrano vê naquilo uma forma de honrar o pai, pois a ação unificaria os dois. Rosalina também se une ao pai depois da morte, porém a forma de união de Rosalina não diz respeito a bens materiais, e sim à dor que o pai traído sentia.

Mais adiante na narrativa, durante uma de suas infindáveis digressões, Rosalina relembra o velório do pai e deixa-nos claro a relevância presente no ato de interrupção dos relógios, que era uma atitude ritualística do clã Honório Cota, uma maneira de parar o tempo para imobilizar aquele momento, numa clave interpretativa, essa ação “é resvalar para o mítico, negar a história” (REIS, 1987, p. 111):

O relógio de ouro no prego da parede, do lado daquele outro de prata, que foi o primeiro. Queria uma coisa bem definida, bem decisiva, que todos vissem. Tremia, as mãos tremiam, todo o corpo tremia num rumor surdo, cuidou desmaiar. Tinha de se mostrar dura e fria, sem nenhuma emoção, feito o pai com o relógio-armário, três horas. É a nossa marca, a marca dos Honório Cota, dizia com orgulho. (DOURADO, 1999, p. 47)

Ainda mais forte que o ato de parar os relógios, o isolamento de Rosalina decorre do patriarcalismo, visto que é primeiro o pai que se isola ou se autoexila de Duas Pontes. Logo, Rosalina fará o mesmo com o intuito de manter os valores da família, pois como única herdeira do clã ela se vê na obrigação de assumir uma ordem masculina, hierárquica, que antes era regida pelo pai. Reis (1987, p.111), a partir dos apontamentos de Lepecki (1976), nos mostra que: “Rosalina quer viver ‘segundo o modelo do pai’ (OM, p. 92) reeditando a exemplaridade dos ancestrais”.

Como já citado, ela manterá por um bom tempo contato direto apenas com Quiquina, porém aceita em sua casa as visitas de Emanuel, filho de Quincas Ciríaco[1]. Isso se dá pelo fato de o pai também confiar apenas naquela família, sendo esse mais um ponto mantido pela filha. Vale destacar que Quincas fora sócio do coronel Honório Cota, e com a morte de ambos é Emanuel quem assume tudo, passando a prestar contas para Rosalina. Essa ordem e quietude mantidas no sobrado só serão rompidas com a chegada de Juca Passarinho.

1.2 A DÚPLICE ROSALINA

A dualidade da personagem Rosalina é bem importante para o desenrolar dos fatos, pois interfere também no modo de agir do andarilho Juca Passarinho, sem contar que tais modos de Rosalina são capazes de deixar o leitor estarrecido. O surgimento do andarilho é um fato inesperado, que quebra a rotina mantida no casarão e, de certa forma, também abala o estado emocional de Rosalina, visto que ela não estava acostumada a passar longo tempo ouvindo alguma pessoa questionando-a, puxando conversa e até mesmo lisonjeando-a.

Ela até que dava muita confiança pra Juca Passarinho. Quando não tinha o que fazer a gente via que ela gostava de conversar com ele. Quando não vinha trazer conversa de rua, quando não perguntava sobre o seu coronel Honório, sobre seu Lucas Procópio. Ele era esperto, matreiro, agora não queria mais saber de nada que desgostava Rosalina. Só tinha conversas boas, aqueles casos do Paracatu,[2] de seu major Lindolfo, dona Vivinha, o menino Valdemar, aquela gente estranha que agora entrava nas conversas de Rosalina e Juca Passarinho. Ela [Quiquina] não sabia que graça podia achar Rosalina naqueles casos de caçadas. Rosalina chegava até a rir. O riso doía em Quiquina. Como se fosse um carinho que lhe tinha sido roubado, um riso que devia ser só pra ela, só dela. (DOURADO, 1999, p. 109)

Porém, não é sempre que Rosalina agia de forma mais receptiva com o andarilho. À medida que há um estreitamento da relação de ambos, ela passa a ser mais dual do que nunca. Quando os dois percebem que sentem atração um pelo outro, Rosalina permite determinada abertura para que Juca converse com ela, até chegar ao ponto de trocarem carícias, chegando, por fim, à relação sexual.

Durante as noites em que Rosalina e Juca se encontravam, ela se entregava à bebedeira, o que consequentemente a deixava mais solta, faladeira, até mesmo fogosa. Já durante o dia, Juca percebia que ela mudava, passando a tratá-lo friamente, agindo de maneira totalmente oposta ao seu procedimento noturno. Durante o dia, ela representa uma mulher serena, sem maiores intimidades com o empregado, dando atenção maior apenas a Quiquina, ignorando completamente o que acontece entre ela e o amante durante a noite, ou seja, suas relações sexuais realizadas sob os efeitos do álcool.

Essa dualidade de Rosalina pode se assemelhar, no que diz respeito aos seus comportamentos, a dos dois antepassados: durante o dia, no convívio “familiar” com Quiquina, ela se parece mais com o pai, João Capistrano, pelo fato de ele ser mais reservado, não ter intimidades com as demais pessoas que viviam com ele no sobrado, cismar em evitar contato com a população de Duas Pontes. Quando chega a noite, sob o efeito do álcool, tem comportamentos semelhantes aos do avô, Lucas Procópio, ou seja, um jeito de ser mais despojado, falastrão e, ainda, um comportamento sexual robusto, conhecido por todos.

Não apenas o leitor, mas também Juca percebe a dualidade de Rosalina, chegando até mesmo a se indagar com relação a isso, pois ele fica confuso com as atitudes dela:

Dona Rosalina era vária, não se fixava em nenhuma das muitas donas Rosalinas que ele todo dia ia descobrindo e juntando para um dia quem sabe poder entender. Ele queria entender dona Rosalina para melhor viver no sobrado, não estar sempre em sobressalto, pesando as palavras, cauteloso. Dona Rosalina sumia como por encanto entre os seus dedos, visonha. Dissimulava, os olhos líquidos, quando a gente pensava que a tinha presa, ela escapulia. Que nem um guará que ele quisesse caçar. Aqueles guarás do sertão, ariscos, matreiros, coriscando por entre as moitas, se confundindo com os matos, parecendo estar em todos os lugares e em lugar nenhum. (DOURADO, 1999, p. 122)

Podemos constatar que a dualidade de Rosalina pode ser provinda de uma mudança que está acontecendo em sua identidade, sabendo que essa característica das pessoas está em constante transformação e descobrimento. Só o fato de envelhecermos já é considerado uma mudança de identidade. Esta também muda, por exemplo, quando alguém se torna pai ou mãe, ou com relação ao produto de alguma ação. Ou seja, “Identidade é movimento, é desenvolvimento do concreto. Identidade é metamorfose. É sermos o Um e um Outro, para que cheguemos a ser Um. Numa infindável transformação” (CIAMPA, 2001, p. 74). Assim, quando Rosalina passa a ser várias, ela está num processo de “desenrijecer”, libertar-se. Tornar-se várias e ser ela mesma.

Podemos também perceber que há nela uma compulsão obsessiva com relação aos rituais que ela executa (o autoexílio, o ato de parar o relógio, a preservação da honra do clã), visto que ela não apenas lembra, mas repete o passado durante toda a narrativa. Ela mantém o orgulho ferido do pai. A psiquiatria, área que estuda e trata as patologias mentais, define tais atitudes como transtorno obsessivo compulsivo (TOC).

A caracterização do transtorno baseia-se na ocorrência primária de obsessões e/ou compulsões. Obsessões são pensamentos, impulsos ou imagens mentais recorrentes, intrusivos e desagradáveis, reconhecidos como próprios e que causam ansiedade ou mal-estar relevantes ao indivíduo, tomam tempo e interferem negativamente em suas atividades e/ou relacionamentos. Note-se que imagens aversivas e impulsos egodistônicos ameaçadores, em geral agressivos, podem predominar. Já compulsões são comportamentos ou atos mentais repetitivos que o indivíduo é levado a executar voluntariamente em resposta a uma obsessão ou de acordo com regras rígidas, para reduzir a ansiedade/mal-estar ou prevenir algum evento temido. Assim, enquanto as obsessões causam desconforto emocional, os rituais compulsivos (sempre excessivos, irracionais ou mágicos) tendem a aliviá-lo, mas não são prazerosos. Já em 1935, Lewis afirmava: “quanto mais agradável um ato repetitivo, menos provável que seja compulsivo”. A função de neutralização ou atenuação imediata da ansiedade manteria os sintomas em um ciclo de difícil rompimento em que, paradoxalmente, para sentir-se melhor, o indivíduo se escraviza (TORRES; SMAIRA, 2001, p. 6).

Vale destacar que, a despeito de empregarmos tal definição, nosso objetivo não é enquadrar Rosalina em um quadro clínico de doença mental, e sim deixar explícito que ela possui comportamentos excêntricos, que dependendo da interpretação poderá ser visto como patologia, como é o caso da psiquiatria. A excentricidade das atitudes de Rosalina nos leva a perceber que há nela um desvio do centro de um sistema concêntrico. Isso se evidencia na circunstância de fugir de um centro maior, representado pelo município de Duas Pontes, para manter-se em um centro menor e isolado, que é o casarão dos Honório Cota. Essa fuga do centro maior é também a fuga do normal, ou seja, a fuga da convivência com a população da cidade. A fuga do social.

Para nós, fica clara a obsessão dela em repetir os rituais do clã Honório Cota. Percebemos, ainda, um desconforto emocional a partir do momento em que ela não aceita sentir prazer, visto que, ao se relacionar com Juca, Rosalina não está se entregando a ele, pois sua mente está presa em Emanuel. Vale destacar aqui que, em um passado remoto, Rosalina e Emanuel entabularam um relacionamento amoroso e quase casaram; portanto, Emanuel é mais uma figura de seu passado. Ou seja, o desejo enrustido por Emanuel também pode interferir nesse quadro emocional da personagem, que está tão centralizado na repetição de feitos antigos, ou no “re-sentimento”, em buscar sentir agora o que antes fora evitado.

Com relação à bebedeira de Rosalina, cabe, ainda, abrir espaço para uma intertextualidade com o mito de Dioniso, pois podemos notar que a embriaguez de Rosalina se assemelha com a das mulheres de Tebas, visto que estas, ao venerarem o Dioniso em festas regadas com muito vinho, faziam coisas desconcertantes ao estarem em estado de embriaguez:

Elas largam os filhos, deixam inacabados os afazeres domésticos, abandonam o marido e vão para as montanhas, para as terras incultas, para os bosques. Lá, passeiam em trajes espantosos para senhoras tão dignas, entregam-se a loucuras de todo tipo, às quais os camponeses assistem com pensamentos confusos, admirando-as ao mesmo tempo estarrecidos e escandalizados. (VERNANT, 2001, p. 153)

Logo, Rosalina só se entrega completamente a Juca Passarinho estando alcoolizada. É possível percebermos que ela jamais se entregaria ao empregado estando lúcida, porque busca mostrar-se uma mulher recatada, que pertence a uma família respeitável, que está sempre ciosa de sua importância na cidade e seus arredores.

E se o vinho acabasse de repente, ele [Juca Passarinho] se perguntou. Aquela felicidade só era possível com o vinho. Se o vinho acabasse, ele estava perdido, a comunicação partida. Ela o deixava: ele sozinho na sala, sozinho no mundo. […]
E de repente ela começou a falar. Falava muito, falava e ria. Falava coisas meio desconexas, ele não entendia direito. Falava de sua vida, do cavalo Vagalume, de rosas de cetim, de organdi, de rosas no cabelo, de festas, de bailes. De vez em quando um ou outro nome surgia na sua fala. Uma vez ele ouviu ela dizer Emanuel, Emanuel, apenas Emanuel, não Seu Emanuel, feito ela sempre dizia. Que tinha Seu Emanuel que ver com aquilo tudo? E outros nomes de que nunca tinha ouvido falar. A confusão, a fala atropelada. Ela não está acostumada falar assim, com a alma, com o coração, cuidou ele. É por isso. Por isso ela fala pra ninguém, não fala pra mim. Deixa. (DOURADO, 1999, p. 152)

Essa fala desconcertada de Rosalina e o fato de ela mencionar o nome de Emanuel dão suporte às ideias que expomos anteriormente em relação ao desejo recluso que ela sentia por ele. Vale destacar que o trecho acima citado está relacionado aos acontecimentos que se sucederam durante o primeiro encontro noturno entre Rosalina e Juca. Foi nessa ocasião também que houve pela primeira vez um diálogo mais íntimo entre os dois. Em seguida, aconteceu a consumação do ato sexual.

1.3 O CANTAROLAR DE ROSALINA

O desenrolar do romance se dá com o rompimento dos encontros noturnos de Juca e Rosalina a partir do momento em que ela descobre estar esperando um filho do andarilho. Rosalina passa então a isolar-se em seu quarto, mantendo contato apenas com Quiquina. Esta última é quem, no momento que Rosalina está prestes a ter seu bebê, percebe as consequências que aquela criança traria, sendo que, conforme o pensamento que aparentemente existe no discurso indireto livre da criada, um filho do andarilho romperia com o círculo familiar:

Rosalina, vestal do templo, não poderia ter um filho bastardo, com alguém alheio ao clã, ainda mais sendo este de condição social inferior. Juca Passarinho não tem acesso integral ao sobrado, não é da cidade. O sobrado não pode corromper-se, contaminar-se com os da cidade, com Juca ou com o recém-nascido. (REIS, 1987, p. 113)

Quiquina pensa somente em se livrar do bebê de Rosalina e, por muitas vezes, torce para que Rosalina seja como a mãe, dona Genu, que havia abortado repetidas vezes. Percebendo que o pequeno estava para nascer, a empregada até mesmo cogita a ideia de assassinar aquele ser indefeso: “Rosalina nem ia perceber. Era só ela deixar de sacudir, ele nascendo roxinho, de dar umas palmadas, ele nascendo sufocado” (DOURADO, 1999, p. 223). Com relação à morte do bebê de Rosalina, três interpretações são possíveis: 1) Quiquina o assassinara; 2) a criança nascera morta por conta das bebedeiras de Rosalina; e 3) supostamente Rosalina padeceria do mesmo problema de sua mãe, que perdeu incontáveis filhos. Fato é que a criança se torna mais um “anjinho” daquela família.

Cabe a Juca Passarinho o encargo de levar o embrulho com o filho morto até o cemitério e enterrá-lo, sem que ninguém descobrisse sua existência. Após realizar tal tarefa, Juca entende que jamais voltará a ter alguma relação com Rosalina, e que Quiquina o odeia por ter se aproximado da patroa. O andarilho decide partir daquela cidade e tentar esquecer de uma vez Rosalina e a criança morta.

Note-se que o empregado nunca conseguiu entender o que lhe aconteceu de fato no sobrado. A última cena em que ele aparece mostra bem a impossibilidade de racionalização da experiência. Enfim, sua virtualidade de “palavroso” não se atualiza como atividade transitiva ou reflexiva. Juca não pode contar para os outros (sic) o sobrado, não pode contar a cidade para Rosalina, como não pode racionalizar a casa da praça para si mesmo. (LEPECKI, 1976, p. 13)

É tal acontecimento que leva Rosalina a ficar louca de fato. A partir de então, ela passa a visitar seu bebê todas as noites no cemitério, usando um vestido branco e cantando. “E vai daí a gente ficou sabendo que toda a noite, há muitas noites, tarde da noite, quando todos dormiam, Rosalina saía do sobrado e ia por aí cantando a sua cantiga no mundo da noite. O que ela falava na sua cantiga, nunca ninguém soube” (DOURADO, 1999, p. 245).

Com relação ao cantarolar, podemos fazer uma relação de semelhança com o conto “Sorôco, sua mãe, sua filha”, de Guimarães Rosa. Nesse conto rosiano, as personagens tidas como loucas, em dado momento, emitem um canto incompreensível, assim como o de Rosalina. A única diferença entre ambos os cantos é que, no caso de Sorôco não é apenas sua mãe e sua filha que cantam, pois no fim da estória o próprio Sorôco se entrega à cantiga juntamente com as pessoas que o cercam.

Vemos nisso uma forma de solidariedade, pois interpretamos que as pessoas estavam consolando Sorôco, que acabara de se separar de sua mãe e sua filha. Porém, no caso de Rosalina, as pessoas não veem da mesma forma, pois todos acham estranho ela cantar algo que ninguém entende. Talvez, mais incômodo ainda seja o fato de ela ter saído do sobrado, situação com a qual a população da cidade não estava acostumada, visto que era, para Duas Pontes, inconcebível ver ou encontrar Rosalina na rua. É como se houvesse nesse momento uma “manutenção” da ferida aberta (lê-se como ferida a traição sofrida por João Capistrano).

Reis (1987, p. 113) define, com relação à cena anteriormente descrita, que “o derradeiro capítulo mostra Rosalina louca, entoando sua cantiga – sua loucura se manifesta pela voz, pela fala (não pelo silêncio, que caracteriza o sobrado)”. Logo, a população de Duas Pontes desaprova tal atitude de Rosalina, por se sentir ameaçada, como anteriormente mencionado. Consequentemente, a última descendente do clã Honório Cota será levada para sempre do sobrado, como se tivesse morrido. Tal conclusão decorre do fato de sabermos que Quiquina – remanescente sem laços de consanguinidade com a última habitante do solar dos Honório Cota – para o pêndulo do relógio da cozinha, o derradeiro que restava na casa.

O desfecho da narrativa não deixa claro se Rosalina foi levada pela polícia ou por médicos para ser tratada. No entanto, ao sabermos que ela foi levada por alguém, percebemos que então há um diálogo com o discurso da loucura explicado por Foucault, o qual nos mostra que:

[…] com o discurso da psicopatologia no século XIX: os indivíduos começaram a ser vistos pelo ângulo da doença/sanidade, correlacionada à demência, à neurose, à degenerescência, à psicose; emergiram no século XIX, quando a família passou a solicitar a ajuda da polícia e do juiz para o que o louco fosse tratado. Entrou-se, então, em uma nova instância, que é a da doença mental, já no espaço do tratamento e da cura feitos pelo médico. Na mesma época, outras ocorrências prático-discursivas ajudaram na delimitação e na especificação da loucura: a arte passou a ter normatividade própria, distinguindo-se do delírio da fé religiosa; a penalidade atribuída ao doente mental começou a diferir daquela atribuída ao criminoso; passou-se a vincular a doença mental à história do indivíduo, à sua vida pregressa. (ARAÚJO, 2008, p. 64)

Todavia há essa dúvida em saber de fato por quem ela foi levada, mas conseguimos ter certeza que ela é retirada do sobrado e de Duas Pontes, por estar causando incômodo à população, visto que os moradores do povoado já não viam mais Rosalina como um sujeito que segue a norma, pois em se tratando de Rosalina, o considerado normal era sabê-la isolada no sobrado, mantendo o orgulho ferido do pai. Ninguém esperava que ela mudasse, todos acreditavam que aquela seria para sempre sua identidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como é possível perceber, nossa análise está vinculada à personagem Rosalina, e esse seu comportamento “estranho” ou “diferente” que fora analisado pode ser advindo de uma mudança de identidade, ou do repetir e “re-sentir” o passado que foi, de certa forma, interrompido pelas obrigações dessa personagem de manter a ordem no sobrado e a honra da família.

A bebedeira de Rosalina nos levou a refletir sobre o seu relacionamento com Juca Passarinho, visto que ela só se entrega a ele estando embriagada. Como Rosalina nunca antes se entregara a um homem, podemos afirmar que foi a bebida quem a encorajou a se relacionar com Juca. Porém, como já citado anteriormente, ela gostaria, na realidade, de ter tido um relacionamento afetivo com Emanuel, que é quem ela desejou desde muito jovem.

Entretanto, não sabemos ao certo por que ela não viveu o que sentia por ele, talvez por medo, timidez, ou por ter tão fixa em sua mente a ideia de ser fechada ao relacionamento com a sociedade como o pai. Vale destacar que é após a convivência com Juca que Rosalina passa por uma transição de identidade, pois o andarilho trouxe novos ares ao sobrado: “Posso escrever que a vida, a luz, a fala, deflagradas por Juca Passarinho, se contrapõe à morte, às sombras, ao silêncio do sobrado” (REIS, 1987, p. 110).

É durante essa relação com Juca que Rosalina deixa transparecer que possui um comportamento dual, apresentando-se de diferentes formas durante o dia e à noite. Reis resume bem a ideia da dualidade dessa personagem:

Rosalina, por seu turno, sofrerá uma fragmentação de sua personalidade, antes una e indivisível, provocada por Juca Passarinho, dando vazão às duas Rosalinas: para a diurna, Juca Passarinho é um empregado, que não conhece o seu lugar, e ela é a patroa; esta Rosalina, que segue a linha do pai, recalca a outra, seguidora do avô, noturna, para quem Juca é o homem, o corpo, que aciona sua fala sem destinatário. Rosalina é o sobrado, o resultado de dois estilos, somatório de Lucas Procópio (paixão) e João Capistrano (comedimento e sobriedade). A emergência do lado reprimido acabará por fraturar a integridade da personagem. (REIS, 1987, p 112)

Essa dualidade com relação a Juca vai se romper a partir do momento em que ela se fecha de vez para ele, ficando trancada no quarto. Isso acontece quando Rosalina constata que está esperando um filho de Juca. Quiquina se desespera ao saber da gravidez de Rosalina e é quem decide esconder a patroa dos olhos de Juca e de Emanuel, com medo de que a notícia se espalhasse por Duas Pontes. A significação desse ato da empregada muda é explicada por Reis: “Quiquina interrompe o envolvimento entre Rosalina e o caçador, que ferira o sagrado, e refaz os valores do sobrado ao recapitular todo o enredo, como se recordasse os mitos, num esforço para reafirmar a tradição da família Honório Cota” (1987, p. 112-113).

O bebê de Juca e Rosalina seria um filho bastardo. Para uma família que valoriza a ordem patriarcal e a tradição, um rebento espúrio jamais poderia assumir o controle do sobrado. O acontecimento da morte do bebê põe ponto final no envolvimento entre Juca e Rosalina, visto que o andarilho parte para sempre do sobrado. No que concerne à Rosalina, ela sai todas as noites, vestida de branco, para ir até o cemitério, e canta uma cantiga incompreensível como a querer expressar sua profunda tristeza pela morte do filho.

Esse luto de Rosalina chama-nos a atenção, pois é o momento em que se perpetuam nossas impressões sobre sua loucura, ou seja, como se estivesse acometida por depressão pós-parto, ela entra em crise, agindo de forma a causar receio na população da cidade, por conta de ter mudado tanto seus hábitos:

E ela sorria, meu Deus, a gente viu depois de muitos anos Rosalina sorrir pela primeira vez. Ela sorria feito se fosse para a gente. Mas sabíamos, não era para nós que ela sorria: era um sorriso meio abobalhado, para ninguém. Ela parecia não nos reconhecer, e no entanto sorria, os olhos vidrados como que não viam, e era para a gente que ela mirava, ela sorria. (DOURADO, 1999, p. 247)

Notamos que a população não estava acostumada com Rosalina na rua, e, quando as pessoas a veem, aquilo se torna “um espinho”, “uma dor”, pois a cidade volta a sentir a vergonha por ter traído o coronel Honório Cota. Quando Rosalina sai à rua é como se ela não pertencesse àquele meio, sendo uma estranha, e por isso a denunciam para que fosse levada dali, pois não queriam reviver o passado.

Emanuel abriu a parta do carro para ela entrar. Ele lhe dava a mão, ajudava-a. Vimos que ele fez uma reverência para ela, como um vassalo cumprimenta a sua rainha. Ela ficou sentada entre ele e o delegado. No banco da frente, o soldado, Zico no volante. O coronel Sigismundo não foi, ficou ali com a gente vendo o carro dar partida.
O carro partiu barulhento, deixando atrás de si uma nuvem de poeira. Lá se ia Rosalina para longes terras. Lá se ia Rosalina, nosso espinho, nossa dor. (DOURADO, 1999, p. 247-248)

No decorrer deste trabalho, pudemos notar que a identidade dos indivíduos, principalmente no que diz respeito a Rosalina, está em um processo constante de mudança, a qual pode acontecer tanto naturalmente (como, por exemplo, ficar mais velho) quanto em decorrência das circunstâncias que envolvem o meio em que vivemos (sentimentos, relações, acontecimentos, etc.).

Ademais, podemos presumir que Autran Dourado tenha criado Rosalina e as demais personagens do romance, influenciado pelo meio em que viveu, pelas interferências de tal meio na construção de sua própria identidade, pois: “[…] não só a identidade de uma personagem constitui a de outra e vice-versa (o pai do filho e o filho do pai), como também a identidade das personagens constitui a do autor (tanto quanto a do autor constitui a das personagens)” (CIAMPA, 2001, p. 60).

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, I. L. Foucault e a crítica do sujeito. 2. ed. Curitiba : Ed. da UFPR, 2008.

CIAMPA, A. da C. Identidade. In:______. Psicologia Social: o homem em movimento. Lane, S. T. M.; Codo, W. (Org.). São Paulo: Brasiliense, 2001.

DOURADO, Autran. Ópera dos Mortos. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

REIS, R. A permanência do círculo: hierarquia no romance brasileiro. Niterói: EDUFF; [Brasília]: INL, 1987.

ROSA, J. G. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.

SOUZA, E. M. de (Org.). Autran Dourado. Belo Horizonte: Centro de Estudos Literários da UFMG; Curso de Pós-Graduação em Letras – Estudos Literários. 1996.

TORRES, A. R; SMAIRA, S. I. Quadro clínico do transtorno obsessivo-compulsivo. Revista Brasileira de Psiquiatria, São Paulo,  v. 23, supl. 2, p. 6-9, out.  2001.   Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-44462001000600003&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 30 maio 2015.

VERNANT, J. P. O universo, os deuses, os homens. Trad. Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

Data de envio: 18 de julho de 2015.

[1] Quincas Ciríaco e seu filho Emanuel são as únicas personagens com que a família Honório Cota mantém contato após a traição política sofrida por João Capistrano Honório Cota.

[2] Paracatu, seu major Lindolfo, dona Vivinha, e o menino Valdemar são figuras que fizeram parte do passado de Juca Passarinho. O andarilho adorava contar histórias sobre tais personagens.