A mimese das teorias weberianas: o desencantamento de “Édipo rei” a “Hamlet”

Lucas Zafalon Garcia

RESUMO: O artigo em questão tem como objetivo perceber as teorias do sociólogo alemão Max Weber, principalmente sua teoria da modernidade sobre o desencantamento do mundo, a partir da literatura. Utiliza-se de dois cânones da dramaturgia ocidental, Édipo rei, de Sófocles, e Hamlet, de William Shakespeare, para compreender como se deu o processo de racionalização do mundo, a partir de uma perspectiva literária e relacionada com a teoria do drama. Preocupando-se sempre em desenvolver uma interdisciplinaridade que enriquece tanto a análise das peças em questão como também agregue, em certo nível, ao que se sabe sobre a história das sociedades humanas.

PALAVRAS-CHAVE: Max Weber. Édipo rei. Hamlet. Desencantamento do mundo. Racionalização.

ABSTRACT: This paper aims to perceive the theories of the German sociologist Max Weber, mainly his theory about the modern disenchantment of the world, through literature. Two canons of the western dramaturgy are used, Oedipus Rex, by Sophocles, and Hamlet, by William Shakespeare, to comprehend how the process of rationalization of the world happened, based on a literary perspective and related to drama theory. It is also a concern to develop some interdisciplinarity that can enrich both the analyses of the plays mentioned and, in some level, what it is known about the history of human societies.

KEYWORDS: Max Weber. Oedipus Rex. Hamlet. Disenchantment of the world. Rationalization.

 

Aristóteles, por volta de 335 a.C e 323 a.C, construiu uma das primeiras e mais importantes bases para se pensar no processo estético, em sua obra chamada Poética. Nessa definiu conceitos que, por mais que sofram novas interpretações e atualizações durante o tempo, pela perspectiva de outros pensadores, são referências essenciais não só para entender o gênero dramático e a poesia épica, focos de sua análise, como também os mais diferentes gêneros da criação literária.

O filósofo grego, ao falar de um dos conceitos cruciais para entender sua obra, aponta que:

a ação de mimetizar se constitui nos homens desde a infância, e eles se distinguem das outras criaturas porque são os mais miméticos e porque recorrem à mimese para efetuar suas primeiras formas de aprendizagem, e todos se comprazem com as mimeses realizadas (ARISTÓTELES, 2015, p. 57).

Dessa forma, demonstra como a mimese, a imitação, é algo inerente ao ser humano e que, por consequência, reflete no fazer literário.Pode-se compreender o conceito de mimese como um elo entre a realidade e as produções estéticas. É através dela que o autor comove o leitor, que esse encontra sua representação na arte e, por isso, desenvolve certa compaixão pelos personagens, o que leva à catarse, à purificação de seus sentimentos. Como ressalta Paulo Pinheiro, estudioso da História da Filosofia Antiga, a mimese é “tão criativa quanto imitativa, ou seja, ela nos remete a uma ação ocorrida que é, no entanto, retomada e recomposta pela ótica inventiva do poeta mimético” (PINHEIRO, 2015, p.9). Sabendo disso, é importante fazer a ressalva de que a obra literária nunca será suficiente para abarcar a realidade em sua plenitude, contudo, não deixa, por causa disso, de ser uma ferramenta em potencial para compreender o que é mimetizado.

É a partir desse pressuposto que o trabalho em questão é desenvolvido. Busca-se, aqui, analisar dois cânones do gênero dramático e da literatura em geral, Édipo rei, escrito por Sófocles, e Hamlet, escrito por William Shakespeare, à luz das teorias de Max Weber; sua teoria sociológica, a sociologia compreensiva e, principalmente, sua teoria sobre a modernidade, o desencantamento do mundo. A partir disso, entendendo a literatura como representação da realidade, pretende-se perceber, por uma diferente perspectiva, os contextos históricos e sociais tão distintos dessas duas obras literárias.

Primeiramente, será desenvolvida uma síntese dos pensamentos de Max Weber, enfocando os aspectos de sua teoria que convêm aos propósitos deste trabalho, para que se construa uma base que servirá para as análises posteriores. A sua teoria da modernidade, que trata do processo de racionalização do mundo, é a que tem maior valor neste trabalho, devido ao que se pretende, mas, percebendo que não se pode completamente dissociar essa de sua teoria sociológica, também serão abordados conceitos básicos de sua sociologia compreensiva.

Depois de abordados os tópicos citados acima, serão enfocadas as duas peças, Édipo rei e Hamlet, sempre buscando reiterar e aplicar as teorias weberianas nas duas obras e relacionar esse cabedal com alguns pressupostos da teoria do drama. Dessa forma, pretende-se dar caráter mais sociológico para a análise literária desses dois cânones, propondo uma maior aproximação dessas duas áreas, que juntas possuem um grande potencial,tanto para a interpretação estética como para a compreensão de diferentes realidades sociais.

Então, como proposto, inicia-se o trabalho focalizando os pressupostos que partem de Max Weber, sociólogo alemão, e que servirão de base para o restante desta produção. Tal autor foi responsável por desenvolver um método de análise das sociedades que ficou conhecido como sociologia compreensiva. Além disso, descreveu o processo de racionalização do mundo, ao comparar as sociedades que nomeia tradicionais com aquelas que surgem com o panorama moderno.

Pode-se citar, inicialmente, algumas influências para o desenvolvimento das teorias weberianas. A primeira delas é a filosofia de Kant, que, sumariamente, tem, como maior influência para Weber, a premissa de que o indivíduo tem central importância na percepção da realidade. Weber aplica isso no estudo da sociedade, dando, assim, ênfase no indivíduo, o que acaba por definir o objeto de estudo da sociologia compreensiva como a ação social. Além disso, ainda em filosofia, a influência de Nietzsche é visível nos escritos de Weber, principalmente quando critica a racionalidade excessiva do mundo moderno.

Sobre sua epistemologia, o primeiro grande aspecto importante a se tratar é a forma específica como o autor vê as Ciências Sociais perante as outras áreas científicas. Ao contrário de outros pensadores de seu tempo, ele enxerga a necessidade de se distanciar do positivismo proposto por Comte, defendendo, também, a importância de se fazer generalizações para que se possa melhor compreender a sociedade, como visto nos chamados tipos ideais, conceito valoroso em sua teoria que será tratado posteriormente.

O segundo aspecto de seu método, que já foi brevemente explicitado aqui, é a importância de se enfatizar os indivíduos quando se quer entender a sociedade, o todo. O meio social, por essa perspectiva, seria o entrelaçar de pensamentos individuais; pelo ponto de vista weberiano, se não fosse pelos papéis únicos exercidos por cada indivíduo, a composição, a sociedade como um todo, não poderia se formar, então, enfocar os seus constituintes seria a maneira mais fidedigna de analisar o coletivo. A partir disso, estipula-se a ação social como objeto principal de estudo.

Entretanto, se a ação social é o objeto de estudo da sociologia, segundo Weber, é justo que melhor se defina tal conceito. A ideia de “ação” remete a um comportamento e, quando se une esse termo à palavra “social”, pensa-se em um comportamento que sempre leva em conta o comportamento de outro. É o indivíduo que age refletindo os seus iguais, que estão inseridos em um mesmo contexto – é calcular o quão coerente se faz um comportamento diante do comportamento alheio. Contudo, é importante ressaltar que levar em consideração o outro, não quer dizer, necessariamente, que o impulso para determinada ação é feito de maneira consciente ou completamente racional; como comenta Weber, no primeiro capítulo de seu livro Economia e sociedade:

A ação real sucede, na maioria dos casos, em surda semi consciência ou inconsciência de seu “sentido visado”. O agente mais o “sente”, de forma indeterminada, do que o sabe ou tem “clara ideia” dele; na maioria dos casos, age instintiva ou habitualmente. Apenas ocasionalmente e, no caso de ações análogas em massa, muitas vezes só em poucos indivíduos, eleva-se à consciência um sentido (seja racional, seja irracional) da ação (WEBER, 2012, p.13).

Determinado isso, pode-se prosseguir e dizer que a ação social possui um sentido, um porquê de ser, que abre espaço para as generalizações que os estudiosos da sociedade deveriam fazer para enquadrá-las, na visão do sociólogo em questão. Para tal, leva-se em conta a racionalidade, ou a falta dela, de um indivíduo, que reflete, por consequência, a racionalidade, ou a falta dela, de um outro indivíduo. Em outras palavras, o indivíduo age proporcionalmente ao hábito social em que está inserido. Weber comenta:

denominamos “adequado quanto ao sentido” um comportamento que se desenrola de maneira articulada quando afirmamos, conforme os hábitos médios de pensar e sentir, que a relação entre seus componentes constitui uma conexão de sentido típica (costumamos dizer “correta”) (WEBER, 2012, p.8).

Weber descreve, a partir disso, quatro tipos de ações sociais, sendo três consideradas racionais e uma considerada irracional. A primeira delas é a ação social racional com relação a fins; essa ação se dá através de meios que são aceitos pela sociedade, visando conquistar objetivos que interessam ao indivíduo. A segunda delas é a ação social racional com relação a valores; essa ação ocorre reiterando valores familiares que são aceitos pelo indivíduo, que está inserido em determinado meio. A terceira delas é ação social racional com relação ao regular; essa ação ocorre quando o indivíduo age conforme aos costumes da população inserida em uma mesma sociedade em que vive -o indivíduo age de determinada forma porque muitos agem assim. A última, única irracional, é a ação social afetiva; essa ação não leva em consideração objetivos e nem busca os melhores meios, é uma simples reação aos sentimentos, ao plano subjetivo.

Como dito antes, essas são generalizações, são modelos construídos e chamados, por Weber, de tipos ideais, outro conceito importante em sua teoria sociológica. Entretanto, é preciso entender que esses tipos ideias não se mostram de maneira tão singular e tão isolada na prática; obviamente, a realidade é mais complexa e as classificações acabam por coexistir no agir de um indivíduo. Mesmo assim, para Weber, o ponto de partida da análise de um sociólogo precisa ser os tipos ideais, pois é através das generalizações iniciais que o estudioso pode entender seu objeto de estudo e pode tentar alcançar um nível maior de correspondência com a realidade social“em si”.

Ainda em sua sociologia compreensiva, é importante destacar que os indivíduos não agem só em interação com outros indivíduos, mas agem, também, relacionando-se com as normas sociais, em uma relação mútua: as normas sociais influenciam os indivíduos e, ao mesmo tempo, são resultados dos indivíduos ao longo das gerações. Quanto à forma como o indivíduo age em interação com as normas sociais, Weber destaca duas relações: o agir em comunidade e o agir em sociedade.

Agir em comunidade é um conceito mais amplo, é a forma como os indivíduos agem baseados no que esperam do comportamento dos outros, levando em conta a probabilidade do outro agir da mesma maneira. As normas que regem o agir em comunidade são “não-escritas”, não são determinações que levam a uma punição por lei, por exemplo, mas causam represália moral quando não cumpridas. Um exemplo de agir em comunidade, no mundo ocidental, é não arrotar durante o almoço; isso não é uma norma escrita que leva à punição pré-definida, mas, com certeza, arrotar durante o almoço, na presença de outros, não será bem visto. Como explica Weber,

quem não orienta suas ações pelo interesse dos outros – não “contando” com este – provoca a resistência deles ou chega a um resultado não desejado nem previsto, correndo, portanto, o risco de prejudicar seus próprios interesses (WEBER, 2012, p.19).

Por isso, agir em comunidade, sucumbir ao interesse alheio, não deixa de ser um meio para que o indivíduo alcance seus próprios objetivos.

O agir em sociedade, por sua vez, é mais específico, está inserido dentro do agir em comunidade. Quando se age em sociedade se leva em conta as regras sociais, as leis. No agir em sociedade, além do indivíduo levar em conta o que o outro vai achar de sua atitude, ele age conforme o seu medo de sofrer consequências legais. Por exemplo, um indivíduo não mata alguém apenas porque será mal visto se matasse, mas porque, também, será preso. E quando os indivíduos seguem essas normas sociais, sejam elas escritas ou não, preserva-se uma ordem social.

A coletividade de uma sociedade que chega na definição de um consenso, do que se pode e do que não se pode fazer, é chamada por Weber de associação racional com fins. Os indivíduos dessa associação geram órgãos, fins, estatutos e aparatos de coação para preservar as suas normas, normas essas que, quando plenamente desenvolvidas, passam por um processo chamado de institucionalização. As normas institucionalizadas são aquelas que, mesmo que o coletivo mude, a princípio permanecerão. Isso não significa, no entanto, que as normas sociais são imutáveis, pois essas estão em um constante processo de alteração.

Weber enxerga essas normas sociais na figura máxima de um Estado, que precisa garantir que essas definições sejam cumpridas. A influência que esse Estado tem sobre os indivíduos é chamada de dominação, essa que, por sua vez, precisa ser legitimada, ou seja, precisa convencer os indivíduos de que mantém as melhores normas e que, por isso, os indivíduos devem obedecê-la.

Reiterando a ideia de tipos ideais, Weber define três modelos de dominação: a tradicional, a carismática e a racional-legal. A dominação tradicional é aquela que se baseia em uma tradição, como na passagem de um cargo de domínio de um pai para filho, por exemplo. A dominação carismática é aquela que se legitima na carisma do líder, que conquista os indivíduos pelo o que é ou pelo que aparenta ser. Por último, a dominação racional-legal é aquela legitimada a partir da racionalidade e que se concretiza nas leis. É necessário que se repita que esses são modelos “puros”, que, na prática, dificilmente aparecem de forma separada.

Após resumir as premissas que compõem a teoria sociológica de Max Weber, pode-se debruçar sobre a teoria da modernidade do mesmo autor, que se relaciona fortemente com sua sociologia compreensiva e que necessita dessa como uma base para melhor entendimento.

Como destaca o estudioso brasileiro Carlos Eduardo Sell, as interpretações da produção de Max Weber passaram por mudanças durante o tempo, principalmente na tentativa de determinar qual seria, afinal, o centro temático que conduz a sua obra.Sell comenta que “na Alemanha, a primeira voz a afirmar que a temática da racionalidade constitui o fio condutor de seu pensamento foi nada menos que sua principal biógrafa: Marianne Weber” (SELL, 2012, p.155), sua esposa. Contudo, com a Segunda Guerra Mundial, principalmente no Estados Unidos, “a temática da racionalização dá lugar ao conjunto de seus escritos teórico-metodológicos, passando a teoria weberiana da ação a ocupar o posto central como chave interpretativa de seu pensamento” (SELL, 2012, p.155- 156). Para que então, na década de 70, o tema da racionalização do mundo retomasse seu protagonismo à vista de outros estudiosos quando se tratava da obra Max Weber:

boa parte dos intérpretes e especialistas na obra de Weber retomou a tese de que, em se tratando deste autor, racionalização é, de fato, o fio condutor que tece as tramas de seus múltiplos escritos e confere unidade à diversidade de temas teóricos, históricos e empíricos enfrentados pela sua reflexão (SELL, 2012, p.156).

A teoria da modernidade de Max Weber, como comentado acima, preocupa-se em tratar da racionalização do mundo, um processo que seria o responsável pela transição das sociedades tradicionais para as sociedades modernas. Pode-se perceber como Weber enxerga isso de forma bastante pessimista apenas atentando para a maneira como o autor denomina tal movimento social: o desencantamento do mundo.

As sociedades consideradas tradicionais, como as tribos indígenas, por exemplo, eram sociedades totalmente teocêntricas, ou seja, seu funcionamento baseava-se nos cultos religiosos; os dogmas da religião formavam o meio moral. Nesse tipo de sociedade, a ordem de legitimação era tradicional, o mando era passado de forma familiar e as ações sociais dos indivíduos também se fundavam na tradição e nos valores de seu contexto.

Essas sociedades,fortemente apoiadas nos mais diferentes tipos de crenças para encontrar as respostas para seus questionamentos e para o determinar de um modelo comportamental, entraram em um processo gradativo de racionalização, que foi o motor de transição que as levou para modelos mais modernos de vida social. Posteriormente a esses primeiros grupos, em um meio termo, em que o ponto de partida já ficara para trás e o ápice de racionalização ainda não fora alcançado, a ordem de legitimação era carismática e as ações sociais baseadas nos valores se misturavam com as ações sociais com referência a fins, devido a um maior grau de racionalidade.

Weber, ao analisar essa transição e tentar entender como o capitalismo surgiu no mundo ocidental, enxerga a ética protestante como cerne da questão. Importante entender que o autor não pensa o capitalismo, nessa parte de sua teoria, como sistema econômico, mas como uma conduta, um modo de viver. A dedicação ao trabalho como salvação, a necessidade de penitência, a disciplina e a estratificação do papel social são características da ética protestante que, segundo Weber, fundam a base do modo de viver capitalista. O autor não culpa o sistema pela racionalização, mas comenta como esse também foi refém do processo; a ganância, que faz parte da condição humana, sempre existiu, por isso, “essa espécie de empreendedor, o aventureiro capitalista, existiu em todo o mundo”(WEBER, 2001, p. 15), a diferença é que, em um primeiro momento, seus comportamentos “eram de caráter puramente irracional e especulativo”(WEBER, 2001, p. 15), contudo, o ocidente “veio a conhecer, na era moderna, um tipo completamente diverso e nunca antes encontrado de capitalismo: a organização capitalista racional assentada no trabalho livre (formalmente pelo menos)” (WEBER, 2001, p.15).

Weber enxergava, em sua contemporaneidade, o ápice desse processo de racionalização, que também pode ser chamado de secularização. Por isso, Antônio Flávio Pierucci, ao analisar esse tema na obra do sociólogo alemão, percebe que o autor enxergava a “secularização como algo que já ocorreu e que, portanto, não comporta mais, da parte do sociólogo, juízos de valor ou de desejabilidade”(PIERUCCI, 1998, p. 49). Então, “a pretensão é mais modesta. Não se trata mais de predizer, de projetar, mas sim de constatar objetivamente a mudança” (PIERUCCI, 1998, p.49).

É interessante perceber, também, além do fato de que o modo de viver capitalista, no sentido mais cultural da palavra, pode ter tido suas raízes em uma forma de crença, é que a religião, no mundo moderno e racional, não deixa de existir, como se nota, mas sofre, também, o processo de racionalização. Como ressalta Pierucci,“para Weber, o desencantamento do mundo ocorre justamente em sociedades profundamente religiosas, é um processo essencialmente religioso”(PIERUCCI, 1998, p.50). Mesmo o culto ao divino faz parte desse desencantamento descrito por Weber, como comenta Sell:

o protestantismo ocupa papel-chave, pois é o portador histórico da racionalidade prática predominante na modernidade. O racionalismo prático, potencialmente estimulado pela imagem religiosa vigente no Ocidente, institucionalizou-se na vida social moderna mediante a conduta ético-metódica do protestantismo ascético, abrindo caminho para o surgimento de complexos institucionais, como a economia capitalista e o Estado burocrático (esferas sociais com formas de vida objetivadas e desprovidas de conteúdo ético) (SELL, 2012, p. 161).

A racionalidade, então, apropria-se da religião e utiliza-se dela para infiltrar-se mais afundo nos hábitos sociais.

Ao fim, as sociedades modernas concretizaram-se, ressignificando as concepções mágicas e tradicionais, a partir de um ponto de vista imposto pela racionalidade. Tornaram-se sociedades burocráticas em que a legitimação da dominação e as ações sociais se dão, principalmente, em referência a fins. Sendo que esse processo acontece nos mais diferentes setores, como aponta Weber: “há racionalizações da sociedade, da técnica, do trabalho científico, da educação, da guerra, do direito e da administração” (WEBER, 2001, p.19), mostrando-se de forma diferente e maleável em cada cultura.

É importante ressaltar, assim como faz Carlos Eduardo Sell, ao analisar as interpretações da teoria da modernidade de Weber, que “não é intento da sociologia weberiana a elaboração de uma teoria da racionalidade (perspectiva filosófica) em si mesma, pois esta é apenas condição ou meio para uma tarefa que a engloba e lhe confere sentido” (SELL, 2012, p.156), ou seja, interessa mais o processo de racionalização em si do que o ato de conceituar a racionalidade, visto que “o próprio sentido da ideia weberiana de racionalização também é múltiplo, podendo ser desenvolvido e lido em diferentes planos e dimensões” (SELL, 2012, p. 168). Contudo, são vários os autores que tentam compreender o que Weber percebe como racionalidade e visando melhor estruturar uma base teórica para as análises que serão feitas posteriormente, propõe-se, aqui, comentar brevemente essas leituras.

Dois pares dicotômicos são cruciais nas análises de definição de racionalidade para Weber: os pares racionalidade material e formal e racionalidade teórica e prática. O par material e formal é utilizado, normalmente, relacionado ao direito e à economia, enquanto o par teórico e prático é mais associado com a esfera religiosa.

Carlos Eduardo Sell comenta que “conforme Weber, enquanto o conceito de racionalidade formal possui um conteúdo inequívoco, a racionalidade material é inteiramente vaga” (SELL, 2012, p.163); a racionalidade formal, como dito antes, circunda a forma burocrática e metódica de proceder do sistema jurídico e econômico das sociedades, enquanto a racionalidade material, menos sistemática, é influenciada por fatores mais subjetivos e culturais, como a moral e a ética de cada meio social.

O conceito de racionalidade teórica está associado com os seguintes termos:

visão, imagem [Weltbild] e observação do mundo [Weltbetrachtung]. É em cada um desses diferentes âmbitos que se realiza o domínio conceitual e teórico sobre a realidade, através de conceitos cada vez mais precisos e abstratos, aspectos que definem este tipo de racionalidade (SELL, 2012, p.165).

Já a racionalidade prática, por sua vez, manifesta-se em um agir social cada vez mais metódico, calculado, preciso em direção a um fim, “uma disposição sistemática para certas condutas” (SELL, 2012, p.166).

Em suma, levando em conta esses diferentes planos de racionalidade, pode-se sintetizar a teoria da modernidade de Weber, o processo de racionalização do mundo, a partir da sistematização de Habermas (1987):

a teoria weberiana da racionalização desdobra-se em duas dimensões. De um lado temos a racionalização cultural como desencantamento das imagens do mundo e, de outro, a racionalização social como materialização da racionalidade prática no agir social (SELL, 2012, p.161).

As mais diversas esferas sociais, inclusive a religião, tornam-se mais burocráticas, mediadas pelo agir sistemático em direção a um fim.

Após se debruçar sobre os pressupostos weberianos e construir uma base para as análises que seguirão o andamento deste trabalho, pode-se, então, começar a leitura das tragédias citadas, inicialmente, a partir do ponto de vista do desencantamento do mundo. A primeira obra a se tratar é Édipo rei, escrita por Sófocles, dramaturgo grego que escreveu uma série de peças que permanece no imaginário humano até a atualidade.

Tal tragédia, escrita por volta de 430 a.C, considerada por Aristóteles como peça modelo de seu gênero, teve como berço uma Grécia altamente mediada, em suas práticas sociais, por sua religião politeísta antropomórfica, símbolo forte da cultura clássica. Em uma sociedade muito distante do término do processo de racionalização, os indivíduos não apenas conviviam com as crenças, mas também enxergavam-nas como norte de sua maneira de pensar, de ver o mundo, de como se comportar, em suma, de como viver. Mediados pelos deuses, os quais, segundo os mitos, misturavam-se entre os homens, encontravam explicações para os mais diversos fenômenos físicos e questionamentos existenciais no que estaria acima do plano mortal, em todas figuras divinas que faziam parte do Monte Olimpo.

Como deixa claro o conhecido caso do julgamento do filósofo Sócrates, levado à morte por “corromper os jovens”(PLATÃO, 2016, p. 78) e “não crer nos deuses em que a cidade crê, mas em coisas numinosas diferentes, novas” (PLATÃO, 2016, p. 78) – em palavras mais justas: por apenas estimular o pensamento crítico sobre as ditas verdades inquestionáveis – havia, naquela época, um monopólio de pensamento, que considerava blasfêmia tudo aquilo que destoasse das crenças nos deuses gregos. O agir social, como dito antes, muito mediado pelo inconsciente, refletia essa ordem social que se legitimava no plano divino.

Mesmo antes de se falar da peça, Édipo rei, em si, pode-se perceber como apenas o processo criativo e comunicativo dessa tragédia já se remete a um mundo ainda “encantado”, que não sofreu grandes interferências do processo de racionalização. Afinal, a trama desenvolvida por Sófocles tem como base, em seus personagens e acontecimentos, a mitologia grega;desenvolvendo uma releitura de um mito que já fazia parte do inventário cultural da sociedade em que essa foi concebida, além de fazer alusão, a todo momento, às mais diversas divindades gregas, como Zeus e Apolo, por exemplo. Não deixa de se tornar, então, uma forma de reforçar a importância dos contos religiosos para o saber social, transmitindo, legitimando, uma tradição que iria se propagar entre o pensar do povo grego da época, de forma bastante análoga às ideias weberianas sobre o que seria uma sociedade menos racionalizada.

Édipo rei começa com o seu personagem principal, Édipo, já consagrado como rei de Tebas, posto que havia conquistado após libertar a cidade do monstro mitológico Esfinge, que assombrava os habitantes da região. A trama inicia-se com a súplica do povo tebano, que encara uma terrível peste, para que o rei, que antes o salvou de um castigo, pudesse tomar alguma providência pelo bem-estar da cidade. Após consultar os oráculos, para saber o motivo da insatisfação divina que teria sido causa de tal tormento, Édipo descobre que os deuses estão insatisfeitos com o assassinato de Laio, antigo rei de Tebas, e pedem justiça, por meio da punição do assassino, para que o povo possa viver, outra vez, em harmonia.

Visando descobrir quem seria, afinal, o homem responsável pela morte do antigo monarca, Édipo questiona um conhecido clarividente da região, Tirésias. Contudo, para sua surpresa, é acusado, pelo oráculo, como sendo ele próprio o assassino. Apesar de, em um primeiro momento, sentir-se imensamente insultado pela denúncia, o atual rei de Tebas descobre, ao longo da peça, estar realmente em busca de punir um criminoso que não é ninguém mais do que ele mesmo; a caçada, por ironia do Destino, torna-se contra o próprio caçador.

Édipo descobre que uma antiga profecia, anunciada pelo Oráculo de Delfos, de que ele mataria seu próprio pai e que se deitaria com a sua própria mãe, por mais que tivesse certeza de que tinha conseguido burlar sua sina, concretizou-se. Quando novo, o herói da peça fugirá de Corinto, cidade que morava e acreditava ser o local em que nascera, tentando escapar da profecia, sem imaginar que, indo em direção a Tebas, lugar onde realmente fora concebido, estaria apenas seguindo o roteiro trágico, escrito pelos deuses, de sua vida.

Na estrada, envolvera-se em uma briga com um viajante e, sem saber, matara Laio, que também era seu pai. Após chegar à Tebas, libertando a cidade dos enigmas malignos da Esfinge e tomando o lugar do falecido rei, casou-se com Jocasta, rainha, e também sua mãe. Édipo, assim, mesmo que não soubesse, tinha feito nada mais do que estava previsto em seu Destino. Ao final da peça, sua mulher e também progenitora, ao se deparar com a verdade, suicida-se. Édipo fura seus próprios olhos e, devido à impureza de seus atos, é exilado.

Além do fato mais visível, já comentado antes, de que a peça tem sua base em uma crença mitológica, existem outros elementos em sua composição que apontam para uma realidade que ainda não havia sofrido, ao menos de forma excessiva, o processo de racionalização descrito por Max Weber. O principal deles é o papel do Destino, uma temática central em Édipo rei. Afinal, quando se acredita que a vida de um ser humano está prontamente decidida, desde o começo de sua existência, é retirada da espécie um elemento filosófico-religioso essencial para que se haja uma racionalização da visão de mundo: o livre-arbítrio. Afinal, se não existe a possibilidade real de escolha, o ser humano perde o direito de sistematizar o seu próprio comportamento e a ideia de uma ação social com relação a fins, tipo ideal proposto por Weber fortemente ligado com a modernidade racionalizada, torna-se inviável ou, pelo menos, ilusório. Como demonstra as indagações de Édipo, ao se deparar com a resposta que tanto procurava – “- Ai de mim, infeliz que sou! Para onde me levam meus passos? Para onde voa minha voz, perdendo-se no ar? Meu destino, onde foste te precipitar?” (SÓFOCLES, 2016, p. 81) – o personagem é refém do que está acima de seu controle, é refém da “nuvem abominável”(SÓFOCLES, 2016, p. 81), que paira sobre ele, “imensa, irresistível, esmagadora!” (SÓFOCLES, 2016, p.81).

A manifestação terrena desse Destino está calcada, principalmente, na figura dos oráculos, tanto no Oráculo de Delfos, referência principal da mitologia grega à clarividência, que anuncia o decreto divino sobre a vida de Édipo, como de outros abençoados pelo dom profético, como Tirésias. No início da peça, a primeira atitude de Édipo para tentar solucionar o problema da peste é questionar esses que possuem um contato mais próximo com o divino: “Enviei o filho de Meneceu, Creonte, meu cunhado, a Delfos, ao templo de Apolo, a perguntar o que eu devia dizer ou fazer para salvar nossa cidade” (SÓFOCLES, 2016, p.8). Com a chegada de Creonte, questiona: “que resposta do deus afinal nos trazes?” (SÓFOCLES, 2016, p.9) e recebe como resposta: “O grande Apolo nos dá a ordem expressa ‘de limpar a imundície que corrompe este país, e não deixá-la crescer até que se torne inextirpável’” (SÓFOCLES, 2016, p.10).

Percebe-se, então, como aqueles que predizem tornam-se um elo forte entre o divino, mediador de todas as coisas, e a sociedade, que apenas segue a vontade do que é maior que sua condição efêmera. Os profetas se legitimam como autoridade social por servirem como porta-voz dos deuses na Terra.Como se pode notar no diálogo transposto acima, os personagens, ao se referirem às palavras e às profecias ditas pelas bocas desses oráculos, não as percebem como sentenças vindas de um outro ser humano, mas sim como resposta do deus, como uma ordem, pode-se dizer direta, de Apolo. E o fato de que Édipo age conforme as palavras vindas do templo do “deus da luz da verdade”, buscando a punição do assassino de Laio, aceitando esse pedido como solução, destaca um modo de se comportar que é proposto por Weber, principalmente em sociedades menos racionalizadas, que é agir conforme determinados valores, que se legitimam em uma tradição e no carisma de seus líderes ou mediadores.

Salvatore D’Onofrio, estudioso da teoria literária, ao fazer uma leitura das premissas aristotélicas sobre a tragédia, classifica um tipo de herói que se alinha bem com o perfil de Édipo e com as propostas deste trabalho: destaca que o leitor/espectador da peça suscita “piedade para com o herói, pois ele é um culpado-inocente, visto que não teve consciência da maldade cometida, sendo vítima do todo-poderoso Destino (Fado)” (D’ONOFRIO, 2007, p.300). Essa definição de um herói trágico, que “não teve a intenção de cometer a maldade” (D’ONOFRIO, 2007, p.300), parece resumir bem a força esmagadora do divino sobre a vontade humana; como indaga Édipo, em certo ponto da peça: “há alguém que possa coagir os deuses a fazer o que não querem?” (SÓFOCLES, 2016, p.20). Essa, com certeza, é a temática que concede tamanha universalidade à Édipo rei e que a fez perdurar como símbolo da dramaturgia trágica por tanto tempo, mas, além de tocar nas inquietudes humanas sobre a dúvida de ser a existência um simples joguete de marionetes, serve para demonstrar a relação entre a sociedade e a religião, antes que o processo de racionalização, descrito por Weber, tomasse conta da modernidade.

Ainda alguns outros elementos da peça podem ser comentados de forma breve, entre os quais o castigo divino e imediato, máximo na ideia da peste, é um exemplo:

Tebas, sacudida na tormenta, não consegue mais manter a cabeça acima da onda mortífera. A morte a golpeia nos germes onde se formam os frutos do solo, a morte a golpeia em seus rebanhos de bois, em suas mulheres, que não engendram mais a vida. Uma deusa com um archote, deusa terrível entre todas, a Peste, se abateu sobre nós, fustigando nossa cidade e esvaziando aos poucos a casa de Cadmo, enquanto o tenebroso inferno vai se enchendo de nossas queixas, de nossos soluços (SÓFOCLES, 2016, p.6).

Duas principais interpretações ajudam a perceber como a epidemia descrita e a forma como os indivíduos a enxergam ligam-se ao processo de desencantamento do mundo. Primeiramente, o fato de que a sociedade tebana, na peça, faz de imediato a ligação entre o fenômeno físico e o descontentamento divino, aponta para uma sociedade bastante teocrática, que encontrava as explicações para as manifestações naturais em sua religião, o que é um símbolo de uma sociedade menos racionalizada. Em segundo lugar, destaca-se o fato de que a punição dos indivíduos também acontece durante a vida na Terra e não apenas pós-morte, como em muitas religiões modernas, apontando para um mundo ainda “encantado”, em que as imagens terrenas também sofrem interferência direta da religião, o que acaba significando, com muito mais ênfase, o imaginário social diante do existir, enquanto na modernidade a vida é vista de maneira mais esvaziada de sentido.

Outro elemento digno de nota é a presença do coro; elemento comum às tragédias na Grécia Antiga, que “formado por um conjunto de atores, exerce o papel de uma personagem coletiva que, em oposição ao discurso de caráter individual das outras personagens, comenta suas ações e seu comportamento à luz da consciência do povo” (D’ONOFRIO, 2007, p. 283), algo como “o porta-voz do público espectador” (D’ONOFRIO, 2007, p. 283). Após cada episódio, há interferência do coro, que se pronuncia como reação do povo aos acontecimentos. Como se pode notar em sua primeira manifestação, o coro interessa, aqui, por traçar, durante toda a peça, um diálogo direto com o divino:

Ó doce palavra de Zeus, que vens trazer de Delfos, a opulenta, à nossa ilustre cidade,
a Tebas? Minha alma, estendida pela angústia, palpita de medo. Deus que é invocado com gritos agudos, deus de Delos, deus que cura,
quando penso em ti, estremeço: que irás exigir de nós? uma nova obrigação? Ou uma obrigação omitida a renovar ao longo dos anos?
Dize-me, Palavra eterna, filha da deslumbrante Esperança. (SÓFOCLES, 2016, p. 13-14).

Parece óbvio, então, a importância do coro para perceber a realidade dessa sociedade tebana, que ainda vivia em um mundo “encantado”, pois se o coro é a voz do povo e se esse constantemente se manifesta em relação ao divino, fica claro como o agir social, nesse caso, mostra-se em dependência da religião e da mitologia de tal povo.

Um último fator, em relação à Édipo rei, que pode ser apontado, é o simbolismo por trás da cegueira. A maior ironia consiste no personagem Tirésias, o clarividente da região, que possui as respostas divinas e que é cego; o homem quando questionado sobre quem seria o assassino de Laio, após certa hesitação, afirma que o criminoso é o próprio Édipo, esse, por sua vez, sente-se deveras insultado e recusa, em um primeiro momento, a acusação daquele que é tão considerado em Tebas. O rei, enfurecido, diz que a verdade não pode estar “num cego, que tem a alma e os ouvidos tão fechados quanto os olhos” (SÓFOCLES, 2016, p.26), acusação que Tirésias responde da seguinte maneira: “Tu me censuras de ser cego; mas tu, que vês, como não vês a que ponto de miséria te encontras nesta hora?” (SÓFOCLES, 2016, p.28), ainda afirmando: “Vês a luz, em breve não verás senão a noite” (SÓFOCLES, 2016, p.28).

Tirésias, com o decorrer da trama, mostra-se certo. Então, aquele que mais enxerga, na tragédia Édipo rei, é o cego, pois ele vê pelos olhos dos deuses; enquanto os outros, meros mortais, como o próprio Édipo, limitam-se à visão ofuscada do ser humano, que diz enxergar tudo, mas que, na verdade, não vê nada.Coloca-se, assim, o que é divino, outra vez, no patamar mais alto, relembrando a religiosidade latente e dogmática de uma sociedade menos racionalizada. Até mesmo o rei, posto dado àqueles que seriam de maior estirpe dentre os humanos, não pode se comparar com a vontade do Monte Olimpo. A ironia leva, ao final, para o ápice do trágico; Édipo, após se deparar com a verdade, declara: “Oh! Ai de mim! então no final tudo seria verdade! Ah! luz do dia, que eu te veja aqui pela última vez, já que hoje me revelo o filho de quem não devia nascer, o esposo de quem não devia ser, o assassino de quem não devia matar!” (SÓFOCLES, 2016, p.75). Como se percebesse a inutilidade de seus olhos, que apenas pode ver desgraças, fura-os e se torna, também, cego.

Agora, pode-se tratar da peça Hamlet, escrita por William Shakespeare entre os últimos anos do século XVI e os primeiros anos do século XVII. Mesmo essa sendo produzida em uma realidade diferente daquela que viveu Max Weber, alguns séculos antes do que o sociólogo alemão consideraria como ápice do processo de racionalização, a tragédia elisabetana pode ser analisada em comparação à Édipo rei, pois existe entre as duas tragédias um grande abismo temporal. Dessa forma, é possível perceber a diferença entre um mundo ainda bastante “encantado”, a Grécia Antiga onde vivia Sófocles, e um mundo muito mais racionalizado, a partir da percepção weberiana, que é o lugar de onde escreve Shakespeare.

Outro aspecto que justifica a escolha dessa peça é o fato de que, segundo as estudiosas da dramaturgia Lígia Costa e Maria Remédios, “o trágico da modernidade se ergue sobre a desintegração dos valores e certezas da Idade Média” (COSTA & REMÉDIOS, 1988, p. 28). Devido a isso, a produção trágica, do período em que Shakespeare escrevia, consiste em um “estilo de tensão e união de opostos” (COSTA & REMÉDIOS, 1988, p. 28), em que seus elementos estilísticos “encontram sua pureza e sua melhor expressão no paradoxo” (COSTA & REMÉDIOS, 1988, p.28), o que é justificado por esse momento histórico de grande transição, em que, ao mesmo tempo que se repele a tradição clássica, essa é atraída. Por isso, com certeza, é um marco representativo no processo de racionalização social e que, de maneira ou outra, acaba sendo captado na produção estética.

Na época, a Inglaterra, país de origem do autor citado acima, era liderada pela figura emblemática de Isabel I, em uma monarquia. Pensando do ponto de vista religioso, que muito interessa a este trabalho, destaca-se o fato de que a monarca, com poder em vigor na época, apesar de buscar evitar o conflito com os católicos, era protestante. Isso é digno de nota, pois, como comentado antes, a ética protestante é um ponto bastante importante na teoria da modernidade de Weber, visto que essa é um marco no processo de burocratização da religião. Dito isso, pode-se prosseguir com as observações sobre a peça, sempre levando em conta como esse fator pode ter alterado as percepções do autor inglês sobre o mundo.

Hamlet tem como personagem principal de sua trama um príncipe dinamarquês, que dá nome à peça. A tragédia inicia com os sentimentos desse personagem carregados de melancolia; isso se dá devido à recente morte de seu pai, rei Hamlet, e a substituição brusca do trono da Dinamarca pelo irmão do falecido monarca, Cláudio, que, também, casa-se com Gertrudes, mãe do príncipe e rainha. O descontentamento de Hamlet chega ao auge quando o personagem se depara com a figura fantasmagórica do pai, que diz ter sido assassinado pelo próprio irmão e que pede vingança por parte do filho. Durante toda trama, o jovem príncipe dinamarquês cogita tornar-se ou não aquele que sujará as suas mãos de sangue para saciar o desejo de revanche do espectro do falecido rei, até que o final trágico, brutal, realiza-se ao término da peça.

Levando em conta os objetivos deste trabalho, o ponto de partida de análise de Hamlet não poderia ser outro que não o elemento mais irracional: o fantasma do pai. Afinal, aponta-se um grande contraste entre um mundo cada vez mais desencantado e a figura incoerente de um espectro, que acaba por ocasionar o conflito interno da personagem principal. O debate sobre a possibilidade do falecido rei Hamlet estar transitando ou não, como espírito, as mediações do castelo real perpassa ao longo de todas suas aparições. Os oficiais, e de certa maneira amigos de Hamlet, o príncipe, que fazem a ronda noturna, são os primeiros a ver o espectro.A peça inicia com um diálogo entre esses, que tentam racionalizar o que tinham visto: “Horácio diz que tudo é fantasia nossa/E não quer acreditar de modo algum/Na visão horrenda que vimos duas vezes” (SHAKESPEARE, 2016, p.14). Em uma próxima aparição, para Bernardo, Marcelo e Horácio, o último desses se conforma com a conclusão: “Não sei o que pensar. Com precisão não sei” –,decide que o melhor, então, é contar a história ao príncipe e convidá-lo a ver o espectro com os seus próprios olhos.

A cena V, do primeiro ato, é toda composta pelo diálogo direto entre Hamlet e o fantasma. Esse alega: “Sou o espírito do teu pai/Condenado, por um certo tempo, a vagar pela noite/E a passar fome no fogo enquanto é dia,/Até que os crimes cometidos em meus tempos de vida/Tenham sido purgados, se transformando em cinza” (SHAKESPEARE, 2016, p.35). Para que, então, encaminhe a tarefa de vingança ao filho:

Se divulgou que fui picado por uma serpente/Quando dormia em meu jardim;/Com essa versão mentirosa do meu falecimento/Se engana grosseiramente o ouvido de toda a Dinamarca./ Mas saiba você, meu nobre jovem:/A serpente cuja mordida tirou a vida de teu pai/ Agora usa a nossa coroa(SHAKESPEARE, 2016, p.36).

É interessante apontar o fato, aqui, de que as peças do período em que Shakespeare escrevia eram apresentadas em duração próxima a duas horas, mas Hamlet destoa bastante desse período de tempo, pois é a peça mais longa do autor inglês, podendo durar mais de quatro horas se for encenada em plenitude. Isso se dá muito pelos extensos monólogos do personagem principal, nos quais Hamlet reflete sobre qual seria a forma que ele agiria diante da situação em que se encontra; pode-se perceber essa hesitação como um reflexo do inconsciente do personagem, que, por mais que pareça acreditar fielmente no espírito do pai, ainda demonstra existir uma luta interna de tentar racionalizar algo que, a princípio, não faz sentido. Diferentemente da visão religiosa em Édipo Rei, as manifestações do que estão além da mortalidade, no contexto dessa tragédia elisabetana, deveriam se limitar ao além-vida, sem aparecer, de forma concreta, no cotidiano terreno.

Hamlet difere-se de Édipo, também, em outro ponto: além do príncipe dinamarquês “digerir” um elemento irracional com muito mais dificuldade do que o rei tebano, Hamlet possui o peso insuportável do poder de escolha, coisa que Édipo, à mercê do Destino, não sente. Hamlet pode decidir se deseja, ou não, fazer o que o fantasma, duvidoso, manda e isso contribui para enxergar o cenário retratado por Shakespeare com muito mais “desencanto”, pois o ser humano tem controle maior sobre seu agir, o que leva a uma maior individualidade e interesse. E essa possibilidade de decisão carrega a fala de Hamlet de uma melancolia; o monólogo, talvez o mais conhecido da peça, que inicia com os dizeres “ser ou não ser”, demonstra muito bem essa pesar e esse sentimento de culpa:

Será mais nobre sofrer na alma/Pedradas e flechadas do destino feroz/Ou pegar em armas contra o mar de angústias-/E, combatendo-o, dar-lhe fim? Morrer; dormir;/Só isso. E com o sono – dizem – extinguir/Dores do coração e as mil mazelas naturais/A que a carne é sujeita; eis uma consumação/Ardentemente desejável. Morrer – dormir -/Dormir! Talvez sonhar. Aí está o obstáculo!/Os sonhos que hão de vir no sono da morte/Quando tivermos escapado ao tumulto vital/Nos obrigam a hesitar: e é essa reflexão/Que dá à desventura uma vida tão longa (SHAKESPEARE, 2016, p.67).

Outro contraste entre a peça Hamlet e a tragédia grega, brevemente apontada antes, é a maneira diferente de enxergar as formas de punição, de castigo; relembrando, em Édipo rei, a condenação divina se manifesta de forma concreta na vida cotidiana dos indivíduos, na figura máxima da peste. Já na peça de Shakespeare, o contexto protestante, que é retratado, enxerga o acerto de contas como algo que está além-vida. Isso fica claro quando Hamlet encontra uma boa oportunidade de assassinar Cláudio, assim vingando seu pai, e deixa de fazê-lo, pois vê que o seu tio está rezando; Neste momento, Hamlet diz:

Eu devo agir é agora; ele agora está rezando./Eu vou agir agora – e assim ele vai pro céu;/E assim estou vingando – isso merece exame./Um monstro mata meu pai e, por isso,/Eu, seu único filho, envio esse canalha ao céu./Oh, ele pagaria por isso recompensa – isso não é vingança./[…] Eu estarei vingado/ Pegando-o quando purga a alma,/E está pronto e maduro para a transição?/Não./Para espada, e espera ocasião mais monstruosa!/Quando estiver dormindo bêbado, ou em fúria,/Ou no gozo incestuoso do seu leito;/Jogando, blasfemando, ou em qualquer ato/Sem sombra ou odor de redenção./Aí derruba-o, pra que seus calcanhares deem coices no céu,/E sua alma fique tão negra e danada/Quanto o inferno, pra onde ele vai. (SHAKESPEARE, 2016, p.86).

O personagem principal, então, deixa de vingar o pai por entender que matar o homem enquanto está rezando pode proporcionar ao tio uma redenção, um espaço no céu; por isso, pretende aguardar por outro momento, mais oportuno, em que a ida ao inferno, para a punição, seja garantida.Percebe-se, nesse ponto, uma burocratização da religião, quando a vida passa ser um período de provação, em que o indivíduo precisa manter certa conduta social para alcançar um fim, no caso, garantir um lugar de paz para seu espírito, depois de morto. Diferentemente, também, da religião politeísta analisada em Édipo rei, as imagens do mundo deixam de possuir certo encanto, pois o divino deixa de interferir de forma concreta no cotidiano; o encantamento está para além da vida.

Um último ponto a ser analisado é o ápice da tragédia, o final; Hamlet é desafiado para um duelo de esgrima por Laertes, filho de Polônio, o conselheiro-chefe do rei Cláudio, que é assassinado pelo príncipe durante a peça. O novo monarca, que percebe a perseguição do príncipe e teme pela sua própria vida, planeja junto com o jovem, que lutará com seu sobrinho, uma forma de terminar o duelo em que Hamlet estará morto e não causará mais problemas. Laertes decide envenenar a ponta de sua espada e o rei, para tentar garantir ainda mais a morte de seu oponente, traça o seguinte plano:

Quando, em meio ao combate, sentirem calor e sede -/Tens que fazer ataques bem violentos pra que isso aconteça-/E Hamlet pedir bebida, eu já terei um cálice/Preparado para a ocasião, no qual basta ele tocar os lábios -/Se até aí escapou de tua estocada venenosa-/Pra coroar nosso plano. (SHAKESPEARE, 2016, p.116).

Entretanto, a cilada acaba não funcionando como planejado. A morte, impiedosa, acaba alcançando a todos: a rainha, por engano, acaba bebendo do vinho envenenado durante a luta; Laertes, gravemente ferido por Hamlet, também falece; o próprio Hamlet, estocado pela ponta venenosa de seu oponente, vê a morte se aproximar e entende que seu fim chegará em alguns instantes e o rei Cláudio, que em um primeiro momento parece ser o único a se livrar, encontra o mesmo destino quando o príncipe dinamarquês finalmente concretiza a sua vingança: “Então, veneno, termina tua obra!” (SHAKESPEARE, 2016, p.138) – diz o príncipe dinamarquês, ferindo o monarca com a espada de Laertes.

É possível perceber como o elemento trágico, aqui, a passada derradeira da felicidade para infelicidade, concretiza-se de maneira diferente de Édipo rei. Em Hamlet, o herói, se é que ainda se pode chamar o príncipe dinamarquês de herói, deixa de ser “culpado-inocente”, como era Édipo. Isso pode ser visto como consequência de um processo de racionalização: as individualidades, o apetite por vingança, os interesses mesquinhos e o predomínio de um agir racional em relação a um objetivo final retiram o poder onipotente das mãos de um Destino e aquele que é responsável pelo derramamento de sangue humano é ninguém mais do que um outro em mesma condição. –“Mea culpa, mea maxima culpa”.

Pode-se finalizar este trabalho apontando para o que é, provavelmente, a conclusão mais aparente: a literatura pode ser utilizada como ferramenta em potencial para ajudar a se evidenciar o processo de secularização do mundo, além de provavelmente servir para se pensar outras teorias dos mais diversos autores da sociologia. Assim como as Ciências Sociais podem servir de ponto de vista para aqueles que leem e releem mais produções literárias, sempre agregando, para aquelas obras carregadas de maior universalidade, novas formas de se perceber a interpretação de um processo estético.

A leitura e análise da peça Édipo rei, a partir da iluminação teórica dada pelos pressupostos de Max Weber, aponta para um “encantamento do mundo”, presente nas sociedades clássicas, visto na figura esmagadora do Destino, no agir altamente mediado por uma tradição, nas manifestações de castigo divino que acontecem de forma concreta no cotidiano terreno e entre outros. Quando se analisa Hamlet, no entanto, a partir do contraste de contextos de escrita tão distantes, pode-se enxergar parte da Europa, no século XVI, que vivia o avanço forte da ética protestante e de um grande passo no processo de racionalização do mundo;evidência disso são as hesitações e o conflito de Hamlet diante de uma manifestação do irracional, o agir metódico, muitas vezes egoísta, dos personagens da peça em busca de um objetivo individual e o poder de escolha, que, mesmo libertador, traz consigo a melancolia e a culpa.

Referências

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COSTA, Lígia Militz da e REMÉDIOS, Maria Luiza Ritzel. A tragédia: Estrutura e História. São Paulo: Ática, 1988.
D’ONOFRIO, Salvatore. Forma e sentido do texto literário. São Paulo: Ática, 2007.

PIERUCCI, Antônio Flávio. Secularização em Max Weber: da contemporânea serventia de voltarmos a acessar aquele velho sentido. Revista Brasileira de Ciências Sociais. V. 13, n. 37, p.43-73, 1998.

PINHEIRO, Paulo. Introdução. In: ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Editora 34, 2015.

PLATÃO. Apologia de Sócrates precedido de Êutifron (Sobre a piedade) e seguido de Críton (Sobre o dever). Porto Alegre: L&PM, 2016.

SELL, Carlos Eduardo. Racionalidade e racionalização em Max Weber. Revista Brasileira de Ciências Sociais.V. 27, n. 79, p. 153-172, 2012.

SELL, Carlos Eduardo. Sociologia clássica: Marx, Durkheim e Weber. 6ª edição. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

SHAKESPEARE, William. Hamlet. Porto Alegre: L&PM, 2016.

SÓFOCLES. Édipo rei. Porto Alegre: L&PM, 2016.

WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Centauro, 2001.

WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2012.

 

Data de envio: 8 de junho de 2017.