Amores líquidos na pós-modernidade: a fragilidade dos laços afetivos em “Com que se pode jogar”, de Luci Collin

Brenda Letícia Guimarães Marinossi

RESUMO: Este artigo discute e preza refletir sobre os conflitos marcantes e polêmicos presentes na literatura contemporânea, fazendo, pois, uma reflexão sobre a ruptura aos padrões antigos e o diálogo com temas presentes nas narrativas clássicas, tendo como corpus de análise o romance Com que se pode jogar, da escritora paranaense Luci Collin. No romance, estão presentes temas diretamente ligados às mazelas que afetam a contemporaneidade, como o abandono familiar, a prostituição, o uso de drogas, a depressão, o incesto, representando a liquidez e a fragilidade dos laços afetivos. As três personagens femininas centrais do romance cruzam-se, de forma não intencional e inconscientemente, seus destinos ao longo da história. De formas diferentes e pertencentes a lugares diferentes, elas se constituem em ambientes de desestruturação familiar, que apresentam resquícios da sociedade patriarcal.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura contemporânea. Luci Collin. Fragilidade dos laços afetivos.

ABSTRACT: This article discusses and proposes to reflect on the striking and controversial conflicts present in the contemporary literature, thus making a reflection on the rupture to the old patterns and the dialogue with themes present in the classic narratives, having as a corpus of analysis the novel Com que se pode Jogar, by the writer Luci Collin. In the novel, there are themes directly related to the ills that affect contemporaneity, such as family abandonment, prostitution, drug use, depression, incest, representing the liquidity and fragility of affective bonds. The three central female characters of the novel unintentionally and unconsciously intersect their fates throughout history. In different ways and belonging to different places, they are constituted in environments of family disruption, which present remnants of the patriarchal society.

KEYWORDS: Contemporary literature. Luci Collin. Fragility of affective bonds.

 

Considerações iniciais

Segundo Santos (1986), o pós-modernismo é o nome das mudanças ocorridas nas ciências, nas artes e nas sociedades desde 1950 e amadurece hoje, alastrando-se na moda, no cinema, na música e no cotidiano programado pela tecnociência. Segundo o autor, ele abala preconceitos, não hierarquiza a sociedade, rompe as barreiras entre os gêneros, prezando, sobretudo, a convivência de todos os estilos, de todas as épocas, sem hierarquias.

A pós-modernidade, assim, possibilitou à mulher o acesso um espaço que antes era tradicionalmente masculino, pois, segundo Zolin (2003), o cânone literário era prioritariamente constituído pelo homem ocidental, branco e de alto poder aquisitivo. Zolin (2003) afirma, ainda, que o preconceito não é contra os seus escritos, mas contra a mulher propriamente.

Em relação à literatura, o pós-modernismo, de acordo com Santos (1986), não é um retrato da realidade, mas uma maneira diferenciada de representa-la, rompendo com regras e formas e retomando sua história de maneira irônica e irreverente. Além do mais, nas narrativas pós-modernas, percebe-se uma recusa ao enredo tradicional, com começo, meio e fim, e uma preferência pelo uso de vários pontos de vistas, materializados nos vários narradores que, simultaneamente, contam fragmentos de suas trajetórias. Há ainda, geralmente, uma intricada mistura entre realidade e sonho, marcada pelo embaralhamento da ordem espacial e temporal dos acontecimentos. Estas características podem ser observadas no romance contemporâneo Com que se pode jogar (2011), de Luci Collin, principalmente na segunda parte, quando se misturam os personagens e muda-se o cenário.

A escritora Luci Collin nasceu em Curitiba, em 1964, é graduada em Piano, Letras e Percussão e doutora em Letras pela USP, sendo considerada uma das autoras de maior destaque no Paraná, segundo Moura (2012). Atualmente, é professora de Literaturas de Língua Inglesa na Universidade Federal do Paraná e trabalha também como tradutora. Possui coletâneas de poesias, contos e dois romances. As obras de poesias são Estarrecer (1984), Espelhar (1991), Esvazio (1991), Ondas e Azuis (1992), Poesia Reunida (1996) e Todo implícito (1998); as de contos são Lição Invisível (1997), Precioso Impreciso (2001), Inescritos (2004), Acasos Pensados (2008) e Vozes um divertimento (2008); e os romances são Com que se pode jogar (2011) e Nossa Senhora d’Aqui (2015). De acordo com Moura (2012), as obras de Luci Collin ainda não são consideravelmente conhecidas no cenário da literatura feminina brasileira, embora sejam de grande valor literário. Isso porque há poucas pesquisas científicas e ausência de crítica no rol de títulos listados no portal da Capes e da Scielo.

Esse trabalho, que se respalda nas leituras teóricas sobre o Pós-Modernismo e os Estudos Culturais, tem como objetivo discutir, no romance Com que se pode jogar, a fragilidade dos laços afetivos, observados na sociedade contemporânea, por meio da análise sobre a trajetória das três protagonistas da obra: Ana, Melanta e Lena.

Os laços afetivos frágeis no romance

Segundo Cury (2007), as narrativas mais contemporâneas têm apresentado a realidade da violência urbana, da exclusão social, da extrema pobreza e da marginalidade, o mundo das drogas e da prostituição, promovendo uma pungente denúncia social, com a representação de personagens migrantes e descentradas. Enfim, são narrativas que priorizam a temática da violência, da crueldade e do caos das grandes cidades.

As velhas identidades, segundo Hall (2011), estão dando lugar à identidade fragmentada do indivíduo moderno, visto que a crise de identidade é vista como um processo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas. Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, e promovendo uma perda de um sentido de si estável, chamada de deslocamento ou descentralização do sujeito.

A principal distinção entre a sociedade tradicional e a moderna é, conforme Hall (2011), a mudança constante, rápida e permanente que ocorre na última. Ela não é unificada e bem delimitada, ou uma “totalidade”, como os sociólogos pensaram, sendo constantemente descentrada ou deslocada por forças fora de si mesma. De acordo com Laclau (apud HALL, 2011, p.16), a sociedade moderna não possui nenhum centro ou princípio articulador/organizador único, não se desenvolvendo, pois, de acordo com o desdobramento de uma única “causa” ou “lei”.

A época moderna, de acordo com Hall (2011), fez surgir uma forma nova de individualismo, no centro da qual se erigiu uma nova concepção tanto do sujeito quanto de sua identidade, visto que nos tempos pré-modernos as pessoas eram, sim, indivíduos, porém a sua individualidade era entendida e vivida de outra forma. Assim, na primeira metade do século XX estava começando a emergir dos movimentos associados com o surgimento do modernismo, um quadro ainda mais perturbador do sujeito e de sua identidade: um indivíduo isolado, exilado e alienado, servindo como “pano-de-fundo” de uma sociedade ou multidão anônima e impessoal.

Segundo Hall (2011), este individualismo está associado à crise de identidade, visto que as velhas identidades estão dando lugar ao surgimento de novas, fragmentando o indivíduo moderno, que antes era conceituado como sujeito unificado. A identidade central, na sociedade moderna, esta sendo substituída por uma pluralidade de centros de poder, de acordo com Hall (2011), que também produzem identidades plurais, múltiplas e multifacetadas, desencadeando, portanto, no sujeito pós-moderno, que não tem uma identidade fixa como aquela tida pelos sujeitos durante tanto tempo.

Assim, como o sujeito pós-moderno, a família encontra-se em decadência, como resultado de uma longa e lenta evolução, na qual, segundo Roudinesco (2002), predomina a união menos duradoura, cuja família é constituída, a priori, da união de um homem e de uma mulher. A união destes faz-se, assim, de suma importância para que dê continuidade a outras famílias, sendo o incesto proibido e esta proibição estando ligada a uma função simbólica.

O incesto é definido por Roudinesco (1997) como uma relação entre parentes consangüíneos maiores de idade, sem que haja coerção ou violação de ambas as partes. O ato é reprovado pela opinião pública e vivido como uma tragédia que leva sempre a loucura ou ao suicídio, porém as leis modernas não intervém na vida sexual dos adultos, punindo apenas se apresentada alguma queixa por um dos parceiros ou a pedofilia. No romance de Collin, cuja intriga coloca em cena três personagens femininas com trajetórias de vida bem diferentes, essa temática do incesto aparece ligada a outras como a violência urbana e a prostituição, propiciando uma pungente denúncia social sobre o patriarcado em suas várias nuances.

A personagem Ana e a violência urbana: tragédia e isolamento

Conforme explicitado anteriormente, a trama do romance Com que se pode jogar gira em torno de três personagens femininas centrais, que são Ana, Melanta e Maria Helena. A primeira parte é narrada por Ana, que é advogada, mãe de três filhos, e é envolvida em um mistério, que só será elucidado no final da obra. Ela demonstra, várias vezes, a perturbação que se encontra sua vida, como nos é possível observar no trecho: “O meu inobjetivo, o meu cansaço, o meu risível espanto, o meu mal-estar perante o incerto, o meu lento degelo, o meu esfarelamento, o meu desígnio, o meu estio, o meu ressuscitamento, às vezes, o meu equívoco, o meu estrangeirismo, jogo” (COLLIN, 2011, p. 29-30).

Ana, no início do romance, nos dá algumas pistas do que poderia vir a acontecer, como no trecho: “Pensei cursos para um rio. Leito menos as águas. Pensei asas inimagináveis. Eu que levava flores. Eu que não levava flores nunca. Eu agora olho para as minhas manhãs solitárias” (COLLIN, 2011, p.32), ou em “Resta aceitar por costume esse chá na solidão da cozinha onde o relógio é a única criatura viva e precisa” (COLLIN, 2011, p.40). Nesse ponto da narrativa, o/a leitor/a ainda não sabe o motivo do isolamento e da profunda tristeza da personagem; sabe-se, porém, que alguém muito importante não está mais consigo. As “flores” levam a pensar na morte de um ente querido, de uma pessoa muito próxima; com efeito, pode-se deduzir, então, que a pessoa da qual ela sente falta é o pai de seus filhos, já que ela não menciona nenhuma vez o seu marido, a não ser na frase proferida por Isabel, sua filha: “Vai para lua, Augusto Filho” (COLLIN, 2011, p.14), da qual constata-se que ela tem/teve um marido e que seu nome também é Augusto, ou quando ela diz: “A noite inteira eu chorei por aquele homem” (COLLIN, 2011, p.26).

Por meio de conversas com o irmão e a cunhada, o/a leitor/a se depara com algumas pistas da vida anterior de Ana. Ela era advogada, classe social elevada, que vivia confortavelmente com seu marido, promotor e seus três filhos na cidade, e depois da tragédia que ocorreu em sua vida, ela evade-se para o meio rural, na tentativa de esquecer o seu passado.

Ana descreve o frio, a geada, o “vento que verga os eucaliptos e assobia de um jeito sinistro”, tudo isso, de certa forma, metaforiza o frio da alma, da solidão, da amargura e melancolia, que lhe faz pensar na morte do marido, sentindo-se abandonada, sozinha com os filhos. No trecho: “Dormir cedo. Acordar e, espiando por trás da cortina, ter a primeira visão do que se passa lá fora” (COLLIN, 2011, p.15), Ana venda seus olhos e “espia” tudo por trás das “cortinas”, isto é, não deseja encarar a realidade, tem medo de sofrer ainda mais, medo de que os filhos sofram. Além disso, mostra que ela não tem nenhuma noção do que se passa “lá fora”, pois ela se afastou de tudo e todos e isolou-se, inclusive da companhia de parentes, já que estes não se importavam com seu estado, com os seus sentimentos e, quando iam visitá-la, faziam-na se sentir ainda mais sozinha. Ao invés de confortá-la, a presença dos familiares intensificava o vazio que nunca seria preenchido.

O sentimento de desamparo da personagem reflete-se também na desolação da natureza, mostrando uma intrínseca relação entre o seu estado interior e o espaço no qual está inserida. Isso pode ser observado em passagens como essa: “o amanhecer em que a geada queimou completamente a grama queimou as plantas todas carbonizou as bananeiras. O verde sendo transformado em amarelo-enxofre” (COLLIN, 2011, p.15). Aqui, Ana relaciona o inverno à sua vida, pois o que antes era verde, transforma-se em amarelo, pálido. Assim como a natureza, o mundo interior, que antes era colorido perde a cor, se torna “pardacento e triste”. Isso remete a pensar como era sua vida antes, feliz e completa ao lado do marido e dos filhos, e no que ela se transformou depois de um triste acontecimento. Também nessas passagens aparecem algumas pistas sobre o espaço no qual ela está imersa, após o acontecimento trágico que transformou sua vida. Pelo inverno e pela descrição da natureza, das estradas e da distância do mundo urbano no qual ela vivera antes, percebe-se que ela mora em algum lugar, bem afastado, no sul do país.

Tudo é triste e sem vida, “garoa o dia inteiro sem trégua”, ela não esquece nem por um momento o que se passou. Por isso, inventa coisas para passar o tempo, procura se ocupar para não se sentir só: “faço pão, afofo a terra dos vasos, cirzo, debulho milho”. E é nessa solidão que se percebe a “falta d’água, a sede, secura e a sequidão”, a sede da alma, o sentimento de se perder alguém.

A personagem encara a morte como o fim de tudo, o fim de sua motivação, de sua esperança, felicidade. Ela isola-se, procura um abrigo, um refúgio em si mesma, está tudo tão “escuro”, tão “frio”, “tempestade lá fora” como em seu interior: “A chuva pesada lá fora golpeia o telhado com uma obstinação comovente; e nós aqui dentro, resguardados, nem ouvimos”. Em meio, portanto, a todo esse sofrimento, ela tenta superar, mas fecha-se no seu mundo, com suas idéias e pensamentos. Segundo Eagleton (2014), se reconhecêssemos a brevidade de nossas vidas, que, de fato, a vida é provisória, gozaríamos muito mais, porém há a ilusão de que viveremos eternamente, o que nos impede de fazer muitas coisas.

A falta de coragem diante de uma tragédia, segundo Eagleton (2014), leva-nos a não ter forças para sobreviver, isso porque só prospera-se se confrontar esse fracasso. Há uma crença, segundo ele, de que a força vem das próprias profundezas da abjeção, todavia, aqueles que caem até o fundo do sistema, estão livres para construir uma alternativa, e se, porém, não há como cair mais fundo, é preciso subir e transformar em vida nova o que era derrota, pois “nada ter a perder é ser formidavelmente poderoso”. (EAGLETON, 2014, p.296).

Ana, por sua vez, encontra nos filhos sua força para seguir em frente e não desistir de viver, já que todas as outras pessoas que estão ao seu redor, não se importam com os seus sentimentos e, até mesmo seu irmão e sua cunhada se mostram indiferentes ao seu sofrimento pela perda do marido.

Além desse aspecto, o espaço em que as personagens se configuram possui também grande importância. Ana está inserida, assim como muitas mulheres, no espaço doméstico. Segundo Moura (2012), o patriarcalismo limitou o espaço da mulher ao meio doméstico durante vários anos, sendo que as personagens trazem a dinâmica das relações amorosas contemporâneas, a repressão sofrida, mesmo que indiretamente, isto é, o que é certo e/ou errado, o que cabe ou não a mulher sentir, poder desejar ou não. Na passagem: “Eu me envergonho dos desejos lúbricos, me traz humilhação a recorrência de apetites que insistem e na insistência mostram um lado do meu corpo ainda jovem e ainda ardente […]” (COLLIN, 2011, p. 27), percebe-se que a personagem Ana se sente envergonhada por ter apetites sexuais, pois, perante a sociedade, a mulher nunca poderia sentir/demonstrar nenhuma espécie de desejo, ainda mais na condição de luto em que a personagem se encontra.

A personagem Melanta e o trágico do incesto

O incesto, assim como a homossexualidade, ainda na sociedade contemporânea, continua sendo um “tabu”. Teme-se, segundo Roudinesco (2002), que isso seja uma decadência dos valores tradicionais da família, escola, nação, pátria e, sobretudo, da paternidade, da lei do pai e da autoridade sob todas as formas. Como consequência, o que incomoda os conservadores de todos os lados não é a contestação do modelo familiar, mas, ao contrário, a vontade de a ele se submeter. A autora afirma que, sem a ordem paterna, sem a lei simbólica, a família, mutilada das sociedades contemporâneas, seria pervertida em sua função de célula de base da sociedade, entregando-se ao hedonismo, isto é, a busca incessante pelo prazer acima de todas as outras coisas. Gera-se, dessa forma, um distúrbio profundo na família, no qual o incesto transforma-se em desejo de normatividade, apagando, assim, o traço que difere o homem de outros animais.

O modelo de família aceito, na atualidade, ainda é aquele no qual há a união de um homem e uma mulher, ambos de famílias distintas, isto é, “cada família provém sempre da união — logo, do estilhaçamento — de duas outras famílias” (ROUDINESCO, 2002, p.10), em que não é aceitável a união ou relação sexual consanguínea, ou seja, a sociedade a qual estamos inseridos repele o incesto. Isso nos possibilita diferenciar o mundo animal do mundo humano. A família, assim, associa um fato de cultura a um fato de natureza, inscrito nas leis da reprodução biológica. A proibição do incesto está ligada a uma função simbólica, sendo um fato de cultura e de linguagem que proíbe os atos incestuosos por existirem na realidade, o que é característica dos mamíferos. Roudinesco (2002) afirma que o casamento entre parentes próximos era admitido nas civilizações antigas, sendo posteriormente proibida pela igrejai cristã, a qual a bíblia cita vários casos de incesto, mesmo condenando esse comportamento. É preciso, contudo, admitir que a partir das diferenças sexuais e proibição do incesto é que “se desenrolaram durante séculos não apenas as transformações próprias da instituição familiar, como também as modificações do olhar para ela voltado ao longo das gerações” (ROUDINESCO, 2002, p.11-12). Portanto, segundo Roudinesco (2002), é necessário entender a história da família e como se deram as mudanças no decorrer dos anos, sobretudo, que caracterizam a desordem da atualidade.

Melanta, narradora da segunda parte do livro Com que se pode jogar, intercala suas falas com a de Éria, sua irmã. Melanta inicia o primeiro capítulo, já na metade da narrativa, contando sobre as dificuldades que a fizeram emigrar de seu país de origem em busca de emprego. Só depois o/a leitor/a descobre sua trajetória e os motivos que a levaram à partida. Por algumas descrições da protagonista e da sua irmã, constata-se que Melanta vive em um país, que não se sabe qual, mas muito diferente e profundamente arcaico, como pode-se evidenciar no trecho: “Nunca comi uma laranja, mas sei o que é e sei como pedir” (COLLIN, 2011, p.59) e de uma classe bem inferior: “Quando ele me contava em detalhes os planos de ir morar numa cidade muito longe […] com gente dormindo em camas, morando em casas em que a água chega por um cano” (COLLIN, 2011, p.61), trecho que demonstra que a personagem não dormia em uma cama e nem possuía água encanada.

Neste lugar, também predominam ainda valores bem patriarcais como, entre outros, o fato de a mulher que não é mais virgem não poder se casar. Além disso, os casamentos eram arranjados pelos pais. Melanta é irmã de Rhuam e, por ter tido uma relação incestuosa com ele, por quem se apaixona, em um ambiente onde predominam valores seculares, não pode ser dada em casamento a nenhum outro homem. Percebe-se aí as trágicas consequências do incesto, sobretudo, no desabafo que ela faz: “Lembra das palavras que me disse? E selou meu destino. Você sabe bem porque é que o pai nunca pode me dar em casamento para nenhum homem. E você deixou o Abel levar toda a culpa” (COLLIN, 2011, p. 93); ou ainda quando sua irmã diz: “(Rhuam) Só conversava com minha irmã, viviam grudados, ele dava presente pra ela” (COLLIN, 2011, p.71). Por causa desse fato, o irmão Abel, a quem é atribuída a culpa pela desonra de Melanta, é expulso, injustamente, de casa e passa a viver uma vida marginalizada e errante. Rhuam também parte a pretexto de conseguir dinheiro para a família muito pobre, mas jamais volta, embora Melanta, que não vê outra saída a não ser sair de casa e tornar-se prostituta para ajudar a família, ainda espere, inutilmente, por ele.

Pode-se observar passagens da obra que metaforizam a inocência de Abel, como nesta, em que suas roupas brancas atordoam Melanta: “tão brancas as roupas que Abel veste! Até chamam atenção.” ou “toda aquela brancura me perturbou. Como é que não suja?” (COLLIN, 2011, p. 66, 67). Toda essa brancura é metáfora da inocência/pureza de Abel perante Melanta, e o desequilíbrio/perturbação desta se deve ao fato de ter consciência da verdade e da injustiça cometida com o irmão e, mesmo assim, deixá-lo assumir a culpa.

A impossibilidade de ter um relacionamento amoroso com seu irmão, faz com que Melanta comece a se prostituir, e isso ocorre tanto pelos desgostos que permeiam sua vida miserável, quanto para sustentar sua família, que necessita de ajuda. Já que não conseguira um emprego melhor que “amassar pimentas”, ela prefere se entregar a uma vida errante e sem propósitos, sendo que a convivência no mesmo quarto que Taja tenha contribuído ou influenciado a sua “decisão” de se prostituir. Percebemos isso na passagem: “Taja me perguntou se eu não queria sair com ela […] Me explicou que bastava ficar parada na rua esperando. Quando algum interessado aparecia, ela levava o homem […] num hotel […]”. E, visto que, ela sem uma solução para os problemas, vê, na proposta da amiga, uma fuga, uma saída para tudo aquilo: “É, vou ter que dar um jeito de ganhar mais dinheiro […] Talvez tenha que pedir ajuda à Taja […]” (COLLIN, 2011, p. 88).

A narrativa de Melanta mostra uma relação de conflito com o espaço em que está inserida, tanto quando vive com os pais, quanto quando muda-se para outro lugar. Constatamos que Melanta não se sente acolhida em nenhum desses lugares, tudo é estranho e muito triste longe de Rhuam, nada interessa ou possui cor. Na verdade, toda a sua vida é “descorada”, sem sentido algum, e o “verde”, isto é, a esperança, quando há, causa estranhamento, como observamos na passagem: “Depois de todos esses dias de paisagem descorada, o verde tão forte chega a doer nos olhos da gente.” (COLLIN, 2011, p.57). A mudança de ambiente não causa alegria nem tristeza à Melanta, ela vive uma vida amena, de muitas privações, angústias e sofrimentos, em que ela é guiada apenas pela “escuridão”, como constatamos na passagem: “[…] aquele escuro impenetrável […] só quem de alguma forma enfrentou aquelas distâncias tão grandes e se afundou naquele breu sabe como a noite pode ser cega e absoluta.” (COLLIN,2011, p. 60).

Outra face da sociedade arcaica e patriarcal representada nessa parte do romance, tão perversa quanto a vivenciada por Melanta que não vê outra saída a não ser a prostituição, é a vivenciada por Éria, sua irmã mais jovem. Esta, cumprindo um destino de mulher, como evidenciou Simone de Beauvoir, em O segundo sexo (1949), casa-se, por arranjo de Melanta, com um homem que nem ao menos conhece, como evidencia o seguinte trecho no qual ela se refere ao seu marido: “Em setembro me casaram com esse homem e eu até que gostei” (COLLIN,2011, p.63), ou mesmo quando diz que não consegue decorar seu nome: “Não consigo gravar o nome. Nunca tinha visto.” (COLLIN, 2011, p.78). Constata-se, em vários trechos da obra, a precariedade e a pobreza com que Éria vivia com sua família: “[…] aqui tem mais comida do que lá com a minha família” (COLLIN, 2011, p.64) ou mesmo com o homem que vive: “Eu cozinho num fogo que faço no chão […] A água a gente guarda num tonel de madeira […] Ele pega longe, longe” (COLLIN, 2011, p. 78-80). O amor é visto de uma forma diferente por Éria, já que seu marido pouco conversa com ela, é nas pequenas ações que ela percebe uma certa “proximidade”: “Pensei que ele nunca iria nem conversar direito comigo, mas ele conversa; perguntou quanto eu ia precisar de azeite pro mês” (COLLIN, 2011, p.64). Fica evidente, no entanto, a partir de trechos como esse, o tamanho distanciamento entre ambos.

Ao fim desta parte, o/a leitor/a se dá conta do segredo de Melanta, o que estava por trás do casamento de Éria e o porquê de tanta “fartura” em sua tenda. O homem, agora casado com ela, teria feito um juramento em que, mesmo possuindo outras mulheres, não deixaria nada lhe faltar, sendo esta a condição para que a irmã se casasse com o desconhecido, como mostra a passagem em que Melanta diz: “Ainda bem que aquele homem apareceu por lá e que jurou pela vida do pai dele que iria dar de comer a ela até o fim da vida. Mesmo que tivesse outras mulheres” (COLLIN, 2011, p. 93).

Essa passagem evidencia a poligamia masculina aceita naquela sociedade, o que leva a crer que a história se passa, provavelmente em um país africano, visto que a Melanta e sua família possuem a pele negra, como observamos na passagem: “tem a pele muito escura – como a minha” (COLLIN, 2011, p.75), sobretudo, em países de religião muçulmana, na qual, segundo Pereira e Andrade (2014), aceita-se a poligamia, se distinguindo dos costumes brasileiros. Para o Islã, por exemplo, a poligamia é amplamente aceita e admitida até o número de quatro esposas, desde que o marido tenha condições financeiras para manter todas elas.

De acordo com Roudinesco (2002), podemos distinguir três grandes períodos na evolução da família: a família “tradicional”, a moderna e a contemporânea. No primeiro os casamentos são arranjados entre os pais sem que a vida sexual e afetiva dos futuros esposos seja levada em conta, já que se casam muito novos e imaturos, costume predominante nessa segunda parte do livro, na qual Éria está inserida. No segundo, valoriza-se o amor romântico sancionado na reciprocidade dos sentimentos e sexo apenas depois do casamento. Já no terceiro período, isto é, na contemporaneidade, dois indivíduos se unem em busca de relações íntimas ou de realização sexual, tornando-se uma problemática, já que se aumentam os divórcios e separações, conforme enfatiza Bauman (2004), em sua obra Amor líquido, na qual aborda as relações efêmeras da contemporaneidade, denominada por ele de modernidade líquida.

Essa parte do livro desvela, de forma contundente, a subordinação/ inferioridade da mulher em relação ao homem, em ambas as personagens, evidenciando a cultura desse país. A primeira personagem, Melanta, não se sente completa sem o homem que ama, ela tem necessidade de ser amada e faz qualquer coisa por esse homem, sendo que enxerga nele um caráter e uma inteligência inigualáveis, como na passagem: “Nunca vi ninguém mais inteligente do que meu irmão. Eu passo horas pensando nele […]” (COLLIN, 2011, p.75). Ela, contudo, não sente prazer em viver, pois toda a sua vida é marcada por essa obsessão. Éria, por sua vez, se sujeita a muitas coisas, ela tem obrigações dentro de casa, não age de acordo com seus instintos e desejos, é insegura e demonstra, muitas vezes, “medo” desse homem com quem vive: “eu sinto um pouco de medo de ter que cuidar do passadio, medo de desperdiçar, de deixar assar demais o cuscuz, medo de estragar algum mantimento caro” (COLLIN, 2011,p.77) ou “ Ontem queimei um pedaço da saia com brasa […] Tomara que ele não perceba – pode ficar ofendido […] ficar brabo com minha desatenção.” (COLLIN, 2011, p. 79).

A passagem a seguir é uma evidência de que a mulher é objetificada, sendo manipulável: “ele me usa como mulher desde o primeiro dia” (COLLIN, 2011, p.78). Percebe-se, em algumas passagens, que o sujeito masculino sempre vem antes na oração, como: “o homem casou comigo […]” (COLLIN, 2011, p. 71), simbolizando o seu sentimento, o de que não era sua vontade casar-se com ele, mas já que a casaram, não há nada que possa ser feito. Conclui-se, por fim, quais são os “deveres” das mulheres inseridas na sociedade patriarcal, como a submissão ao homem e também o próprio preconceito em relação a si mesma, reflexo da rejeição paterna, sobretudo na passagem: “O primeiro filho quero que seja um menino […]”. Pra alegrar o homem é que eu quero que seja um menino. Menina a gente acaba nem gostando tanto. O pai nunca mostrou que gostava de mim […]” (COLLIN, 2011, p.79), na qual revela a total desvalorização da mulher, que era vista apenas como símbolo de reprodução.

Lena e o drama da adoção ilegal: da prostituição ao crime

A terceira parte, como dito anteriormente, é quando tudo se esclarece. O mistério é desfeito e o/a leitor/a se depara, finalmente, com o motivo do sofrimento e das lamentações de Ana e o destino de Rhuam: O seu marido fora assassinado pelo irmão de Melanta, que viveu um romance com Maria Helena, a mentora do assassinato.

Maria Helena, ou Lena, é uma personagem problemática, que descobre ter sido “comprada” pelos pais adotivos e, por isso, alimenta um imenso ódio e extrema repugnância por eles, o que pode ser constatado na seguinte passagem:

“Mãe? Minha mãe coisa nenhuma – é só uma ricaça que me comprou. É, comprou, foi lá, escolheu um bebezinho bem subnutrido, o pior de todos, o mais fudido, e deu um dinheiro e me levou. Abriu a bolsa e preencheu um cheque cheio de zeros – ela é boa nessa coisa. Só isso. Não é, nunca foi e nunca será mãe, nem minha nem de ninguém. (COLLIN, 2011, p. 99)

Ela relembra, no capítulo 8 da terceira parte do livro, uma conversa que teve com Rhuam, quando ele a questionou sobre qual havia sido o dia mais triste de sua vida, e ela responde que foi a morte do filho, que estava esperando, na prisão. Segundo sua versão, já que Lena, assim como Bentinho de Dom Casmurro, caracteriza-se como uma espécie de narrador não confiável, que tenta manipular os fatos de acordo com seus interesses, ela afirma que havia sido presa injustamente, pois não tinha envolvimento algum com os assaltos que os amigos fizeram, mas teve o infortúnio de estar na casa deles bem no momento em que a polícia chegou. Na prisão, Augusto, o promotor, pede para que mantenham a preventiva, para investigar melhor se ela tinha ou não envolvimento. Maria Helena, então grávida, perde o bebê, e atribui a culpa a Augusto. É somente nesse momento da narrativa que é revelado ao/à leitor/a o motivo que levou ao assassinato do marido de Ana. É descrito por Lena a forma que sucedeu os fatos: “Rhuam passou horas na chuva esperando o tal promotor chegar em casa”, depois de uma festa com a esposa, e atirou. O autor do crime foi identificado apenas como “Juan”, erro este pelo qual Lena acredita que seu cúmplice nunca será descoberto: “Por causa de uma palavra, sabemos que jamais encontrarão.” (COLLIN, 2011, p.136).

Roudinesco (2002) afirma que a família tradicional sucedeu à família mutilada, feita de feridas íntimas, de violências silenciosas, de lembranças recalcadas. Ao perder o centro de virtude, o pai forneceu uma imagem invertida de si mesmo, deixando transparecer um eu descentrado, autobiográfico, individualizado, cuja grande fratura será estudada pela psicanálise durante todo o século XX.

Segundo a autora, o pater, em direito romano, é aquele que se designa a si mesmo como pai de uma criança por adoção e a filiação biológica é totalmente desconsiderada caso não se siga a designação pelo gesto ou pela palavra. Assim, a paternidade natural não tem significação no direito romano, pois, se um homem não quiser reconhecer o seu como filho, este não terá compromisso nenhum para com a criança; ao contrário, se, por exemplo, ele quiser legitimar um estranho como seu filho natural, ele pode lhe dar tudo, instituí-lo herdeiro e deserdar os legítimos, ou mesmo, pode igualmente, deixá-lo na indigência e ignorá-lo totalmente, como se este não fosse seu filho e ele não lhe devesse nada.

Com efeito, alguns trechos da obra evidenciam toda a confusão, a revolta, a repugnância de si mesmo e o delírio que a personagem demonstra: “quem me salva daqui é escuro é horrivelmente escuro e eu escuto gritos e gente chorando e gente rindo um inferno […]” (COLLIN, 2011, p.103). A ausência de pontuação demonstra a rapidez e a velocidade de seus pensamentos desconexos, nada mais que a inquietude de sua alma. Observa-se que o pronome “eu” está com fonte menor que o resto da frase, indicando a inferioridade que sente em pensar que foi abandonada e rejeitada por sua mãe biológica.

Lena, por carregar esse sentimento, acredita que a mulher que a adotou/comprou, não só escondeu, como também mentiu sobre sua verdadeira identidade e seu passado. Segundo a protagonista, ela não teria feito isso por bondade ou amor, mas sim para se promover, adotando uma criança que requeria cuidados especiais, já que pelas fotos que encontrara no arquivo eram de uma criança que sofrera maus tratos: “Parecia um bicho: o corpo cheio de feridas, sarna, piolhos.” (COLLIN, 2011, p. 131). Ela acredita que seus pais tenham ocultado isso e também sua verdadeira certidão de nascimento, por vergonha ou mesmo, para que depois ela pudesse se promover de alguma maneira, como se evidencia na passagem: “Tinham vergonha de mim? Imagino que a minha mãe estivesse guardando aquelas fotos para um dia publicar na revista […] Antes X depois – Vejam o que fiz por essa pobre garota.” (COLLIN, 2011, p.131), ou mesmo porque ela não poderia ter filhos, já que seu marido era, segundo a protagonista, um “viado”:

Me adotou só pra dizer para todo mundo que era boazinha, e achou que ia conseguir segurar aquele marido viado. Sabia que o cara era viado? […] Coitado, nunca pode sair do armário por causa do sobrenome, por causa da tradição da família […] Quando ela viajava, ele chamava uns garotos lá em casa. […] e tinha medo de escândalo em bar gay ou em motel. (COLLIN, 2011, p. 114-115)

A protagonista, portanto, demonstra rejeição à figura materna e atribui a ela, culpa a todos os seus infortúnios, pois sente-se, de certa forma, usada por ela, um objeto, exibida como “propriedade” sua, a quem possui uma dívida pendente por ter lhe salvo a vida: “Me obrigava a fazer uns penteados num cabeleireiro irritante e a por vestidinho de grife e uns sapatinhos de verniz e salto! Ficava me mostrando […]” (COLLIN, 2011, p. 115).

Assim, por sentir-se rejeitada, abandonada por aqueles que a deviam proteger, por achar que não havia solução para seus problemas, que não é amada por ninguém, se entrega à depressão, ao mundo das drogas e, consequentemente, da prostituição e do crime.

Sendo assim, alimentando o ódio que sente por sua mãe, Lena com a ajuda de Rhuam, mentor do crime, decidem assaltar a casa que vivera sua infância e pré adolescência: “Adorei essa tua ideia, genial […] E a cara da velhota quando te viu com o revólver?” (COLLIN, 2011, p.113), sem demonstrar em momento algum arrependimento, como evidencia-se na passagem: “Ah, me conta os detalhes – perdi essa. […] eu te falei que ela era uma perua.” (COLLIN, 2011, p. 113-114). Constatamos que a personagem deseja “culpabilizar” alguém por tudo que aconteceu em sua vida, ela não deseja superar, mas, sim, se manter focada em causar o sofrimento do próximo, ou seja, de alguma forma, se “vingar” da mãe, pessoa que a acolheu.

O ponto em comum na trajetória das três personagens e a impossibilidade do “happy ending” romântico

De acordo com Moura (2012), a narrativa, antes, deveria ter princípio, meio e fim, e sua história transcorrer em um mesmo espaço físico, dentro de um limite de tempo, escrito em uma linguagem formal e construída com uma ação. Porém, atualmente, ela sofreu modificações, como o aspecto de imediatismo, ligada a ânsia de dizer, denunciar, levando, em alguns momentos, a perder-se a linearidade da história. Portanto, a fragmentação, a intertextualidade, a metalinguagem, a autoconsciência e a autorreflexão são marcas das obras de Luci Collin. No romance Com que se pode jogar, Luci Collin inova e rompe com os padrões narrativos tradicionais, deixando o final deste em aberto, e assim, muitas dúvidas, pois o/a leitor fica se saber, por exemplo, o que acontece com as personagens principais, e/ou o rumo que segue suas vidas, qual a trajetória de Rhuam, se ele volta para seu país de origem, se algum dia reencontrará Melanta.

As três personagens femininas centrais do romance, Ana, Melanta e Lena não se conhecem diretamente, mas tem seus destinos ligados e cruzam as suas trajetórias ao longo da trama O mistério vai se desfazendo, ao final do romance, quando é revelada, pelo menos ao/à leitor/a, a identidade do assassino do marido de Ana, que é Rhuam, irmão de Melanta e namorado de Lena, mentora do crime. O ponto em comum está no fato de as três personagens serem mulheres que passam por dramas familiares, que têm conflitos parecidos e que estão imersas em universos familiares esfacelados, com relações afetivas desgastadas e/ou interrompidas de forma brusca, sem esperança ou fé no amanhã.

As narrativas contemporâneas, geralmente, fogem do formato tradicional, apresentando uma estrutura narrativa que traz um desfecho trágico e aberto, convidando, assim, o/a leitor/a a ser coautor/a. De fato, no romance analisado, não se sabe o que de fato aconteceu com Rhuam, se ele posteriormente foi encontrado pela polícia, se voltou para a casa de seus pais e/ou tenha reencontrado Melanta, ou até mesmo voltado para buscar Lena, deixando, portanto, um leque de possibilidades acerca de seu destino, que leva o/a leitor/a a dispor de um labirinto para traçar uma lógica, a pensar no que poderia ter acontecido, seguindo pistas deixadas pelos personagens, mas nunca desvendando por inteiro o mistério.

Nenhuma das protagonistas vivencia um “happy ending”, no romance de Luci Collin, como é típico dos romances contemporâneos. Está presente nele a retratação de pessoas “humanizadas”, que vivem como nós, que estão inseridas em contextos semelhantes aos nossos, que lutam a cada dia, que estão vulneráveis às mazelas que afetam a contemporaneidade, que não são passivas, que enfrentam as dificuldades do cotidiano, e não vivem em um mundo “perfeito”, constituído por “doces experiências”.

Considerações finais

De acordo com Moura (2012), a ideologia patriarcal, durante muito tempo, colocou a mulher como um ser inferior ao homem e causou sua exclusão social, sobretudo, o nome “mulher”, segundo Touraine (apud MOURA, 2012, p.24), sempre trouxe uma bagagem, pois ao se nascer mulher, ações, comportamentos, discursos, pensamentos, etc. já lhe eram predeterminados, sendo hierarquicamente inferior em relação ao gênero masculino.

Assim, também, foi no campo da literatura, pois, segundo Moura (2012), até algumas décadas atrás, o papel de escritor era exclusivamente masculino. Sendo assim, a mulher não tinha o direito de expor seu desejo de ler e muito menos de escrever. Na ideologia patriarcal, a mulher era excluída e marginalizada do meio social, cultural e literário, isto é, a experiência feminina era vista como algo sem ou de pouca importância. A partir do século XIX, com o surgimento do feminismo, a mulher passa a reivindicar o direito à escrita literária, propiciando uma subversão nos padrões que regiam a sociedade, até então. Contudo, somente nos anos 80, do século passado, é que começam a aparecer, efetivamente, estudos, debates e pesquisas relacionados à mulher e à sua posição na literatura no Brasil.

A literatura contemporânea paranaense, segundo Moura (2012), traz dados que divergem da literatura tradicional, pois, nela, eram conferidos os relacionamentos amorosos familiares à mulher, enquanto ao homem eram conferidos os relacionamentos profissionais. Pode-se, então, perceber que, na contemporaneidade, a personagem do sexo feminino está travando os mesmos tipos de relacionamentos que a personagem do sexo masculino, apresentando, pois, uma determinada equiparação nos relacionamentos desenvolvidos entre as personagens de ambos os sexos.

Segundo Bonnici (1999), o pós-modernismo introduziu muitos fatores novos e aniquilou os tradicionais, principalmente a noção e fonte da autoridade e poder que ditam as regras. Isso pode ser evidenciado no romance Com que se pode jogar, por exemplo, há em alguns trechos a ausência de pontuação, na qual os pensamentos e digressões são inseridas de relance na narrativa, havendo, inclusive a intercalação das falas de personagens. O “happy ending”, por sua vez, muito comum nos romances anteriores, praticamente não existe neste contexto.

O pós-modernismo, em seu contexto atual, de acordo com Bonnici (1999), pode ser um aliado ou inimigo, depende da posição ideológica de cada um. Para alguns teóricos não há autoridade porque os sinais circundantes são arbitrários, para outros, ela consiste nos consumidores e sociedade em geral, que aceitam o que lhes é oferecido.

Referências

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BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: Sobre a fragilidade dos laços humanos. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro, Zahar, 2004.

BONNICI, Thomas. A teoria do pós-modernismo e a sociedade. In: Mimesis. Bauru, v. 20,n. 2, p. 25-37, 1999.

COLLIN, Luci. Com que se pode jogar. Curitiba: Kafka Edições, 2011.

CURY, Maria Zilda Ferreira. Novas geografias narrativas. In: Letras de hoje. Porto Alegre, 2007.

EAGLETON, Terry. Depois da teoria: Um olhar sobre os estudos culturais e o pós-modernismo. Tradução Maria Lúcia Oliveira. 4 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.

FREUD, Sigmund. Totem e Tabu: Algumas correspondências entre a vida psíquica dos selvagens e a dos neuróticos. Tradução Renato Zwick. Porto Alegre: LP&M, 2013.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A editora, 2011.

MOURA, Andiara Maximiano de. Representação e ideologia: a personagem na contística de Luci Collin. 2012. 151f. Dissertação (mestrado). Universidade Estadual do Paraná, Maringá. 2012.

ROUDINESCO, Elisabeth. A família em desordem. Tradução André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.

SANTOS, Jair Ferreira dos. O que é Pós-Moderno. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1986.

ZOLIN, Lucia Osana. Literatura de autoria feminina. In ZOLIN, Lúcia Osana & BONNICI, Thomas (orgs.). Teoria literária: abordagens e tendências contemporâneas. 3. ed. rev. e ampl. Maringá: Eduem, 2009.

 

i Mesmo tendo sido, a partir da era cristã, um tabu, na Bíblia sagrada, são citados vários casos de incesto, como de Amnon e Tamar (filhos de Davi) e o de Ló e suas duas filhas.

 

Data de envio: 16 de junho de 2017.