As garotas de branco em Whistler e Adriana Lisboa: sinfonias em branco que dialogam

Ana Maria Soares Zukoski

RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo fazer uma análise comparativa e interpretativa entre a obra de arte Sinfonia em Branco número 1: A garota de branco (1862), de Whistler, e a imagem da moça de branco que está presente no romance Sinfonia em branco, de Adriana Lisboa, publicado pela primeira vez em 2001. De acordo com Souriau (1982), é visível a existência de um parentesco entre as artes e que os artistas, independentes se são músicos, escultores, ou poetas, todos servem ao mesmo deus. Desse modo, tanto a literatura como a pintura, possibilitam inúmeras leituras. Considerando a importância de refletir sobre os diferentes modos de representação da literatura e da pintura e levando em conta que o romance de Adriana Lisboa faz intertextualidade com a tela de Whistler, ao fazer alusões da pintura com a personagem Maria Inês, na cena em que ela aparece vestida de branco, assim como a mulher do quadro do pintor norte-americano, esse trabalho pretende analisar as duas imagens e estabelecer um paralelo comparativo entre elas, evidenciando a simbologia da cor branca e a forma como se encontra representada tanto na tela quanto no romance. Esse trabalho será fundamentado nos pressupostos teóricos da Literatura Comparada e dos estudos sobre os símbolos: Carvalhal (1986), Cortes (2009), Chevalier, Gheerbrant (2009) e Souriau (1983), entre outros.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura de autoria feminina. Pintura. Sinfonia em branco.

ABSTRACT: The present work aims to make a comparative and interpretative analysis between Whistler’s work of art Sinfonia em Branco número 1: A garota de branco (1862) and the image of the white girl in the novel Sinfonia em branco, by Adriana Lisboa, published for the first time in 2001. According to Souriau (1982), there is visible existence of a kinship between the arts and that artists, whether they are musicians, sculptors or poets, all serve the same god. In this way, both literature and painting allow us numerous readings. Considering the importance of reflecting on the different representation ways in literature and painting, and conceiving that Adriana Lisboa’s novel intertextualises with Whistler’s canvas, by making allusions to the painting with the character Maria Inês, in the scene in which she appears dressed in white, as well as the woman in the painting, this work intends to analyze both images and establish a comparative parallel between them, showing the symbolism of the color white and the way it is represented on the canvas and the novel. This work will be based on the theoretical assumptions from Comparative Literature and studies on symbols: Carvalhal (1986), Cortes (2009), Chevalier, Gheerbrant (2009) and Souriau (1983), among others.

KEYWORDS: Female authorship literature. Painting. Sinfonia em branco

 

Considerações iniciais  

De acordo com Étienne Souriau (1983, p. 14), é incontestável a existência de uma afinidade entre as artes, sendo os pintores, escritores, escultores todos levitas de um mesmo templo. As artes são produzidas com um propósito geral, o que possibilita essa proximidade entre elas, independente se tratam ou não da mesma materialidade artística, pintura, escultura, literatura, música, podem dialogar entre si. Logo, existe um diálogo (inevitável) entre as artes, inclusive entre pintura e literatura, que é o foco de análise deste artigo.

Considerando a existência desse diálogo, chegamos ao conceito de literatura comparada que, de acordo com Tânia Franco Carvalhal (2007, p. 74), foca na ampliação das conceituações mais recentes sobre literatura comparada, considera-a como o estudo da literatura que ultrapassa fronteiras de países, focalizando o estudo das relações entre literatura e outras áreas do conhecimento, como as outras artes, por exemplo: pintura, escultura, arquitetura, música. Enfim, consiste na comparação de uma produção literária com outras esferas de manifestação humana. Com efeito, a literatura comparada pode ser entendida como uma maneira singular de tensionar textos literários em sua interação com outras expressões culturais e artísticas.

Adriana Lisboa é autora de mais de onze livros, os quais já foram traduzidos para mais de nove idiomas. Brasileira, atualmente mora nos Estados Unidos. Com formação nas artes e mestrado e doutorado em Literatura Comparada, a escrita dessa autora torna ainda mais potente, sobretudo com as intertextualidades recorrentes – e intencionais – que aparecem em suas obras. Em Um beijo da Colombina, de 2003, inspirado na obra poética de Manuel Bandeira, há um intenso diálogo com a poesia desse autor modernista. Também Rakushisha, de 2007, é construído com base nos diários de viagem e nos haicais do poeta japonês Matsuo Bashô, mantendo uma relação intertextual que perpassa a temática da narrativa e a trajetória dos protagonistas. Já em Hanói, de 2012, há um diálogo com a produção musical de diversos artistas, o que mostra a intimidade da autora com os gêneros musicais, já que Lisboa é bacharel em música, foi cantora da MPB, na França, aos dezoito anos, e, mais tarde, professora de música no Rio de Janeiro.

Sinfonia em branco, publicado pela primeira vez em 2001, com o qual Lisboa recebeu o Prêmio José Saramago, em 2003, evidencia a relação com a pintura Symphony in White No. 1: The White Girl (1862), de James Abbott McNeill Whistler, que já se estabelece desde o título, e que é reforçada ao longo do romance, pois os leitores que não conseguirem perceber essa relação logo no título, com o avanço da leitura da narrativa, conseguirão estabelecer o diálogo entre as obras. Ao longo do romance, além das citações diretas à obra de Whistler, o narrador também apresenta a inquietante imagem de uma garota de branco, Maria Inês, relacionando-a com a garota da pintura.

Para Clarice Zamonaro Cortes, “a relação entre a palavra e a imagem, entre a palavra e as coisas (e a sua representação) tem sido um tema constante nos processos de comunicação entre os homens” (CORTES, 2009, p. 355). É exatamente a isso que este artigo se propõe: analisar o diálogo e as teias de significados propiciados pela relação entre a imagem da pintura de Whistler e as palavras do romance de Lisboa.

Simbologia da cor branca

O branco, em muitas culturas ocidentais, para ressaltar a pureza feminina e como símbolo da paz presente nas bandeiras brancas ostentadas nas tentativas de trégua das guerras que assolaram a humanidade, é uma cor com inúmeras simbologias. Conforme Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2009, p.141), a cor branca é absoluta, apresentando apenas as variações que partem do fosco e chegam até o brilhante, podendo significar a soma de todas as cores. A cor branca também está relacionada com o silêncio, uma vez que “o branco produz sobre a nossa alma o mesmo efeito do silêncio absoluto […] Esse silêncio não está morto, pois transborda possibilidades vivas […]” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 142). Contudo, toda ausência significa, seja essa ausência marcada pela falta de palavras, uma vez que o silêncio carrega muitos significados. Conforme expresso anteriormente, essa cor também faz alusão à pureza e à virgindade:

É a cor da pureza, que não é originalmente uma cor positiva, a manifestar que alguma coisa acaba de ser assumida; mas sim uma cor neutra, passiva, mostrando apenas que nada foi realizada ainda. E é justamente o sentido de origem da brancura virginal, e a razão por que, no ritual cristão, as crianças são enterradas debaixo de um sudário branco, ornado de flores brancas. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 143)

Devido a essa simbologia do branco no ocidente, as vestes das noivas no casamento religioso, e até mesmo no casamento civil, são compostas majoritariamente pela cor branca. Contudo, para que o vestido da noiva pudesse ser dessa cor, a mulher precisava ter como, pré-requisito, a virgindade garantida para poder ser digna em usar a cor branca no dia do casamento; portanto, a virgindade estava ligada à ideia de pureza, que era indispensável para as mulheres.

Além dessas simbologias, o branco também apresenta relação com a religiosidade, sendo, de acordo com Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2009), considerada como a cor iniciadora, da revelação, da graça e da manifestação divina, constituindo-se como uma cor que possui conexão com o sobrenatural. O fato da cor branca, no ocidente, também estar relacionada com a religiosidade, reforça esse ideal de pureza que era, e ainda é cobrado das mulheres, pelas religiões e pela sociedade.

As mulheres de branco na pintura e no romance

Symphony in White no. 1: The White Girl de Whistler

Symphony in White No. 1: The White Girl, foi pintada, entre 1861 e 1862, por James Abbott McNeill Whistler, que teve por modelo a sua amante, Joanna Hiffernan. O fato de o pintor utilizar como modelo a sua amante, faz com que percebamos uma ironia com o uso da cor branca no quadro, que será discutido posteriormente. Contudo, Whistler não estava preocupado em capturar uma imagem extremamente semelhante à da mulher, mas em criar um designer mais abstrato. É possível perceber no quadro o intenso trabalho com as tonalidades da cor branca que proporciona relações espaciais e formas interessantes.

Fonte: Imagem disponível em:<http://www.nga.gov/content/ngaweb/Collection/ highlights/highlight12198.html>. Acesso em: 21 fev. 2017.

Figura 1 — Symphony in White No. 1: The White Girl. (WHISTLER, 1862)

Em 1863, Whistler teve seu quadro recusado pelo júri do Paris Salon, o qual era adepto à tradição. Junto com os demais artistas que também tiveram seus quadros recusados, Whistler conseguiu expor sua obra no “Salon des Refusés”. De acordo com a National Gallery of Art (2016), a exposição da pintura causou reações controversas, visto que foi motivo de deboche e zombaria por parte do público. No entanto, houve críticos que elogiaram a entrada da obra.

No quadro, podemos perceber que Whistler retrata a mulher sob uma nova perspectiva, uma vez que, até o Renascimento, as mulheres só eram representadas nas pinturas com as cabeças baixas, sem olhar diretamente para frente, o que não acontece no quadro da garota de branco, que não apenas olha, mas também sustenta um olhar altivo.

De acordo com a National Gallery of Art:

Desprezando as convenções e padrões da pintura, A Garota Branca deixou os apreciadores do século XIX claramente desconfortáveis. A mulher retratada usa um vestido informal de algodão (tecido de algodão leve ou tecido de linho de verão) de um tipo não usado em público. Seu cabelo vermelho está solto, contrastando vividamente com o branco do cenário e do vestido. Olhando impassivelmente, sua expressão é vaga e sem foco – ela não nos encanta, mas prende nossa atenção. Está sobre um tapete de pele de lobo ou urso cuja aparência feroz contrasta com seu próprio olhar inexpressivo, e flores caem languidamente de suas mãos para o chão. Para os apreciadores do período, esses atributos tornaram o mundanismo e a falta de inocência de Hiffernan explícitas e chocantes. (GALERIA NACIONAL DE ARTE, 2016, tradução nossa)[1]

É possível perceber que o quadro causou um grande alvoroço para a sociedade da época, uma vez que a mulher de branco foi retratada de forma que salientava sua sensualidade, marcada por vários elementos no quadro, como o cabelo vermelho solto, ao proporcionar um contraste com a variedade de tons de branco presente no quadro, assim como a pele de lobo/urso, na qual a mulher encontra-se em cima. Essa pele aparece como um elemento selvagem, que se contrapõe a toda a pureza a que o branco remete. Do mesmo modo, o olhar impassível e o rosto esvaziado de expressões completam a pintura, que representa uma mulher diferente daquelas que eram consideradas como padrão nesse período.

É possível depreender, com a leitura do quadro, que existe um jogo com a cor branca, manipulada em diversas tonalidades. Vale ressaltar, que a cor branca aqui é tomada com a simbologia do ocidente e não do oriente. No vestido da mulher, as mangas apresentam uma tonalidade de branco mais escura, parecida com o branco das cortinas ao fundo. A parte do vestido que compreende acima do laço é representada com uma tonalidade mais clara, que escurece logo abaixo do laço, para, então, clarear novamente, apresentando alguns trechos com uma tonalidade mais escura, que proporciona uma perspectiva de profundidade, como se o vestido possuísse inúmeras camadas de tecido, que se justapusessem, formando dobras e curvas. As cortinas, ao fundo, passam um aspecto de tecido pesado, diferente do tecido do vestido que sugere uma determinada leveza, inclusive as mangas que possuem uma tonalidade próxima à das cortinas do fundo.

O vestido da mulher é todo branco e, para Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2009, p. 142), o branco, no ocidente, representa a cor da pureza, uma cor neutra, passiva que demonstra que nada foi concretizado ainda.  Além de ser todo branco, o vestido também representa uma forma de opressão, uma vez que o vestido é comprido, cobrindo até os pés, as mangas são longas, deixando a mostra apenas as mãos, e não tem decotes cobrindo até a base do pescoço. O vestido branco representa o silenciamento de todos os possíveis desejos e vontades da mulher, que se encontram presos dentro do vestido – metaforicamente, às convenções históricas e sociais que circunscreviam as mulheres. Com efeito, isso pode ser lido como uma forma de opressão, que não é de todo bem-sucedida devido aos demais elementos presentes no quadro que revelam a sensualidade que o branco tenta silenciar.

Há ainda as flores presentes no quadro que, de maneira geral, simbolizam o princípio passivo (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 437). É interessante notar que as flores se encontram caídas em cima da pele de urso, o elemento selvagem do quadro, o que nos permite depreender que as flores caídas podem representar o descontentamento quanto à condição passiva imposta à figura feminina, o que é reforçado pelo olhar impassível que ela apresenta. A mulher ainda segura na mão um lírio branco, sinônimo para brancura e, consequentemente, pureza, inocência e virgindade (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 553). O lírio na obra pictórica dialoga com a significação da cor branca, compondo, juntamente com o vestido, aquilo que tenta oprimir e ditar modos de vida e comportamentos a serem seguidos.

A mulher de branco encontra-se sobre um tapete de pele de animal, que pode ser tanto a pele de um lobo com a de um urso. Esse animal é o símbolo da selvageria, ao passo que a loba é o da libertinagem (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 555). Já o urso equivale aos instintos e as fases iniciais da evolução, sendo ligado ao poder, força e selvageria. Portanto, os dois possíveis animais representados na tela representam uma simbologia que se relaciona com o mundo selvagem, fora dos limites impostos pela cultura. Logo, podemos depreender que a presença dessa pele, sobre a qual a mulher se encontra, poderia remeter aos instintos selvagens e sensuais, os quais eram reprimidos pela sociedade da época. Não é apenas a pele de animal que reforça isso, mas também as flores caídas, assim como o cabelo vermelho, solto e comprido, que atuam na composição da obra de Whistler de modo a contrastar ao que a brancura presente na pintura pretende sugerir.

Sinfonia em Branco de Adriana Lisboa

Sinfonia em branco é um romance, sua estrutura narrativa fragmentada transita entre/pelas histórias de duas irmãs: Clarice e Maria Inês. Desde o título, para o leitor conhecedor do quadro, já é possível perceber a intertextualidade do romance com a pintura de Whistler, referência que aparecerá ao longo de toda a obra.

Maria Inês, durante a sua infância, encontrava-se inserida em uma família que possuía origens bastante tradicionais, oriundas do sistema patriarcal, que colocava o pai como o grande patriarca dominador da família. Mesmo quando ainda criança, Maria Inês já demonstrava ser contrária a esse tipo de dominação. Sua personalidade, e a maneira como enfrentava as convenções sociais, irritava profundamente seus pais, que desejavam que o comportamento dela fosse cuidadoso e obediente às normas do patriarcalismo. Contudo, Maria Inês fazia questão de não se sujeitar a essas normas e regras pautadas no sistema patriarcal.

Assim como na pintura, no romance também aparece a figura de uma mulher vestida de branco, que dialoga e faz referência à figura feminina presente na pintura de Whistler. A mulher vestida de branco do romance se trata de Maria Inês que, quando jovem, foi estudar no Rio de Janeiro, e lá conheceu Tomás, um jovem pintor, que a associou ao quadro de Whistler, devido à semelhança com a figura branca que ele visualizou desde a sacada do prédio.

A primeira referência direta à pintura de Whistler, que aparece relacionada à personagem Maria Inês, acontece já na primeira página do romance: “Mas então o mundo marrom e ressecado e empoeirado contraía-se novamente para ver passar um branco virginal, uma moça vestida de branco que evocava um quadro de Whistler.” (LISBOA, 2013, p. 15).

Por ser uma narrativa alinear, a passagem acima refere-se a um Tomás já adulto, que, nesse momento, mora no sítio, no qual Maria Inês viveu sua infância. Tomás e Maria Inês não permaneceram juntos, apesar de terem tido um relacionamento intenso, mas a figura dela vestida de branco fixou-se, em sua memória, de modo a balançar o seu mundo, descrito como marrom, ressecado e empoeirado. Essa imagem de uma terra seca metaforiza a falta de correspondência do amor que ele sentia pela garota de branco. Com efeito, seu mundo era estéril, mas isso se transformava em branco, quando a lembrança de Maria Inês surgia e, consequentemente, a memória do quadro de Whistler.

Com o passar do tempo, Tomás acabou por não mais manter consigo nenhuma reprodução do quadro de Whistler, mas a imagem permanecia em suas lembranças, de forma que ele a denomine como poesia da visão:

E ele disse um quadro de Whistler, chamado Moça de branco ou Sinfonia em branco nº1. […]

Ele sabia o quadro de cor. O fundo que era uma espécie de cortina pesada, branca. O tapete de pele (parecia ser um lobo ou um urso, a boca aberta e os dentes e o focinho empinado) sob os pés invisíveis da garota. Um raminho de flores brancas caído ali, sobre o tapete. E a garota com a expressão reflexiva, o rosto emergindo sólido da moldura dos cabelos escuros. Pálida. As mãos quase tão brancas quanto o vestido longo. Os lábios apenas levemente coloridos. Uma flor delicada e branca na mão esquerda. (LISBOA, 2013, p. 119-120).

O quadro, gravado na memória de Tomás, dialoga perfeitamente com a imagem de Maria Inês, que também aparece vestida de branco, com cabelos grossos e escuros, que lhe caem pelos ombros. Assim como a pintura, também se trata de uma poesia da visão, ou seja, uma visão lírica, que se assemelha a uma poesia, de tão sensível e provocadora que é, evocando sentimentos e sensações para aqueles que observam.

A primeira visão que Tomás teve de Maria Inês na sacada do prédio vizinho já lhe provocou a sensação que lhe acompanharia a vida inteira:

Tinha vinte anos e pelo menos vinte escolhas diante de si, por isso sorriu ao divisar aquela jovem na sacada de um apartamento no prédio mais próximo. Ela vestia branco e tinha os cabelos soltos, como se fosse um milagre. Cabelos compridos, grossos e escuros, ondulados demais. Não podia ser diferente: a Garota de branco. A Sinfonia em branco de Whistler. A poesia da visão. […] Descobriu quase por acaso a moça do apartamento em frente. Bastou vê-la para pensar imediatamente numa obra de Whistler, pintor que combinava muitas vezes cor e música nos títulos de seus quadros. […] Sinfonia em branco. Diante dela, daquela moça, Tomás logo pensou em fazer uma tela d’après Whistler, inspirando-se naquele Sinfonia em branco. (LISBOA, 2013, p. 42-44).

A figura de Maria Inês é intertextual com a figura do quadro de Whistler: ambas estão vestidas de branco, com os cabelos soltos bem escuros contrastando com toda a brancura e claridade do quadro e da sacada. O cabelo solto e volumoso confere um aspecto sensual, constituindo-se como um elemento bastante sintomático, ao mesmo tempo em que o branco do vestido e a claridade da sacada conferem a ideia de pureza, unindo, dessa forma, a pureza e a sensualidade em uma única mulher.

Além dos cabelos, que corroboravam para a ideia de sensualidade, havia também o corpo de Maria Inês, que se movimentava ao ritmo de sua própria dança: “Os cabelos grossos e desalinhados da garota de branco eram pesados e quase não se moviam, mas ela oscilava o corpo com suavidade para um lado, para o outro.” (LISBOA, 2013, p. 148). O movimento do corpo, que contrastava como o peso dos cabelos, era suave, fazia com que Maria Inês estivesse embalada no seu próprio ritmo, definida em sua própria sensualidade. Uma leitura possível para essa cena se deve ao fato de que ela não se deixava ser reprimida pelos padrões da época, sendo uma mulher que fazia questão de manter sua liberdade, sua austeridade, assim como a garota de branco de Whistler, que olha de frente para o quadro, em uma expressão de melancolia e insatisfação.

Para Tomás, Maria Inês não era apenas parecida com a mulher de branco de Whistler, mas sua própria personificação:

Depois apanhou as beiradas do vestido branco que havia pertencido à irmã mais velha e virou bailarina, compôs movimentos (um pouco preguiçosos) com os braços e as pernas. Tomás olhava, hipnotizado – não porque aquela garota fosse particularmente bonita, mas porque era uma pintura de Whistler. (LISBOA, 2013, p. 149).

Algumas atitudes de Maria Inês, ao longo do romance, reforçam a ideia da ousadia e impassibilidade da moça que figura na tela de Whistler. Desde a infância, Maria Inês se colocava contra as regras morais e familiares da época, com a sua personalidade forte, que não se abranda conforme ela vai crescendo. Ao contrário, ela se tornava cada vez mais forte. Maria Inês não gostava de seguir as regras/normas e fazia questão de rompê-las:

Maria Inês não era dada a confissões e não gostava de pedir conselhos. E apreciava o fato de ter um namorado com que fazia sexo sem que ninguém soubesse, contra todas as diretrizes morais que sua educação lhe imputara, contra todas as diretrizes morais às quais as moças da época obedeciam. (LISBOA, 2013, p. 172).

Podemos compreender que Maria Inês não fazia confissões devido à sua dificuldade de encontrar pessoas que aprovassem suas atitudes, consideradas impróprias para o padrão de feminino da época. A personagem gostava de romper com as regras, e era bastante significativo para ela o fato de ter um namorado, Tomás, com quem ela fazia sexo escondido regularmente e quem havia lhe “transformado” em mulher. Para a personagem, isso era relevante por justamente infringir com o padrão de pureza e resguardo que deveria, segundo as regras sociais, ter com o marido. Com efeito, quando seu futuro esposo percebeu que ela não era mais virgem, isto é, que ela já havia tido outro homem antes dele, e não se encaixava no ideal de pureza da época, Maria Inês pensou que isso pudesse se transformar em uma crise entre os dois, o que, contudo não aconteceu.

Mesmo depois de casada com seu primo de segundo grau, João Miguel, Maria Inês não deixou com que o casamento se transformasse em uma prisão. Maria Inês continuava encontrando-se e relacionando-se com Tomás, e não apenas com ele, mas também com outros amantes, buscando realizações afetivas e sexuais fora do casamento.

A imagem da mulher de branco na sacada do prédio vizinho não se esvanecia da memória de Tomás e, aos poucos, os limites entre a arte e o amor obsessivo vão se borrando para ele:

Pensava em James Abbott McNeill Whistler, que em 1862 pintara aquele quadro. E na moça pálida (de feições pálidas, sobre um fundo pálido, trajando um vestido pálido) que agora vinha reencarnar numa jovem que se debruçava à sacada do apartamento vizinho. Impossível dissociar arte e paixão. Tomás tinha cadernos furiosos de desenhos. (LISBOA, 2013, p. 148).

Não satisfeito em apenas observá-la, ele tenta reproduzir aquela imagem, que permaneceria em sua memória, até mesmo depois de muito tempo: “Àquela primeira visão que a associava com tanto assombro à garota de Whistler sucederam-se várias outras.” (LISBOA, 2013, p. 149).

Paralelo entre pintura e obra literária

Após algumas considerações sobre a pintura Symphony in White No. 1: The White Girl, de James Whistler, e o romance Sinfonia em branco, de Adriana Lisboa, podemos traçar um paralelo entre as figuras femininas vestindo branco que, apesar de terem sido produzidas em épocas distintas, século XIX e XXI respectivamente, ambas as representações artísticas conseguiram captar figuras femininas singulares e ousadas, uma vez que a segunda relaciona-se intertextualmente com a primeira.

Mary Wollstonecraft, em sua obra Reivindicação dos direitos das mulheres, denuncia os prejuízos causados às mulheres que forçosamente permaneciam enclausuradas na vida doméstica e privadas de direitos básicos, submetidas aos homens que as cercavam, sendo eles os próprios pais, irmãos e, posteriormente, os maridos. De acordo com essa autora:

O entendimento do sexo feminino tem sido tão distorcido por essa homenagem ilusória que as mulheres civilizadas de nosso século, com raras exceções, anseiam apenas inspirar amor, quando deveriam nutrir uma ambição mais nobre e exigir respeito por suas capacidades e virtudes. (…) elas são tratadas como um tipo de ser subordinado, e não como parte da espécie humana, quando se reconhece na razão perfectível o nobre elemento de distinção que eleva os homens acima da criação bruta (…). (WOLLSTONECRAFT, 2016, p. 25-26).

O que autora postula é sobre uma formação do ideário ideológico de que as mulheres, além de ser seres considerados como inferiores e, portanto, subordinadas aos homens, eram também apenas inspiradoras do amor, ou seja, precisavam estar de acordo com os costumes da época, para que despertassem nos homens o sentimento amoroso. Essa afirmação da autora pode ser relacionada às imagens femininas das obras estudadas, pois cabia às mulheres daquela sociedade manterem um comportamento de pureza e docilidade (e, por docilidade, entende-se submissão) para que dessa forma os homens pudessem interessar-se por elas.  Entretanto, apesar da cor branca, no ocidente, estar em consonância com esse ideário ideológico, tanto no quadro de Whistler como no romance de Adriana Lisboa, configura-se de forma irônica, pois as garotas de branco utilizam-se dessa cor, com essa simbologia, justamente para questionar esse ideário sobre pureza e submissão que eram impostos às mulheres.

Tanto a garota de branco, de Whistler, como a personagem Maria Inês, de Adriana Lisboa, são representadas como figuras fortes e emblemáticas. Maria Inês é descrita no decorrer do romance com uma personalidade contundente, transgressora para o seu contexto familiar e social, o que também aparece na pintura, de forma mais sutil, por meio de elementos como a pele de lobo/urso, o cabelo solto e escuro e o olhar impassível.

Ambas as representações tentam aliar a ideia de pureza que o branco proporciona a um toque de sensualidade, que demonstra o “outro” lado feminino, representado na pintura, principalmente, pela pele de lobo/urso e os cabelos soltos, e no romance pelos cabelos soltos e pelos movimentos da personagem, assim como suas atitudes ousadas e determinadas ao longo de sua trajetória, como se dançasse ao seu próprio ritmo. O branco com a sua pureza aparece de forma irônica, como algo a ser questionado, pelos elementos sensuais pertencentes tanto ao conjunto que forma o quadro como também à personagem Maria Inês.

Considerações finais

Com o desenvolvimento das análises foi possível compreender que arte e literatura estabelecem um intenso e constante diálogo. Por meio dos estudos teóricos da literatura comparada pudemos analisar mais profundamente de que forma acontece esse diálogo, como pintura e palavra conversam e se mesclam.

Neste artigo, nos propusemos analisar a pintura Symphony in White No. 1: The White Girl e o romance Sinfonia em branco, o qual apresenta referências diretas ao quadro, e, assim como o primeiro, também apresenta a figura de uma mulher de branco.

Ambos dialogam não apenas no nível da semelhança física (ambas são mulheres, estão vestidas de branco e têm cabelos escuros), mas também no sentido em que constroem imagens de mulheres fortes. A garota da pintura de Whistler, apesar de encontrar-se presa ao branco da pureza, apresenta elementos que nos permitem depreender que o branco aparece para tentar silenciá-la. Os cabelos soltos e vermelhos, não aparecem na pintura à toa, configuram-se como um elemento de sensualidade, ao passo que a pele de lobo/urso se configura como o elemento do selvagem, que se encontra sob o vestido branco, configurando-se como um elemento de opressão.

O mesmo acontece com a personagem Maria Inês, que vivia em uma sociedade patriarcal e conservadora, que tentava subjugá-la pelo fato de ser mulher. Contudo, a personagem não se deixa dominar pelas normas culturais dessa sociedade e durante a narrativa sempre está em busca daquilo que acredita ser o correto. O fato de a personagem aparecer como uma mimese da mulher de branco do quadro de Whistler é bastante emblemático, pois, assim como a mulher da pintura, Maria Inês também é marcada pela sensualidade e se opõe à opressão da pureza que lhe era exigida, conquistando sua liberdade sexual, ao longo do romance.

Referências

CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura Comparada. 4. ed. São Paulo: Ática, 2007.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números). 24. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.

CORTES, Clarice Zamonaro. Literatura e pintura. In: BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana (Orgs.). Teoria Literária: Abordagens históricas e tendências contemporâneas. 3. ed. Maringá: Eduem, 2009, p. 355-368.

LISBOA, Adriana. Sinfonia em branco. 2. ed. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2013.

NATIONAL GALLERY OF ART. Symphony in White  No. 1: The White Girl. Disponível em:<http://www.nga.gov/content/ngaweb/Collection/highlights/highlight12198.html>. Acesso em: 28 nov. 2016.

SOURIAU, Étienne. A correspondência das artes: elementos de estética comparada. Trad. Maria Cecília Queiroz de Moraes Pinto e Maria Helena Ribeiro da Cunha. São Paulo, 1983.

WHISTLER, James Abbott McNeill. Symphony in White, No. 1: The White Girl. Imagem. 1862. Disponível em:<http://www.nga.gov/content/ngaweb/Collection/ highlights/highlight12198.html>. Acesso em: 21 fev. 2017.

WOLLSTONECRAFT, Mary. Reivindicação dos direitos da mulher. Trad. Ivania Pocinho Motta. 1.ed. São Paulo: Boitempo, 2016.

 

[1] Flouting the conventions and standards of portraiture, The White Girl made 19th-century viewers distinctly uncomfortable. The woman pictured wears an informal cambric (lightweight cotton or linen summer fabric) housedress of a type worn in private. Her red hair is loose, contrasting vividly with the tonal white interior setting and dress. Gazing impassively, her expression is vacant and unfocused—she does not charm us, yet rivets our attention. She stands on a wolf or bearskin rug whose fierce appearance contrasts with her own blank look, and flowers drop languidly from her hands to the floor. To viewers of the period, these attributes made Hiffernan’s worldliness and lack of innocence explicit and shocking. (NATIONAL GALLERY OF ART, 2016).

 

Data de envio: 25 de fevereiro 2017.