“Movimento pornaso”, entrevista com Diego Moreira e Zé Amorim: a concupiscência da poesia

Samanta Rosa Maia

Para a edição 28 da revista Mafuá, preparamos uma entrevista com Diego Moreira e Zé Amorim, os autores de Movimento Pornaso. Lançado esse ano, o livro reúne poemas que “resgatam e transcriam” a tradição literária pornográfica e conta, ainda, com um prefácio assinado por Glauco Mattoso.

Mafuá: Quando e como surgiu o Movimento Pornaso?

Diego & Zé Amorim: Em 2010, em meio a uma aula de morfologia, quando, tendo em mãos um dicionário de rimas, o Zé propôs uma paródia do “Vaso Grego”, famoso poema parnasiano de Alberto de Oliveira, a qual eu fiz no mesmo momento. Na aula seguinte, o Zé chegou com o poema “Pornaso” feito, e a partir de então começamos a fazer poemas pornográficos cuja principal característica era o uso de formas fixas (soneto, ode, balada, haicai, redondilha etc).

Mafuá: Por que “Movimento”?

Diego Diego & Zé Amorim: “Pornaso”, no viaduto próximo ao cemitério do Itacorubi. Após a declamação, o Solismar, quem gravava o vídeo, fez algumas perguntas sobre os poemas, inclusive sobre a origem do nome “Pornaso”. Respondi que “pornaso” caracterizava-se como uma paronomásia de “parnaso”, monte grego no qual viviam as musas, nome inspirador do Parnasianismo oitocentista. Após a edição do vídeo, o Solismar achou por bem incluir o nome “movimento” como forma de apresentação de nossa poesia. Logo, o Pornaso ganhou o epíteto de movimento, posteriormente reforçado pela declaração de um professor, o qual, ao falar sobre nossa poesia, se perguntava: “afinal, há gozo sem movimento?” Assim, achamos que nomear como “movimento” aquele tipo de poesia que então fazíamos era adequado, uma vez que não apenas referia à pergunta proposta pelo professor, mas ao mesmo tempo dava conta da ideia de desconstruir os “movimentos”, como são ensinados pela escola. Também existe o fato de que, por mais que o Movimento Pornaso seja composto por apenas dois integrantes, houve muitas pessoas que colaboraram, ao longo dos anos, com a nossa poesia, fosse fornecendo ilustrações, pinturas, vídeos, ou mesmo na confecção do livro.

Mafuá: Como surgiu a ideia de publicar um livro com os poemas do Movimento Pornaso? Surgiu por iniciativa de alguém ou por oportunidade? O livro tem uma história, certamente…

Diego & Zé Amorim: A ideia de publicar em livro esses poemas, que circulam online (youtube, blog, facebook) desde 2010, surgiu como uma forma de fechar esse ciclo aberto há sete anos. Em 2015, Glauco Mattoso escreve o prefácio; desde então, passaram-se dois anos, e esse lapso entre uma coisa e outra se deve, infelizmente, à enorme dificuldade em se publicar poesia no Brasil, especialmente se tratando de dois poetas praticamente desconhecidos fora de Florianópolis. Em 2014, eu, Diego, já havia publicado, por uma editora do Rio de Janeiro, Subúrbios, mas quando pensamos em fazer o livro do Movimento Pornaso, encaramos um dilema: fazer o livro por uma editora, com uma tiragem entre 100-150 exemplares, e preço de mercado entre R$ 35,00 e R$ 40,00, ou bancar a produção, ter mais exemplares e poder baratear o preço de venda. No final, optamos por publicar o livro por conta própria, com uma tiragem de 500 exemplares o livro ficou no valor de apenas R$ 20,00. Verdade seja dita, dificilmente encontramos livros da qualidade do nosso (papel pólen, colado, costurado, capas coloridas e ISBN) por esse preço.

Capa do livro.

Mafuá: Na apresentação do livro, vocês, autores, relacionam o surgimento do Movimento à produção de Catulo, Marcial e Gregório de Matos. Subentende-se da motivação do movimento (“trata-se do resgate e da transcriação de uma tradição”) o esforço em demonstrar suas raízes – sobretudo, que  raízes. Ao mesmo tempo em que vocês intercedem pelo reconhecimento de uma tradição e atribuem um passado ao Movimento, vocês também renegam a repetição e, pode-se dizer, afirmam algo de novo. Como vocês entendem essa ambiguidade e como procuram lidar com ela?

Diego & Zé Amorim: Na verdade, entendemos que, em poesia, não existe a ideia de superação. A menos que se acredite que poesia “evolui”, o que não é o nosso caso. Muito mais que um esforço em mostrar “raízes”, o apelo ali serve para lembrar que poesia não nasce do acaso, da pura inspiração. O que ocorre é que no Brasil, especialmente a partir dos anos 1960, acreditou-se que certos poetas do verso livre faziam poesia dessa forma, espontânea, desregrada, quando na verdade hoje sabemos que todos os ditos “poetas marginais” possuíam erudição e também eles tinham o seu “paideuma”, para usar o termo de Pound. Ocorre que, contemporaneamente, não é difícil ver certa poesia preguiçosa, em que não há trabalho, apuro no uso da língua, e um ataque geral ao poema de forma fixa como algo datado ou ultrapassado. Entendemos que sem trabalho não há poesia e que, principalmente, não há bons poetas que não sejam, primeiramente, bons leitores de poesia. Nesse sentido, negar o passado simplesmente por querer vestir-se com a roupagem do “novo” nos parece, em poesia, uma solução arriscada, até porque nada impede que esse “novo” transgressor seja amanhã ou depois assimilado pelo museu, pela história, ou pela indústria cultural. Como disse Peter Bürger em Teoria da vanguarda, todos aqueles que, depois de Duchamp, emularam Duchamp, não queriam, como ele, implodir a instituição museu, mas antes estar dentro dela. É igualmente por isso que decidimos nos movimentar dentro das formas fixas: cremos que há ali muito mais espaço para a transgressão do que se imagina em pleno século XXI; a partir dali podemos descontruir o código com muito mais força, embora também se note no Pornaso o uso do versilibrismo, isto é, estamos constantemente jogando com os tempos da poesia no Movimento Pornaso, porque a ambiguidade, o paradoxo, são características intrínsecas ao contemporâneo.

Mafuá: Vocês concordam que a poesia pornográfica possui pouco espaço na literatura, como um todo? A universidade está mais aberta a esse tipo de produção? Quais são as dificuldades dos pornasianos?

Diego & Zé Amorim: Bem, já no prefácio do livro, Glauco Mattoso aponta para essa falta, ou seja, o atraso secular das antologias de poesia erótica/pornográfica em terras tupiniquins. Da mesma forma, como disse José Paulo Paes, a poesia erótica sempre se constituiu como “veio subterrâneo” da literatura, e somente no século XX, um intelectual “sério” – Georges Bataille – propôs-se a escrever um livro sobre o tema do erotismo. Isso reflete o fato de que a civilização ocidental, pelo menos desde a ascensão do Cristianismo, tem encarado o sexo como tabu, como interdição, mas evidentemente isso não impediu que, ao longo dos séculos – e mesmo dentro da Igreja Católica – este fosse escamoteado em suas mais diversas facetas. Há, ainda, outro problema: a distinção, baseada em juízo de valor, entre aquilo que se julga “erótico” e o que se julga “pornográfico”, a primeira como arte maior, a segunda como comercial ou voltada somente para a exploração do baixo corporal. Honestamente, estamos com Eliane Robert Moraes nessa questão, quando a crítica afirma não haver distinção de valor entre tais produções. É claro que há a pornografia comercial, diluída, que aprisiona o desejo, e no fim a questão é essa: o grande desafio é liberar o desejo de suas amarras, e não prendê-lo. Assim, a universidade ainda tende a eleger seu cânone erótico, mas não apenas a universidade: o cinema, o museu, a televisão etc. Essa é talvez a maior dificuldade, não apenas dos pornasianos, mas de todos que se aventuram pelo campo da literatura, da arte, voltada para o sexo: entender que O amor natural de Drummond não “vale” mais do que os filmes da série Emmanuelle simplesmente por ter sido escrito por um poeta consagrado. Cremos que, ao fim, a questão é catártica: se lemos um livro de Cassandra Rios e aquilo desperta o desejo, a imaginação do desejo, então aquilo é boa literatura, pornográfica ou não.

Mafuá: A obra de Glauco Mattoso é, disparada, a que mais repercute essa tradição a qual o movimento se refere na poesia contemporânea brasileira. O livro traz um prefácio especial escrito pelo autor. Que peso que a poesia de Glauco Mattoso tem no Movimento Pornaso?

Diego & Zé Amorim: O contato com a poesia de GM deu-se há muitos anos, a partir do poema “Manifesto Obsoneto”, declamado por um amigo em uma oportunidade em que fazíamos uma intervenção poética na universidade. Possivelmente, este segue sendo o nosso poema favorito de GM. Cabe notar que sua poesia explora temas muito mais voltados para o BDSM (Bondage Domination Sadomasochism – sigla de origem norte-americana que designa práticas sexuais voltadas para a dominação sadomasoquista, o fetichismo, e que foge à regulamentação daquilo que se denominou “sexualidade sadia”) do que a do Movimento Pornaso. Na poesia de GM, há um desfile de torturadores, torturados, e para o poeta, se o sexo for forçado, melhor. Também há o fato de que, sendo o poeta um sonetófilo (consta que é o recordista mundial de tal forma poética, tendo, com mais de 5000 sonetos escritos, superado Giuseppe Belli), há uma identificação imediata, por parte do Movimento Pornaso, uma vez que nos dedicamos a escrever, igualmente, predominantemente em formas fixas. Para Além disso, GM é ensaísta, e escreve com uma linguagem que está em desacordo com todas as reformas ortográficas surgidas nos séculos XX e XXI, o que valoriza ainda mais o traço filológico de sua escrita. Contemporaneamente, não há dúvida de que se trata do maior representante da poesia pornográfica no Brasil e, portanto, leitura obrigatória não apenas para o Movimento Pornaso, mas para todos que se interessem pelo gênero.

Mafuá: Segundo Glauco Mattoso, quando perguntado sobre outros integrantes do Pornaso, Amorim, você disse que “dois parceiros são mais que suficientes”. Atualmente, o Pornaso continua sendo representado apenas por você e Diego Moreira? Ele já teve mais agregados em algum outro tempo?

Diego & Zé Amorim: Sim, o Movimento Pornaso continua sendo formado por apenas dois integrantes, e não temos intenção de inserir mais membros, uma vez que, como trabalhamos juntos na escrita há muitos anos, possuímos, um com o outro, um nível de cumplicidade que seria difícil atingir se mais pessoas estivessem envolvidas. Com isso, queremos dizer que o processo de criação do Movimento Pornaso não raro se dá a quatro mãos, ora um sugerindo um mote, ora o outro sugerindo um verso e, da mesma forma, temos total liberdade de criticar os poemas do outro de que não gostamos; respeitamos tanto a produção poética um do outro que podemos tranquilamente dizer: “isto está uma MER-DA, não será publicado”. Dificilmente conseguiríamos isso com mais pessoas, portanto preferimos seguir o dueto que, por tantos anos, tem funcionado.

Mafuá: Além da leitura dos “clássicos pornasianos” e de Glauco Mattoso, vocês recomendariam alguma leitura em particular? Há algum pornasiano menos conhecido que mereça ser mais lido?

Diego & Zé Amorim: Bem, à parte os Goliardos da Idade Média, os clássicos da lira grega e romana, ou a Priapeia, ainda muito pouco lidos, embora muito citados, podemos pensar na poesia de uma Gilka Machado, que inclusive teve sua lira erótica republicada esse ano, graças ao esforço louvável da estudante de jornalismo Jamyle Hassan Rkain; também há Paula Taitelbaum, que, em 2004 lançou Pornopoppocket; Delmo Montenegro e Joca Reiners Terron também se aventuram, com frequência, pela lira pornô. Para um apanhado geral sobre a produção pornográfica em língua portuguesa, recomendamos a leitura de Antologia pornográfica: de Gregório de Mattos a Glauco Mattoso, de Alexei Bueno, bem como de Antologia erótica da poesia brasileira, de Eliane Robert Moraes. Há, nessas duas antologias, muitos poetas que passaram ao largo dos cânones brasileiro e português, bem como outras faces de poetas canônicos.

Mafuá: O que inspira (momento da pergunta clichê!) vocês na hora da escrita? Algum poema tem uma história especial ou engraçada que tem que ser contada?

Diego & Zé Amorim: “O cu mais repercutido”, acreditamos, é o poema mais exótico, visto que, em um festival de tatuagem da Flórida, em 2012, uma jovem resolveu tatuar, ao redor da órbita anal, nomes de dois ex-namorados. Ou seja, era um mote especial, o poema estava pronto; Gregório e Bocage certamente não hesitariam em fazê-lo. De igual modo, tivemos a polêmica da virgem Catarina, que leiloou pela internet a virgindade. Isso nos leva à ideia inicial do Movimento Pornaso: fazer poemas com temas pornográficos do cotidiano, para quem não lê poesia costumeiramente, mas com elevado apuro linguístico. Às vezes, o mote surge de uma notícia, de uma entrevista, por exemplo de uma cafetina que, no programa do Jô Soares, revelou que os clientes do bordel que administrava estavam pagando o preço de um programa normal mas, na hora H, insistindo no sexo anal, o que gerou várias queixas por parte das moças que trabalhavam no estabelecimento. Buscar no cotidiano a inspiração para o poema pornográfico é prática já antiga, desde Catulus e Marcial, que dirigiam seus poemas a acontecimentos ou pessoas da sociedade romana. Por outro lado, também buscamos a paródia como forma de revaloração dos poemas, caso, de “Vou-me embora pro prostíbulo”, “O Pau-Brasil”, dentre outros. Há o dado histórico nesses poemas, mas também há a conversa apreendida na rua, a lembrança de um carnaval em Florianópolis, e tudo isso não escapa à lira pornasiana.

Mafuá: Dicas para os iniciantes, aqueles que querem experimentar a escrita pornasiana?

Diego & Zé Amorim: Primeiramente, é não ter limites. A arte deve poder dizer tudo, especialmente na época em que vivemos, de policiamento constante e censura aberta às manifestações artísticas voltadas ao erotismo. Como já mencionamos, ler muita poesia e, se for o caso de escrever em formas fíxas, estudar metrificação clássica. Igualmente importante é a leitura de textos teóricos que tenham como tema o erotismo e a sexualidade, dos quais destacamos o já citado O erotismo, de Georges Bataille; A dupla chama: amor e erotismo, de Octavio Paz; O que é erotismo, de Lucia Castello Branco; O que é pornografia, de Eliane Robert Moraes e Sandra M. Lapeiz; O prazer do sexo na antiguidade, de Vicki Léon; bem como os três volumes de História da sexualidade, de Michel Foucault. E trabalhar muito; poesia é artesanato, demanda tempo, revisão, paixão.

Mafuá: Vocês têm mais algum projeto em vista par ao Movimento Pornaso?

Diego & Zé Amorim: O Zé é compositor, tendo aproximadamente 20 canções compostas, inclusive uma versão musicada do poema “O Pau-Brasil”. Eu, como já referi anteriormente, publiquei em 2014 o livro de poemas Subúrbios, no qual se encontram poemas que distam da estética do Movimento Pornaso, e o Zé também escreve poemas em paralelo ao Movimento Pornaso, tendo poemas já publicados em antologias e revistas.

Mafuá: Ultimamente, como vocês têm divulgado o Movimento e sua produção? Além da publicação do livro, existe algum site ou blog através do qual os leitores interessados possam conhecê-los?

Diego & Zé Amorim: Além dos poemas publicados em revistas de literatura em meio digital, como Qorpus, Desenredos e Mallarmargens, e agora Mafuá (risos), costumávamos manter um blog com os poemas, mas retiramos do ar há algum tempo, por conta da publicação do livro. Temos também uma página no Facebook, mas já advertimos que não está atualizada. A divulgação ocorre, geralmente, em eventos na UFSC, pela internet ou mesmo de mão em mão. Por incrível que pareça, a universidade fornece mais espaço para a divulgação de poesia do que os suplementos literários supostamente “dedicados à literatura” (salvo o caso da revista Mallarmargens), mas conseguimos, em aproximadamente seis meses, vender sem deixar em livrarias mais de 200 exemplares, número relativamente grande se pensarmos no mercado da poesia brasileira.