Nunca te esqueças que venho dos trópicos: Clarice Lispector e uma cidade varada por berna

Marco Antonio Notaroberto da Silva

RESUMO

Este trabalho busca uma articulação entre o romance A cidade sitiada, de Clarice Lispector, escrito na Suíça de 1946 a 1948, e sua correspondência pessoal, especialmente a trocada com suas irmãs Tania Kauffman e Elisa Lispector durante o período. Tem como objetivo pensar a escrita da artista como algo orgânico e não apartado de seu momento no mundo, no entanto, a metodologia utilizada preza por uma leitura porosa quanto a questões autobiográficas e biográficas. Além disso, há o interesse em expandir o estudo do romance e da correspondência pessoal ao estudo de questões relacionadas a exílio, terra e desterro, que possam estar ali refletidas, esperando criar hipóteses e uma reflexão crítica sobre os temas.

PALAVRAS-CHAVE: A cidade sitiada. Clarice Lispector. Berne. Correspondência. Exílio.

ABSTRACT

This work searches for an articulation between Clarice Lispector’s novel A cidade sitiada [City under siege], written in Switzerland from 1946 to 1948, and her personal correspondence, especially with her sisters Tania Kauffman and Elisa Lispector, during the period. It aims to represent the artist’s writing as organic and not apart from its moment in the world, however, the methodology prizes for a porous approach on autobiographical and biographical questions. Furthermore, there is an interest in expanding the study of this novel and personal correspondence to the study of issues related to land and exile, hoping to create hypotheses and a critical reflection on the themes.

KEYWORDS: A cidade sitiada. Clarice Lispector. Berne. Correspondence. Exile.

Minto: ela era capim.
Rodrigo S.M.

Introdução

Tudo começa no espaço que em si reúne diferentes acepções, as mais comuns e as absolutamente paradoxais. Podemos pensar no espaço como o sideral, exterior e longínquo, que por definição é toda a área física do universo não ocupada por corpos e repleta de vácuo.

Ou, pensemos no mais íntimo a nós, humanos. O mundo segue existindo à medida que se erguem fronteiras para lotear o espaço e transformá-lo em lugares. Nos lugares o homem gera, em seu habitar, um relacionamento íntimo com a terra, fundando, nesse espaço humano, uma cidade, uma sociedade, uma cultura, uma nação.

O indivíduo habita intimamente o lugar e constrói, por toda a sua vida, um relacionamento tão poderoso que trata, como mãe, a terra. Tijolo após tijolo resulta em lar. Todavia, viver é muito perigoso e cheio de acidentes. Muros sobem e descem, mundos morrem, nascem e renascem e em meio a todo o caos humano a terra pode desaparecer. Daí apresenta-se o exílio, que vem munido de uma profunda sensação de orfandade.

Tal sensação é a que povoa a experiência da escritora Clarice Lispector em seus anos de vida na Suíça. Clarice vive em Berna de 1946 a 1949, momento em que troca intensa correspondência com amigos e familiares. Suas cartas pessoais, na maioria, transmitem o sentimento de desterro misturado ao de espera, a essência da inquietude.

A vida no estrangeiro, longe de tudo o que seu país representa, provoca em Clarice um “desenraizamento súbito”i, e é neste período que a artista se dedica à escrita de seu terceiro romance, A cidade sitiada, publicado no Brasil em 1949. De fato, Clarice Lispector escreveu dois romances enquanto vivia em terras estrangeiras. A cidade sitiada foi seguido por A maçã no escuro, iniciado na Inglaterra e finalizado nos Estados Unidos, cuja leitura não será abordada neste trabalho. Porém, tais romances iluminam uma lacuna na fortuna crítica da obra clariciana, a que se refere a sua literatura de exílio.

Há pouquíssimos trabalhos que leem estes romances pela perspectiva de literatura de exílio. O mais completo deles, dos quais tive conhecimento, foi o livro de Claudia Nina, A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector, publicado em 2003 pela Editora PUCRS. Neste estudo, Nina trata três de seus romances como literatura de exílio (“tronco exílico”): O lustre, A cidade sitiada e A maçã no escuro. Porém, optei por tratar como sua literatura de exílio somente A cidade sitiada e A maçã no escuro, posto que O lustre foi publicado enquanto Clarice já residia no estrangeiro, porém a sua maioria havia sido escrita ainda no Brasil.

No presente trabalho, esta hipótese – de uma literatura de exílio na obra de Clarice Lispector – se fundamenta a partir do estudo sistemático de sua correspondência, bem como surge da leitura de sua correspondência familiar, paralela à do romance A cidade sitiada. Percebo, em sua escrita, através da manifestação de inúmeras sensações, o phátos do exílio e, portanto, o corpus da pesquisa é composto por dois tipos diferentes da escrita de Clarice: a escrita do romance e a escrita epistolar.

O romance, A cidade sitiada, parece-me especialmente singular na obra da artista. Além de ter sido o primeiro escrito no estrangeiro, foi o último antes de um intervalo de quase dez anos que Lispector passou sem publicar. Anos que antecederam a seu maior fôlego produtivo: Laços de família, em 1960 e A maçã no escuro, em 1961.

Em 1960, Assis Brasil, crítico literário, comenta este panorama:

Clarice Lispector é ainda, praticamente, um nome desconhecido do público ledor brasileiro. Não só por ter passado quase dez anos sem publicar livro, como, e principalmente, por ter surgido em 1944 (Perto do coração selvagem) com algo novo em nossas letras, concebendo um romance que quebrava (e ainda hoje em primeiro plano) todos os padrões conformistas de nosso sempre velho e bolorento romance. Claro que se afirmando em livros subsequentes (O lustre e A cidade sitiada) – que fogem ainda hoje do status quo de nossa ficção – Clarice Lispector estava fadada ao esquecimento, a “desaparecer” momentaneamente, não só por ter se afastado do país, como, e principalmente por seus livros não terem alcançado grande repercussão. (ASSIS, 2012 [1960], p. 77)

Outra singularidade de A cidade sitiada está no fato de ser percebido pela crítica como um “estranho” na obra de Clarice Lispector, sendo o “único que teve sua segunda edição revista e corrigida pela autora, em 1964” (SÁ, 1999, p. 33).

À vista disto, me parece interessante tudo o que envolve a concepção deste romance – do início da escrita a sua publicação – e faz-se mister esclarecer que para este estudo considero como literatura de exílio, além de A cidade sitiada, a correspondência pessoal da escritora trocada durante o momento de sua elaboração, posto que a intenção é pensar o trabalho de Clarice Lispector, sua escrita epistolar e romanesca, como algo orgânico e não apartado de seu momento no mundo, com o interesse de perceber atravessamentos entre experiência e palavra.

O Arquivo de Clarice Lispector está sob os cuidados de duas instituições no Rio de Janeiro, a Fundação Casa de Rui Barbosa e o Instituto Moreira Salles. A correspondência pessoal destinada às suas irmãs, Elisa Lispector e Tania Kaufmann, encontra-se no acervo do Instituto Moreira Salles, no entanto a maioria foi publicada em livro, Minhas queridas de 2007, pela Editora Rocco.

Deste modo, a correspondência pessoal e o romance A cidade sitiada serão pensados lado a lado, almejando vislumbrar na escrita epistolar o processo de criação de substratos, úmidos das sensações provocadas pelos anos de exílio da escritora em Berna, que servem de matéria à sua narrativa. Porém, é importante salientar o meu desejo da não incorporação do biografismo ou da busca de justificativa da obra na biografia da artista. A biografia de Clarice Lispector, principalmente o seu momento de exílio, é fundamental para este trabalho, mas não é algo que será considerado como determinante para meu olhar sobre sua obra. Este caminho que sigo, preza por oferecer uma leitura de A cidade sitiada e da correspondência pessoal de uma forma porosa e fluida, a fim de doar energia vital ao romance e à sua personagem principal, Lucrécia Nevesii.

Terras de Berna

A questão do exílio em A cidade sitiada começa com a chegada de Clarice Lispector à cidade suíça de Berna em abril de 1946, após a remoção de seu marido que servia como vice-cônsul, em Nápoles, desde 1944iii. A esta altura, Lispector já era autora de dois romances. O romance de estreia, Perto do coração selvagem, escrito no Brasil e publicado em 1944, rendeu-lhe críticas, em sua maioria positivas, por sua linguagem inovadora no panorama da literatura brasileira até aquele momento.

Dentre os críticos que se manifestaram sobre o romance estava Antonio Candido, que dizia ser Perto do coração selvagem,

dentro de nossa literatura, uma performance da melhor qualidade. A autora – ao que parece uma jovem estreante – colocou seriamente o problema do estilo e da expressão. Sobretudo desta. Sentiu que existe uma certa densidade afetiva e intelectual que não é possível exprimir se não procurarmos quebrar os quadros da rotina e criar imagens novas, novos torneios, associações diferentes das comuns e mais fundamente sentidas. A descoberta do cotidiano é uma aventura sempre possível, e o seu milagre uma transfiguração que abre caminhos para mundos novos. (CANDIDO, 1944, s/p)

Sergio Millet apontaria o surgimento da obra de Clarice Lispector como

a mais séria tentativa de romance introspectivo. Pela primeira vez um autor nacional vai além, nesse campo quase virgem de nossa literatura, da simples aproximação; pela primeira vez um autor penetra até o fundo a complexidade psicológica da alma moderna, alcança em cheio o problema intelectual, vira ao avesso, sem piedade nem concessões, uma eriçada de recalques. (MILLIET, 1981, p. 30-32)

Tais críticas a aclamaram como um expoente literário logo em sua estreia, principalmente por tratar o aparecimento do romance como uma mudança de paradigma nas letras brasileiras, “uma experiência estilística muito séria”, caracterizaram seu modo de entrar “no cânone da história literária como ruptura (nitidez, brilho, destacabilidade) num horizonte baço.” (SOUSA, 2012, p.67). Fulgurante, esta estreia provocou no imaginário público uma aura de “figura mítica”iv (algo que perduraria até hoje), e o peso desta responsabilidade iria recair em seus ombros na forma de grandes expectativas por novos escritos brilhantes.

Seu segundo romance, O lustre, foi publicado no Brasil em 1945. As críticas não foram positivas como as de seu antecessor, deixando Clarice Lispector, já longe de seu país, abatidav. “A obra [foi] um tanto quanto ofuscada pela estreia do diplomata João Guimarães Rosa na literatura, com Sagarana, que captava a atenção da crítica”vi naquele momento, e teve pouca receptividade do público leitor.

Em 1946, Clarice começa a escrita de seu terceiro romance, A cidade sitiada, já instalada em Berna, onde morou por três longos anos. O mesmo tempo necessário para a execução da obra, publicada, no Brasil, em 1949, pela editora A Noite.

Os anos passados em Berna foram difíceis para Clarice Lispector principalmente pela ausência da família e de amigos, como também pela não adaptação à cidade, que descreveu como uma espécie de túmulo. Há, neste período, intensa troca de correspondências com uma variedade de escritores e intelectuais brasileiros, dentre eles Manuel Bandeira, Lucio Cardoso, Fernando Sabino e João Cabral de Melo Neto (os dois últimos vivendo fora do Brasil), nas quais a escritora toca em questões relacionadas à sua situação de estrangeira.

Posteriormente, Clarice retornará aos sentimentos de desolação da época de exílio em crônicas, algumas autobiográficas, publicadas no Jornal do Brasil entre agosto de 1967 e dezembro de 1973vii. Rememorando seu período em Berna escreve em Noite nas montanhas:

É tão vasta. Tão despovoada. A noite espanhola tem o perfume e eco duro do sapateado da dança, a italiana tem o mar cálido mesmo se ausente. A noite de Berna tem o silêncio. Tenta-se em vão trabalhar para não ouvi-lo, pensar depressa para disfarçá-lo. Ou inventar um programa, frágil ponte que mal nos liga ao subitamente improvável dia de amanhã. Como ultrapassar essa paz que nos espreita. Silencio tão grande que o desespero tem pudor. Montanhas tão altas que o desespero tem pudor. Os ouvidos se afiam, a cabeça se inclina, o corpo todo escuta: nenhum rumor. Nenhum galo. Como estar ao alcance dessa profunda meditação do silêncio. Desse silêncio sem lembrança de palavras. Se és morte, como te alcançar. […] Então, se há coragem, não se luta mais. Entra-se nele, vai-se com ele, nós os únicos fantasmas de uma noite em Berna. Que se entre. Que não se espere o resto da escuridão diante dele, só ele próprio. Será como se estivéssemos num navio tão descomunalmente enorme que ignorássemos estar indo. Mais do que isso um homem não pode. Viver na orla da morte e das estrelas é vibração mais tensa do que as veias podem suportar. Não há sequer um filho de astro e de mulher como intermediário piedoso. O coração tem que se apresentar diante do nada sozinho e sozinho bater alto nas trevas. (LISPECTOR, 1992, p. 129)

Na crônica A comunicação muda, Clarice Lispector toma a escrita de A cidade sitiada como um refúgio em meio à sua infeliz e silenciosa situação. Nesta ela narra que a salvação

da monotonia de Berna foi viver na Idade Média, foi esperar que a neve parasse e os gerânios vermelhos de novo se refletissem na água, foi ter um filho que lá nasceu, foi ter escrito um de meus livros menos gostado, A cidade sitiada, no entanto, relendo-o, pessoas passam a gostar dele; minha gratidão a este livro é enorme: o esforço de escrevê-lo me ocupava, salvava-me daquele silêncio aterrador das ruas de Berna, e quando terminei o último capítulo, fui para o hospital dar à luz o menino. Berna é uma cidade livre, por que então eu me sentia tão presa, tão segregada? Eu ia ao cinema todas as tardes, pouco me importava o filme. Naquela hora do crepúsculo, sozinha na cidade medieval, sob os flocos ainda fracos de neve – nessa hora eu me sentia pior do que uma mendiga porque nem ao menos eu sabia o que pedir. (LISPECTOR, 1992, p. 286)

Clarice experimentava tal sensação de desterro que fazia seu corpo todo ressonar a escuta do silêncio no exercício literário, tanto na escrita de correspondência quanto na do próprio romance. Porém, o lugar que Clarice Lispector escolheu para falar mais abertamente das agruras da vida suíça foi em sua correspondência familiar. Cartas trocadas com suas irmãs Elisa Lispector e Tania Kaufmann registram o momento de profunda insatisfação vivido pela artista e demonstram de forma clara como o seu exílio foi a integração entre corpo no mundo e a palavra, o experimentar em forma de rebentação na linguagem.

Mas para quem se escreve?

No entanto, antes de continuar o estudo direto da correspondência pessoal de Clarice Lispector e de seu terceiro romance, A cidade sitiada, vejo a necessidade de uma digressão que tem por objetivo consubstanciar o pensamento engendrado para a realização deste trabalho. Durante a pesquisa, a leitura de biografias da artista foi constante. Apesar das muitas que existem no mercado literário, decidi, por questões teóricas, trazer, para este trabalho, a de autoria do pesquisador estadunidense Benjamin Moser.

A razão pela escolha desta biografia em particular se deve ao fato de Moser salientar a questão do exílio na vida e na obra de Clarice Lispector, objetivando colocá-la em um panorama internacional. Há inúmeros estudos biográficos sobre a artista realizados por biógrafos brasileiros, porém tal questão não é amplamente mencionada.

Clarice, uma biografia (MOSER), foi lançado no Brasil, em 2009. No livro, que narra a vida da escritora brasileira, há alguns capítulos relacionados ao momento de escrita de A cidade sitiada, baseados em informações provenientes de seu Arquivo literário, que são interessantes para o pensamento que envolve a escrita deste trabalho.

Em sua análise de Lucrécia Neves, personagem principal do romance, o biógrafo afirma:

O nome Lucrécia esconde o nome da própria Clarice, e diferentemente de tantas personagens de Clarice, que são extensões ou enunciações dela mesma, Lucrécia é um verdadeiro alter ego, uma pessoa que pensa o mínimo possível e analisa menos ainda. Ao contrário da essencial e dolorosamente viva Clarice, Lucrécia atinge o ápice da matéria de mudez e ausência de reflexão.
[…]
Muito do que para Clarice era desgraça e exílio significava realização e paz para Lucrécia.
[…]
Na verdade, as observações maldosas espalhadas pelo livro, tão atípicas na escrita de Clarice, parecem refletir sua infelicidade, não a de Lucrécia. Quando ela escreve, por exemplo, que Mateus tinha “ar de advogado ou engenheiro – tal era o seu ar de mistério”, ela provavelmente está pensando nos advogados e diplomatas, os “best-sellers” que a rodeavam em seu exílio. Lucrécia, em contraste, em geral estava de bom humor. (MOSER, 2009, p. 262 e 263).

Há, nesses três excertos, a ideia da personagem irremediavelmente atada à sua criadora, algo que lhe confere uma existência empobrecida, de simples reflexo biográfico, e a reduz, pelas palavras de Moser, a um alter ego, a apenas uma extensão. Em razão disso, gostaria de fazer uma pequena visita ao ensaio Ficção e confissão, do crítico brasileiro Antonio Candido, publicado em 1955. Nele, Candido se debruça sobre a obra de Graciliano Ramos, escritor contemporâneo a Clarice Lispector, e tece considerações a respeito de seus livrosviii, incluindo os autobiográficos.

Diz Antonio Candido que Graciliano Ramos empresta emoções e experiências dele próprio para a criação de seus personagens, e afirma que Angústia é seu livro mais pessoal, pois não haveria outra maneira para explicar a “espontaneidade de criação, essa realidade de situações, esse desembaraço analítico com que [Graciliano Ramos] espia seu Luís da Silva.”. E prossegue dizendo:

Poder-se-ia talvez dizer que Luís é personagem criado com premissas autobiográficas; e Angústia, autobiografia potencial, a partir do eu recôndito. Mas no processo criador tais premissas (que cavam funduras insuspeitadas no subconsciente e no inconsciente) receberam destino próprio e deram resultado novo – o personagem –, no qual só pela análise baseada nos dois livros autobiográficos podemos discernir virtualidades do autor. (CANDIDO, 2006, p. 59)

Antonio Candido nos põe de frente a um “talvez” negado por Moser, assim como às “virtualidades do autor”. Conclui que Angústia contém muito de Graciliano Ramos, porém, o escritor não é Luís da Silva: “mas Luís da Silva é um pouco o resultado do muito que, nele [Graciliano Ramos], foi pisado e reprimido.” (CANDIDO, 2006, p. 61).

Ora, sendo o personagem Luís da Silva como um espelho dos recônditos de Graciliano Ramos, Antonio Candido ainda confere àquele uma dependência existencial e psicológica enraizadas profundamente na vida de seu criador. O que se aproxima, porém, de maneira mais sútil, à perspectiva de Moser que, no entanto, assume Lucrécia Neves como um reflexo direto do exílio de Clarice Lispector.

Levando seu ensaio a duas obras que abordam diretamente o relato da experiência de Graciliano Ramos, “seus livros pessoais” ou autobiográficos, Candido atenta para o fato de que

toda biografia de artista contém maior ou menor dose de romance, pois frequentemente ele não consegue pôr-se em contato direto com a vida sem recriá-la. Mas, mesmo assim, sentimos sempre um certo esqueleto de realidade escorando nos arrancos da fantasia. (CANDIDO, 2006, p. 70)

As críticas de Candido e de Moser sublinham dois pontos que gostaria de pôr em tensão: o da recriação da realidade e o do biografismo na obra literária. Moser nos oferece somente o biografismo, o meio e o momento, e o que sua influência provoca na experiência criadora da escritora Clarice Lispector, referindo-a sempre como uma consequência. O pensamento do biógrafo não promove uma cisão entre a vida da artista e sua literatura, algo que, por sua vez, ocorre ligeiramente em Antonio Candido à medida que o crítico admite, na escritura de uma realidade, a capacidade de recriá-la, ou seja, de ficcionalizá-la.

Porém, fica claro que, para Candido, a escrita de Graciliano Ramos está intimamente ancorada a um “esqueleto de realidade”, o qual assume, no decorrer do ensaio, um estatuto de verdade.

Referindo-se a Graciliano Ramos e à escrita de Memórias do cárcere, discorre Antonio Candido:

Isto nos leva a pensar numa das suas qualidades fundamentais: respeito pela observação e amor à verdade. Como escritor, era compelido por força invencível a registrar os frutos da observação segundo os princípios da verdade. (CANDIDO, 2006, p. 81)

Eis o ponto nevrálgico de toda esta discussão: a verdadeix.

Até que ponto posso considerar elementos de uma obra literária coerentes com uma biografia ou com a verdade? De fato, o que é uma verdade? Até que ponto é permitido afirmar sobre experiências alheias analisando, apenas, o que delas foi escrito?

Por razão deste questionamento, seguirei por um terceiro caminho buscando me distanciar da chave de leitura de Moser e de Candido, e pretendendo alargar tal perspectiva estática da obra literária escorada na biografia do autor. Para isso, entendo que a escrita “está atualmente ligada ao sacrifício, ao próprio sacrifício da vida; apagamento voluntário que não é para ser representado nos livros, pois ele é consumado na própria experiência do escritor.” (FOUCAULT, 2009a, p. 268 e 269). Percebo que a escrita de six coloca o indivíduo em uma espécie de estado de renúncia íntima, quando o mais importante não é exclusivamente aquilo que se é, mas aquilo que se escolhe ser perante o outro. A produção literária não se assume como um momento de terapia do escritor, mas como um lugar onde ele se recolhe para estimular a percepção do seu arredor sem nenhum compromisso estreito com alguma lei de verdade.

Assim, a principal proposta deste trabalho é considerar o relato autobiográfico, especialmente a escrita de correspondência, uma fabulação.xi Segundo Deleuze, escrever “é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida. É um processo, ou seja, uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido. A escrita é inseparável do devir.” (DELEUZE, 1997, p. 11, grifo meu).

Em sua correspondência pessoal Clarice Lispector apresenta apenas uma de suas faces. É importante pensar em um “duo clariciano”, composto por Clarice Lispector seguida de seu devir-outro: a Clarice Lispector escritora de si; e conferir a ambas um certo grau de emancipação.

Só é possível tocar em seu devir, ou seja, nas escritas impregnadas pela função fabuladora que “não consiste em imaginar nem em projetar um eu” (DELEUZE, 1997, p. 13) exclusivamente verídico. Há, em sua correspondência pessoal, uma potência impessoal que se abre a quem a lê. E é desta potência que emergem afecções às mais variadas sensibilidades, assim como dela surgem os atravessamentos de vida em uma literatura.

Por conseguinte, este estudo privilegia a escrita exilada – epistolar e romanesca – da artista e não seu exílio propriamente. Na leitura da correspondência pessoal, busco fazer um levantamento de sensações atravessadas pelo sentimento de exílio e perceber como tais sensações manifestam-se plasticamente no romance.

Suas cartas trazem luz a um reduto de imaginários. Imaginários que o próprio escritor tem de si mesmo. Imaginários que servem como um laboratório experimental da própria matéria literária, ao abordar e discorrer, tecendo escrituralmente, sobre temas prenhes de sensação.

O exílio clariciano

Haia Pinkhasovna Lispector nasce em 1920, no exílio. A menina, filha de russos, vem ao mundo em Tchetchelnik, uma aldeia ucraniana, durante o percurso de imigração de sua família para a América, devido às sucessivas guerras e à perseguição antissemita perpetrada na Rússia durante a Revolução Bolcheviquexii.

Clarice Lispector, no entanto, nasce no Brasil, mais especificamente no Nordeste, em Recife, terra onde foi criada. Sobre isso, escreve em A descoberta do mundo:

Criei-me no Recife, e acho que viver no Nordeste ou Norte do Brasil é viver mais intensamente e de perto a verdadeira vida brasileira […] Fiz da língua portuguesa a minha vida interior, o meu pensamento mais íntimo, usei-a para palavras de amor. Comecei a escrever pequenos contos logo que me alfabetizaram, e escrevi-os em português, é claro. (LISPECTOR, 1992, p.345)

O exílio político vivido por Haia, provocado pela diáspora judaica na Rússia, não será abordado aqui diretamente. É interessante pensar o exílio voluntário de Clarice Lispector, ocasionado pelo casamento, em 1943, com Maury Gurgel Valentexiii, como primeiro e único em toda a sua potência.

Contudo, o exílio, seja lá qual for, é “uma fratura incurável entre o ser humano e um lugar natal, entre o eu e seu verdadeiro lar” (SAID, 2003, p.33)xiv. Desta fratura surgem dois sentimentos largamente opostos: a dor da perda e o entusiasmo pelo desafio de adaptação.

Para a sobrevivência do corpo no exílio a dor precisa ser soterrada pelo entusiasmo. Os desafios da vida em novas fronteiras acabam por provocar no estrangeiro uma anestesia do sentimento de perda e assim ocorre o desenraizamento, gradual e exponencial, até se chegar ao necessário esquecimento ou à transformação da memória afetiva em lembranças.

Todo o “páthos do exílio está na perda de contato com a solidez e a satisfação da terra” (SAID, 2003, p.38), e sua superação está intimamente ligada a um virar as costas à terra natal culminando em um matricídioxv. O matricídio é a reação de apagamento. O estrangeiro, pensado em termos de poder político e de direitos legais, é tocado pelo sentimento de deslocamento referente à perda espacial, o que o impele a olhar para a sociedade nativa como um corpo homogêneo estranho e ameaçador.

O abismo entre o estrangeiro e todos os componentes da terra estranha o impede de se integrar e de consequentemente possuir direitos, surge daí o desejo de apagamento da origem que vem, por sua vez, de um desejo maior de pertencimento que move o estrangeiro sempre em direção à criação de novas raízes sócio-políticas no espaço do outro. Porém, o ato de desligar-se do útero é gerador de angústia, outro tipo da mesma dor inicial de corte, e de uma dura indiferença a tudo que o rodeia em seu novo ambiente, incluindo as pessoas com quem convive. Essa dura indiferença, de acordo com Kristeva, “talvez seja somente a face confessável da nostalgia. Conhecemos o estrangeiro que chora eternamente o seu país perdido. Enamorado melancólico de um espaço perdido, na verdade, ele não se consola é por ter abandonado uma época de sua vida.” (1994, p. 18).

No caso de Clarice Lispector, as linhas do exílio não são assim tão retas. A escritora não opera o matricídio justamente porque aguarda impacientemente o retorno ao seu país de origem e a tudo o que ele representa, e mesmo mantendo-se ligada de alguma maneira ao útero de sua terra, a experiência torna-se ainda mais angustiante pelo simples fato de não estar lá.

Aí está a diferença crucial entre o exílio voluntário e o exílio político. Ambos compreendem todas as características de perda inerentes ao termo, porém o segundo configura que a volta ao lar está fora de questão enquanto que o primeiro deixa uma porta entreaberta, tornando assim mais difícil sua superação e a integração espacial e psicológica do indivíduo. A necessidade de controle que subjuga o exilado diante de seu estado de perda desorientadora exige dele a criação de um novo mundo. No papel de demiurgo, o exilado produz um espaço à parte de sua realidade, o qual é “logicamente artificial.” (SAID, 2003, p.39). No caso de escritores, este outro lugar se dá na própria escrita em movimento constante.

Em seu período de exílio em Berna, Clarice escreve, além de A cidade sitiada, inúmeras cartas à Elisa e Tania. A escritora se refugia no ventre de sua língua e pede incessantemente às irmãs que fortaleçam o laço que a traz de volta para o seio de sua família no outro continente. A importância vital da correspondência para o exilado se torna clara em seu caso. A escrita de seu terceiro romance era algo que não satisfazia totalmente a sua necessidade de refúgioxvi. Como Dante, que escreveu A divina comédia em seu exílio de Florença, escrever na língua natal era, para Clarice, “um meio de se dar um universo no momento mesmo em que o lugar próprio lhe faltava.” (KRISTEVA, 1994, p. 112).

Clarice diz em cartas:

Vocês nunca experimentaram o que é receber cartas quando se está fora, sobretudo fora como eu, inteiramente fora: pergunta-se sem esperança, mas cheia de esperança e quase certeza: há cartas para mim?xvii
Eu aprendi uma sensação nessa minha vida fora às vezes eu me sinto como se fosse receber carta […] Com o esforço de esperar através do mundo inteiro a carta que não vem, parece que afinal eu me ponho em contato com vocês através da distância.xviii
Peço que se tiverem tempo me escrevam. O dia de receber carta é um dia glorioso, toda Berna sacode as asas de alegria.xix

Ora, toda a carta recebida necessitava de uma outra em resposta! E assim Clarice passa os anos sempre à espera do contato natal de que tanto precisa. Na correspondência familiar deste período não são raras suas reclamações referentes à ausência de recebimentos frequentes. A carta datada de 30 de junho de 1946 inicia-se assim:

Queridas, sem nenhuma carta para responder, de novo. Mas escrevoxx. A última carta recebida foi no dia vinte, data de 15. Receio muito que vocês estejam me esquecendo. Me arquivaram depressa demais. De minha prisão em Berna, mando-lhes minhas lembranças comovidas…

A correspondência se torna única quando “nos faz participar dos diferentes estados, mesmo dos estados da alma (e do corpo) daquele que a escreveu” (DIAZ, 1999, p. 13), e Clarice transmite em linhas todo o sentimento de incompletude vivido naquele momento, que suplementaxxi, sem dúvida, o seu trabalho. O que busco perceber na leitura da correspondência de Clarice às irmãs, em especial à Tania, é a experimentação deste novo mundo de sensações, oferecidas ou desenvolvidas pelo exílio, através da escrita.

Desta maneira, a intensa escrita de cartas que rodeia a gênese de A cidade sitiada se revela também como um lugar interessante para o “laboratório criativo”. (DIAZ,1999, p. 14, apud ROSSUM – GUYON, 1991, p. 97-104). As cartas expõem de forma clara sua complicada relação com a escrita do romance e observam, em suma, o seu enredo e a construção das personagens, os quais estão emaranhados de emoções lúgubres.

Na carta datada de 22 de outubro de 1947, Clarice diz a Tania:

Estou com o livro por assim, terminado. Deus sabe que ele não vale nada, querida. Creio que nuns dois meses posso dá-lo por encerrado. Acontece que vou encerrá-lo porque já tenho nojo dele. Foi o trabalho que mais me fez sofrer. Já são três anos que viro e mexo, abandono e retorno. E faz apenas uns 3 meses que sei afinal o que estava querendo dizer nele…. Esse livro foi mil vezes copiado, destruído, renascido, sei lá. Um dia desses, pegando numa das cópias mais recentes me deu náusea física à medida que me lembrava de como sofri por cada pedaço daquele e de como depois eu via que não prestava. Tive que não pensar nele durante dias – porque persistia em mim esse curioso nojo da dor. Enfim, querida, o livro não presta.

Ainda, na mesma carta, reitera sobre seu período como estrangeira em Berna:

Não evoluí nada, não atingi nada. Continuo com os pés no ar, continuo vaga e sonhadora, deslocando de algum modo todo o sentimento da vida. […]. Em todo esse período de 3 anos, desempenhou grande papel minha desadaptação.

Tais declarações sobre sua desadaptação e vaguidão serão vislumbradas principalmente na protagonista Lucrécia Neves e na personagem-cidade de São Geraldo. Tanto a mulher quanto a cidade são sonambúlicas e estéreis. O estado de sono, o exílio, o sentimento de desenraizamento e suas consequências são algumas das sensações encontradas abundantemente nas cartas e que atravessam todo o romance.

Enfim, em 1949, A cidade sitiada é publicado no Brasil. Por coincidência, no mesmo ano em que Clarice Lispector retorna a sua terraxxii. Assumidamente é seu livro menos gostado, o que lhe confere o status de cicatriz no corpo de sua literatura. Cicatriz que o sublinha como um ponto fora da curva em toda a obra clariciana que é largamente conhecida por seus personagens monológicos, profundos e epifânicos. Em meio a toda a produção da escritora, jaz Lucrécia Neves como o avesso, como a oca, como a rasa. Afinal, uma estrangeira.

A personagem acompanhou de perto o exílio de Clarice. Melhor dizendo, Lucrécia Neves, estrangeira em sua própria terra, vem a ser o próprio pathos de insatisfação do exílio geográfico desdobrado em um outro tipo: o exílio de si.

O exílio lucreciano

Em carta enviada a Tania, datada de 26 de janeiro de 1949, ano em que A cidade sitiada é publicado no Brasil, Clarice escreve:

Ando em nova onda de apatia, o que é coisa velha… Chego a pensar que nem a volta ao Brasil me dará um jeito. Mas sonho com ela. Em agosto teremos 5 anos no exterior. Não são cinco dias. Cinco anos de não saber o que fazer, cinco anos durante os quais, dia a dia, me perguntei como pergunto a vocês: que é que eu faço? Para vocês terem uma ideia do que tem sido minha vida durante esses anos: para mim todos os dias são domingo. Domingo em São Cristóvão, naquele enorme terraço daquela casa. A pessoa, individualmente perde tanto de sua importância, vivendo assim, fora, em ócio. A vida começa a parar por dentro, e não se tem mais força de trabalhar ou ler. Só chaleira fervendo é que levanta a tampa. A Europa é o mundo, é da Europa que ainda saem as melhores coisas. Eu não conheço ninguém e me sinto esmagada por essa entidade abstrata que não consegui concretizar em nenhum amigo. Berna é um túmulo, mesmo para os suíços. E um brasileiro não é nada na Europa. A expressão mesmo é: estar esmagada. (LISPECTOR, 2007, p.210, grifos meus)

Nesse trecho, em que Clarice expõe à irmã sua vida apática em Berna, sublinho duas frases: a primeira interrogativa, “que é que eu faço?”; a segunda afirmativa, “E um brasileiro não é nada na Europa.” A partir delas começo a perceber onde estão situados Lucrécia Neves e o subúrbio São Geraldo, os protagonistas do romance, em meio a sensação de desadaptação da escritora. Ambas as personagens estão justamente entre a pergunta do que se fazer e a afirmação do que não se é. De fato, toda a hipótese deste trabalho, no que diz respeito às nuances do exílio, partindo do exílio geográfico (exterior) e chegando ao exílio de si (interior), orbitam ao redor dessas duas frases que expressam, escrituralmente, percepções e/ou sensações de um mundo ao redor.

Com efeito, penso em Lucrécia Neves e na cidade ficcional de São Geraldo como figuras do entre-lugar. A personagem, uma mulher suburbana e pequeno burguesa, acaba sendo levada continuamente, durante todo o romance, a um outro lugar. Movimento como este aparece, claramente, em seu anseio pelos passeios no Morro do Pasto, região rural que margeia o subúrbio:

Talvez chamada pelo começo de visão que tivera da janela do Convento, na segunda-feira a moça procurava o outro passeio de São Geraldo: o riacho. Atravessava a Cancela e os trilhos, descia depressa o declive espiando os pés. Por um instante imobilizada parecia refletir profundamente. Embora não pensasse em nada. E de súbito, irreprimível, seguia o rumo contrário – subia o Morro do Pasto, cansada com a própria insistência. […] Apesar do céu alto o ar era tempestuoso e, às vezes incontido, arrastava com violência um papel ou uma folha. As latas e as moscas não chegavam a povoar o descampado. À essa hora do dia pisavam-se ervas ardentes e não subjugaria com o olhar a aridez e o vento do planalto – uma onda de poeira se erguendo ao galope de um cavalo imaginário. A moça esperava paciente. Que espécie de verossimilhança viera procurar no morro? Ela espiava. Até que o cair da tarde fosse acordando a piscante umidade que o entardecer levita no campo. E a possibilidade de rumor que a escuridão favorece. (LISPECTOR, 1949, p. 19 e 20, grifos meus)

“Que espécie de verossimilhança viera procurar no morro?”, se pergunta o narrador. O Morro do Pasto é o espaço além da cancela, que precisa ser continuamente atravessada por Lucrécia Neves. Parece-me que todo o deslocamento da personagem oriundo da vontade de fugir do subúrbio – vontade esta que a leva ao Pasto e, depois de casada, à metrópole – vai mesmo em direção a uma afirmação de se estar em um entre-lugar, pois não há em lugar algum, nem em si mesma, o sentimento de pertença. Sendo assim, percebo Lucrécia como portadora de uma identidade sempre “à beira”. A ausência de uma origem segura, firme e estática, com grossas raízes presas à terra, a deixa amorfa e sem interior, a ponto de “sem sentir a moça tom[ar] a forma que um homem percebera nela.” (LISPECTOR, 1949, p. 39). A personagem é exilada de si pela própria incompreensão do que se é e do que fazer consigo mesma, resultando assim em alguém que pode ser tudo, mas, ao mesmo tempo, nada.

O mesmo aparece na figuração de São Geraldo como um subúrbio na década de 20. Este entre-lugar geográfico, demarcado entre o Morro do Pasto e a metrópole, entre o progresso e o não-progresso, está, consequentemente, em sítio como forma de proteção. Em carta a Tania, Clarice expõe a necessidade da cidade de São Geraldo ser figurada como um subúrbio:

Também o fato de eu chamar São Geraldo de subúrbio, vou estudar. Você tem razão, mas creio que vai ser difícil de mudar, porque teria que mudar outras coisas também. Mas vou ver ainda. Mas vejo que você entendeu bem o que eu queria pelo fato de você na carta ter falado em “cidadela”. (LISPECTOR, 2002, p.178)

Clarice, retoma a sensação de se “viver na Idade Média” (LISPECTOR, 1992, p. 286) concebendo São Geraldo como uma fortificação, que exilaria dentro de si todos os seus cidadãos, uma cidadela. Porém, o subúrbio não retrataria ou descreveria a cidade suíça de Berna. São Geraldo é o outro lado, o avesso concreto, de qualquer pensamento relacionado a qualquer Europa. Ao menos, enquanto figurado como subúrbio.

No decorrer do romance ocorre continuamente o processo de metropolização do subúrbio e, ao fim, há a construção do viaduto que liga São Geraldo, já modernizada, ao Morro do Pasto. A cidade, que ganha agora uma nova identidade de metrópole, está “prestes a mudar de nome, diziam os jornais.” (LISPECTOR, 1949, p.165).

Isto faz Lucrécia, que não se tornou algo como São Geraldo, migrar. Nos dois últimos parágrafos do romance, a nascente metrópole é descrita melancolicamente com seu viaduto, sua ponte levadiça e seu subterrâneo a ser desbravado, demarcado, iluminado:

Fora levantado o sítio de São Geraldo. Daí em diante ele teria uma história que não interessaria mais a ninguém, largado às suas sérias subdivisões às penas de multa, às suas pedras e bancos de jardim, avarento de quem em punição ninguém mais cobiçasse os tesouros. Seu sistema de defesa, agora inútil, mantinha-se de pé ao sol, em monumento histórico. Os habitantes o haviam desertado ou dele desertado seus espíritos. Embora também ficassem entregues à liberdade e à solidão. Se se abaixara a ponte levadiça, pelo viaduto Almeida Bastos ninguém mais se lembrava de atingir a antiga fortaleza, o morro. De onde os últimos cavalos já tinham emigrado, entregando a metrópole à glória de seu mecanismo. Quem sabe – como diria Lucrécia Neves – um dia São Geraldo teria linhas de trens subterrâneos. Parecia ser este o único sonho da cidade abandonada.

A viúva mal tinha tempo de arrumar as trouxas e escapar. (LISPECTOR, 1949, p. 166)

O viaduto, que possui em seu nome dois sobrenomes, um excesso abusivo de identidade, pontua, em certa medida, a questão do progresso. E a personagem que não acompanhou tal linha teleológica parece, na última linha do romance, incorporar em si alguma forma de resistência. Assume continuar existindo como um entre-lugar, e decide escapar antes que seja engolida pela metrópole.

Entretanto, percebo que a maioria das sensações que atravessam A cidade sitiada são letárgicas. Toda a vida da protagonista Lucrécia Neves gira em torno de um não-fazer, de ser levada pela vida ao sabor das circunstâncias, até tomar a decisão final de não-ser ou de não se tornar algo estático, enraizado. A letargia, que incorpora esse tipo de despertar súbito e momentâneo, também aparece nas cartas de Clarice.

Procuro evidenciar algumas destas sensações nas duas escritas, a epistolar e a romanesca, e lê-las lado a lado para pensar sobre as suas manifestações e desenvolvimentos. O método que tomo por base para desenvolver as duas próximas subseções (4.1 e 4.2) está em Littérature et sensation: Stendhal/Flaubert, de Jean-Pierre Richard. Richard lê os romances de Flaubert paralelamente à sua correspondência pessoal detectando nela sensações que são plasticamente trabalhadas nos romances. Acusado pela crítica de psicologismo, devido a um outro livro (L’univers imaginaire de Mallarmé) no qual usa este mesmo método, Richard é defendido por Foucault em um ensaio datado de 1964, O Mallarmé de J.-P. Richard. Foucault percebe no método de Richard não um psicologismo, mas um itinerário no labirinto de textos ligados a um nome, ou seja, a um autor.

Diz Foucault que

essa massa documentária da linguagem imóvel (feita de um maço de rascunhos, fragmentos, rabiscos) não é apenas um acréscimo ao Opus, como uma linguagem circunvizinha, satélite e balbuciante, destinada apenas a melhor fazer compreender o que é dito no Opus; não é dela a exegese espontânea; tampouco um acréscimo à biografia do autor, permitindo descobrir seus segredos, ou fazer surgir uma trama ainda não visível entre a ‘vida e a obra’. O que emerge de fato com a linguagem estagnante é um terceiro objeto, irredutível. […] É fácil criticá-lo [Richard] em nome das estruturas ou da psicanálise. Porque seu domínio não é nem o Opus nem a Vie de Mallarmé, mas aquele bloco de linguagem imóvel, conservado, jacente, destinado não a ser consumido, mas iluminado – e que se chama Mallarmé. […] O Mallarmé que Richard estuda é, portanto, exterior à sua obra, mas de uma exterioridade tão radical e pura que ele não passa do sujeito dessa obra; ele é sua única referência; mas só tem ela como conteúdo; ele só mantém relação com essa forma solitária. (FOUCAULT, 2009b, p. 185-187)

Assim, sigo por esta perspectiva de leitura, retomando o pensamento exposto na seção 2 deste trabalho, que toca na não projeção de um Eu exclusivamente verídico na escrita, tanto epistolar quanto romanesca, e traz consigo o conceito deleuziano de fabulação.

Como diz J.P. Richard, na introdução de seu livro sobre os escritores franceses,

a obra não foi aqui considerada como uma mensagem ou resíduo, como a simples tradução de alguma meditação interior ou como o traço meio apagado de qualquer inefável êxtase. A escrita faz parte também da experiência mais íntima; ela desposa suas estruturas, mas é para modificá-las, revertê-las. (RICHARD, 1954, p. 12).

Busco perceber nesta parte da literatura de exílio de Clarice Lispector, A cidade sitiada e a sua correspondência nos anos de elaboração do romance, o mesmo.

Exílio, desenraizamento e apatia

Quando abrimos um livro e olhamos para baixo, vemos as letras enfileiradas, as palavras em ordem formando frases encarregadas de serem legíveis, de doarem algum sentido. A todos os componentes da página, da primeira letra do capítulo até o número que as ordena, são atribuídas funções para a construção de um todo: o livro.

Nada mais análogo a uma cidade que um livro. Se estivéssemos acima, afastássemos as nuvens e nos aproximássemos, com os olhos, de uma cidade veríamos as pessoas como as palavras. Cada qual em seu lugar, cada qual com uma função e significado. Trabalhando, trabalhando, trabalhando… Ou não.

A cidade sitiada é desconfortável. O esforço de sair do cerco pesa sobre ela. Seus cidadãos estão ali, amalgamados à sua solidez, rodeando-a até escaparem. Há vários tipos na cidade, porém dois estão olhando pela janela com a cabeça para fora. Um homem chamado Perseu e uma mulher chamada Lucrécia. Quem são eles? São o desconforto.

Perseu não parecia sentir mais do que sua própria harmonia, porque “este era o seu grau de luz. Não importa que na luz fosse tão cego como os outros na escuridão. A diferença é que estava na luz.” (LISPECTOR, 1949, p. 23). Lucrécia era de uma natureza que parecia

não ter se revelado: era hábito seu inclinar-se falando às pessoas de olhos entrefechados – parecia então com o próprio subúrbio, animada por um acontecimento que não se desencadeava. A cara inexpressiva a menos que um pensamento a fizesse hesitar. Embora não fosse esta possibilidade de espírito e doçura que ela aproveitava. (LISPECTOR, 1949, p. 28)

O homem, “moroso e cheio de sol”, estava na cidade. A mulher entrefechada, no escuro, estava na cidade. Ambos imitavam o decorrer do tempo em São Geraldo, mas a mulher o imitava mal, naufragando em seu exílio: “Ela era dessas pessoas estrangeiras que diziam ‘no meu país é assim’.” (LISPECTOR, 1949, p. 35). Mas, qual país?

Perseu e Lucrécia tinham em comum a terra, porém mais nada. Perseu era o que Lucrécia não conseguiu ser; era parte de algo. Após uma tentativa de romance frustrada, ela, casada com um forasteiro, pronta para ir embora, dele se despede chamando-o de irmão. Mais tarde retornaria ao subúrbio, assustada pela metrópole que não era o que deveria ser. A metrópole era violenta com Lucrécia, pois não era direta como ela. E desnorteada pelo seu desenraizamento súbito, tinha esperança de que em São Geraldo ainda a “rua fosse rua, igreja igreja, e até cavalos tivessem guizo”. (LISPECTOR, 1949, p. 111). Mas perdeu o tempo, não alcançou. São Geraldo inquietara-se e Lucrécia o temia também:

São Geraldo não estava mais no ponto nascente, ela perdera a antiga importância e seu lugar inalienável no subúrbio. Havia mesmo planos para a construção de um viaduto que ligaria o morro e a cidade baixa… os terrenos do morro já começavam a se vender para futuras residências: para onde iriam os cavalos? (LISPECTOR, 1949, p. 119)

O desarranjo da cidade moderna, onde as coisas não parecem o que são, abandona a mulher, sempre a espiralar, a procura de algo. Seu “espirito tosco” não consegue assimilar progressos e deseja sempre estar tocando o arcaico, a natureza bruta. Que desvanece.

Lucrécia somente via, “tudo o que Lucrécia Neves podia conhecer estava fora dela”. Permanece exilada de si como uma coisa. E “quando uma coisa não pensava, a forma que possuía era seu pensamento.” (LISPECTOR, 1949, p. 57). Sem pensamento, esta mulher é apática. Toma a forma que as pessoas percebem dela e para ela está tudo muito bem.

Tais sensações que permeiam o romance passam também pela correspondência de Clarice Lispector. A escritora em exílio está desconfortável. Diz para Tania, sua irmã, que está cansada de “tentar pelo pensamento sair fora da vida que [leva] que não [tem] gosto nem forças para trabalhar.” (LISPECTOR, 2007, p.134):

Desde que saí do Brasil para ir a Nápoles, desde que fui a Belém, minha vida é um esforço diário de adaptação nesses lugares áridos […] Desde então não tenho cabeça para mais nada, tudo o que faço é um esforço, minha apatia é tão grande, […] faço tudo na ponta dos dedos, sem me misturar a nada. Vai fazer três anos disso, três anos diários. (LISPECTOR, 2007, p.159)

A respeito do livro que escreve sobre a cidade e sobre Lucrécia, conta: “Meu livro está encostado. Já não sei chegar até ele. Abandonei ele muitas vezes demais, e agora precisaria revivê-lo todo para transformá-lo.” (LISPECTOR, 2007, p.135).

Sono, inércia e tédio

No início, o tempo do romance é o tempo do sono, o não-tempo.

Mal acabara de falar o relógio da igreja bateu a primeira badalada, dourada, solene. O povo pareceu ouvir um momento o espaço… O estandarte na mão de um anjo imobilizou-se estremecendo. Mas de súbito o fogo de artificio subiu e espocou entre as badaladas. A multidão, tocada do sono rápido em que sucumbira, moveu-se bruscamente e de novo rebentaram os gritos no carrossel. (LISPECTOR, 1949, p. 07)

A narrativa começa em uma celebração municipal ao padroeiro da cidade, São Geraldo. A festa aparece como um antigo ritual pagão onde uma fogueira gigante, ao centro do largo da igreja, dança bruxuleante aos olhos do povo que como mariposas atraídas por sua luz viva a rodeiam hipnotizados e avermelhados.

Porém, na cidade com nome de santo, Dioniso está ausente. “Sonolentas, obstinadas, as pessoas se empurravam com os cotovelos até fazerem parte do círculo silencioso que se formara em torno das chamas.” (LISPECTOR, 1949, p. 07).

O povo de São Geraldo é sonolento. A sensação é de se estar, ainda, em um terreno neutro onde não existe pressa, nem horas marcadas. A percepção do tempo no romance caminha junto com a não adequação ao espaço, por isto o tempo não adquire muita importância e os dias podem parecer anos ou anos podem parecer dias.

A escritora experimenta o peso do tempo em Berna. Conta em carta para Tania que “os meses passam depressa, felizmente. Os dias às vezes é que não passam.” (LISPECTOR, 2007, p.123). E ainda sobre a Suíça, reflete:

A Suíça é sólida e quando a gente abre os olhos de manhã sabe que ela está ali onde se deixou. Não tem o caráter de terra magnânima como a Itália, por exemplo, ou a França, onde as coisas são espontâneas e variadas que terminam dando certa confusão ao ambiente; aqui cada coisa tem seu lugar, há silencio e dignidade. Dignidade excessiva às vezes; Lausanne já é diferente de Berna; as pessoas têm o ar mais vivo, se olham mais, a cidade é mais larga e parece mais jogada. Enquanto Berna parece que foi recortada… (LISPECTOR, 2007, p.132)

Com sono está Lucrécia. Em sua inércia a “moça não tinha imaginação, mas uma atenta realidade das coisas que a tornava quase sonâmbula; precisava de coisas para que estas existissem.” (LISPECTOR, 1949, p. 34). O barulho de seus bocejos ecoa por toda sua história. Após sua quase epifania, seu único momento perigoso, “Lucrécia Neves bocejou livremente tantas vezes seguida que parecia uma louca, até se interromper saciada.” (LISPECTOR, 1949, p. 65).

O sono, a inércia e o tédio transformam São Geraldo em um eterno domingo, silencioso e opaco, que leva os personagens sempre a um desejo maior de sono, sempre a um oposto do viver. Ai! Que preguiça! …

“O subúrbio de São Geraldo, no ano de 192…” parece um filme mudo em preto e branco e em câmera lenta, como num sonho de Lucrécia contado a Perseu:

– Esta manhã eu estava dormindo – disse ela de repente como uma criança – quando uma coisa me acordou, mas depois fui adormecendo e sonhei que alguém dava a cada pessoa o sono perdido, para a gente recuperar, sabe? Então me perguntava se para mim era mil ou dois mil anos de sono, aí eu dizia dois mil, então me fechavam de novo os olhos e aí eu… (LISPECTOR, 1949, p. 95)

Espreguiça-se, abre-se a boca e se volta a dormir. A cidade, despertada ao final como um monstro mecânico, age como um raio, um lampejo em meio a profunda exaustão. Mas, após a fuga em busca de refúgio, o que assola é a normalidade. E, da janela se veem os flocos de neve caindo vagarosamente, e tudo é mágico, estranho e sem prazer.

Considerações finais

Assim, através das sensações que emergem de sua correspondência, a artista nos deixa perceber de uma outra maneira, por uma fissura não exclusivamente biográfica, a construção do subúrbio de São Geraldo em pleno processo de metropolização, bem como a construção de seus habitantes sitiados. Parece-me que o páthos do exílio está sempre a espiralar quando se trata do romance e de sua escritura em Berna. Todas as sensações provocadas pelo sentimento de desterro da artista e plasticamente trabalhadas em seu primeiro romance em exílio, assim como todas as referências em sua correspondência pessoal aos efeitos que a ausência da terra natal impõe aos exilados, transbordam.

Justamente por isso, Clarice traz algo novo a sua obra com A cidade sitiada: uma protagonista não monológica e, decididamente, não epifânica, exilada das outras pertencentes a constelação clariciana, o que descortina novas discussões e leituras para uma obra tão lida e relida quanto a sua. Lucrécia é a surpresa! Seu brilho e sua importância residem em seu nascimento na solidão vasta e densa de um exílio, onde foi desdobrada em meio a sentimentos trágicos e tenebrosos.

A cidade sitiada, talvez, tenha seu sentido radicalizado em A hora da estrela. A pequena, poderosa e derradeira novela, que também configura a incompreensão e a solidão de um exílio amplo e profundo, conseguiu, por crítica e público, o pleno abraço não recebido pelo romance ainda congelado em terra neutra, isolado em nossas letras.

Referências

BRASIL, Assis. A volta de Clarice Lispector contista. Tribuna da imprensa, rio de janeiro, 20-21/08/1960. In: SOUSA, Carlos Mendes. Clarice Lispector. Figuras da escrita. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles, 2012.

CADERNOS de literatura brasileira. Clarice Lispector. Números 17 e 18. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles, 2004.

CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão. In: CANDIDO, A. Ficção e confissão: ensaios dobre Graciliano Ramos. 3ª Ed. revista pelo autor. Rio de Janeiro: Editora Ouro sobre Azul, 2006.

CANDIDO, Antonio. Notas de crítica literária: Perto do coração selvagem. Jornal Folha da manhã, Rio de Janeiro, 16 de julho de 1944.

DELEUZE, Gilles. Literatura e vida. In: DELEUZE, G. Crítica e clínica. 1ª Ed. São Paulo: Editora 34, 1997. Tradução de Peter Pál Pelbart.

DIAZ, José-Luis. Quelle génetique pour les correspondances?. Genesis. Revue Internationale de Critique Génetique. (Paris), Jean-Michel Place, 13, 1999, p. 11-31. Tradução de Cláudio Hiro com a colaboração de Maria Sílvia Ianni Barsalini.

FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos II. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. MOTTA, Manoel Barros da (Org.). Tradução de Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000.

_____________. O que é um autor. In: FOUCAULT. M. Ditos e escritos III. Estética: literatura e pintura, música e cinema. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009a. Organização e seleção de textos de Manoel Barros Motta. Tradução de Inês Autran Dourado Barbosa.

_____________. O Mallarmé de J.-P. Richard. In: FOUCAULT. M. Ditos e escritos III. Estética: literatura e pintura, música e cinema. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009b. Organização e seleção de textos de Manoel Barros Motta. Tradução de Inês Autran Dourado Barbosa.

______________. História da sexualidade: O cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 2009c.

KRISTEVA, Julia. Estrangeiros como nós mesmos. Tradução Maria Carlota Carvalho Gomes. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

LISPECTOR, Clarice. A cidade sitiada. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Editora A Noite, 1949.

________________. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992.

________________. Minhas queridas. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2007. Organização de Teresa Montero.

________________. Correspondências. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2002. Organização de Teresa Montero.

LINS, Álvaro. Os mortos de sobrecasaca: ensaios e estudos (1940-1960). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963.

MILLIET, Sérgio. Diário crítico II, 15 jan. 1944. São Paulo: Martins Edusp, 1981.

MOSER, Benjamin. Clarice, uma biografia. 1ª Ed. São Paulo: Editora Cosac & Naify, 2009. Tradução de José Geraldo Couto.

RICHARD, Jean-Pierre. Littérature et sensation: Stendhal/Flaubert. Paris: Editions du Seuil, 1954. Tradução livre e parcial de Marcelo dos Santos.

SÁ, Olga. Clarice Lispector: a travessia do oposto. São Paulo: Editora Annablume, 1999 – (Selo Universidade, Literatura 8).

SAID, Edward W. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das letras, 2003. Tradução Pedro Maia Soares.

SANTIAGO, Silviano. Glossário de Derrida. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 1976.

SOUSA, Carlos Mendes. Clarice Lispector. Figuras da escrita. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles, 2012.

 

i Carta para Tania em 10 de março de 1948, Berna. Publicado em Minhas queridas. Editora Rocco, 2007.

ii Esta pesquisa se insere em um panorama contemporâneo de discussão da categoria de autor (a partir de Foucault) e da relação entre a vida e a literatura (a partir de Deleuze), as quais, durante muito tempo, foram reservadas apenas ao psicologismo.

iii Cadernos de literatura brasileira: Clarice Lispector. IMS, 2004.

iv A aura de figura mítica e misteriosa é reafirmada pela própria escritora, no decorrer de sua carreira, por sua relação em negativa com a crítica e com o público. Porém, segundo o teórico Carlos Mendes de Sousa, Clarice Lispector apenas pretendia mostrar-se distanciada a recepção de sua obra: “A distância denegadora que em relação à crítica a autora pretendeu afirmar decorre de uma série de fatores e é facilmente desmentível, dado que todo o seu percurso mostra como ela tinha uma aguda consciência desse diálogo necessário entre a obra e as interpretações que lhe são atribuídas, a consciência de que como qualquer obra de arte, também o texto literário só tem existência plena na relação do objeto criado com o intérprete e com a interpretação que este lhe confere.”(SOUSA, 2012, p.75)

v O abatimento de Clarice Lispector se deve principalmente à crítica negativa feita por Álvaro Lins e é exposta em uma carta enviada a sua irmã Tania Kaufmann em 23 de junho de 1946, onde diz: “A crítica de Álvaro Lins me abateu bastante; tudo o que ele diz é verdade; causada ou não por uma inimizade que ele tem por mim, seja ou não por uma crítica escrita em cima da perna. Ao lado disso que ele diz e é verdade, ele não me compreendeu. Mas isso não tem importância.”O crítico, que já havia sido duro em relação a Perto do coração selvagem, escreve após a publicação de O lustre: “Romances, porém, não se fazem somente com um personagem e pedaços de romances, romances mutilados e incompletos, são os dois livros publicados pela Sra. Clarice Lispector, transmitindo ambas nas últimas páginas a sensação de que alguma coisa essencial deixou de ser captada ou dominada pela autora no processo da arte de ficção.” (LINS, 1963, p. 192).

vi Cadernos de literatura brasileira: Clarice Lispector, p. 18.

vii Selecionadas e publicadas no livro A descoberta do mundo, em 1984.

viii Caetés, Vidas Secas, Angústia, São Bernardo, Infância e Memórias do cárcere, apenas os dois últimos romances autobiográficos.

ix Penso que o termo confissão usado por Antonio Candido, está sob uma concepção cristã. Nos estudos de Michel Foucault, a confissão é performática no sentido de que nela o confessor é levado a realizar-se sobre si mesmo e por isso é situada como uma forma de verdade. Diz Foucault: “na cultura ocidental cristã, o governo dos homens exigiu da parte destes que são dirigidos, além de atos de obediência e submissão, ‘atos de verdade’ que têm a particularidade de que não somente o sujeito é solicitado a dizer a verdade, mas dizer a verdade a propósito dele mesmo, de suas faltas, de seus desejos, do estado de sua alma etc.? Como formou-se um tipo de governo dos homens no qual não se é solicitado simplesmente a obedecer, mas a manifestar, enunciando-o, aquilo que se é?” (FOUCAULT, 2000, p. 944)

x Em termos foucaultianos, a escrita como “o cuidado de si aparece, portanto, intrinsicamente ligad[a] a um serviço de alma que comporta a possibilidade de um jogo de trocas com o outro e de um sistema de obrigações recíprocas.” (FOUCAULT, 2009c, p. 59).

xi A correspondência de Clarice Lispector é pensada aqui como parte integrante de sua literatura. Segundo Deleuze, “não há literatura sem fabulação, mas […] a fabulação, a função fabuladora não consiste em imaginar nem em projetar um eu. Ela atinge sobretudo essas visões, eleva-se até esses devires ou potências. (DELEUZE, 1997, p. 13) Assim, me distancio do tratamento da correspondência de escritores como objeto exclusivamente indicial e a tomo como espaço para a projeção de um devir-outro. Minha intenção com a leitura da correspondência pessoal de Clarice Lispector é de investigar as malhas do texto, o inconsciente textual que se apresenta. Proponho me distanciar de qualquer psicologismo; buscando apenas explorar as camadas textuais.

xii Cadernos de literatura brasileira: Clarice Lispector. IMS, 2004.

xiii Clarice Lispector e o marido partem para Nápoles, primeira cidade onde Maury Gurgel foi designado para servir como vice-cônsul, em 1944. Cadernos de literatura brasileira: Clarice Lispector. IMS, 2004.

xiv Este trabalho se distingue do conceito de exilado proposto por Said como uma identidade. Está mais harmonizado com o pensamento deleuziano de desconstrução da identidade percebendo-a assim como algo não estático.

xv “O estrangeiro é, portanto, aquele que perdeu a mãe.” (KRISTEVA, 1994, p. 13).

xvi Em carta datada de 14 de agosto de 1946, Clarice diz a Tania que o processo de escrita de A cidade sitiada é complicado. “Meu livro está encostado. Já não sei chegar até ele. Abandonei ele muitas vezes demais, e agora preciso revivê-lo todo para transformá-lo. Com seu auxilio longínquo, vou tentar de novo. ” Todo o processo de escritura do romance foi muito moroso, repleto de desistências e posteriores recuperações. Algo que ilustra como Clarice sofria de um embotamento artístico devido ao exílio em Berna e como a troca de correspondência foi seu principal refúgio.

xvii Berna, 21 de abril de 1946, carta publicada em Minhas queridas, 2007, p. 108.

xviii Berna, 05 de maio 1946, carta publicada em Minhas queridas, 2007, p. 113.

xix Berna, 12 de maio de 1946, carta publicada em Minhas queridas, 2007, p. 119.

xx Grifo meu.

xxi O suplemento a que me refiro é o derridiano. Segundo Silviano Santiago “é impossível se pensar a lógica do suplemento sem ao mesmo tempo pensar numa lógica da différance, do jogo […] a escritura possui seu significado sempre em jogo dinâmico. Este jogo está sujeito às forças que o ocupam e o impulsionam dentro do espaço aberto da polissemia e da intertextualidade. (SANTIAGO, 1976, p. 90-91).

xxii Retorno que seria breve, pois acompanharia novamente o marido a Inglaterra para outro período de vida no estrangeiro.Data de envio: 11 de julho de 2017.