A representação da mulher escravizada na literatura brasileira: uma leitura comparativa entre Úrsula e a Escrava Isaura

José Lucas Góes Benevides

RESUMO: O presente estudo pretende apresentar uma análise comparativa da representação das mulheres escravizadas em Úrsula, de Maria Firmina dos Reis (1859) e A escrava Isaura, de Bernardo Guimarães (1875). Objetiva-se entender como a Reis e Guimarães representam, nas personagens femininas escravizadas de seus romances, ideias sobre a mulher de origem africana circulantes na sociedade brasileira oitocentista. Em Úrsula, a autora Maria Firmina dos Reis, mulher de descendência africana, representa a personagem feminina escravizada do romance, a africana Suzana, de acordo com os princípios morais e religiosos do período, que remete à figura de Suzana como uma mulher que merece respeito e, portanto, afastada da imagem da mulher de “sangue africano” como imoral, incivilizada e com furor sexual nato, sem que a personagem seja estereotipada pelo branqueamento, seja ele da derme ou cultural Já Bernardo Guimarães, homem branco e pertencente à elite social de sua época, apresenta, em A escrava Isaura, duas personagens femininas escravizadas com características dicotômicas: Isaura, a protagonista, assim como Suzana, apresenta todas as características consideradas “civilizadas” à época, apresentadas, porém, como próprias de seu branqueamento, tão da pele quanto cultural, que a redime de seu “sangue africano”. Ao passo que Rosa, a vilã, apresenta todas as características tidas como peculiaridades do “sangue africano”. Entendemos que a diferença da abordagem entre Maria Firmina dos Reis e Bernardo Guimarães é correlata diretamente ao local de fala da autora e do autor, respectivamente.

PALAVRAS-CHAVE: Romances brasileiros. Representação da mulher escravizada. “Sangue africano”.

ABSTRACT: This study aims to present a comparative analysis of the representation of the enslaved woman in Úrsula, by Maria Firmina dos Reis (1859) and The Slave Isaura, by Bernardo Guimarães (1875). It is aimed to understand how the authors represented in the enslaved female characters of their romances the idea about the enslaved woman and the African source in the eighteenth-century Brazilian society. In Úrsula, Maria Firmina dos reis, a woman of African descent represents the enslaved female character of the novel, the African Suzana, according to moral and religious principles the period, which refers to the figure of Suzana as a woman who deserves respect and therefore the image of the woman of “African blood” as immoral, uncivilized and with a natural sexual fury. On the other hand, Bernardo Guimarães is a white man who belongs to the social elite of his period, presenting in The Slave Isaura, two enslaved female characters with dichotomous characteristics: Isaura, the protagonist, as well as Suzana, presents all the characteristics considered “civilized” at that period, presented as proper to its bleaching, which redeems from the African blood, while Rosa, the villain, presents all the characteristics considered as peculiarity of the African blood. It is understood that the difference between the approach between Maria Firmina dos Reis and Bernardo Guimarães is correlated directly to the authors’ speaking place, respectively.

KEYWORDS: Brazilian novels. Representation of the enslaved woman. “African blood”

 

Apresentação

Objetiva-se nesse trabalho fazer uma comparação da representação da mulher escravizada apresentada por Maria Firmina dos Reis na personagem Suzana e a das personagens escravizadas Isaura e Rosa, do romance abolicionista de Bernardo Guimarães, considerando o contexto histórico e literário em que circundam as referidas obras.

Lembramos que a relação entre história e literatura esteve, ao longo do século XX, envolvida em debates acerca da validade da literatura como fonte histórica para o entendimento de determinada época ou acontecimento histórico. Consideramos a literatura como produto sociocultural, um fato estético e histórico nas quais questões diversas movimentam e circulam em cada sociedade e tempo histórico.

A literatura é constituída a partir do mundo social e cultural e, também, constituinte deste, sendo, portanto, um testemunho efetuado pelo filtro de um olhar, textualizado por meio de uma leitura da realidade. Por conseguinte, propriedades específicas que precisam ser interrogadas e analisadas, como qualquer outro documento, compreendendo-o na sua historicidade, investigando “a forma como constrói ou representa a sua relação com a realidade social – algo que faz mesmo ao negar fazê-lo.” (CHALHOUB; PEREIRA, 1998, p.7).

Ao analisarmos a literatura brasileira do século XIX, verificamos que há uma série de livros que representam a escravidão como um elemento social constitutivo da sociedade de sua época. Escritores como José de Alencar, em As Minas de Prata (1866), O Tronco do Ipê (1871) e Til (1872), Gonçalves Dias em Meditação (1846), Fagundes Varela em Mauro, o escravo (1840), e Machado de Assis em Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), colocaram em suas produções personagens escravizados e o universo social da chamada “população de cor” no Brasil (PROENÇA FILHO, 2004; TRIPOLLI, 2006).

No que concerne especificamente à representação da mulher escravizada temos um arquétipo recorrente na Literatura Brasileira do século XIX, o da negra má, vulgar, lasciva, bruta e imoral, como Lucinda, apresentada por Joaquim Manuel de Macedo em Vitimas-algozes (1969); Rosa, personagem de Bernardo Guimarães em A escrava Isaura (1875); e Bertoleza, apresentada em O Cortiço de Aluísio de Azevedo (1890), se encaixam nesse perfil, tido em geral como característico das mulheres de “sangue africano” na sociedade escravista brasileira.

Maria Firmina dos Reis publicou o romance antiescravista Úrsula em 1859, tornando-se a primeira mulher a publicar um romance no Brasil. Escrita na primeira fase do Romantismo, que buscava construir uma ideia de identidade nacional brasileira na qual se sublimavam os constrangimentos sociais impostos pela escravidão, a autora antecipa Castro Alves, autor de Navio negreiro (1869) e Os escravos (1883); Joaquim Manoel de Macedo, de As vítimas-algozes (1869); e Bernardo Guimarães, de A escrava Isaura (1875), obras escritas quando o movimento abolicionista já tinha ampla atuação no Brasil (ZIN, 2016).

Em sua obra, Maria Firmina dos Reis apresenta a mulher escravizada Suzana, negra idosa, sem atrativos físicos, cujas características principais são a ternura maternal, que a afasta da tradicional representação da negra incivilizada e maldosa, e a sua amargura em relação à escravidão. É por meio da sua fala que se impõe o fio condutor do discurso antiescravista na narrativa, sem a estratégia do branqueamento, utilizada por Guimarães para causar empatia do leitor ao drama da protagonista.

Na obra de Bernardo Guimarães, há uma oposição à caracterização ethos das personagens escravizadas Rosa e Isaura. À vilã, que não passou pelo branqueamento[1], são atribuídas características trazidas como degenerescentes e, portanto, inexistentes na jovem protagonista (que representa a perfeição), portanto, “ninguém diria que gira em tuas veias, uma só gota de sangue africano” (GUIMARÃES, 2007, p. 5).

Tecendo um contraponto: a autoria e o contexto literário das obras em questão

Candido (2011, p.23) define Literatura como “um sistema de obras ligadas por denominadores comuns, que permitem reconhecer as notas dominantes duma fase”. Esses denominadores são definidos pelo autor como elementos internos (linguagem e temas) e elementos de natureza social, que, dialeticamente engendram sistemas de interpretação que organizam e orientam a produção literária, sendo tais denominadores tanto processo como produto dessa apropriação que os sujeitos fazem da realidade que os cercam, elaborando-a psicológica e socialmente.

Não obstante, ao analisarmos o papel e o efeito social da literatura, devemos analisar a posição e a função social do escritor, a relação entre ele e sua obra e de sua obra com o público que a recebe. É sob essa tríade, autor-obra-público, que Candido caracteriza a literatura e, nessa sentido, na ausência de um desses elementos, não se configura um sistema, e por consequência, a própria literatura.

Em vista disso, consideramos relevante analisar, preambularmente ao estudo das obras, questões concernentes ao lugar social da autora e do autor e o contexto histórico e literário nos quais se inserem. A escritora, Maria Firmina dos Reis, mulata, nascida em São Luís, capital da então província do Maranhão, filha bastarda, ainda criança mudou-se para a casa de uma tia materna, em Guimarães.

Aos 22 anos, Maria Firmina foi aprovada em um concurso público para lecionar em uma escola de primeiras letras em Guimarães, função que ocuparia até o início de 1880, ano em que se aposentou. O magistério ­– a escola primária na época – era um atributo feminino por ser entendida como uma extensão do ambiente familiar, e, portanto, onde a mulher também exerceria “papel da mulher” até casar-se; contudo, Maria Firmina nunca se casou. Desse modo, como uma mulher madura e solteira que exerce uma atividade pública ao inserir-se no meio letrado, a escritora enfrenta uma série de obstáculos, sobretudo o discurso da suposta inferioridade intelectual da mulher.

A visão do feminino como um ser frágil, intelectualmente inferior, naturalmente dotado para a procriação e o cuidado da casa, acompanhara o pensamento ocidental desde a Antiguidade, sendo essa relação de subordinação feminina x dominação masculina a marca característica das sociedades patriarcais. Da filosofia clássica à teologia cristã e ao pensamento científico moderno, os discursos e os olhares sobre o feminino (mutatismutandis), caracterizaram-se pela tentativa de justificar o status quo da sociedade patriarcal. (SOUSA, 2010, p. 66)

Em virtude dessas relações de dominação patriarcal no Brasil do século XIX, tais relações publicavam esporadicamente e, quando tinham algum espaço, o perfil destas era, via de regra, mulheres brancas e de elite que escreviam sobre culinária, e, eventualmente, poemas e contos, nesse caso, geralmente valendo-se de pseudônimos masculinos.

Na contramão dessa convenção literária, Maria Firmina lança Úrsula sob o pseudónimo de “uma maranhense”, se mostrando ciente das consequências de lançar-se no meio letrado essencialmente masculino no prologo do romance ao afirmar que “pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher, e mulher brasileira, de educação acanhada e sem o trato e conversação dos homens ilustrados.” (REIS, 2004, p. 3).

Na ambiência do século XIX, além de replicar valores patriarcais que mantinham as mulheres afastadas da cultura letrada, a literatura romântica coaduna com um projeto de nação especifico, no caso, brasileiro. Após a ruptura política com Portugal (1822), o projeto nacional brasileiro nasce sob a égide de um legado, o de desdobramento, nos trópicos, da ex-metrópole, e signatário, portanto, do legado civilizacional português.

A primeira escola literária do país recém-independente com José de Alencar, autor hoje canônico, concebe a gênese da formação brasileira somente pela matriz indígena e europeia e preserva a estrutura escravista e patriarcal, herança da colonização portuguesa.

O nacionalismo romântico relaciona-se à ideologia que entendia os negros como entrave ao processo de civilização, contexto no qual a miscigenação entre brancos e índios era concebida como forma de branqueamento do indígena e seu contato permanente com os brancos para fins civilizacionais (GUIMARÃES, 1988).

É nesse contexto que surge na literatura brasileira a representação  do “bom selvagem”, a submissão ao colonizador associada à “cor local”, que faz do autóctone, a partir dessa representação, se tornar sinônimo de brasilidade, como em O Guarani (1857), no qual o herói Peri representa a figura do nativo “civilizado” e europeizado, quase um homem branco; Ceci, por sua vez, é branca e loura; logo, esta paixão representa a miscigenação entre a civilização (europeia) e o “bom selvagem” (do “novo mundo”) (PEREIRA, 1996).

José de Alencar idealiza um projeto literário nacional, pois fez um “mapeamento cultural” dos tipos que contribuíram para formar, segundo seu entendimento, o povo brasileiro. Nessa mimese da brasilidade expressa por Alencar temos ainda os regionalistas O sertanejo (1876) e O gaúcho (1870), nos romances urbanos Lucíola (1862) e Senhora (1874) e a trilogia indianista, O guarani (1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1874). Essas obras criaram uma projeção idílica do Brasil e do povo brasileiro, nas quais se verifica a ausência de personagens negros ou da tematização da escravidão (LIMA, 2011).

Com efeito, em Alencar, verifica-se essa produção de mitos da nacionalidade na trilogia indigenista do autor – O Guarani (1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1874), na qual observamos  a ausência do negro como um ente nacional  pois é transversal nesses romances a ideia  de que a gênese do povo brasileiro estava na herança colonial luso-europeia e a crença que  por meio da miscigenação entre índios e brancos poder-se-ia construir uma nação civilizada, pela proeminência da raça branca superior, de matriz europeia.

Da mesma maneira, além de essencialmente branca, a ideia de nacionalidade brasileira era construída a partir da evocação da figura masculina, sendo esta o arquétipo escolhido para representar a ansiada identidade brasileira. A formação da nação e a naturalização dos arquétipos femininos e da estratificação social e racial estão relacionadas à ideia do “sujeito nacional universal” hegemonicamente masculino e branco (SHIMIDT, 2000, p. 87). Em Úrsula, Reis usa a estética romântica para contrapor-se à cultura (escravidão), pois o romance, apesar de estar estruturado de acordo com a estética da época, incorpora os escravizados, como sujeitos, num texto em que subverte a ideologia do nacionalismo romântico (NASCIMENTO, 2009),

Já o autor de A Escrava Isaura (1875), Bernardo Guimarães, nasceu em Ouro Preto, Minas Gerais, em 15 de agosto de 1825 e faleceu na mesma cidade, em 10 de março de 1884. Bacharelou-se em Direito em São Paulo, em 1852, atuando como juiz de 1861 a 1863 em Ouro Preto e também como jornalista, crítico literário e professor de latim, francês, retórica e poética no Liceu de Artes e Ofícios daquela cidade (SOUZA, 2012).

Vale ressaltar que obras com teor abolicionista, como A Escrava Isaura, surgem como uma vertente temática na literatura brasileira posteriormente, já no bojo do movimento abolicionista e, portanto, em um contexto histórico no qual a abolição da escravidão já era um assunto em voga, inclusive na produção literária de José de Alencar, como analisa Candido (2004, p. 75-6):

Sem ter assumido posição abolicionista, José de Alencar, que morreu quando começava a fase aguda do movimento, se preocupava, entretanto, com os efeitos morais negativos da escravidão e as iniquidades que ela gerava, e sobre isso produziu uma comédia e um drama: O demônio familiar (1857) e Mãe (1859). Joaquim Manuel de Macedo escreveu no mesmo sentido algumas narrativas reunidas no livro As vítimas algozes (1869), e abertamente abolicionista foi o famoso romance de Bernardo Guimarães, A escrava Isaura (1875), que é muito ruim mas causou grande efeito, pois descreve a situação extrema de uma jovem que é branca no aspecto, mas de condição servil, podendo ser comprada e vendida.

Destarte, as considerações acima inferidas são relevantes à problematização proposta nesse artigo, pois ao analisar-se a representação da mulher escravizada nas obras de Maria Firmina dos Reis e Berardo Guimarães, é fundamental considerarmos que a personagem feminina escravizada de Úrsula (Suzana) é construída por uma mulher com “sangue africano” nas veias em um contexto literário permeado por uma cultura patriarcal e escravista.  Bernardo Guimarães, por sua vez, apresenta em A Escrava Isaura personagens femininas escravizadas (Isaura e Rosa) na perspectiva de um homem branco e pertencente à elite social de sua época e em plena a campanha abolicionista.

Mãe Suzana e Isaura: algumas aproximações entre as personagens

Além do fato de que, como propriedade de um senhor as mulheres escravizadas estavam submetidas às vontades e desejos dissolutos de seus donos, frequentemente com uso de violência, as mesmas eram consideradas mulheres com furor sexual nato, pela influência africana em seu sangue, já que aquele continente era visto como um antro de barbárie e selvageria pelo Estado Brasileiro e o branqueamento era entendido como um meio civilizacional.

Com efeito, entendia-se que o calor intenso da África tornava as mulheres africanas e suas descendentes mulheres “quentes” também.

Em Úrsula, a negra nascida na África, Suzana, é apresentada de maneira que ao mesmo tempo a distancia da imagem da africana lasciva e promíscua, mas ressalta sua condição de escravizada:

Susana, chama-se ela; trajava uma saia de grosseiro tecido de algodão preto, cuja orla chegava-lhe ao meio das pernas magras, e descarnadas como todo seu corpo: na cabeça tinha cingido um lenço encarnado e amarelo, que mal lhe ocultava as alvíssimas cãs. (REIS, 2004, p. 112)

Como se pode notar, além de vestes grosseiras (como era comum aos escravizados e escravizadas), a descrição de Suzana não remete a uma mulher com algum furor sexual ou sensual, ao passo que sua descrição física de alguém de “pernas magras, e descarnadas como todo seu corpo” elimina qualquer possiblidade do leitor enxergar nela alguma sensualidade ou algum atributo físico sedutor, mas exatamente o contrário. Não obstante, uma das principais características da personagem é a maternidade, que corrobora para seu distanciamento da imagem que se fazia da mulher africana na sociedade escravista:

Foi Susana quem cuidou de Túlio [nascido em cativeiro] quando o rapaz foi separado de sua mãe biológica, e para o rapaz, ela é a mãe Susana. Além disso, a personagem possui fortes valores, pois é “boa e compassiva” […] Susana tem uma alma nobre, ela é uma mulher de comportamento adequado, não importando aqui a cor de sua pele. E, sendo uma mulher correta, merece ser respeitada. (MENDES, 2013, p. 130-132)

Com Suzana, Maria Firmina constrói uma personagem negra com comportamento e atitudes consonantes à moral patriarcal do século XIX, a começar pela ausência de furor sexual, pois o sexo para as mulheres seria apenas um meio para se alcançar a maternidade, sendo, portanto, conjugal e com fins reprodutivos:

Ao estudar as mulheres, os médicos criaram um paradoxo que marcou a produção do conhecimento sobre a sexualidade feminina até o século XX. Embora definissem a mulher pela sexualidade, muitos médicos defendiam a tese de que a normalidade era a ausência do desejo e a incapacidade de alcançar o prazer sexual. A mulher normal seria, portanto, anestesiada para o exercício de sua sexualidade, estando canalizada para a reprodução. (MARTINS, 2004, p. 112-113)

Nesse sentido, Suzana é uma “mulher normal” conforme o discurso médico da época, afastada do arquétipo senhorial dos(as) africanos(as) como bárbaros(as) e incivilizados(as), a idosa é representada como alguém que merece respeito, sobretudo por suas “alvíssimas cãs” (cabelos brancos), que denotam sua idade avançada, que é reiterada constantemente ao longo do romance. Também são narradas suas felizes lembranças da África, como pode se notar na passagem abaixo, na qual a África é representada como um lugar civilizado, em que ela tinha uma família, como afirma a velha africana a Tulio, em prantos:

Sim, para que estas lágrimas?!… Dizes bem! Elas são inúteis, meu Deus; mas é um tributo de saudade, que não posso deixar de render a tudo quanto me foi caro! Liberdade! Liberdade… Ah! Eu a gozei na minha mocidade! – continuou Susana com amargura – Túlio, meu filho, ninguém a gozou mais ampla, não houve mulher alguma mais ditosa do que eu. Tranquila no seio da felicidade, via despontar o sol rutilante e ardente do meu país, e louca de prazer nessa hora matinal, em que tudo aí respira amor, eu corria às descarnadas e arenosas praias, e aí com minhas jovens companheiras, no coração, divagávamos em busca das mil conchinhas, que bordam as brancas areias daquelas vastas praias. Ah! Meu filho! Mais tarde deram-me em matrimônio a um homem, que amei como a luz dos meus olhos, e como penhor dessa união veio uma filha querida, em quem me revia, em quem tinha depositado todo o amor da minha alma: – uma filha, que era a minha vida, as minhas ambições, a minha suprema ventura, veio selar nossa tão santa união. E esse país de minhas afeições, e esse esposo querido, essa filha tão extremamente amada, ah Túlio! Tudo me obrigaram os bárbaros a deixar! Oh! Tudo, tudo até a própria liberdade! (REIS, 2004, p. 115)

Como se pode notar na passagem acima, a autora representa a família africana de acordo com o modelo familiar judaico-cristão, portanto, em consonância ao que se esperava de uma “boa mulher” na sociedade patriarcal brasileira. Dessa forma, por meio de Suzana, Maria Firmina dos Reis questiona o paternalismo intrínseco à ideologia escravista. Essa justificativa advinda da colonização, e, embora criticada, ainda tinha força no Brasil oitocentista:

Durante três séculos (do século XVI ao XVIII) a escravidão foi praticada e aceita sem que as classes dominantes questionassem a legitimidade do cativeiro. Muitos chegavam a justificar a escravidão, argumentado que graças a ela os negros eram retirados da ignorância em que viviam e convertidos ao cristianismo. A conversão libertava os negros do pecado e lhes abria a porta da salvação eterna. Dessa forma, a escravidão podia até ser considerada um benefício para o negro! Para nós, esses argumentos podem parecer cínicos, mas, naquela época, tinham poder persuasão. A ordem social era considerada expressão dos desígnios da Providência Divina e, portanto, não era questionada. Acreditava-se que era a vontade de Deus que alguns nascessem nobres, outros, vilões, uns, ricos, outros, pobres, uns, livres, outros, escravos. De acordo com essa teoria, não cabia aos homens modificar a ordem social. Assim, justificada pela religião e sancionada pela Igreja e pelo Estado- representantes de Deus na Terra-, a escravidão não era questionada. A Igreja limitava-se a recomendar paciência aos escravos e benevolência aos senhores. (COSTA, 2008, p. 13)

Costa (1998) destaca ainda o papel do paternalismo no funcionamento da escravidão, uma vez que era comum entre os escravocratas o argumento que no Brasil o cativeiro humano não era violento, que aqui os senhores eram benevolentes e que as relações entre senhores e escravos caracterizavam-se pela filantropia que permitia aos africanos serem felizes mesmo submetidos ao regime escravista.

Rompendo com esse discurso tutelar que dava estofo ideológico à instituição da escravidão no Império do Brasil, Suzana, mesmo sendo africana e escravizada, segue as normas de conduta consideradas como corretas à moral da época e passa ao largo de estar feliz, contrariando o discurso da presumida filantropia atribuída à escravização de africanos, pois como explica Chalhoub (2003, p.46), no paternalismo a proeminência senhorial é inviolável, e “os subordinados em geral só podem se posicionar como dependentes em relação a essa vontade soberana”.

Por sua vez, em A Escrava Isaura (1875), Bernardo Guimarães apresenta uma escrava mestiça, da qual deixa evidente a tez branca e a primorosa educação, que, a revelia desses atributos, vivia injustiçada por estar submetida à “bárbara e vergonhosa instituição” (GUIMARÃES, 2007, p. 85). Isaura é a típica heroína romântica, caracterizada como meiga, bondosa, linda, fiel e sofredora e descrita como um ideal de perfeição, características que são reforçadas pelo fato de ter passado por um processo de branqueamento.

Vale ressaltar, no entanto, que a condição de escravidão era jurídica, sendo, outrossim, até 1871, uma herança matrilinear. Ou seja, aquele que nascia de ventre escravizado era escravizado, independentemente de ter a pele branca e cabelos corredios, como era o caso de Isaura. Com efeito, a despeito do branqueamento e dos dotes da jovem, sua condição de propriedade em nada se distinguia dos demais escravizados, pois ela carregava o “sangue africano”, herdado da mãe.

O enredo se passa em 1840, mas a saga de Isaura é publicada em 1875, quando o principio da escravidão como herança matrilinear já estava suplantado pela Lei do Ventre Livre (1875), que considerava livre todos os filhos de mulheres escravas nascidos a partir da data da lei no Império do Brasil. Isaura, no entanto, sendo filha de uma escrava nascida antes da promulgação dessa lei, só a carta de alforria poderia libertá-la.

Não obstante, a representação da escrava branca se relaciona aos debates sociais do período sobre raça e escravidão, relacionando diretamente a pele branca à civilização, fazendo uma apologia à miscigenação pelo branqueamento da população, já que a mestiçagem no Brasil já era uma realidade reconhecida, como indica Alves (2012, p. 36):

Era fato reconhecido que a formação do país estava solidificada pelas três raças, como Von Martius mostrou em Como se deve escrever a história do país, e precisamente na década de 1870 quando A Escrava Isaura foi escrita e lançada, chegavam da Europa as ideias do positivismo e do darwinismo social, associadas a um discurso racista de embranquecimento. Assim, a ideia de nacionalidade, formar a nação brasileira, se confundia com a mistura racial, a mestiçagem. Isaura era esta combinação: a mestiça, que aparentemente era branca, a heroína da nação brasileira.

Ademais, sendo o catolicismo a religião de Estado no Brasil do século XIX e entendido naquele contexto como ideal de civilização e de moral na época, o discurso cristão aparece nos dois romances.  No entanto, diferentemente de Suzana, em Isaura, o aspecto religioso é um dos traços do branqueamento da moça que “uma pequena cruz de azeviche presa ao pescoço por uma fita preta constituía o seu único ornamento” (GUIMARÃES, 2007, p.4).

Bernardo Guimarães, mesmo que implicitamente, estabelece uma relação entre cristianização (ou a falta dela) e a escravidão, à medida que, como dito, a possibilidade de introduzir povos pagãos na religião cristã era um argumento recorrente para buscar corroborar com a escravidão, como uma forma de presumida filantropia da escravidão para com os africanos e seus descendentes.

Embora a conversão ao cristianismo não fosse um pré-requisito à obtenção da alforria, tinha-se como prática social generalizada o uso de cultos católicos na disciplinarização dos(as) negros(as), haja vista que, em geral, toda fazenda tinha sua capela, e as unidades agrárias menores usavam as capelas das fazendas adjacentes.

Essa caridade seria desnecessária à Isaura, que aderira a religião católica verdadeiramente e não às religiões africanas, interpretadas como satânicas pela doutrina católica. Logo, por tal premissa, Suzana também poderia ser considerada “preparada” à liberdade. No entanto, o discurso religioso é utilizado não somente para si e para Túlio (também cristão), mas defende, por “amor ao próximo”, o fim da escravidão:

Senhor Deus! Quando calará no peito do homem a tua sublime máxima – ama a teu próximo como a ti mesmo –, e deixará de oprimir com tão repreensível injustiça ao seu semelhante!… A aquele que também era livre no seu país… Aquele que é seu irmão?! (REIS, 2004, p. 23).

Isaura, no entendimento do narrador, representa uma exceção, um modelo civilizacional que, a partir da caracterização dos personagens negros, pode-se inferir que seja para o autor inatingível a eles, fator que justifica a dessemelhança, e, apesar da veemência das críticas à escravidão, demonstra-se certa “compreensão” da posição senhorial, pois seria mais fácil a abolição se todos os negros fossem bons e resignados como Isaura, esta sim, pela docilidade merece a liberdade:

Em A Escrava Isaura, Bernardo Guimarães, talvez implicitamente, acabava por mostrar que a escravidão é injusta apenas para entes tão excepcionais como Isaura, que por ser branca, bela e culta não mereceria a condição de cativa. Mas para os escravos negros, feios e iletrados, a escravidão lhes caía bem. Tirando Isaura, nenhum dos outros escravos, como Rosa, André ou tia Joaquina são redimidos, não mereciam a liberdade, parece dizer o autor. Isaura carregava as virtudes que lhe tornavam injusta a condição de cativa, os outros não. (ALVES, 2012, p. 41)

Nesse sentido, pode-se perceber uma diferença essencial entre Suzana e Isaura. A africana cujo “corpo descarnado”, sua idade avançada e seus cabelos brancos denotam ausência de beleza, que a afasta da caracterização de um ente excepcional como é Isaura, mas que, tal como Isaura, a condição de cativa é injusta.

Diferentemente de Suzana, Isaura representa a figura do “escravo nobre”, “que vence por força de seu branqueamento, embora a custo de muito sofrimento e humilhação” (PROENÇA FILHO, 2004, p. 162), identificada em personagens como Raimundo de O mulato (1881) e Rita Baiana de O cortiço (1890), de Aloisio Azevedo. (ou do negro fiel, grato e submisso como Benedito, de O Tronco do Ipê, de José de Alencar (1871) e Pai Tomás, de A cabana de Pai Tomás, da escritora estadunidense Harris Beecher Stowe (1853).

Caracterizando Isaura como exceção e colocando Rosa como antagonista, Guimarães reforça o medo do potencial violento dos escravizados à medida que, na perspectiva dos senhores, o negro era visto como perigoso, uma vez que eram considerados incultos, imorais, não civilizados e, por conseguinte, potencialmente violentos (AZEVEDO, 1987), imagem emulada a partir da Revolução Haitiana[2].

Sem o recurso do branqueamento, no entanto, Suzana também é representada como alguém que passa ao largo de atitudes potencialmente violentas e atende aos padrões comportamentais da mulher madura do século XIX (casada, mãe e crente no Deus-cristão), o que representa a conduta exemplar na moral judaico-cristã, sem, a personagem deixar de ser africana e escravizada, sendo “boa e compassiva” (REIS, 2004, p. 111):

Suzana como mulher, reproduz o discurso sobre as mulheres de sua época. No caso de uma mulher madura, o exemplo de Maria, representada biblicamente como mãe zelosa e esposa exemplar, que, como mãe do filho de Deus e uma mulher que age segundo a vontade Dele, representa um arquétipo divino de comportamento feminino que deveria ser alcançado por toda mulher honrada. Desse modo, assim como Isaura, jovem pura e angelical, Suzana é espelhada no ideal celeste (MENDES, 2013, p.27):

Essas representações sociais do feminino no século XIX ligam-se à visão de que a mulher era descendente da Virgem Maria, ou seja, a virgem que é capaz de fazer sacrifícios em nome da família e dos filhos. A mulher do século XIX, no Brasil, deveria possuir – por conta de uma visão idealizada – os atributos da doçura, pureza, moralidade cristã, generosidade, maternidade e patriotismo. As mulheres tornam-se responsáveis pela educação das futuras gerações, dos futuros homens, dos brasileiros, cidadãos de uma nação então livre. Ligada a esse ideal de mulher, somava-se a profunda religiosidade na qual as famílias estavam inseridas e a concepção da ausência de instinto sexual nas mulheres.

Considerando esse arquétipo feminino, é possível se perceber Suzana segue esse modelo, pois não apresenta instintos sexuais, antes de ser escravizada, ela tinha na África uma família aos moldes patriarcais, sugestionando que, antes do cativeiro, ela tinha uma família comparável ao modelo mariano e tal como a mãe de Cristo sofreu ao perder seu filho amado morto crucificado, Suzana sofre a ausência da filha, dela afastada pela escravidão, que ao arrancá-la de sua terra, impingiu-lhe a dor da perda da filha, que permaneceu na África.

Assim, contrapondo a imagem das africanas escravizadas emulada na sociedade patriarcal-escravista sem ter negado seu “sangue africano” pelo branqueamento, como Isaura, a construção da personagem Suzana como genuinamente cristã se apresenta como um contraponto a esse discurso escravocrata, pois seu perfil cristão, afável e maternal denuncia o caráter retórico da suposta filantropia do escravismo, pois mesmo sendo ela verdadeiramente cristã, continuava submetida àquela instituição.

A barbárie da escravidão e a moral da mulher negra: Um contraponto

Como vimos, Suzana e Isaura apresentam diversas semelhanças no aspecto moral. Na obra de Bernardo Guimarães, no entanto, à vilã, que também é mestiça (mas não branqueada), são atribuídas características explicitamente não brancas, vistas como nocivas e existentes na jovem protagonista Rosa que, por sua vez, representa o estereótipo da mulher africana com características consideradas como genuinamente negras, como a maldade e a sua cessão ao promiscuo Leôncio, da qual o mesmo aproveitará à exaustão, sem nunca conseguir tocar em Isaura, que mantinha-se casta e pura, a revelia de seu torpe senhor.

Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala (1933), cita um dito popular que sinaliza a percepção acerca das mulheres no século XIX: “branca para casar, mulata para fornicar, negra para trabalhar”. As mulheres brancas seriam para casar, para constituir família. As negras, que não carregavam características atrativas, como beleza, serviam apenas para o trabalho. E as mulatas e belas, causavam furor sexual, daí os encontros dos senhores escravistas com tais mulatas, além de iniciarem a vida sexual dos filhos de senhores.

Bernardo Guimarães reproduz esse pensamento patriarcal-escravista em sua obra: Leôncio se casou com Malvina (branca), desejava as mulatas Rosa e Isaura (a primeira lhe cedia, a segunda não), e rejeitava as negras da fazenda, como tia Joaquina, que só serviam ao labor. Com as mulatas, sentia volúpia, que quando satisfeita acabava. Assim é que ao cansar-se de Rosa, investe em Isaura, a qual se opõe a satisfazer sua concupiscência, corroborando “a crença de que às mulheres cabe um papel necessariamente marcado pela pureza e, consequentemente, ideal e descarnalizado” (RIBEIRO, 2008, p. 99).

Isaura, assim como Suzana é espelhada na Virgem Maria. A jovem é representada como pura, sua beleza, assim como sua postura é angelical, estando ausente nela qualquer furor sexual. Pelo contrário, o desejo de seu senhor por ela lhe causa nojo, pois Isaura identifica nas relações sexuais fora do matrimônio um pecado (importante dogma cristão) . Ela, honrada, ao agradecer à Virgem da Piedade (nomenclatura católica a Maria) por livrá-la de uma investida de Leôncio, faz questão de justificar sua inocência, perante a santa daquele ato pecaminoso (fornicação) não consumado por um triz:

– Virgem senhora da Piedade, Santíssima Mãe de Deus!… vós sabeis se eu sou inocente, e se mereço tão cruel tratamento. Socorrei-me neste transe aflitivo, porque neste mundo ninguém pode valer-me. Livrai-me das garras de um algoz, que ameaça não só a minha vida, como a minha inocência e honestidade. Iluminai-lhe o espírito e infundi-lhe no coração brandura e misericórdia para que se compadeça de sua infeliz cativa. É uma humilde escrava que com as lágrimas nos olhos e a dor no coração vos roga pelas vossas dores sacrossantas, pelas chagas de vosso Divino Filho: valei-me por piedade. (GUIMARÃES, 2007, p.46)

Não obstante, reforçando sua excepcionalidade, mesmo Isaura, que é negra (enquanto escravizada) ao lamentar sua sina, reproduz o discurso senhorial ao declarar que “… era melhor que tivesse nascido bruta e disforme, como a mais vil das negras” (GUIMARÃES, 2007 p.49), do que possuir todos os seus encantos e permanecer escrava, deixando evidente seu distanciamento tanto físico quanto moral ante aos negros da senzala, o que pode ser notado na descrição de Isaura no anúncio de jornal que tratava de sua fuga trazida no romance por meio da leitura do personagem Martinho:

Fugiu da fazenda do Sr. Leôncio Gomes da Fonseca, no município de Campos, província do Rio de Janeiro, uma escrava por nome Isaura, cujos sinais são os seguintes: Cor clara e tez delicada como de qualquer branca; olhos pretos e grandes; cabelos da mesma cor, compridos e ligeiramente ondeados; boca pequena, rosada e bem feita; dentes alvos e bem dispostos; nariz saliente e bem talhado; cintura delgada, talhe esbelto, e estatura regular; tem na face esquerda um pequeno sinal preto, e acima do seio direito um sinal de queimadura, mui semelhante a uma asa de borboleta. Traja-se com gosto e elegância, canta e toca piano com perfeição. Como teve excelente educação e tem uma boa figura, pode passar em qualquer parte por uma senhora livre e de boa sociedade. (GUIMARÃES, 2007, p. 72)

Igualmente, pode-se perceber uma associação direta entre branqueamento e civilização e a ideia do “sangue africano” como atavicamente degenerado em A Escrava Isaura, quando Guimarães descreve a negra Rosa com características que o branqueamento, tão da cor da pele quanto cultural, lhe negara. Rosa, em contraponto direto a Isaura, é descrita como malévola e invejosa:

– E o que mais merece aquela impostora? – murmurou à invejosa e malévola Rosa. – Pensa que por estar servindo na sala é melhor do que as outras, e não faz caso de ninguém. Deu agora em namorar os moços brancos, e como o pai diz que há de forrar ela, pensa que e uma grande senhora. Pobre do senhor Miguel!… Não tem onde cair morto, e há de ter para forrar a filha (GUIMARÃES, 2007, p. 30).

Rosa inveja a “sorte” de Isaura, ambicionando seguramente estar em seu lugar, de maneira mal intencionada, ao passo que Susana, deseja a felicidade do filho (Túlio), abençoando-o com a sinceridade de seu amor materno, após o rapaz deixar a fazenda quando é presenteado com a liberdade por Tancredo (em agradecimento pelo socorro prestado pelo negro quando o jovem cavaleiro branco fora ferido após o tombo de seu animal), a mãe bendiz o filho sem invejá-lo pelo fato do jovem não estar mais escravizado:

 A velha sentiu-o, e duas lágrimas de sincero enternecimento desceram-lhe pela face: ergueu então seus olhos vermelhos de pranto, e arrancou a mão com brandura e elevando-a sobre a cabeça do jovem negro, disse-lhe tocada de gratidão: – Vai, meu filho! Que o Senhor guie os teus passos, e te abençoe, como eu te abençoo (REIS, 2004, p. 119).

Como visto, Suzana não tem traços de aviltamento. E essa característica não é um diferencial dela em relação aos demais escravizados do romance. Túlio e Antero também não têm o aviltamento em suas caracterizações, o que iguala os três personagens no aspecto da dignidade ou mesmo em civilidade. Dessa forma, não sendo eles nem vis, nem exceções à regra, como é Isaura, estabelece-se em Úrsula um contraponto às supostas barbárie e selvagerias africanas, axiomas à época. Barbaridade para Suzana é o tratamento dispensado aos africanos escravizados, a começar pelo transporte transatlântico da África para o Brasil:

Meteram-me a mim e a mais trezentos companheiros de infortúnio e de cativeiro no estreito e infecto porão de um navio. Trinta dias de cruéis tormentos, e de falta absoluta de tudo quanto é mais necessário à vida passamos nessa sepultura até que abordamos as praias brasileiras. Para caber a mercadoria humana no porão fomos amarrados em pé e para que não houvesse receio de revolta, acorrentados como os animais ferozes das nossas matas, que se levam para recreio dos potentados da Europa. Davam-nos a água imunda, podre e dada com mesquinhez, a comida má e ainda mais porca: vimos morrer ao nosso lado muitos companheiros à falta de ar, de alimento e de água. (REIS, 2004, p. 117)

Por meio de Suzana, Maria Firmina representa o horror do navio negreiro como sinônimo de barbárie em contraponto à África, representada como um lugar de felicidade. Nessa dialética, a personagem aparece autonomamente, ou seja, uma pessoa com sua própria identidade e que tem uma história e se orgulha desse passado, em um lugar ao qual o adjetivo “civilizado”, entendido diacronicamente no século XIX parece verossímil, e “bárbaro”, referindo-se ao navio negreiro, igualmente.

Alforria: liberdade ou ilusão?

Como já mencionado, Suzana tem como ponto de referência para pensar a liberdade sua vida pregressa à escravidão, na África, onde recorda saudosamente daquela felicidade que disfrutara, quando ela vivia em sua terra. Já em A escrava Isaura, o discurso abolicionista se expressa tanto pelo sofrimento personalizado na bela Isaura quanto pelo jovem idealista Álvaro, que não só não tem vergonha de assumir sua paixão pela escrava e lutar por sua liberdade, mas entende a escravidão, enquanto instituição, como um atraso, vergonhoso à nação:

A escravidão em si mesma já é uma indignidade, uma úlcera hedionda na face da nação, que a tolera e protege. Por minha parte, nenhum motivo enxergo para levar a esse ponto o respeito por um preconceito absurdo, resultante de um abuso, que nos desonra aos olhos do mundo civilizado (GUIMARÃES, 2007, p. 85).

Álvaro logra êxito em libertar a amada quando, ao voltar do Rio de Janeiro, descobre que Leôncio está falido, compra todas as dívidas dele e desapropria seus bens, dentre os quais está Isaura, o que possibilita o final feliz do casal, quando no momento do casamento arranjado por Leôncio entre Isaura e o deformado jardineiro Belchior, Álvaro aparece para salvar a amada do enlace indesejado, liberta Isaura e casa-se com ela. Vejamos a passagem:

– Isaura! – continuou Álvaro com voz sempre firme e grave: – Se esse algoz (Leôncio) ainda há pouco tinha em suas mãos a tua liberdade e a tua vida, e não estas cedia senão com a condição de desposares um ente disforme e desprezível, agora tens nas tuas a sua propriedade; sim, que as tenho nas minhas, e as passo para as tuas. Isaura, tu és hoje a senhora, e ele o escravo; se não quiser mendigar o pão, há de recorrer à nossa generosidade.
– Senhor! – exclamou Isaura correndo a lançar-se aos pés de Álvaro; – oh! Quanto sois bom e generoso para com esta infeliz escrava!… Mas em nome dessa mesma generosidade, de joelhos eu vos peço, perdão! Perdão para eles…
– Levanta-te, mulher generosa e sublime! – disse Álvaro estendo-lhe as mãos para levantar-se. – Levanta-te, Isaura; não é a meus pés, mas sim em meus braços, aqui bem perto do meu coração, que te deves lançar, pois despeito de todos os preconceitos do mundo, eu me julgo o mais feliz dos mortais em poder oferecer-te a mão de esposo! (GUIMARÃES, 2007, p. 121)

Como se pode notar na passagem acima, a ideia de liberdade em A escrava Isaura associa-se diretamente à ideia de uma dádiva generosa, a qual se pressupõe, moral e juridicamente, obrigações de gratidão e lealdade, tanto que Isaura ajoelha-se perante Álvaro, em gratidão, pela concessão da liberdade, que poderia ser eventualmente cancelada sob o argumento de ingratidão do liberto:

A maneira mais usual e mais comum era que a liberdade fosse avalizada pelo senhor em foro privado. Segundo versava a secular política escravista, era, sobretudo o senhor quem possuía o poder supremo de decidir o futuro do cativo, e toda e qualquer aceno nessa direção devia ser percebido como uma “dádiva” ou doação, a qual deveria ser recompensada com a eterna gratidão. (SILVA, 2009, p. 161)

Essa característica da política escravista que colocava a concessão da liberdade dos(as) escravizados(as) como uma prerrogativa senhorial que engendrava uma dívida de eterna gratidão é apresentada a partir do personagem Túlio. A nova condição fizera Túlio muito feliz pela liberdade, que o filho de criação de Suzana entendera como plena e a gratidão ao benfeitor natural, reproduzindo a tradicional politica escravista:

A compra da liberdade não era suficiente para desfazer os laços morais que uniam senhores e escravos. A rigor, todo e qualquer liberto devia respeito e gratidão aos antigos senhores convertidos em patronos. Por certo, a maioria esmagadora das alforrias pagas era incondicional, entretanto senhores havia que, não obstante a contrapartida monetária, se sentiam no direito de exigir outras obrigações além da gratidão e do respeito. […] O que o dono efetivamente fazia era libertá-lo desse domínio [da escravidão], instaurando imediatamente uma nova modalidade de subordinação derivada da obrigação de retribuir inerente à troca de dons. (SOUSA, 2005, p. 6)

Nota-se que a ideia de liberdade de Isaura é muito próxima a de Túlio, ou seja, a gratidão pela concessão da liberdade. Com efeito, embora Tancredo considere Túlio como igual, seu amigo e salvador, assim como na relação estabelecida entre Álvaro e Isaura, persiste uma subserviência que, embora atenuada pelo caráter magnânimo de Tancredo e Álvaro, não deixa de configurar uma relação sutilmente verticalizada. Contudo, os dois personagens sentem-se verdadeiramente livres.

Essa relação vertical em A escrava Isaura é sublimada pela paixão entre os protagonistas; porém, em Úrsula, está verticalização é questionada por mãe Susana, que é uma espécie de alter ego da autora, pois a personagem remete, por meio de suas memórias da África, a uma liberdade que Túlio, por ter nascido em cativeiro desconhecera, o que faz Suzana questionar a ideia de liberdade do rapaz:

–Tu! Tu livre? Ah não me iludas! –exclamou a velha africana abrindo uns grandes olhos. Meu filho, tu és já livre? […] Iludi-la! –respondeu ele, rindo-se de felicidade – e para quê? Mãe Susana, graças à generosa alma deste mancebo é hoje livre, livre como o pássaro, como as águas: livre como o éreis na vossa pátria. (REIS, 2004, p. 114).

Como se pode notar na passagem acima, a ideia de liberdade tem significados diferentes para Túlio e Suzana, diferenças associadas diretamente às trajetórias dos personagens. Para Túlio, ser livre é deixar a condição de propriedade, ser reconhecido juridicamente como uma pessoa, condição que lhe retiraria da condição de objeto e mercadoria, característica essencial da escravidão, mas o colocaria na condição de um eterno devedor.

Assim como Isaura, Túlio recebe a alforria como dádiva, estabelecendo uma relação de prêmio (alforria) e retribuição (gratidão ao benfeitor) que não faz sentido e nem denota liberdade estar condicionado, mesmo que pela vontade do beneficiado – condição comum entre Túlio e Isaura –, a eternos laços de gratidão. Nessa perspectiva, a liberdade para a personagem é, essencialmente, um direito proscrito aos africanos traficados pela escravidão, não existindo possibilidade de liberdade em uma sociedade escravista.

Para Suzana, Túlio está deslumbrado, pois, ao ser alforriado por Tancredo, continuará escravizado, ligado a ele por uma relação de gratidão, que seria sempre verticalizada, e isso seria trocar “um cativeiro por outro”. O jovem argumenta, no entanto, que, ao contrário, teria sim liberdade, pois a gratidão era natural, sendo bem melhor e justo ser grato ao seu benfeitor que permanecer escravizado.

Que te adianta trocares um cativeiro por outro! E sabes tu se ao o encontrarás melhor? […] Oh! Quanto a isso não, mãe e Susana – exclamou Tulio – […]. Não troco cativeiro por cativeiro, oh, não! Troco escravidão por liberdade, por ampla liberdade! […] (REIS, 2004, p. 115)

Tancredo não compra Túlio para ser seu escravo; Tancredo vê Túlio como igual, seu amigo e salvador. Isso fica evidente no capítulo intitulado “Duas almas generosas”. Ambos são vistos pelo narrador como iguais. Ao comprar a liberdade de Túlio, Tancredo o retira da condição de escravo, colocando-o juridicamente na condição de cidadão, um pardo,[3] terminologia atribuída ao egresso da escravidão.

Dessa forma, Túlio e Isaura têm em comum a conformidade e a satisfação que a condição de livres os permitia. Em oposição a essa conformidade, em Úrsula, Suzana é categórica em afirmar a diferenciação entre a sua visão de liberdade e aquela sociedade escravista. Já Túlio e Isaura pensam sua alforria de acordo com a possibilidade de mobilidade social que a nova condição lhes permitiria.

Referências

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[1] Os intelectuais brasileiros do século XIX e início do XX teceram muitos escritos imputando a presença africana no Brasil como responsável por um “entrave” a ideia de civilização no país. Nesse contexto, a ideologia do “branqueamento” se transformou em um argumento importante para o discurso de modernização do Estado brasileiro. Baseava-se em teorias racistas que supunham a superioridade da raça branca face às demais, em especial a negra, bem como na crença de que o progresso brasileiro dar-se-ia pela miscigenação e pela proeminência da raça branca de matriz europeia na formação da “raça brasileira”. Essa teoria referia-se tanto ao clareamento da pele quanto ao branqueamento cultural (HOFBAUER, 2003).

[2] Sobre a Revolução Haitiana, insurreição liderada pelos escravizados, resultou na abolição da escravatura na então colônia francesa de São Domingos e na tomada do poder politico pelos negros, com uso de extrema violência. É importante considerarmos que “O sentimento de insegurança social e o ‘haitianíssimo’, ou seja, o pavor de uma insurreição de escravos ou mestiços como a que se dera no Haiti em 1794, não deve ser subestimado como traços típicos da mentalidade da época, reflexos estereotipados da ideologia conservadora e da contra revolução europeia” (DIAS, 2005, p, 174).

[3] Sobre essa condição, Mattos (1999) explica que o termo pardo foi criado como nomenclatura à realidade social dos ex-escravizados para nominá-los sem que esse grupo social fosse estigmatizado pela escravidão, e sem que se obliterasse a memória desta condição pretérita e das restrições sociais a ela implicadas, apesar da igualdade jurídica entre os cidadãos (categoria que designava todas as pessoas livres, sem clivagens de cor) postulada pela constituição de 1824. Nesse aspecto, é importante considerar que, embora em todas as sociedades da América onde existisse escravidão negra, persistiriam discriminações contra a dita “população de cor”, fosse ela escravizada ou emancipada pela concessão de alforria, porém, diferentemente de outras sociedades europeias e a norte-americana, no Brasil esse proibitivo legal inexistiu, possibilitando aos alforriados-livres e mestiços relativo transito no meio social.

 

Data de envio: 16 de fevereiro de 2017.