Tempo de espalhar pedras, de Estevão Azevedo

Jéssica Domingues Angeli

Tempo de espalhar pedras, segundo romance do escritor potiguar Estevão Azevedo, lançado em 2014 pela editora Cosac-Naify e vencedor do prêmio São Paulo de Literatura de 2015 na categoria romance, fala, de acordo com o próprio autor, sobre desejo: o desejo sexual recíproco de Rodrigo por Ximena, o desejo de Silvério de ter contato com uma divindade, o desejo de todos os garimpeiros por fortuna e mesmo o mais irrisório desejo de Vitória por uma penteadeira.

O romance contém, em seu título, uma ambiguidade cujos dois sentidos se opõem: por um lado, remete ao dia a dia no garimpo, que consiste em remexer a terra – e espalhar suas pedras – em busca de ouro e outros metais preciosos; por outro, faz referência ao livro de Eclesiastes[1], parte do Antigo Testamento que condena as vaidades humanas e prega a necessidade de desapego dos bens terrenos. A narrativa, que se passa em um lugar desconhecido – embora o “cenário de extinção” seja característico do sertão –, conta a história de garimpeiros que, frente à terra exaurida, dão-se conta de que os únicos lugares que ainda poderiam guardar ouro são os pequenos recortes de solo que sustentam suas próprias casas. Assim, movidos pela ganância e pela vaidade que apenas uma boa soma adquirida na venda de uma grande pepita poderia assegurar, espalham as pedras de que suas casas são feitas.

No centro do enredo do romance estão Rodrigo e Ximena, que sentem um pelo outro um ódio, herdado da inimizade de seus pais, Diogo e Gomes, respectivamente, que se mistura ao intenso desejo sexual que experimentam mutuamente. O ódio entre os dois patriarcas faz com que Gomes insulte Diogo com uma cusparada no rosto; este, velho e doente, nada pôde fazer para revidar, mas exige que seu filho, Rodrigo, vingue-o. O rapaz, mesmo com medo da ira de Ximena, mata Gomes e recupera a honra da sua família.

Em entrevista concedida à editora do livro, o autor declara que pesquisou em livros como O Garimpeiro, de Bernardo Guimarães, e Cascalho, de Herberto Salles, o espaço que comporia o romance. Porém, Estevão Azevedo capta influências em outras obras, essencialmente muito diferentes, e realiza uma “colagem” de referências que são habilidosamente combinadas em Tempo de espalhar pedras.  No que se refere ao enredo, há muita semelhança com a tragicomédia Le Cid (1636), de Pierre Corneille, em que Conde Gomes, pai de Ximena, humilha Dom Diogo, pai de Rodrigo. Para restaurar a honra de família, Rodrigo duela com Conde Gomes e vence. Desamparada, Ximena pede ao rei que puna Rodrigo com a morte, mas esse se recusa e, ao final da peça, determina que estes se casem. A fragilidade que a mulher apresenta na tragicomédia francesa, associada à vida na corte, torna incogitável a possibilidade de que ela mesma vingue seu pai. Em outro cenário, muito diferente da corte de El Cid, a vingança, calcada na tentativa de preservação daquilo que, muitas vezes, é tudo o que se tem – a honra –, vai além. A Lei de Talião, fio condutor da obra de Ismail Kadaré, Abril despedaçado (1978, no Brasil), transposta para o sertão brasileiro pela primeira vez no filme homônimo de Karim Aïnouz e Walter Salles (2002), é revisitada por Estevão Azevedo e levada às últimas consequências quando, diante da recusa do coronel – autoridade da vila a quem cabia garantir a justiça – a ordenar que seus capangas assassinassem Rodrigo, a própria Ximena, rompendo com a masculinidade exigida na manutenção desse código de honra, embosca Diogo e o mata.

A privação imposta pelo cenário escolhido por Estevão Azevedo estabelece, também, uma ligação com o sertão de Vidas Secas (2007), de Graciliano Ramos. O espaço opressor, comum a ambas as narrativas, impõe às personagens características que podem ser verificadas em ambos os romances, como a inabilidade para o afeto e o desejo de encontrar um alento, por mínimo que seja, frente à penúria: Vitória e Sinha Vitória desejam objetos tão irrisórios quanto inalcançáveis – uma penteadeira, e uma cama de couro, respectivamente. Outra semelhança está na sabedoria dessas duas personagens femininas, que em muito ultrapassa a visão dos homens: Vitória tem ciência de que a ganância causará a ruína de todos os habitantes da vila; em Vidas secas, Sinha Vitória deseja que os filhos estudem porque sabe que somente assim a história da família poderia mudar, rompendo, assim, o enredo cíclico do romance. Ximena, pertencente a uma geração diferente, recusa-se a fazer os trabalhos domésticos, ressaltando, inclusive, que não cozinharia para Rodrigo, ainda que viessem a viver juntos, e controla o seu corpo, pois faz sexo quando quer, diferentemente da mãe.

A semelhança pode ser notada, também, na inaptidão que o Menino Mais Velho, o Menino Mais Novo e Silvério apresentam para lidar com pessoas que não fazem parte dos seus convívios sociais, como ocorre no capítulos “Festa” e o capítulo dezesseis, em que Silvério, criança, também vai a uma festa na vila:

Os dois meninos […] não sentiam curiosidade, sentiam medo, e por isso pisavam devagar, receando chamar a atenção das pessoas. Supunham que existiam mundos diferentes da fazenda, mundos maravilhosos na serra azulada. Aquilo, porém, era esquisito. (RAMOS, 2007, p. 35)

Diante dele [Silvério], no entanto, súbito postavam-se pernas, uma confusão de pernas, de todos os talhes […] bloqueando seus passos curtos, ameaçando-o com os grandes joelhos inchados. Era um rebanho, nunca vira tantos homens juntos. (AZEVEDO, 2014, p. 124)

Há, além disso, referência ao filme Viajo porque preciso, volto porque te amo, de Karim Aïnouz e Marcelo Gomes (2009). Se, por um lado, essa referência está expressa, explicitamente, a nosso ver, apenas em uma frase do pensamento de Ximena – “a vida-lazer” (AZEVEDO, 2014, p. 72) –, por outro, associa-se muito mais profundamente ao significado do neologismo: no filme, Patrícia Simone da Silva declara a José Renato, protagonista e narrador, o seu maior sonho: ter uma casa, em que ela possa viver bem com a sua filha, e um amor que seja reservado só pra ela. Ximena, na passagem citada, embora declare que o seu desejo por Rodrigo é apenas sexual, confessa seu ciúme por ele e admite que “até mais queria. Pelo menos assim se sentia” (p. 72). A dificuldade, de Patrícia Simone e de Ximena, em expressar a sua vontade de ter um amor e uma vida confortável, situação tão distante da realidade em que vivem, culmina na síntese “vida-lazer”.

Na vila de garimpeiros em que se passa a história de Tempo de espalhar pedras, a brutalidade envolvida em erodir a terra, inutilizá-la e extrair dela, à força, o metal precioso, ultrapassa o ofício e invade as relações de amizade, amorosas e familiares. Em contraste com a violência do afeto, como ocorre na amizade entre Joca e Bezerra, e das pulsões humanas expostas pelo ambiente de miséria, a narrativa do romance, como parece ser uma tendência na literatura brasileira contemporânea, é expressivamente poética:

O rio […] seca e faz que morre, mas não morre, volta a correr, o mesmo rio. O rio, então, só pode de ser as margens. A água é de pouca confiança, vai e volta; a margem, de poeira alaranjada e que se esfarela ao toque do pé do homem, essa permanece ali a vida toda. Virá a fome. Lágrima também nunca matou a sede de ninguém (AZEVEDO, 2014, p. 125).

Estevão Azevedo, em seu segundo livro, utiliza constantemente o recurso da intertextualidade, conforme definição de Kristeva (1969), para compor a intriga, os cenários e as personagens, modificando, porém, substancialmente, a submissão da personagem feminina no espaço que corresponde ao sertão. Tempo de espalhar pedras, ao dialogar com outras narrativas, convoca a enciclopédia pessoal do leitor, a quem cabe reconhecer os intertextos a que o romance faz alusão a fim de compreender a obra em sua totalidade, de modo que, ao lermos esse romance, lemos muitos outros. A referência a obras anteriores que abordam diversos tipos de exploração e sofrimentos humanos é misturada a uma narrativa expressivamente poética, o que acaba por atenuar a crueza do romance e fortalecer a ideia apresentada ao leitor no desfecho: mesmo os homens e as mulheres mais embrutecidos podem amar, ainda que à sua maneira, mas, para que haja tempo de amar, é preciso que haja tempo de odiar e, para que haja tempo de viver, é preciso que, antes, se tenha morrido.

Referências

Abril despedaçado. Produção: Arthur Cohn. Intérpretes: José Dumont; Rodrigo Santoro; Rita Assemany; Luiz Carlos Vasconcelos. Burbank: Buena Vista Internation e Miramax, 2001. 1 DVD (105 min), son., color. Produzido no Pólo Industrial de Manaus;

Azevedo, E. Tempo de espalhar pedras. São Paulo: Cosac-Naify, 2013;

Kristeva, J. Introdução à semianálise. São Paulo: Debates, 1969;

Ramos, G. Vidas Secas. São Paulo: Record, 2007;

Viajo porque preciso, volto porque te amo. Produção: João Vieira Jr. e Daniela Capelato. Intérprete: Irandhir Santos. São Paulo: Espaço Filmes, 2009. 1 DVD (75 min), son., color. Produzido no Pólo Industrial de Manaus;

 

[1] “Tudo neste mundo tem seu tempo; / cada coisa tem sua ocasião. / Há um tempo de nascer e tempo de morrer; / tempo de plantar e tempo de arrancar; / tempo de matar e tempo de curar; / tempo de derrubar e tempo de construir; / Há tempo de ficar triste e tempo de se alegrar: / tempo de chorar e tempo de dançar; / tempo de espalhar pedras e tempo de ajuntá-las; / tempo de abraçar e tempo de afastar; / Há tempo de procurar e tempo de perder; / tempo de economizar e tempo de desperdiçar; / tempo de rasgar e tempo de remendar; / tempo de ficar calado e tempo de falar. / Há tempo de amar e tempo de odiar / tempo de guerra e tempo de paz.” (Eclesiaste 3, 1-8)

 

Data de envio: 06/01/2016