A metáfora do caminho em “O auto da barca do inferno”

Bruno Felipe Marques Pinheiro

RESUMO: Uma das peças de maior renome no Teatro Vicentino, O Auto da Barca do Inferno, além de trazer um cunho social e satírico, desperta, para a Teoria Literária, muitas informações que abrem diversas possibilidades de interpretação. A presente análise pretende realizar um estudo em que se utiliza da metáfora do caminho para nos levar à compreensão das questões de danação e salvação, a partir da análise dos processos de alegoria e metáfora que o teatrólogo Gil Vicente utiliza em seu texto para fazer críticas à sociedade de sua época.

PALAVRAS-CHAVE: Teoria Literária. Alegoria. Metáfora. Gil Vicente. O Auto da Barca do Inferno.

ABSTRACT: As of the pieces from the most renowned in Vincentian Theater, O Auto da Barca do Inferno, over there of to bring the social and satirical impress, awakens, to the Literary Theory, much information which open up various possibilities for interpretation.  That the present proposal  to carry a study in that uses the metaphor of the way to lead us to take an understanding of the questions of damnation and salvation, from the analysis of the processes of allegory and metaphor that the theatologist Gil Vicente uses in his text to make critiques to the society of his time.

KEYWORDS: Literary theory. Allegory. Metaphor. Gil Vicente. O Auto da Barca do Inferno.

 

O Teatrólogo Gil Vicente marca uma transição entre a Idade Média e a Renascença, possuindo traços de uma visão que busca o passado, mas, ao mesmo tempo, contempla o futuro por meio do confronto ideológico. Sua popularidade se tornou possível a partir do momento em que os espetáculos deixaram de ser encenados apenas nas Igrejas e passaram a ser representados nas ruas.

O Teatro Vicentino pode ser dividido em períodos, de modo que o podemos classificar em três fases principais: 1ª (de 1502 a 1514); 2ª (de 1515 a 1527) e 3ª (de 1528 até 1536). O Auto da Barca do Inferno encontra-se na 2ª fase e pertence a uma trilogia conhecida como Trilogia das Barcas, essa não foi planejada, mas devido ao sucesso da primeira obra o autor deu continuidade ao tema.

De acordo com Saraiva e Lopes (1975), Gil Vicente compôs autos pastoris, de moralidade, cavalheirescos, farsas e alegorias de temas religiosos, profanos e fantasias alegóricas. Dentre essa produção está o Auto da Barca do Inferno, que tem como propósito a sátira social, predominando a edificação religiosa. A obra mencionada acima foi publicada em 1517 e impressa em folheto com a finalidade de criticar a sociedade portuguesa.

A presente análise pretende realizar um estudo em que se utiliza da Metáfora do Caminho para nos levar à compreensão das questões de danação e salvação, a partir da análise dos processos de alegoria e metáfora que o teatrólogo Gil Vicente utiliza em seu texto para fazer críticas à sociedade de sua época.

Nesse sentido, utilizaremos a figura da barca como um meio para explicação da metáfora do caminho, bem como o significado de alegoria. Tais concepções são empregadas para evidenciar a constituição do verdadeiro caráter do indivíduo, tendo este o seu destino determinado pelas suas ações, escolhendo seu caminho com atitudes, sejam elas boas ou más.

A Barca como Alegoria

Muitos são os estudos dentro da Teoria Literária que abarcam a questão da alegoria como um elemento de estética, isso nos ajuda a compreender melhor um texto literário, uma vez que o mundo é povoado de significados, referências e suprassentidos. De acordo com o teórico Carlos Ceia (2009, p. 29) a alegoria,

etimologicamente, o grego allegoría significa ‘dizer o outro’, ‘dizer alguma coisa diferente do sentido literal’, e veio substituir ao tempo de Plutarco (c.46-120 d.C.) um termo mais antigo: hypónoia, que queria dizer ‘significação oculta’ e que era utilizado para interpretar, por exemplo, os mitos de Homero como personificações de princípios morais ou forças sobrenaturais, método que teve como foi especialista Aristarco de Samotrácia (c.215-143 a.C.). A alegoria distingue-se do símbolo pelo seu carácter moral e por tomar a realidade representada elemento a elemento e não no seu conjunto.

É nesse sentido exposto acima que Gil Vicente utiliza a imagem da barca para expressar uma forma de alegoria, que por ora está oculto, mas ao decorrer do artigo iremos esclarecer. Tal concepção dita é de grande valia para ajudar a compreender o processo da metáfora do caminho, proposta deste artigo, que ocorre no Auto da Barca do Inferno, uma vez que sua peça tem esse caráter alegórico.

A alegoria constitui um discurso que, como revela a etimologia do vocábulo, faz entender outro ou alude a outro, que fala de uma coisa referindo-se a outra. Empregando imagens, figuras, pessoas, animais, o primeiro discurso concretiza as ideias, qualidades ou entidades abstratas que compõem o outro (MASSAUD, 2004, p. 14).

Logo, a alegoria deve ser compreendida como uma construção ornamental do discurso essencialmente linguística. Parte do real extralinguístico e é essencialmente espiritual. Assim, “a alegoria dos poetas é uma semântica de palavras” (HASEN, 2006, p.09) Ou seja, deve ser pensada como um dispositivo retórico que regula as inúmeras ornamentações no discurso.

Dessa maneira, a alegoria como ornamentação do discurso parte de uma função retórica. Em seu auto, logo no título, Gil Vicente usa de uma alegoria para realizar uma crítica social, e, ao passo em que lemos toda a peça, por meio do seu enredo, aos poucos, nos é revelada a verdadeira identidade de alegoria, uma transposição semântica de sentidos figurados (cf. HANSEN, 2006). Isso se torna claro no início da peça, em que já se destaca essa função alegórica:

DIABO: À Barca, à barca, houlá!
que temos gentil maré![1]
– Ora venha o caro à ré[2]
COMPANHEIRO: Feito, feito (VICENTE, 2003, p. 38).

A alegoria, conforme Massaud (2004), pode ser propriamente literária, que é o caso do auto em análise, mas também, pode ser bíblica ou teológica, exercendo o caráter de intencionalidade que, neste caso, acreditamos ser a proposta de Gil Vicente: usá-la como um meio para mostrar uma determinada finalidade, a qual faz uma abertura para compreendermos a barca como o caminho. Ela passa a ser um recurso retórico para o trilhar das personagens ao longo de toda narrativa.

a alegoria transforma o fenômeno em um conceito e o conceito em uma imagem, mas de modo que o conceito na imagem deva ser considerado sempre circunscrito e complexo na imagem e determinado a exprimir-se através dela. (ECO, 2010, p. 112).

Nesse ponto, as barcas, tanto do Diabo como a do Anjo, são consideradas imagens e, por sua vez, são alegorias que podem tomar a posição de conceito. O caminho é um possível tema para a narrativa, uma vez que conotativamente podemos entender a barca como um status/imagem do caminho que leva as personagens para salvação ou danação.

Corroborando com esse pensamento, de acordo com Umberto Eco (2010), a alegoria pode ser de dois tipos: de palavra e/ou de fatos. Em O Auto da Barca do Inferno, Gil Vicente faz uma alegoria de palavra, utilizada pelo vocábulo [barca], porém, por se tratar justamente da alegoria in verbis, suas consequências assemelham-se como a de uma metáfora:

quando lemos uma metáfora ou uma alegoria in verbis, nós, de fato, com base em normas retóricas bastante codificadas, a traduzimos facilmente e compreendemos o que o enunciador pretendia fazer, como se o significado metafórico fosse o sentido literal direto da expressão. Não há, então, esforço hermenêutico particular; a metáfora ou a alegoria in verbis são compreendidas diretamente, assim como entendemos diretamente a uma catacrese. (ECO, 2010, p. 149).

Dessa maneira, percebemos que a alegoria é “uma metáfora ampliada” (CEIA, 2009, p. 29). Com isso, o sintagma nominal [barca] constitui uma personificação por favorecer assim a ideia da luta entre danação e salvação, ideias essas que se referem às sensações humanas. Ao mesmo tempo, o autor satiriza atitudes e ações que as personagens, ao longo de suas passagens nas barcas, utilizam, gerando assim essa dualidade entre as ideias mencionadas acima.

A Metáfora do Caminho

Quando nos deparamos com os textos de Gil Vicente, especialmente, o Auto da Barca do Inferno, observamos uma relação existente entre o Teatro e a Poesia. Tal junção é possível, porque os autos vicentinos possuem uma capacidade de, por intermédio dos seus diálogos, conjugar uma modulação perfeita entre o dramático e o poético. Logo, essa dicotomia imprime duas características: a primeira é “caracterizada pelo máximo de concentração vocabular e de efeito semântico” (MASSAUD, 1967, p. 141); e a segunda é o da densidade verbal que ajuda a dar um ritmo poético ao texto teatral, contribuindo para uma aproximação com a poesia.

Isso nos leva a afirmar que Gil Vicente trata a relação teatro/poesia de uma forma frutífera (o liame do teatro com a poesia). Transformando, assim, seu teatro em um arquitexto. Na concepção de Gérard Genette (2010, p. 11), o objeto da poética não é um texto, e sim um algo a mais, o arquitexto. Ou seja, “conjunto das categorias gerais ou transcendentes dos quais se destacam cada texto singular”.

Tal concepção pode ser correlacionada com o objetivo deste artigo: demonstrar a metáfora do caminho. Mas eis que surge a indagação, o que vem a ser Metáfora? Ou até mesmo nos perguntamos: Alegoria e Metáfora não seriam as mesmas coisas? De acordo do Ceia (2009, p. 29) “uma forma de distinguir metáfora e alegoria é a proposta pelos retóricos antigos: a primeira considera apenas termos isolados; a segunda, amplia-se a expressões ou textos inteiros”.

Já para Massaud (2004), em sua obra Dicionário para Termos Literários, o autor apresenta o conceito do ponto de vista de vários teóricos, destacamos, aqui, o do norte-americano Philip Whielwright que, reportando-se a Aristóteles em A Poética, utiliza sua forma enfática e declarada:

entrevê na palavra ‘metáfora’ outras duas, epífora e diáfora, a primeira das quais assinalaria ‘a transferência e extensão de sentido mediada pela comparação, e a outra, a criação de um novo significado por justaposição e síntese (MASSAUD, 2014, p. 285).

Logo, percebemos que há uma diferença de significação entre a alegoria e a metáfora no viés que propomos, pois a barca no auto é um elemento de composição alegórico e possui um caráter imagético, já a metáfora pode ser encontrada em palavras ao longo do texto literário que possibilitem uma transferência de significado do literal, essa tendo um caráter puramente semântico, ou seja, uma extensão do sentido de alegoria. Entretanto, tanto a alegoria como a metáfora, ajudam-nos a compreender a questão do caminho, pois a todo momento no auto se entrelaçam entre si.

Primeiramente, é preciso atinar para tal metáfora, porque essa só pode ser compreendida mediante o contexto do auto e, particularmente, quando a peça se encerra. Somente o leitor poderá ter a consciência de que parte da metáfora inserida no texto ilumina e se manifesta por meio do percurso dramático referente ao texto teatral, só dessa forma o significado das metáforas presentes no texto poderá nortear e pontilhar a narrativa:

embora a distinção entre interpretação literal e interpretação metafórica seja uma distinção estritamente semântica, a interpretação de uma metáfora envolve a consideração do contexto onde ela é empregada. É o contexto que revela se uma expressão está sendo usada metafórica ou literalmente. Essa dependência do contexto faz com que o estudo da metáfora seja tomado como parte integrante da pragmática da linguagem (FINGER, 1996, p. 62)

Para melhor apreender o contexto é preciso salientar que Gil Vicente, ao escrever essa peça, quis satirizar os costumes e hábitos da sociedade de sua época. O auto foi construído a partir de raízes medievais e é bom lembrar de que naquele período o “poeta dramático” escrevia para a realeza. A religiosidade era uma característica recorrente na Europa, por isso a riqueza de elementos cristãos e a presença da nobreza e do clero permeavam as suas peças.

De fato, o contexto é de suma importância para compreender a função da metáfora dentro do Auto da Barca do Inferno, já que pode configurar uma interpretação de caminho estabelecida na obra. Para confirmar isso, o contexto deve cumprir dois papeis diferentes: o primeiro é assinalar uma expressão que deve ser metaforicamente interpretada e revelar ao leitor conotações possíveis de crenças e propósitos do autor (cf. FINGER, 1996), e essa primeira proposição pode ser confirmada no seguinte trecho do diálogo entre o Fidalgo e o Diabo, e, portanto, deve se atentar para a expressão usada pelo autor:

FIDALGO: Quê? Quê? Quê? E assim lhe vai?
DIABO: Vai ou vem, embarcai prestes![3]
Segundo lá escolhestes[4]
Assim cá vos contentai[5]
Pois que já a morte passassés[6]
Haveis de passar o rio. (VICENTE, 2003, p. 40, grifos nossos)

O vocábulo [rio], utilizada no trecho acima, pode ser compreendido metaforicamente como caminho, pois ao colocar tal palavra se confirma uma possível crença de que o trecho esteja se referindo ao caminho do paraíso e do inferno, havendo aí uma transferência e extensão do significado da palavra [rio].

Um segundo aspecto para o contexto é propor conotações em palavras e lugares-comuns que são relevantes à narrativa (cf. Finger, 1996). A palavra [rio] refere-se a lugar, isso demostra que todas as personagens que chegam para embarcar estão em busca do seu próprio caminho, uma interpretação disso é a do juízo final. Outras duas passagens que conotam uma metáfora é um diálogo entre o Onzeneiro e o Diabo:

ONZENEIRO: Oh, que barca tão valente!
Para onde caminhais?
DIABO: Oh! Que má-hora venhais,
Onzeneiro, meu parente!
Como tardastes vós tanto? (VICENTE, 2003, p. 44, grifos nossos)

DIABO: Entra, entra! Remarás!
Não percamos mais maré!
ONZENEIRO: Todavia…
DIABO: Por forc´é![7]
Ainda que te custe, cá entrarás!
Irás servir Satanás (VICENTE, 2003, p. 46, grifos nossos).

As palavras [caminhais] e [maré] também podem significar caminho; são palavras que se referem a um lugar e revelam uma crença de Gil Vicente que podem indicar o paraíso e o inferno. Essas situações acontecem, de acordo com o pensamento de Finger (1996), devido ao Princípio da Caridade[8]. Por meio da aplicação desse princípio, é possível solucionar o problema da metáfora com o reconhecimento da noção de implicativa conversacional[9] e o reconhecimento de significados metafóricos:

numa situação de diálogo em que uma metáfora é empregada, o que parece acontecer é que o ouvinte atribui ao falante a proposição que ele acredita ter sido o que a pessoa quis dizer, ou seja, aquilo que ele, ouvinte, acredita ter sido o significado do falante com o proferimentos (FINGER, 1996, p. 85).

As expressões [rio], [caminhais] e [maré] são usadas por Gil Vicente como proferimentos metafóricos. Para que tais vocábulos sejam interpretados como atribuições dadas pelo autor, é necessário que seus significados sejam tomados como um sentido inferencial causado pela interpretação, isso devido à utilização da comunicação humana e ao estabelecer uma metáfora, o que pronuncia não se compromete, mas deixa algo diferente (cf. FINGER, 1996).

A metáfora do caminho encontrada em O Auto da Barca do Inferno causa certa densidade metafórica partindo do texto dramático, pois ao longo de toda peça é possível compreender dois caminhos: um referente à Barca do Diabo (Inferno), conotando a ideia de danação e outro que remete à Barca do Anjo (Paraíso), expressando a ideia da salvação.

a cada frase, o leitor (ou espectador) deve sentir como uma descarga elétrica, por meio da qual tem acesso a algo novo e imprevisto para sua consciência. E como todas as palavras pronunciadas têm a função e densidade semântica, à sequência do diálogo corresponde uma cadeia de informações inéditas que deflagram o suspense e a interrogação aflita (MASSAUD, 1967, p. 143-144).

Dessa maneira, podemos depreender que todas as falas apontadas acima se referem às expressões ditas, indicando, assim, uma metáfora para o caminho.

O Caminho: construção da salvação e da danação

Gil Vicente, em O Auto da Barca do Inferno, resulta em dois principais afluentes. O primeiro é a paródia, que nem sempre é satírica, mas nesse caso é de suma importância para a peça teatral, além de ser composta por tipos sociais estereotipados, e mesmo sendo uma tragédia, tem certo teor de comédia. O outro afluente é o didático-religioso que se destina a transmitir a doutrina da Igreja Católica (cf. FINGER, 1996).

Esses dois aspectos nos ajudam a compreender como se origina a trajetória do caminho, como uma construção para a danação e a salvação. O teatrólogo, ao usar elementos do Cristianismo nessa peça, retrata o mistério da encarnação e da luta entre o Deus e o Diabo.

No auto em análise, especificamente, destaca-se a figura do compére[10], que é o Diabo, essa põe em prova todos os diversos tipos de personagens, construindo uma antítese entre o que é salvação e danação. No teatro vicentino não há caracteres individuais, mas apenas tipos de uma só peça, sejam personagens sociais ou/e psicológicos, é o caso do Fidalgo ao dirigir-se à Barca do Anjo:

FIDALGO: Não sei por que haveis por mal
que entre minha senhoria…
ANJO: Para vossa fantasia
Muito estreita é esta barca
FIDALGO: Para senhor de tal marca
não há aqui mais cortesia?
Venha prancha e atavio![11]
ANJO: Levai-me desta ribeira!
Não vindes vós de maneira
para ir neste navio.
Esse outro vai mais vazio:
a cadeira entrará
e o rabo caberá
e todo vosso senhorio (VICENTE, 2003, p. 40-41)

Podemos inferir que quando o Fidalgo se dirige à barca, ele é tomado por tal atitude para conseguir entrar nela que é capaz de oferece todas as suas riquezas. Entretanto, o anjo diz que só quem poderia transportar tais riquezas era a barca do Diabo (Inferno). Com isso, identificamos que os objetos da cadeira (representando o poder político), o rabo (a cauda de seu manto) e o senhorio (suas terras), exercem valor de riquezas materiais.

Na maioria das vezes, a crítica que Gil Vicente tece em seus autos é em relação às estruturas políticas e sociais, como vimos no caso do Fidalgo, estabelecendo, assim, por um esquema religioso enquadrado nas peças teatrais, personagens consideradas profanas. Outro caso é o Judeu:

JOANE: E comia a carne da panela
no dia de Nosso Senhor!
E aperta o salvanor[12]
e mija na caravela!
DIABO: Vamos, vamos! Demos à vela!
Vós judeu, ireis à toa[13]
que sois muito ruim pessoa
Levai o cabrão na trela! (VICENTE, 2003, p. 60).

O judeu, nesse auto, ocupa a função de um tipo moral e social que é discriminado pela sociedade daquela época, sem direitos e deveres nenhum, no qual percebemos implicitamente o preconceito e uma sobreposição de fatores étnicos e culturais da religião vigorante na época.

Interessante apontar também para as personagens dos cavaleiros, pois todos passaram pela barca do Anjo, e somente eles são ditos puros por defenderem a fé.

ANJO: Ó cavaleiros de Deus,
a vós estou esperando
que morrestes pelejando
por Cristo, Senhor dos Céus!
Sois livres de todo mal,
mártires da Madre Igreja,
que quem morre em tal peleja
merece paz eternal

E assim embarcaram (VICENTE, 2003, p. 70).

Nessa passagem fica clara a construção que Gil Vicente faz em relação ao profano (representação do mal) e ao sagrado (representação do bem). Esse binômio, presente em todo O Auto da Barca do Inferno, nos leva a identificar a metáfora do caminho como uma proposta de leitura, refletida por meio dos símbolos das personagens que chegam para o juízo final: “o simbolismo de Gil Vicente consiste neste contraste entre o profano e o sagrado, que é também o contraste de luz e sombra, entre as formas geométricas e enrugadas” (SARAIVA, 1999, p. 45).

Considerações Finais

O Auto da Barca do Inferno ocupa o lugar das peças mais conhecidas de toda carreira de Gil Vicente e tal afirmativa gera inúmeros estudos acerca desse auto. Este artigo teve como propósito realizar mais um estudo e uma possibilidade de leitura, favorecendo uma interpretação que tinha como intuito mostrar a metáfora do Caminho existente nele, por meio de indícios deixados pelo próprio texto literário.

O enorme sucesso que Gil Vicente fez e até hoje faz com suas peças, por mais que suas construções sejam complexas, devido a uma modulação de seu tempo, deve-se ao fato de ele ser de outra época, mas, ao mesmo tempo, ser atual e se adaptar a qualquer modelo de sociedade.

É nítido que a cada leitura que realizamos de uma obra vicentina, fazemos com que as palavras lidas tragam sensações de suspense, comédia e tragédia, além de inebriar os pensamentos dos leitores favorecendo o levantamento de questionamentos e contribuindo para reflexões.

A utilização da metáfora do caminho por Gil Vicente revela, portanto, uma visão dualista acerca do homem e da vida, visão que pode ser denotada através da relação salvação/danação presente na obra. No que concerne ao homem, essa característica é facilmente percebida por meio do julgamento das qualidades e defeitos do indivíduo. Aquele que em vida realizou boas obras segue seu percurso rumo à barca do Anjo sem nenhum ornamento material que caracterize a sua ligação afetiva aos costumes mundanos.

Nesse ponto, destacamos a figura dos cavaleiros das Cruzadas, pois somente eles foram capazes de passar pela barca do Anjo, ganhando uma conotação de leveza e desprendimento característico do ideal de alma humilde da Fé Cristã. Entretanto, as outras personagens que se dirigem à barca do Inferno possuem manchas de pecado, imoralidade, corrupção e deturpação dos valores divinos. Surgem apegados aos objetos que simbolizam a sua mácula e, junto à significação do seu nome, montam estereótipos que são alvos da sátira social do autor.

As barcas representam o caminho da salvação e danação, uma espécie de portal que levará o indivíduo ao destino que merece, segundo a moral religiosa. Dessa forma, a obra evidencia os dualismos existentes da salvação/danação e céu/ inferno, mas de forma indissociável ao verdadeiro caráter e como resultado do livre arbítrio imposto às personagens da obra.

Referências

CEIA, Carlos: s.v. “Alegoria”, E-Dicionário de Termos Literários (EDTL), coord. de Carlos Ceia, 2009.

ECO, Umberto. Arte e beleza na estética medieval. Trad. Mário Sabino Filho. Rio de Janeiro: Record, 2010.

FINGER, Ingrid. Metáfora e significação. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996 (Coleção Filosofia 46).

GENETTE, Gérard. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Trad. Cibele Braga et al. Belo horizonte: Edições Viva Voz, 2010.

______. Introdução ao Arquitexto. Trad. Cibele Braga. Lisboa: Veja, 1987.

HANSEN, João Adolfo. Alegoria, Construção e Interpretação da Metáfora. São Paulo: Hedra; Campinas: Editora da UNICAMP, 2006.

MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa através dos Textos. São Paulo: Cultrix, 1978.

______. A criação literária: prosa II. 20 ed. São Paulo: Cultrix, 2007.

______Dicionário de termos literários. 12ª ed. São Paulo: Cultrix, 2004.

SARAIVA, Antônio José. Iniciação à Literatura Portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

SARAIVA, A. J.; LOPES, O. História da Literatura Portuguesa. Porto: Editora Porto, 1975

VICENTE, Gil. Auto da Índia; Auto da Barca do Inferno; Farsa de Inês Pereira. Adaptação e notas por Benjamin Abdala Junior. 2ª ed. São Paulo: Editora Senac SP, 2003.

 

[1] Pois temos maré propícia.

[2] Ora venha o carro (parte inferior da verga da vela da embarcação latina) à ré.

[3] Vai ou vem, embarcai rapidamente.

[4] Segundo lá escolhestes a vida.

[5] Assim aqui vos contentai.

[6] Pois que já a morte passáreis.

[7] Por força.

[8] Expressa a tentativa (preocupação) do ouvinte de maximizar a coerência no sistema de crenças atribuída ao falante.

[9] Entende-se aqui como elementos que são oferecidos através do contexto e elementos dos diálogos que não estão explícitos, mas sim implicados pelos falantes.

[10] Personagem que interpela e faz falar todas as outras personagens.

[11] Atavio: complemento da prancha.

[12] E aperta com sua licença

[13] Vós judeu, ireis a reboque