O Romanceiro da Inconfidência e as vozes de fora da história

Waldyr Imbrosi

RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo analisar a obra Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles, e trabalhar as relações entre memória, história e literatura na obra. O Romanceiro reescreve, de forma poética, a história dos eventos da Inconfidência Mineira, dando diferentes tons a fatos preteridos pela história oficial e trazendo à tona vozes subalternas, também deixadas de lado pelos historiadores. Como base teórica para esse trabalho, utilizamos obras de Paul Ricoeur, Walter Benjamin, Lucia Helena Sgaraglia Manna e Aristóteles.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura e história, Memória, Cecília Meireles, Romanceiro da Inconfidência.

ABSTRACT: This paper aims at analyzing the work Romanceiro da Inconfidência, by Cecilia Meireles, and reflecting on the relationships between Memory, History and Literature. Romanceiro rewrites, in poetic form, the story of the events of Minas Conspiracy, giving different tones to facts deprecated by the official History and bringing out subaltern voices, also left out by historians. As a theoretical basis for this paper, we rely on the works of Paul Ricoeur, Walter Benjamin, Lucia Helena Sgaraglia Manna and Aristotle.

KEYWORDS: Literature and History, Memory, Cecília Meireles, Romanceiro da Inconfidência.

 

1 A autora: Cecília Meireles

“Não diga palavras vãs”
Cecília Meireles, Cânticos, III.

Cecília Meireles nasceu no Rio de Janeiro, no dia 07 de novembro de 1901, e foi criada por sua avó, de origem açoriana, em decorrência da prematura morte de seus pais. Autora de dezenas de obras de poesia, considerou sua própria infância como solitária, como ela viria a descrever em seu livro autobiográfico Olhinhos de Gato. Entretanto, essa solidão infantil nunca foi considerada por ela como perniciosa: valorizava sobremaneira a solidão e o silêncio, os quais considerava “a área de minha vida”. Área mágica, onde os caleidoscópios inventaram fabulosos mundos geométricos, onde os mundos revelaram o segredo do seu mecanismo, e as bonecas o jogo do seu olhar” (MEIRELES, 1987, p. 59). Recebeu destaques na sua turma de escola e sempre se dedicou à leitura de forma ávida, lendo o que lhe chegava à mão desde que se lembra saber ler. A criação da avó e da ama, uma negra chamada Pedrina, povoaram sua criancice de histórias, adivinhações e riquezas do folclore brasileiro e açoriano.

Ao longo da sua vida, exerceu a carreira de jornalista, professora infantil e, por um breve período, de professora universitária. Viajou por diversos países em intercâmbio cultural, entre eles Açores, alguns países da Europa e a Índia, realizando parte do desejo de conhecer a cultura oriental, pela qual era fascinada desde a sua adolescência. A primeira publicação de Cecília deu-se em 1919, com o livro Espectro, coletânea de sonetos de inspiração simbolista. Segue-se a isso um período de intensas atividades literárias em que ela se relacionou estreitamente com poetas, como Andrade Muricy e Tasso da Silveira. Paralelamente à eclosão do movimento modernista em São Paulo, esse grupo – que se convencionou chamar espiritualista – seguiu um rumo um tanto dessemelhante:

O convívio de Cecília Meireles com os intelectuais do grupo deve-se ao fato de eles apresentarem uma proposta independente das coordenadas gerais do movimento modernista de São Paulo e de introduzirem, na criação, o diálogo com o pensamento filosófico. Sem responder diretamente aos propósitos de afirmação da nacionalidade e de inovações formais e ideológicas, o grupo ligado À Festa [revista fundada pelos espiritualistas] pretende ampliar os limites do projeto modernista em prol de uma arte mais universalista.(MELLO, 2009, p. 10)

Darcy Damasceno indica que a marca simbolista em Cecília torna-se mais forte e mais trabalhada em suas publicações posteriores, mas que seu desligamento desse e de qualquer outro grupo fez-se com a publicação de Viagem (DAMASCENO, 1987), obra eclética que lhe renderia o Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras. Considera-se que Cecília Meireles desenvolveu-se de forma relativamente independente às escolas literárias; Mário de Andrade chega a afirmar que ela passou “não exatamente incólume, mas demonstrando firme resistência a qualquer adesão passiva” ao nosso movimento Modernista. Ela mesma teria afirmado que tinha interesse pelas escolas literárias de um ponto de vista apenas histórico (DAMASCENO, 1987). A temática da poesia de Cecília gira em torno da problemática do passageiro, da efemeridade do tempo, da angústia de não poder deter o fugaz instante presente e da fragilidade da vida; esses temas, noRomanceiro, aparecem com muita frequência ligados à transitoriedade das posições e das riquezas terrenas e à inexorabilidade da morte, mais forte e poderosa que todas as coisas. Além disso, tal temática está marcada no desejo de retornar ao passado para reconstruir e compreender a frustrada rebelião mineira (MELLO, 2009, p.13-14), e reescrever, em verso, a história da Inconfidência.

2 Sobre o Romanceiro da Inconfidência

“Deixei Ouro Preto – e seguiram comigo todos esses fantasmas”
Cecília Meireles, em conferência em Ouro Preto

A ideia da obra Romanceiro da Inconfidência começa a surgir para Cecília no ano de 1943, quando ela viaja para os locais onde aconteceram os principais fatos da Inconfidência Mineira a fim de realizar uma reportagem sobre o tema. De acordo com a autora, o propósito inicial teve de ser abandonado: dentro da antiga Vila Rica, Cecília teria escutado “os homens de outrora” a contarem sua história, as “pedras e as grades da cadeia” a contarem da sua construção, enfim, o “apelo” de diversos fantasmas que exigiam que sua história fosse contada, e que Cecília fosse locutora também partícipe dela.

Seguiram-se anos de laboriosa pesquisa histórica e de trabalho artístico, até que em 1953 veio a público o Romanceiro. A obra conta com cinco “Falas”, quatro “Cenários”, uma “Imaginária Serenata”, um “Retrato” e oitenta e cinco “Romances”, e traça um verdadeiro retrato da sociedade mineira do final do século XVIII e dos acontecimentos da Inconfidência. O livro pode ser considerado polifônico (MELLO, p. 13), já que diversos personagens, de ciganos a poetas, aparecem para dar sua contribuição pessoal na construção do texto poético.

A escolha do título e da forma – Romanceiro – parece curiosa. Ao buscarmos o significado desse termo, lembramo-nos das coletâneas medievais de textos frequentemente retirados da cultura popular. Como sabemos, a Idade Média é um dos elementos que encantava Cecília Meireles, de modo que ela pode ser considerada como uma das raízes espirituais de sua poesia (MEIRELES, 1987, p. 68). A própria autora chama a atenção para sua escolha na famosa conferência feita por ela em Ouro Preto, em 1955:

O Romanceiro teria a vantagem de ser narrativo e lírico; de entremear a possível linguagem da época à dos nossos dias; de, não podendo reconstruir inteiramente as cenas, também não as deformar inteiramente; de preservar aquela autenticidade que ajusta à verdade histórica o halo das tradições e da lenda.(MEIRELES, 2009, p. 25)

Percebemos pelo excerto acima certa preocupação de conseguir captar a realidade histórica da forma mais “verdadeira” possível e adaptá-la à linguagem e às percepções de sua época, a fim de não deformar a realidade histórica e de ao mesmo tempo envolvê-la em uma aura lendária. Lucia Helena Manna faz uma interessante análise dessa escolha, trabalhando a partir do conceito de Gladstone Chaves de Melo. Para ele, os romanceiros seriam

composições poéticas populares, vazadas em linguagem vulgar, narrativas de feitos heróicos ou extraordinários, mas com um toque qualquer de maravilhoso. (…) A rigor, (…) são epopéias guardadas na memória coletiva e traduzidas na íntegra ou nas partes autônomas, por aedos ou rapsodos, que, no caso do português, lhes dão feição métrica geralmente heptassílaba.(MELO apud MANNA, 1985, p. 22, grifos da autora)

A partir desse conceito, a pesquisadora lança o problema: já que os romanceiros são de origem popular, o nome da obra passaria a ser inadequado. Entretanto, Lucia Manna aponta para a perspectiva de Cecília Meireles, quando esta diz que “os fantasmas começaram a repetir suas próprias palavras de outrora: as palavras registradas nos depoimentos do processo, ou na memória tradicional”, dizendo mesmo que essas “vozes que falavam, que se confessavam (…) exigiam, quase, o registro da sua história” (MEIRELES, p. 23 e 26, grifo nosso).

Nesse sentido, ao ouvir as palavras lançadas pelos “fantasmas” e procurando dar voz a eles, reproduzindo-lhes a história, Cecília Meireles assumiria o papel de erudito que traz à luz as narrativas populares, as “epopéias guardadas na memória coletiva” (MANNA, 1985, p. 23), construindo então um romanceiro com as narrativas evocadas à memória pela presença em Ouro Preto e pela pesquisa histórica. Aliás, o estudo feito por Cecília Meireles foi meticuloso e aprofundado: pelas páginas do livro, encontramo-nos com personagens históricos de pouca notoriedade, mas que tiveram participação direta ou indireta no evento da Inconfidência e que foram recuperados e inseridos na narrativa pela autora. Assim, a obra constitui-se como uma reinterpretação e reescrita dos fatos históricos da rebelião de Minas.

O texto é fluido e de ritmo encantador. A autora retrata essa despreocupação nos versos (por vezes rimados, por vezes não) e revela ter sido indiferente mesmo à métrica no processo de criação dessa obra, embora ressalte que muitas vezes os versos vinham à sua cabeça já metrificados – no romanceiro, predominam os heptassílabos. A linguagem é culta e fácil de ser compreendida, sem grandes ornatos e com facilidade na leitura. Ela diz que o Romanceiro “se foi compondo”, em vez de ser composto por ela, pois ele teria se encontrado e imposto seu próprio ritmo sozinho, de modo tão aberto que cada poema teria encontrado uma forma condizente com a mensagem que queria passar. Parece haver um esforço por parte de Cecília em atribuir a criação de sua obra não a ela apenas, mas sim aos fantasmas que viveram esse passado, seja esse termo usado em uma acepção mais concreta, seja em uma metáfora que atribui à memória coletiva e às impressões históricas a fonte na qual ela bebeu para a sua composição.

Pode-se dividir a obra em três partes básicas: na primeira, retrata-se o florescimento da atividade mineiradora nas Minas Gerais e o início das inquietações contra a colônia; em seguida, segue-se a narrativa dos fatos da Inconfidência em si, as reuniões, as ideias, a união dos inconfidentes, o “fracasso” da rebelião. Finalmente, a terceira parte trata das consequências trazidas à vida dos envolvidos depois da repressão dessa conjuração[1]. Nas seções seguintes, passaremos a apresentar brevemente a obra, dividindo-a nas três partes essenciais que identificamos. Em tal análise, seguiremos mormente os apontamentos de Lúcia Helena Scaraglia Manna em sua pesquisa histórica sobre o Romanceiro.

2.1 Chegando à Vila Rica: o ouro

De seu calmo esconderijo, / o ouro vem, dócil e ingênuo;
torna-se pó, folha, barra, / prestígio, poder, engenho…
É tão claro! – e turva tudo: / honra, amor e pensamento.

Cecília Meireles, Romanceiro da Inconfidência,”Romance II ou Do Ouro Incansável”

Os eventos iniciais do livro dizem respeito à descoberta do ouro e à sua exploração. Entretanto, a Fala Inicial evoca o tema central do livro, na qual o falante, ao considerar-se imerso em “atroz labirinto de esquecimento e cegueira”, faz menção ao dia da morte do alferes Tiradentes. Pergunta-se ao sinistro vinte-e-um de abril, data da execução do alferes: “que intrigas, de ouro e de sonho / houve em tua formação?” (MEIRELES, 2009, p. 39). É a essa indagação que a obra se ocupa em responder.

O cenário localiza o eu poético dentro de Ouro Preto, observando, analisando, recebendo as impressões e escutando o que “dizem” as ruínas, as pontes, as flores e capelas, as escadas e muros, tomando, assim, a matéria da sua construção poética. Os romances de I a XI dedicam-se especialmente a ressaltar as loucuras, os desvarios e os excessos que a exploração e a sede pelo ouro causam à alma humana. Alguns romances tratam especificamente da situação dos escravos, obrigados a trabalhar desde a madrugada (Romance VII) e condenados à labuta até que possam comprar sua alforria, contrapondo-se ao retrato pintado pelo romance VI, que revela a suntuosidade da corte de Portugal – financiada pela exploração das minas da colônia.

Alguns elementos merecem destaque: o romance VIII é dedicado ao personagem Chico-Rei, supostamente rei do Congo, capturado e vendido como escravo no Brasil. Sendo um personagem do folclore mineiro, não existem evidências da sua existência (MANNA, 1985, p. 39), de modo que o texto composto por Cecília se desenvolve respeitando a cronologia da história, mas sem se furtar a inserir elementos cuja veracidade histórica é negada ou duvidosa. Chico-Rei é um símbolo de afirmação dos negros: ele é capaz de comprar sua própria alforria e de vários de seus companheiros, criando uma pequena tribo da qual é o líder. Esse episódio representa, assim, a perseverança e a luta do negro pela sua liberdade. O personagem aparece novamente no romance IX em que Santa Ifigênia, santa negra, visita-o como devoto.

O romance XII demonstra Joaquim José da Silva Xavier em sua infância na capela do Sítio do Pombal, pertencente a seus pais. Passando-se em algum momento da década de 1750, o trecho evoca o futuro que terá a criança: “(Pois vai ser levado à forca, / para morte natural…)” (MEIRELES, 2009, p. 64). O referido romance situa o nascimento do mártir no tempo, tendo sua infância e adolescência na época em que Chica da Silva vivia em seu esplendor com João Fernandes. A propósito, Chica da Silva é a personagem principal do “ciclo” seguinte de romances, que contam um pouco da vida na negra alforriada e a bancarrota de seu amante João Fernandes.

Os três romances que encerram essa segunda parte (XVII – XIX) são já um prelúdio do movimento da Inconfidência. As lamentações do Tejuco incluem um maldizer do ouro: “… e maldito / esse ouro que faz escravos, / esse ouro que faz algemas, / que levanta densos muros / para as grades da cadeia, / que arma nas praças as forcas, / lavra as injustas sentenças, / arrasta pelos caminhos / vítimas que se esquartejam” (MEIRELES, 2009, p. 77). O romance XVIII apresenta lânguidas reflexões sobre a efemeridade das posições e das riquezas; a insatisfação dos donos e trabalhadores das minas com a Corte cresce cada vez mais, e o romance XIX, desde seu título, mostra que os bons tempos vão se findando e que pressagiam-se conflitos, dos quais trataremos a seguir.

2.2 As Ideias, o animoso alferes, os delatores e a prisão

“Libertas, quae sera tamen, respexit inertem”
Virgílio, Éclogas, I, 27.

Os eventos que cobrem esta parte do livro são também prefaciados por um “Cenário” e uma “Fala”: o cenário se compõe de forma fragmentada, evocando pequenos elementos da cidade e fazendo vir à memória, também, os “reinos de saudade e pranto” da antiga Vila Rica. Aliás, é mesmo à Vila Rica (ou aos seus “fantasmas”) que a fala seguinte se destina: ela pergunta se as vozes do passado pararam já de falar ou se ainda o fazem. Nossos ouvidos, “na terra surda / que os homens pisam / já nada entendem” (MEIRELES, 2009, p. 80), mas as “sombras” sim, falam, lançando as palavras e as ideias dos próximos poemas.

Os romances XX a XXXVIII cobrem o trajeto das ideias de libertade, a organização dos inconfidentes, a denúncia de suas atividades e a morte exemplar de Tiradentes, enforcado e esquartejado. Os romances XX a XXIV exploram, num crescendo, a evolução dos ideais e da organização dos inconfidentes: apresentam-se os integrantes do “país da Arcádia”, poetas e intelectuais que estiveram envolvidos (notadamente, Tomás Antônio Gonzaga, Alvarenga Peixoto e Cláudio Manoel da Costa) – já adiantando o funesto fim da empreitada – e expressa-se a onipresença das Ideias, em um texto fragmentado, quase um mosaico, que apresenta a geografia das minas, as construções, os fidalgos e mulatas, todos permeados pelo refrão: “E as ideias” (MEIRELES, 2009, p. 82-85). O negro aparece mais uma vez, em sua busca de alforria manifesta na venda de um diamante extraviado. Nesse trecho, há referência à presença de delatores e invejosos que o denunciam.

O romance XXIII lamenta a morte do filho de Maria (no Brasil, A Louca, em Portugal, A Piedosa), pois o príncipe, de ideias liberais e progressistas, seria um rei possivelmente favorável aos ideiais nascentes na colônia. Em seguida, em um dos momentos mais espetaculares do livro, narra-se a união, a portas fechadas, dos inconfidentes: homens ricos, trabalhadores, intelectuais, religiosos e poetas, todos envolvidos com os planos de liberdade e com a criação da bandeira da Inconfidência, que viria a ser posteriormente a bandeira do estado de Minas Gerais. Nesse romance, além de narrar-se a apropriação do verso de Virgilio – Libertas quae sera tamen – pelos inconfidentes e a desconfiança dos outros, estão presentes alguns dos versos mais conhecidos de nossa Literatura, evocando o desejo da inexplicável, radiante liberdade:

Liberdade – essa palavra
que o sonho humano alimenta
que não há ninguém que explique,
e ninguém que não entenda!E a vizinhança não dorme:
murmura, imagina, inventa.
Não fica bandeira escrita
mas fica escrita a sentença.
(MEIRELES, 2009, p. 91)

Uma carta anônima, então, chega aos inconfidentes prescrevendo cuidado aos envolvidos no movimento revolucionário. No romance XXVII, enfim se apresenta Tiradentes: seus conhecimentos de farmacologia e seu caráter bondoso e prestativo, de quem a todos servia e por todos trabalhava, são ressaltados. Foi pego em viagem ao Rio, quando ia levar planos relativos a desvios de rios para melhorar a situação de abastecimento de água da cidade[2]. Os muitos “adeuses” que aparecem nesse romance demonstram como Tiradentes era bem conhecido e querido em Minas Gerais.

O Romance XXVIII fala diretamente de Joaquim Silvério, o delator da Inconfidência e dos seus principais líderes. O locutor refere-se a ele de forma ácida e cruel, considerando-o um delator, caloteiro, covarde e invejoso. O mesmo personagem é matéria dos romances XXIX e XXXIV: ele é comparado a Judas, analogia muito interessante na medida em que Tiradentes é, frequentemente, comparado a Jesus Cristo em seu sacrifício e nas esperanças quase messiânicas que se lhe depositaram. Intermediariamente, destacam-se romances cujas vozes são de tropeiros, a mofarem das ambições libertadoras, e de uma cigana, que afirma estar o inconfidente com a estrela da desgraça marcada em seu destino. Retornaremos a esses dois trechos mais adiante.

Em seguida, temos a narrativa da chegada de Tiradentes ao Rio, sua perseguição por duas sentinelas e sua captura. O romance XXXV demonstra, de modo lúgubre, como Tiradentes ficou sozinho nos seus últimos momentos, sem ter ninguém que valesse por ele. O Romance XXXVII cobre a prisão de Tiradentes, o correr da notícia e a prisão de alguns outros inconfidentes. Novamente, o locutor faz cruéis comentários sobre o traidor Joaquim Silvério e trata da perseguição do herói inconfidente, notoriamente fugido. A dolorosa captura de Tiradentes, agarrado como qualquer bandoleiro, é acompanhada da tristeza de ver que seus esforços foram empregados em vão. A prisão do “simples alferes” deixa os outros alvoroçados, e durante o mês de maio a notícia já corria por todos os lados. Tomás Antonio Gonzaga, Vigário Carlos Toledo e Inácio José de Alvarenga foram presos logo depois. O romance seguinte narra a respeito de alguém, vestido em trajes femininos e encapuzado, que correu à cidade de Vila Rica, no dia 17 ou 18 de maio, a fim de avisar a todos que queimassem os papéis comprometedores e fugissem, pois o alferes havia sido preso. Tal figura, jamais identificada, de fato existiu, tendo batido em particular à porta da casa de Cláudio Manoel da Costa.

2.3 Prisão dos inconfidentes, a forca, o destino dos envolvidos

“Não te aflijas com a pétala que voa
Também é ser, deixar de ser assim”

Cecília Meireles, 4o motivo da rosa.

Segue-se, então, a narrativa da prisão de uma série de personagens da Inconfidência: Francisco Antônio, fazendeiro rico e muito gordo cuja alcunha, por falar muito rápido, era “come-lhe os milhos”; o alferes Vitoriano, preso por portar um bilhete que contava as delações feitas até então (22 de maio); o sapateiro Capanema, detido por espalhar boatos sobre a expulsão dos portugueses do Brasil; Padre Rolim, o mais rico dos inconfidentes e o único de todos que ofereceu grande dificuldade para ser preso, posto que escondeu-se por longo tempo. No romance XLIII, onde se dá voz a falantes críticos e indignados, penetra-se a razão de ter sido Tiradentes condenado à morte por enforcamento e esquartejamento: havia muitos envolvidos, mas a falibilidade e a corrupção da justiça não permitem que os ricos sejam punidos, pois podem perder suas liberdades. O alferes é morto, pois não tem amigos, parentes, casa ou terras suas. A voz dos juízes e magistrados se faz ouvir como de homens corruptos, que fazem os mais fracos pagarem. Alferes Tiradentes era o homem mais fraco.

O Romance XLVII demonstra como os meirinhos levaram ao extremo o confisco dos bens dos inconfidentes, levando absolutamente tudo o que viam à frente. Aparecem relatos de covardes delatores, como uma testemunha falsa e um homem que fora tratado outrora pelo próprio Tiradentes. A responsabilidade do fim dos sonhos, do fracasso da inconfidência e da falta da liberdade é atribuída aos covardes. A autora revela, ferina e grave, a pusilanimidade que está presente em toda a história do mundo, como se fosse “veia de sangue impuro” a enfraquecer os sonhos humanos: as cartas escritas e as informações dadas pelos covardes, como ato da mais profunda sordidez, são ameaçados com o inferno.

A morte do poeta Cláudio Manoel da Costa é matéria do romance seguinte, que começa retomando o aviso do embuçado. A polêmica que girou em torno da morte do poeta aparece no Romanceiro, e várias informações são sintetizadas em um curto e belo poema. Inácio Pamplona, fugido para não ser interrogado, aparece no romance L, ao passo que os romances LI e LII retomam a problemática do romance XLIII, criticando, com pesar, a falta de justiça dos magistrados e a diferença de peso com que se tratam os homens endinheirados e os que nada possuem. O monólogo do carcereiro é curto e também enfático nesse sentido.

Sobre o poder destrutivo das palavras é que trata o romance LIII, de forma simplesmente magistral: as palavras, embora efêmeras e fugidias, são a porta por onde principia “todo o sentido da vida” (MEIRELES, 2009, p. 142). A mesma potência que foi capaz de espalhar as ideias de liberdade e de revolução é agora responsável pelo homem que se enforca pelos ideais. Em seguida, um tenro poema trata da interrupção da costura do enxoval de Gonzaga[3] por ocasião da prisão do mesmo; a reiteração do vocábulo pastora retoma a produção poética do autor e dá um tom sutil ao texto, contraposto pela sua captura. O trecho seguinte trata mais detidamente da prisão do poeta e faz menção a sua formação em direito, que de nada pôde lhe valer naquele momento.

A autora poetiza o momento do arremate dos bens do alferes, recriando o dinamismo de um verdadeiro leilão. Os pobres pertences do acusado, de valor baixíssimo, são sempre ressaltados com um valor espiritual que os acompanha; tal passagem traz à luz um episódio de importância histórica periférica, dando-lhe nova luz em forma poética. Segue-se o inútil recurso feito em defesa de Tirandentes. Usando praticamente as mesmas palavras (com exceção da última estrofe) que o curador dos réus Dr. José de Oliveira Fagundes emprega em seu texto, a autora transforma o texto forense em texto poético[4].

Enumera-se uma série de romances referindo-se diretamente ao momento da execução de Tiradentes: aparecem o seu carrasco, um negro de apelido Capitania, que sente a grandeza da vítima; a juntar-se às lamentações do Tejuco e às falas das Velhas Piedosas e dos indignados, a Reflexão dos Justos (romance LIX) é mais uma vez um comentário crítico dos eventos, lamentando o fato de todos os companheiros do alferes terem-no deixado na última hora e refletindo sobre o que será considerado como certo ou errado pela história no futuro. O caminho de Tiradentes para a forca, o que lhe passa no espírito, suas memórias e a multidão que o cerca aparecem no mesmo romance em que se faz referência a D. Maria I, causadora, mesmo indiretamente, de tudo aquilo. O momento próprio do enforcamento é narrado por um bêbado, que percebe as incoerências de uma situação de morte, portanto triste e soez, que congrega tanta gente satisfeita na praça para assistir a ele. Tiradentes entrega-se à morte em silêncio. O último romance antes da mudança de cenário é simbólico: o locutor refere-se a uma pedra Crisólita – o mesmo que topázio – que Tiradentes possuía, saindo com ela do meio da escuridão com o fito de lapidá-la. O alferes morre entes de vê-la polida. Pode-se ler que a pedra representava a tão querida, tão desejada liberdade, cujo gérmem trazia o herói inconfidente do meio da escuridão em que se viam todos, subjugados aos desmandos das autoridades; entretanto, seus objetivos não foram cumpridos; instauram-se a dúvida se seria mesmo possível fazê-lo (Talvez nem crisólita fosse… / As pedras sempre enganam tanto! – MEIRELES, 2009, p. 164) e a tristeza por ter ficado a pedra sem lapidação.

O cenário seguinte, a morada que foi de Gonzaga, é evocado pela autora e tem um tom entristecido, resultante da prisão do morador e do abandono da casa. Os restos da habitação são matéria para composição dos próximos versos: os romances seguintes tratam mais detidamente do destino do poeta árcade. E de Maria Dorotéia. É aqui que aparece a Imaginária serenata, na qual é Marília que, desditosa de sofrimento e saudades, clama pela presença do amado e pela luz da lua, que a possa levar até ele.

Dois séculos depois dos sucessos da Inconfidência, a antiga Comarca do Rio das mortes está em completa ruína; é a ela que se dirige a “Fala” seguinte, pedindo aos escombros, única coisa que sobrou do esplendor de tais sítios, que fizessem reaparecer os vastos sonhos e as pessoas do passado. Logo depois, é feita uma certa retrospectiva, a fim de tratar da família de Alvarenga Peixoto, ignorado até então: um retrato árcade e belo é traçado de Bárbara Eliodora, esposa do referido poeta – entretanto, seu funesto futuro já fica adivinhado no poema.

Um tom de decadência toma conta dessa última parte do livro. Traça-se um Retrato de Marília em Antônio Dias; a mulher, já sem beleza por causa da velhice, só saía de casa para as missas na Igreja de Nossa Senhora da Conceição de Antônio Dias. Sua morte já se prenuncia; sua vida já não significa nada. O cenário que se segue é narrado por D. Maria, que, já sem sanidade e torturada pelo remorso, observa o Rio de Janeiro e lembra-se da morte dos inconfidentes. Em seguida, o romance LXXXI reflete sobre o poder, a embriaguez que ele causa, a vaidade dos poderosos e seu mau pendor; está presente a lição de que o valor de um homem se mede por seu caráter, e não pelos bens que possui; mais uma vez, temos a reflexão sobre a efemeridade de tudo aquilo que é terreno. Os passeios da insana rainha, sua crescente culpa e posterior morte são narrados em dois romances que se seguem.

Um curioso romance trata dos cavalos utilizados nos sucessos da Inconfidência; na sua busca para reavivar as vozes e os atos de tantos esquecidos, Cecília traz à tona também o papel das doces e inocentes criaturas que serviram aos homens nas empreitadas da conjuração. Depois de mortos, são facilmente esquecidos, “jazem por aí, caídos” (MEIRELES, 2009, p. 209), por ingratidão dos homens. Simbolizam a pureza e a inocência, a entrega sem exigência de nada em troca. Marília escreve, sofrida, seu testamento; já bem perto da morte, sua triste pena traça no papel seus últimos desejos. No último trecho do livro, a locutora finalmente dirige-se aos inconfidentes mortos: as paixões humanas, a covardia de uns, amores e ódios fizeram dessa história o que ela é hoje. Tudo fica no passado, tudo jaz em silêncio; mas o horizonte, “que é memória / da eternidade, / referve o embate / de antigas horas, / de antigos fatos, / de homens antigos” (MEIRELES, 2009, p. 211). É esse horizonte, essa memória da eternidade que não se satisfaz em quedar-se calada que impulsiona a poeta a trazer à tona, de forma brilhante, todos os sucessos da Inconfidência Mineira.

3 A história e a narrativa: escolhendo fatos, dando voz a quem não fala

Quem construiu a Tebas de sete portas?
Nos livros estão nomes de reis.
Arrastaram eles os blocos de pedra?
E a Babilônia várias vezes destruída
–Quem a reconstruiu tanta vezes? (…)
Para onde foram os pedreiros, na noite em quea Muralha da China ficou pronta? (…)
César bateu os gauleses.
Não levava sequer um cozinheiro? (…)
Tantas histórias.
Tantas questões.

Bertold Brecht. Perguntas de um trabalhador que lê.

Como já mencionado, pode-se perceber claramente que a composição de Cecília Meireles parte de uma pesquisa histórica minuciosa e refinada, realizada com o fito de dar conta dos mínimos detalhes do acontecimento histórico que ficou conhecido como Inconfidência Mineira. Entretanto, percebemos que ao longo da obra, a autora chama a atanção para detalhes que escapam ao discurso histórico oficial, seja por serem considerados pouco relevantes, seja porque não são fatos documentados e arquivados historicamente. Em alguns momentos, Cecília dá mesmo voz a personagens marginalizados e excluídos da “grande história”, como bêbados, velhas e ciganas.

O texto utilizado como epígrafe para essa seção nos leva à reflexão sobre o fazer histórico: afinal, quando contamos a história da inconfidência e escolhemos os personagens sobre os quais queremos nos deter, não estamos excluindo uma série de outros que participaram também dos acontecimentos? Ao contar a história da conquista da Gália ou da construção da muralha da China, não são ressaltados os nomes de alguns poderosos, ao passo que milhares de indivíduos que participaram de tais eventos são olvidados? Quando um historiador desenvolve um texto historiográfico, não precisa partir da escolha do que lhe é mais relevante e mais próprio ao seu intento, deixando de lado, em consequência, uma série de outros relatos e documentos? Julgamos que sim. Em seu texto Sobre o conceito de história, Walter Benjamin afirma que “Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como de fato foi”. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja num momento de perigo.” (BENJAMIN, 1996, p. 224). Assim sendo, para compor uma narrativa histórica, o historiador apropria-se de determinada memória para narrar um fato de acordo com determinados objetivos.

O Romanceiro da Inconfidência narra os eventos da conjuração mineira, desde a descoberta do ouro até o fim de cada envolvido na rebelião. Na sua narrativa, a autora chama a atenção para os valores de Tiradentes e seu caráter heroico; demonstra simpatia pelos revoltosos e raiva pelos covardes delatores, e permite que múltiplas vozes, desde a rainha até o sapateiro Capanema, componham os relatos da trama. Ora, tais elementos e as reflexões iniciadas acima nos levam mesmo a interrogar a respeito das diferenças entre a história e a literatura enquanto narrativas. Aristóteles identificava uma diferença primordial entre ambas:

Não é em metrificar ou não que diferem o historiador e o poeta; a obra de Heródoto podia ser metrificada; não seria menos uma história com o metro que sem ele; a diferença está em que um narra acontecimentos e o outro, fatos que podiam acontecer.(ARISTÓTELES, 2009, p. 28. Grifos nossos)

A resposta tradicional, então, se resumiria a dizer que a história tem pretensão à verdade, ao passo que a narrativa enuncia fatos quepoderiam acontecer. Entretanto, o Romanceiro se configura de acordo com a história oficial, sendo ao mesmo tempo um texto literário. Nesse caso, os apontamentos do filósofo grego não dão conta dessa definição.

O historiador Paul Ricoeur, refletindo sobre história e narração, diminui a distância existente entre ambas; ele desmistifica, de certa forma, a pretensão à verdade absoluta da história, posto que “os historiadores constroem frequentemente narrativas diferentes e opostas em torno dos mesmos acontecimentos” (RICOEUR, 2008, p.254). O ato de articular historicamente algum texto passaria, necessariamente, por um processo de escolha de documentos, pela construção de um discurso – imbuído, certamente, de determinada ideologia – e analisado de um ponto de vista definido:

A representação no plano histórico não se limita a conferir uma roupagem verbal a um discurso cuja coerência estaria completa antes de sua entrada na literatura, mas que constitui propriamente uma operação que tem o privilégio de trazer à luz a visada referencial do discurso histórico. (RICOEUR, 2008, p. 248)

Desse modo, é legítimo considerar a obra de Cecília também como uma narrativa histórica, sem que ela perca a matéria poética e a literariedade que lhe são próprias.

Uma das coisas que nos chama a atenção no Romanceiro é a multiplicidade de vozes e de personagens: bêbados, tropeiros, rainhas, magistrados, poetas e muitos outros são elencados como os narradores ou partícipes dos eventos da Inconfidência. De certa forma, podemos considerar essa escolha da autora como uma diferenciação do discurso histórico notório a respeito da conjuração mineira; a rigor, tal discurso frequentemente se limita a Tiradentes e aos mais famosos de seus companheiros, sendo narrado de forma impessoal. No romance X, por exemplo, Cecília dedica-se a traçar um retrato de uma pobre donzela cujos parentes estão longe, na busca pelo ouro:

Donzelinha, donzelinha
dos grandes olhos sombrios,
teus parentes andam longe,
pelas serras, pelos rios,
tentando a sorte nas catas,
em barrancos já vazios!
(MEIRELES, 2009, p. 61)

Trazendo à luz esse relato, a autora ressalta as dores e os sofrimentos daqueles que perderam seus parentes na corrida pelo ouro. Ao voltar os olhos aos que são excluídos das grandes narrativas históricas, a autora valoriza-os e demonstra que há algo além dos relatos que alguns documentos são capazes de demonstrar.

É interessante, também, como Cecília seleciona os narradores de alguns dos eventos: no momento em que Chica da Silva está em declínio, por ocasião da intimação de seu amante, e já se pressagia o futuro daquelas terras, são os velhos do Tejuco[5] que refletem sobre os acontecimentos e lançam reflexões sobre a transitoriedade da vida: “Que tudo passa… / O prazer é um intervalo / na desgraça… (…) Que tudo engana / gente, só a morte mesmo / é soberana” (MEIRELES, 2009, p. 77). Da mesma forma, são velhas piedosas que lamentam a traição de Joaquim Silvério: “Ai de quem na sua casa / se deixa estar, sem supor / o que em sexta feira santa / escreve a mão de um traidor!” (MEIRELES, 2009, p. 101). E, quando Tiradentes segue para o Rio de Janeiro com sonhos de liberdade, são diversos tropeiros que são inseridos como narradores (romances XXX e XXXI), zombando abertamente das ideias do alferes:

Passou um louco montado,
passou um louco a falar
que isto era terra grande
e que a ia libertar (…)Nós somos simples tropeiros,
por estes campos a andar.
O louco já deve ir longe:
mas inda o vemos pelo ar…Por aqui passava um homem
– e como o povo se ria!
“Liberdade ainda que tarde”
nos prometia.
(MEIRELES, 2009, p. 102 – 105)

Esses dois romances em particular têm como fonte documentos históricos que relatam a mofa que alguns tropeiros faziam de Tiradentes[6], diferentemente dos anteriores. Tais romances são ressignificações de documentos históricos na medida em que colocam como narrador os tropeiros, de papel secundário na revolta, e por haver inserido, no romance XXXI, uma reflexão de tristeza por parte dos zombadores, que afinal pressagiam a morte do alferes e simpatizam-se com ele.

Gostaríamos de chamar a atenção para mais dois trechos: o romance XXXIII traz como seu locutor um cigano que, à chegada do alferes, é capaz de prever-lhe o destino: “Duvido muito, duvido / que se deslinde seu fado. / Vejo que vai ser ferido / e vai ser glorificado” (MEIRELES, 2009, p. 108). Interessa-nos bastante esse trecho, pois os ciganos, minoria nômade presente em diversos países do mundo, passaram a ser perseguidos no século XV e ainda sofriam preconceito e perseguições à época dos eventos da Inconfidência, de modo que a inserção desse personagem é uma opção realmente marginal, sendo regularmente descartado do discurso histórico[7].

Finalmente, um locutor muito singular foi escolhido pela autora para um momento de suma importância na obra: na ocasião do enforcamento de Tiradentes, ninguém menos que um bêbado está presente para constatar as incoerências de se ver tanta alegria em um dia de morte anunciada:

Vi o penitente
de corda ao pescoço.
A morte era o menos:
mais era o alvoroço.
Se morrer é triste,
porque tanta gente
vinha pra rua
com cara contente?(…)Não era uma festa.
Não era um enterro.
Não era verdade
e não era erro.
– Então por que se ouvem
salmo e ladainha,
se tudo é vontade
da nossa rainha?
(MEIRELES, 2009, p. 160-161)

Decerto, a escolha do narrador não é fortuita: em meio a uma multidão de pessoas que vinham à praça acompanhar o enforcamento do alferes, o bêbado é o único a perceber quão incoerente se configura tanta festa no momento da morte de um homem; reflete também sobre os motivos por que traziam ao condenado alimentos e flores, já que era um criminoso em hora de sua morte. O ébrio deflagra a tolice de todo o povo: apenas estando sob o efeito entorpecente do álcool ele é capaz de livrar-se da mentalidade soez que congrega tanta gente para assistir ao lúgubre espetáculo. Enquanto testemunho histórico válido, um bêbado seria preterido sem dúvidas; entretanto, é justamente ele que Cecília escolhe para o derradeiro momento de Tiradentes. Vale notar que esse é o único momento em que se narra a morte do herói: a única versão que temos de sua execução, a partir do Romanceiro, é a leitura crítica de um bêbado que não consegue crer no que está acompanhando.

Com exceção dos tropeiros, todos os locutores dos romances destacados são “inventados” por Cecília Meireles e inseridos por ela na história. Cada uma das falas no livro correspondem a testemunhos, ou seja, documentos históricos em linguagem escrita. Para Ricoeur, o testemunho é a estrutura fundamental que marca a passagem da memória para a história; a partir do momento em que determinada lembrança de alguém é passada para a linguagem escrita, ela deixa de ser apenas uma reminiscência e passa a ser um testemunho, ou seja, um documento histórico. O momento da transcrição dos testemunhos

é aquele no qual as coisas ditas oscilam no campo da oralidade para o da escrita, que a história doravante não mais deixará; é também o do nascimento do arquivo, coligido, conservado, consultado.(RICOEUR, 2008, p. 155)

A “coleta” de elementos da memória e a transformação deles em testemunho é feita por quem se lembra e quem presencia fatos relevantes; ora, a passagem de fatos como o enforcamento de Tiradentes ou o confisco dos bens dos inconfidentes tornou-se um testemunho e parte do arquivo histórico desde a época de seu acontecimento; entretanto, depoimentos de personagens como ciganas, bêbados e velhas piedosas não constam no arquivo oficial, tendo sido uma criação de Cecília. Mais uma vez, retomamos a fala da autora quando ela afirma que sua composição do romanceiro não foi fortuita nem mesmo solitária. Ao ver a cidade de Ouro Preto[8], ao deparar-se com as construções e com as casas que “vivenciaram” a Inconfidência, “os fantasmas começaram a repetir suas próprias palavras de outrora: as palavras registradas nos depoimentos do processo, ou na memória tradicional” (MEIRELES, 2009, p. 24). Cecília, em Ouro Preto, buscou a memória coletiva dos eventos daquela conjuração, e recompôs em sua mente o sofrimento dos que perderam seus amores, os pensamentos dos negros escravos, as lamentações e os conselhos dos idosos observantes, e mesmo a descrença exacerbada de um bêbado na praça. No momento em que a autora compõe o Romanceiro, imbuída de tais memórias e relatos, ela cria novos testemunhos, que passam a compor também o arquivo histórico da Inconfidência Mineira.

4 Considerações Finais

A fugacidade do tempo, a efemeridade da vida e de cada instante, a transitoriedade das riquezas e das posições aparecem abundantemente na temática do Romanceiro da Inconfidência. Essa temática é abraçada ao longo de toda a obra não apenas como uma opção fortuita, mas porque ao longo de toda a narrativa a autora chama a atenção para o que é importante. Afinal, na história que condena sem piedade a covardia dos injustos e analisa a frieza dos confrades do alferes nas horas difíceis, a obra ataca torpezas e mazelas terríveis, próprias do espírito humano. Igualando escravos e rainhas, ciganas e poetas, de modo que todos podem ter voz na obra, a poeta ressalta que mais importante do que a posição que cada um ocupa é sua característica eminentemente humana.

O Romanceiro como um todo valoriza nossa humanidade, nossa eterna necessidade de sonhar e lutar por aquilo que desejamos; como exemplo maior de humanidade, temos o animoso alferes, prestativo, vivo, corajoso e sonhador. O resgate do herói inconfidente não é feito para a recriação de um herói nacional ou para valorizações ufanistas; toda a revalorização e ressignificação histórica feita por Cecília traz à luz o esforço e a lida humana na história, nossas sempre inconclusas esperanças e nosso circular sonho de liberdade.

Referências

ANDRADE, M. et al. Fortuna Crítica/Notícia biográfica. In: Cecília Meireles: Obra poética. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar S/A, 1987.

ARISTÓTELES. Poética. In: A Poética Clássica. São Paulo: Editora Cultrix, 2008.

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de História. In: Magia e Técnica, Arte e Política: Ensaios sobre Literatura e História da Cultura. São Paulo: Editora Brasiliense, 1996.

BRECHT, Bertold. Perguntas de um trabalhador que lê. Disponível em: <http://literaturaemcontagotas.wordpress.com/2010/03/06/perguntas-de-um-trabalhador-que-le/>, acesso em 21/11/2010.

DAMASCENO, Darcy. Poesia do Sensível e do Imaginário. In: Cecília Meireles: Obra poética. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar S/A, 1987.

Grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.

MANNA, Lucia Helena Sgaraglia. Pelas Trilhas do Romanceiro da Inconfidência. Niterói: EDUFF – Universidade Federal Fluminense, 1985.

MEIRELES, Cecília. Romanceiro da Inconfidência. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2009.

______. Como escrevi o Romanceiro da Inconfidência. In: MEIRELES, Cecília. Romanceiro da Inconfidência. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2009.

______. Problemas da Literatura Infantil. São Paulo: SUMMUS / INL – MEC, 1979.

MELLO, Ana Maria Lisboa de. Sobre o Romanceiro da Inconfidência. In: MEIRELES, Cecília. Romanceiro da Inconfidência. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2009.

RICOEUR, Paul. A Memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora Unicamp, 2008.

QUEIROZ, Mário de. Dez séculos de discriminação. In: Outras palavras. Disponível em <http://www.outraspalavras.net/2010/10/08/dez-seculos-de-discriminacao/>, acesso em 01/12/2010.

SILVA, Denise de Fátima Gonzaga da. Cecília Meireles e o herói inconfidente: um encontro da poética modernista com os arquivos da história brasileira. 2008. Dissertação (mestrado em Teoria da Literatura) Programa de pós-graduação em Letras, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2008.

 

[1] A divisão dos romances que propomos tem objetivos unicamente didáticos, posto que as temáticas identificadas em cada uma delas cruzam-se, são retomadas, desaparecem em um romance e tornam a aparecer em outros.

[2] Tiradentes tinha conhecimento da situação política e econômica da colônia e tinha talento para a engenharia.(MANNA, 1985, p. 73)

[3] Àquela época, era um costume elegante entre os nobres de Vila Rica que o noivo bordasse o vestido que seria de sua esposa.(MANNA, 1985, p. 126).

[4] O texto do referido curador está transcrito na obra de Lucia Helena Manna (Autos da devassa da Inconfidência Mineira, apud MANNA, 1985, p. 132-133).

[5] Tejuco ou Tijuco era o antigo nome da cidade de Diamantina, anexada a Serro até 1831.

[6] De acordo com Manna, Manuel Luís Pereira relatara que “encontrou no dito caminho uns tropeiros, que iam rindo e mofando, aos quais não conhece; e perguntando-lhes a razão do seu riso, lhe disseram que estavam fazendo zombaria de um doido, que era o alferes da patrulha; e perguntando ele, testemunha, a razão por que o tratavam de louco, responderam que por ele se lhes estar dizendo que os povos das Minas podiam viver independentes de Portugal.”(Autos da Devassa, apud MANNA, p. 78)

[7] Os ciganos “eram considerados vagabundos e delinquentes”; “Na Alemanha e Holanda, eram exterminados a tiros por caçadores pagos por cabeça (…) na Europa, o propósito de extermínio dos ciganos sempre foi muito claro”.(BASTOS apud QUEIROZ, 2010)

[8] Localizações geográficas, além de serem capazes de nos reavivar a memória, funcionam também como “documentos” históricos. Para Ricoeur, “Os lugares ‘permanecem’ como inscrições, monumentos, potencialmente como documentos, enquanto as lembranças transmitidas unicamente pela voz voam, como voam as palavras” (RICOEUR, 2008, p. 59). Além de “ler” o local como um documento, Cecília também reavivou as vozes e as palavras fugidias que voavam levando os fatos da conjuração.