Do Xamã ao contador de histórias: uma viagem pelos contos tradicionais

Alessandra Nittencourt Flach

Simone [Weil] amava os poemas litúrgicos védicos que se referem à arvore do mundo, à figueira eterna… Nela estão pousados dois pássaros: um que come seus frutos, outro que olha e não come. O pássaro que não come o fruto presta atenção. Sua renúncia partilhará e multiplicará os frutos saborosos para todos nós.
É o espírito-testemunha que vê o outro consumir no instante, a vontade devoradora e passional que não será instrumento de salvação se não for acompanhada pelo olhar, pela escuta, pela atenção… e pela renúncia à posse do resultado. (Ecléa Bosi. O tempo vivo da memória)

O papel de “espírito-testemunha”, ciente da “renúncia à posse do resultado”, é o que vai garantir a permanência e a renovação da cultura popular, ainda que o processo se dê de forma lenta e gradual. Assim, na medida em que partilhamos da experiência de ouvir e contar histórias, nos tornamos um elo, um importante elemento de continuidade e transformação.

Nessa perspectiva, vemos que o contador de histórias assume a responsabilidade de transmitir às novas gerações a memória coletiva, a qual está impregnada de um caráter extremamente prático e fiel a uma sabedoria que se mantém atual através dos anos, porque é o resultado das mais variadas experiências de vida, com as quais as pessoas ainda se identificam. Entretanto, essa transmissão não se dá de forma passiva. Pelo contrário, a literatura popular só permanece, só é aceita devido ao fato de que se adapta e incorpora elementos do presente, especialmente aqueles que lhe são conferidos no exato momento em que se está contando um história, conseqüência da ação do narrador sobre ela. A partir daí, é possível dizer que o narrador, além de manter viva a tradição oral, imprime nela suas marcas, a marca de um tempo e de uma cultura. A partir de Contos tradicionais do Brasil, coletânea feita por Câmara Cascudo na primeira metade do século XX, é possível identificar os traços da oralidade, as intervenções de um tempo convivendo em harmonia, ou melhor, reforçando a universalidade daquelas histórias que parecem ter existido desde sempre. E o mais interessante: essas histórias cheias de encantamento, que há muito fazem parte do nosso imaginário, continuam ainda hoje a atuar como meio de criação, reinvenção e atualização da memória coletiva e da nossa própria história de vida.

Existem nas capoeiras alguns veados chefes de bando que costumam reunir seu “povo” para um remoer mais demorado na tranqüilidade. A convocação é feita por intermédio de uma harmonia de música que toca a todos os corações. Ninguém poderá ouvi-la sem ficar inteiramente dominado e vencido nos seus propósitos inferiores. A beleza tem disso: amolece as energias empregadas no sentido do mal. E como caçar não deixa de ser uma impiedade, fica adiada a perseguição, fica para outro dia, pois o caçador foi posto à margem, é supersticioso e não ama contrariar as forças da natureza quando elas se manifestam tão maravilhosamente… Portanto, não convém ir de encontro às determinações dos deuses ocultos que dirigem os movimentos nas florestas ou nos tabuleiros. (CASCUDO, 2003, p. 316-317)

Esse trecho do conto “A música dos chifres ocos e perfurados” recolhido na Paraíba é uma amostra da facilidade que tem o conto tradicional em conduzir o leitor-ouvinte a uma outra realidade. Quanto mais distante de si mesmo, mais fortemente se está imerso no mundo da memória e da fantasia e mais prováveis são as chances de que a experiência vivida através do conto torne-se indelével na memória. Dessa forma, vê-se que, de fato, uma boa leitura dessas narrativas não é aquela baseada em uma visão lógica e detalhista. Se fosse assim, ninguém iria tolerar o fato de que, na história da Cinderela, somente ela calçava o número certo do sapatinho de cristal. Ninguém mais no reino calçava o mesmo? Como explicar que os heróis não ficam em dúvida, não têm medo, não têm defeitos, são sempre os mais lindos homens? Como não se escandalizar com a atitude de Malazarte, que usa o cadáver da própria mãe para ganhar mais dinheiro? Quem acredita que a vovó saia viva da barriga do lobo? E mais: o caçador enche de pedras a barriga do lobo. Este acorda, vê o que fizeram e só depois morre. Definitivamente, pensando assim, as narrativas populares são completamente bobas e sem sentido.

Entretanto, todos esses questionamentos em nada influem no prazer que as histórias trazem. É bem provável que passemos a vida inteira sem nos darmos contas da existência de tantas “incoerências”. Acontece que não é essa a atitude de quem se sujeita a lê-las. Para uma leitura prazerosa, eficiente e que leve à evasão da realidade é preciso deixar-se convencer por tudo o que é mágico, absoluto e transcendente. Daí que há a primazia pela ação da narrativa, pelos movimentos dos fatos, pela alteração de estados em vez de uma atenção aos detalhes, às características psicológicas das personagens. Quanto mais distante dessa nossa realidade desigual e individualista, quanto menos análise, maior é o envolvimento com a narração. Isso acontece porque o caráter lúdico da literatura popular funciona como uma espécie de “válvula de escape”, que supre a nossa carência do maravilhoso e, pela imaginação, é possível, ao mesmo tempo, fugir de uma situação opressora e viver aquilo que talvez no dia-a-dia seria difícil de ocorrer. Assim, não somos nós que nos apropriamos dessas narrativas milenares, mas são elas que nos seduzem, que nos apresentam uma nova alternativa de vivenciar saberes e experiências. Antes de qualquer coisa, ouvir histórias é um ato de entrega.

Sob uma perspectiva antropológica, podemos dizer que o fato de sair de si, de entregar-se à narrativa, tem uma explicação que remonta a 100 mil anos atrás, na época do homem Neanderthal. Segundo aponta Nicolau Sevcenko (1998):

Datam deste período as primeiras evidências de práticas cerimoniais, cultos mortuários, crenças na vida após a morte e do que já se pode denominar formas abstratas de arte, no sentido de formas de simbolização e estilização. Nada disso seria possível sem a base de uma linguagem articulada muito desenvolvida. Para além dos ritmos simétricos, a linguagem se liga agora ao mito e à arte. (p. 123)

Em face de uma sociedade em formação, unida pela necessidade da sobrevivência e “iniciada” nas artes, surge um tipo que, sob diferentes roupagens, com outros nomes, permanece até hoje. Trata-se do xamã, o detentor dos saberes, encarregado de manter e perpetuar a identidade do grupo. Nada acontece sem que ele interfira.

Sua figura é um limiar, uma transição, uma passagem estreita como a garganta da caverna, que liga o profano com o sagrado, o cotidiano com o sobrenatural, o presente com o passado e o futuro, a vida com a morte. Sua função é a de arrastar as pessoas para uma travessia, durante a qual elas se desprendem das referências do dia-a-dia, e assim, inseguras, assustadas, confusas, se entregam à sua orientação, vivendo um modo superior, mais elevado de experiência, para retornarem depois transformados pela vertigem do sagrado, que lhes ficará impresso na memória pelo resto de suas vidas. (SEVCENKO, 1998, p. 125)

Era nas rodas em torno do fogo, no interior das cavernas, que o xamã usava de suas responsabilidades para narrar histórias que serviam para as mais diversas atribuições: desde um ritual para decisões importantes até a libertação das tarefas do cotidiano. Muito mais pela maneira como eram contadas do que pelo que estava sendo dito, as pessoas deixavam-se levar pelo ritmo, pela cadência das palavras, do som. Assim, chegando ao auge de um êxtase, eram conduzidas pelos comandos e movimentos do xamã. E, ao voltarem à realidade, traziam consigo uma nova experiência de vida, parte inabalável de sua cultura e de sua identidade.

O que se observa nos contos tradicionais em relação à repetição de estruturas, de enredos, de expressões, é parte da construção de uma narrativa que, inicialmente, além da voz, valia-se do gesto, da dança, da música, da batida do tambor para encantar o ouvinte. O que chegou até nós, e em Cascudo temos um exemplo, são resquícios disso na força da repetição e da expectativa criada. O ritmo é construído pelos refrões, pela linearidade da sucessão dos episódios. Tal construção é o que vai prender a atenção dos espectadores.

A palavra não tem valor ou peso por si mesma, ela tem valor enquanto ritmo, enquanto marcação, enquanto cadência. Ela não se manifesta enquanto sabedoria, mas enquanto música, enquanto melodia. E é por isso que é capaz de convencer. Por isso ela tem a força de repor nos homens a energia que se vinha abatendo. (SEVCENKO, 1998, p. 127)

Em “Os compadres corcundas”, a valorização da forma é tão intensa que se poderia de dizer que ela é o próprio conflito do conto. Essa é a história de dois corcundas compadres, um rico e outro pobre. O pobre, saindo para caçar, avista na floresta uma “roda de gente esquisita, vestida de diamantes que espelhavam ao luar… todos cantavam e dançavam de mãos dadas, o mesmo verso, sem mudar” [2]. O caçador estava apavorado, até que, ouvindo durante horas a mesma cantoria: “Segunda, terça-feira/Vai, vem! / Segunda, terça-feira/Vai, vem!…” [3], acrescentou no mesmo ritmo: “Segunda, terça-feira/ Vai, vem!/ E quarta e quinta-feira/ Meu bem!” [4]. O povo foi atrás e descobriu o corcunda. Para a sua surpresa, um “velhão” se interessa por comprar o verso. O corcunda o dá de presente e, em troca, lhe tiram a corcunda e ainda dão um saco cheio de pedras preciosas. Em pouco tempo, o corcunda rico descobre a mudança do compadre e quis perder a corcunda como ele e ganhar ainda mais dinheiro. Foi atrás do povo esquisito. Chegando no mato, avista o povo dançando de roda e cantando: “Segunda, terça-feira/ Vai, vem! / Quarta e quinta-feira/ Meu bem!” [5]. Ao que o ambicioso acrescenta: “Sexta, sábado e domingo! / Também!” [6]. O grupo pára e o “velhão” fica furioso, xingando o corcunda:

— Quem lhe mandou meter-se onde não é chamado, seu corcunda besta? Você não sabe que gente encantada não quer saber de sexta-feira, dia em que morreu o Filho do Alto; sábado, dia em que morreu o Filho do Pecado, e domingo, dia em que ressuscitou quem nunca morre? Não sabia? Pois fique sabendo! E para que não se esqueça da lição, leve a corcunda que deixaram aqui e suma-se da minha vista senão acabo com seu couro! (CASCUDO, 2003, p. 33)

A importância do canto, mesmo sendo repetido por horas e horas, assume aqui uma significação bastante concreta. É justamente essa repetição que conduz ao êxtase, à libertação. O “velhão” que conduz a cerimônia faz as vezes do xamã. É o mais velho, é quem tem poder para decidir, premiar e punir. Se, num primeiro momento, a intervenção foi aceita, em seguida, e para a surpresa do corcunda rico, certo de seu sucesso, é rechaçada. Talvez porque o verso do compadre pobre estava de acordo com as tradições daquele povo e, portanto, só viria a enriquecer o ritual. Quando vai de encontro às suas crenças, quando a interferência não tem identificação no grupo (como na vez do compadre rico),é desprezada. Logo, não irá perpetuar.

No entanto, a “moral” da história, o valor que se pretende ressaltar não está diretamente ligado a essa questão de preservação da tradição, está bem clara nas palavras finais do narrador: “E assim viveu o resto de sua vida, rico, mas com duas corcundas, uma adiante e outra atrás, para não ser ambicioso”. [7] Tanto os rituais e os provérbios quanto as narrativas populares têm um caráter extremamente prático. Acompanhado do prazer, do encantamento com as histórias fabulosas está um ensinamento, uma transmissão de valores e, em alguns casos, o próprio desenrolar da narrativa já é a manifestação de um saber, sem que seja necessária a intervenção do narrador para explicar a lição, como neste caso dos corcundas.

Em “Seis aventuras de Pedro Malazarte”, uma seqüência de histórias que não possuem relação entre si, além do fato de tratarem de um mesmo personagem, não há elementos mágicos, castelos, transformações abruptas de situações. Pela sucessão dos seis episódios tomamos conhecimento das proezas de que é capaz Pedro Malazarte. Trata-se de um malandro, pobre, “ardiloso por natureza” [8], segundo narrador. Vive de pequenos furtos e enganações. Seu maior inimigo é o trabalho. É por isso que não tem destino certo, vivendo daquilo que consegue às custas de suas vítimas, as quais, convém destacar, são sempre pessoas bem-sucedidas, fazendeiros, ricos avarentos, nunca pessoas humildes e de nobres sentimentos. As características principais deste fazedor demalas artes são sua inteligência e sua capacidade de reagir a situações complicadas com originalidade e bom-humor.

Um caso interessante e bastante ilustrativo do que Malazarte representa nas narrativas populares é o segundo episódio apresentado por Cascudo (2003). Vale a pena transcrevê-lo aqui.

Não podendo ficar sossegado, Malazarte largou a casa, indo correr mundo. Logo no primeiro dia encontrou um urubu com uma perna e uma asa quebradas, batendo no meio da estrada. Agarrou o urubu e meteu-o dentro de um saco, seguindo caminho. Ao anoitecer, estava diante de uma casa grande e bonita, alpendrada. Pela janela viu uma mulher guardando vários pratos de comidas saborosas e garrafas de vinho. Bateu e pediu abrigo mas a mulher recusou, dizendo que não estava em casa o marido e ficava feio ter um homem de portas a dentro. Malazarte foi para debaixo de uma árvore e reparou na chegada de um moço, recebido com agrados pela dona da casa que o levou imediatamente para jantar. Iam os dois começando a refeição quando o dono da casa apareceu montado num cavalo alazão. O rapaz pulou uma janela e fugiu. Malazarte deu tempo para o dono da casa mudar o traje e tornou a bater e pedir comida. O dono apareceu e mandou-o entrar, lavar as mãos e ir jantar com ele.
A comida que apareceu era outra, bem pobre e malfeita. Malazarte, sempre com o urubu dentro do saco, deu com o pé, fazendo-o roncar, começou a falar baixinho, como se estivesse discutindo.
— Com quem está falando? — perguntou o dono da casa.
— Com esse urubu.
— Urubu falando?
— Sim, senhor, falando e adivinhando. Esse urubu é ensinado a adivinhar.
— E o que ele está adivinhando agora?
— Está me dizendo que naquele armário há um peru assado, arroz de forno, bolo de milho e três garrafas de vinho.
— Não me diga… Procura aí, mulher!
A mulher procurou e, fingindo-se assombrada pela surpresa, encontrou tudo quanto anunciara o urubu e trouxe os pratos e o vinho para a mesa. Comeram fartamente e o dono quis porque quis comprar o urubu. Pela manhã, Malazarte, muito contrariado, aceitou o dinheiro alto e foi embora, deixando o urubu que nunca mais adivinhou cousa alguma. (CASCUDO, 2003, p. 175-176)

Malazarte é uma espécie de anti-herói dos contos tradicionais. Para começar, não é nobre, não recebe nenhuma ajuda sobrenatural, não fica rico de uma hora para outra. Não se casa com uma princesa, é tido como feio, doente, incapaz, preguiçoso, o popularmente conhecido como amarelo. Na literatura “oficial”, muitos autores recorreram a esse perfil: o João Grilo, de Auto da CompadecidaMacunaíma, o Leonardo, de Memórias de um sargento de milícias, e outros tantos. O que eles têm em comum é um código de ética diferente do nosso, que, em alguns momentos, pode contrapor-se àquilo que a nossa sociedade julga o certo. Suas atitudes são fiéis a seus princípios.

Mesmo assim, ainda que um Malazarte use o cadáver da mãe para dar um golpe em um fazendeiro, ganhe dinheiro iludindo as pessoas com um urubu que não adivinha nada, por exemplo, ele conquista a nossa simpatia, a ponto de, sem nenhuma culpa, aplaudirmos suas peripécias. E isso acontece, em parte, porque nos deixamos aprisionar pelas narrativas, como já foi dito. Um tipo simples, representante do povo, reage contra os opressores, que, na maioria dos contos, estão representados pelo rei, por sua riqueza e por seu poder. Neste caso, como em muitos outros, há uma vitória da esperteza popular sobre a soberania daqueles que mandam. Silvano Peloso, ao tratar dessa questão, sugere que “a sabedoria celebra o seu triunfo sobre a orgulhosa e inatingível cultura do palácio” [9]. E é por isso que nos identificamos com o esse herói popular, que representa toda a dominação de uma cultura, de um sistema de valores que desconsidera o indivíduo, suas particularidades e interesses e não deixa de satisfazer nosso interesse pelo maravilhoso, pelas situações definidas de forma a beneficiar alguém, como se fôssemos nós os verdadeiros heróis da narrativa.

Ao mesmo tempo, a vontade popular é acontentada no seu desejo de não ver desaparecer definitivamente os heróis e os campeões aos quais confia um desejo de desforra que tem raízes profundas, obliteradas pelos séculos, mas sempre prontas a reflorescer com as suas antigas e obscuras razões de volta. (PELOSO, 1996, p. 175)

A sensação de desforra, que Peloso aponta adequadamente, manifesta-se através de outros contos na mesma coletânea. O herói popular, aquele de quem não se espera nada além de ser usado pelos poderosos, acaba surpreendendo em contos como “A princesa sisuda”. O rei, preocupado com sua filha que jamais havia dado um sorriso, promete a mão da princesa a quem lhe fizesse sorrir. Muitos tentaram em vão, até que um pobre rapaz tenta alegrar a moça. No palácio, atrapalhado e confuso, esbarra num criado e vai ao chão. Isso basta para que a princesa reaja às gargalhadas. Acontece que o rei se arrepende de ter prometido a filha. Não queria vê-la casada com um qualquer. Propõe, então, ao rapaz, muito dinheiro em vez da filha. Ele não aceita. O rei não consente no casamento e a promete a um príncipe. O rapaz é ajudado por uma formiga, uma lagartixa e um rato, que dão um jeito de fazer o príncipe desistir do casamento: “a princesa dizia que aquilo era castigo por ele não ter dado licença para ela casar com que a fizera rir” [10].

O leitor-ouvinte se sente realizado pelo sucesso do rapaz, principalmente por ser alguém do povo que intervém positivamente num contexto que não é o seu. É importante destacar que ele consegue realizar seus propósitos por seus próprios méritos (meio por acaso deve-se reconhecer), sem a ajuda de elementos sobrenaturais. Estes intervêm somente porque o rei não cumpriu com a sua palavra e, de certa forma, é punido por isso.

Mas se acreditamos que é possível mergulhar na história, viver as sensações que ela desperta, alegrar-se com a premiação daqueles que a merecem ou a conquistam, desejar a punição dos maus, e, em algum momento, esquecer a realidade à nossa volta, então podemos nos considerar extasiados pelo ritmo da narrativa, pela cadência dos acontecimentos e pelas palavras do xamã, que o narrador assume. Se somos conduzidos para o interior da narrativa por um contador de histórias, também é dele a tarefa de nos restituir de volta à nossa realidade, pois somente ele está iniciado na arte de transitar por esses dois mundos e conhecê-los com propriedade.

Por fatalidade ou conseqüência das transformações culturais, dispomos de pouco tempo para as rodas de histórias, o que sem dúvida é uma carência significativa. Os contos populares a que temos acesso guardam ainda algumas marcas desse caminho que se percorre: da vida para a fantasia e desta para a vida novamente. O narrador introduz a história por meio de expressões bastante conhecidas, que vão nos familiarizando com o teor dos fatos que virão a ser narrados. Daí temos: “Diz que era uma vez um rei muito bondoso…” [11]; “Contam que um homem muito rico…” [12]; “Vô-le conta um causo sucedido. O causo é o seguinte e seguinte é este…” [13]. Esse tipo de chamamento, além de conquistar o leitor-ouvinte logo de início, por remontar a um tempo sem data, confere à história uma legitimação e uma autenticidade garantida justamente pela marca do tempo. Por existir há muito é que merece crédito. E, assim, se entra na história, livre das restrições que o momento presente possa impor.

Depois, é a própria expressão narrativa que indica que está na hora de voltar, trazendo, com certeza, as interferências da fábula. O narrador termina a história dizendo do final feliz dos fatos: “O que estava feito, estava feito. Quirino casou com Rosa e foram felizes com Deus e com os anjos” [14]; “A moça casou com o Príncipe e viveram como Deus com seus anjos querida por todos. Entrou por uma perna de pinto e saiu por uma de pato, mandou El-Rei Meu Senhor que me contassem quatro…” [15]. Em outros casos, para dar mais veracidade ao que foi dito, o contador se coloca como testemunha presente dos fatos: “… fizeram o casamento com tanta festa que até eu dancei” [16]; “Naquele tempo eu ainda era solteiro, e meti-me no meio e dancei tanto que quase me acabo!… A festa só acabou no fim do sétimo dia; assim mesmo porque os dedos do tocador de harmônico, de tão inchados que estavam de tocar, não podiam mais arrastar o fole” [17]; “Eu estava lá e vi tudo e trouxe um boião de doce mas na ladeira do Escorrega escorreguei, vaí e quebrou-se tudo..” [18]

Dessa forma, a atitude de xamã se mantém ainda hoje. É pela persistência e pela manutenção da tradição oral que se tem acesso e se pode usufruir dessas narrativas. Seja pelas palavras finais de um velho à beira da morte, ansioso por passar adiante suas vivências, seja pelo contato com o “camponês sedentário” e o “marinheiro comerciante”, para usar a classificação de Benjamin [19](1985), é que os contos populares têm sentido e se configuram como uma das mais eficientes formas de propagação da cultura popular, especialmente porque perpetuam as experiências, responsáveis por difundir a sabedoria dos antigos. E isso é especialmente desejável atualmente, num tempo em que estamos pobres de experiência (Benjamin, 1985), escravos da informação, efêmera em sua essência, e distantes das atividades grupais, que, de certa forma, imprimem em nós a marca de uma cultura, uma história e uma identidade.

O contador de histórias, ou, no caso de Contos tradicionais do Brasil, o narrador, atua como um mediador entre a nossa realidade e o espaço das narrativas populares. Ocupando uma posição de xamã, compartilhando de nossa cultura, guia-nos por um caminho de aventuras, seres imaginários, valores específicos, e, ao nos trazer de volta, incute em nós a responsabilidade de passar adiante uma série de experiências vivenciadas através das histórias. À medida que damos continuidade a essa cadeia, acrescentamos novos elementos, influências pessoais de experiências de vida, saberes de nosso tempo. E assim o conto popular se mantém vivo, dando continuidade a uma tradição expressa principalmente na forma, incorporando e reforçando os traços particulares de cada cultura.

Para finalizar, cabe ressaltar novamente a importância dessa prática de ouvir e contar histórias. Considerando que ela é capaz de nos fazer sonhar, imaginar, inventar, e que isso é parte da existência humana, torna-se indispensável dispor de um momento para esse “ócio produtivo”. Na condição de educadores, a recuperação das narrativas populares é uma postura a assumir, pois, segundo Heloísa Prieto (1999):

Em plena virada de milênio, quando o professor se senta no meio de um círculo de alunos e narra uma história, na verdade cumpre um desígnio ancestral. Nesse momento, ocupa o lugar do xamã, do bardo celta, do cigano, do mestre oriental, daquele que detém a sabedoria e o encanto, do porta-voz da ancestralidade e da sabedoria. Nesse momento ele exerce a arte da memória. (p. 41)

Referências

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Brasiliense: São Paulo. 1985.

BORNHEIM, Gerd. O conceito de tradição. In: BORNHEIM, Gerd et alii. Cultura Brasileira: tradição/ contradição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/ Funarte, 1987.

BOSI, Ecléa. O tempo vivo na memória: ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.

CALVINO, Italo. Fábulas italianas (apresentação). 4ª reimpressão. São Paulo: Cia das Letras, 1992.

CASCUDO, Câmara. Contos tradicionais do Brasil. 12ª ed. São Paulo: Global, 2003.

______ . Literatura Oral. Rio de Janeiro: José Olympio, 1952.

DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 5ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1990.

PELOSO, Silvano. O ciclo do anti-herói: antimodelos na cultura popular. In: O canto e a memória: história e utopia no imaginário popular brasileiro. São Paulo: Ática, 1996.

PRIETO, Heloísa. Quer ouvi uma história: lendas e mitos no mundo da criança. São Paulo: Angra, 1999. (col. Jovem Século XXI)

SEVCENKO, Nicolau. No princípio era o ritmo: as raízes xamânicas da narrativa. In: RIEDEL, Dirce Côrtes (org.). Narrativa: ficção e história. Rio de Janeiro: Imago, 1998.

ZAMUNER, José Alaércio. Tradição oral e literatura acadêmica: a recuperação do narrador. In: BOSI, Viviana; CAMPOS, Claudia; HOSSNE, Andrea; RABELLO, Ivonne (orgs.). Ficções: leitores e leituras. Cotia: Ateliê Editorial, 2001.

 

2 .CASCUDO, Câmara. Contos tradicionais do Brasil. 12ed. São Paulo: Global, 2003. p. 31.

3 . Idem, p. 31.

4 . Idem, p. 31.

5 . Idem, p. 32.

6 . Idem, p. 32.

7 . Idem, p.33.

8 . Idem, p. 177.

9 . PELOSO, Silvano. O ciclo do anti-herói: antimodelos na cultura popular. In: O canto e a memória: história e utopia no imaginário popular brasileiro. São Paulo: Ática, 1996. p. 174.

10 . CASCUDO, Câmara. Op. cit., p. 106.

11. Idem. A princesa sisuda. In: CASCUDO, Câmara. Op. cit. p.105. Como todas as referências aos contos são tiradas da mesma edição, nas próximas notas serão indicados apenas o nome do conto e a página.

12. Bicho de palha, p. 46.

13. Audiência do Capeta, p. 287.

14. Quirino, vaqueiro do rei, p. 140.

15. A moura torta, p. 124.

16. O mendigo rico, p. 158.

17. O boi leição, p. 184.

18. A princesa de Bambuluá, p. 39.

19. O “camponês sedentário” seria uma metáfora para aquele conhecimento adquirido pelas vivências em grupo, que passa de geração para geração. O “marinheiro comerciante” conhece porque viveu diferentes experiências.