Literatura e sociedade: reflexões sobre autoritarismo a partir de crônica de Luís Fernando Veríssimo

Fernanda Scopel Falcão

Arte e sociedade mantêm vínculos estreitos. A literatura, por exemplo, absorve e expressa as condições do contexto em que é produzida, e está sujeita às variações ou mudanças que nele ocorrem. Fatos relacionados com o desenvolvimento sociocultural, como a difusão de periódicos, colaboraram para a afirmação da crônica como gênero literário.

Etimologicamente, a crônica traz a noção de tempo. Sempre vinculada a um fato real, de âmbito social ou individual, é um registro algumas vezes poético ou irônico do cotidiano; numa linguagem coloquial, simples, breve e graciosa, ensina enquanto diverte; numa aproximação com o que há de mais natural no modo de ser do nosso tempo (Candido 1981).

O cronista une a objetividade do jornalismo e a subjetividade da criação literária. Seu discurso híbrido, que trabalha com eficácia ética e estética, permite-lhe aprofundar a notícia e registrar o circunstancial, fazer uma crítica sobre o assunto e dar o seu testemunho sobre fatos que julgue importantes. É uma das tendências da época em que vivemos, época chamada por Shoshana Felman de “era do testemunho”. Segundo Elie Wiesel, citado por Felman (2000:18): “Se os gregos inventaram a tragédia, os romanos a epístola e a Renascença o soneto, nossa geração inventou uma nova literatura, aquela do testemunho”.

Algumas crônicas passam do jornal ao livro e, apesar da transitoriedade que lhes é característica, adquirem maior durabilidade e permanecem sempre atuais. É o caso da crônica A cultura do remorso (I), escrita em 1º de setembro de 1995 por Luís Fernando Veríssimo, na qual o autor dá o seu “testemunho” sobre fatos relacionados à Segunda Guerra Mundial. Através das informações que a narrativa oferece podemos perceber como é provocado um distúrbio na memória coletiva, devido às interferências das estratégias praticadas pelo governo norte-americano. Percebemos também a preocupação de Veríssimo em questionar o uso da razão para fins anti-humanitários.

No outro dia, vendo aquela famosa fotografia do marinheiro beijando a moça no Times Square de Nova York, nas comemorações pelo fim da Segunda Guerra Mundial, me dei conta de que eu não devia estar muito longe dali. Voltávamos para o Brasil depois de dois anos passados na Califórnia, onde meu pai lecionara na universidade estadual, e íamos pegar o navio em Nova York. Eu tinha oito anos. Lembro pouco daqueles dias. Na verdade, só lembro com clareza de duas moças que passeavam nuas dentro do quarto num edifício em frente ao nosso hotel, sem qualquer relevância histórica.

Na época eu não teria prestado atenção, mas mesmo nos dez ou quinze anos seguintes se falou pouco, nos Estados Unidos, sobre as implicações morais das bombas de Hiroshima e Nagasaki que acabaram com a guerra. O presidente que autorizou os ataques, Harry Truman, morreu sem qualquer dúvida. Tinha matado alguns milhares para salvar a vida dos milhões que morreriam numa invasão do Japão. Hoje isto é contestado. Uma amostra sem vítimas do que as bombas fariam e um sinal de que os americanos pretendiam concordar com o que afinal concordaram, preservar o imperador depois da ocupação, teriam apressado a rendição japonesa. Mas a mediocridade política e a estupidez militar são seus próprios álibis. (Veríssimo 1997:104)

Primeiramente, é fundamental verificar como o texto assume as suas próprias limitações, pela perspectiva do narrador, que faz uma autocrítica num discurso sem arrogância. Isso revela-se com a declaração da sua própria incapacidade de elaboração da memória. Dessa forma, podemos sugerir que o remorso posto em questão parte inclusive do próprio narrador, porque esteve prestando atenção ao que não era importante, como as moças nuas no edifício em frente ao hotel onde se encontrava quando criança.

Formula-se, então, uma analogia bastante fértil entre a experiência infantil e a experiência social. Assim como o narrador só consegue recordar-se de fatos “sem qualquer relevância histórica”, também a população norte-americana deixa-se levar pela onda de irrelevância e cala-se diante das atrocidades cometidas pelo seu país durante a Segunda Guerra Mundial. Pouco se questionou nos Estados Unidos, e no restante do mundo também, sobre os ataques atômicos no Japão; criou-se uma apatia diante desse assunto. E mesmo que historiadores ou críticos discutissem o uso das bombas, o debate não chegava suficientemente ao grande público.

O esquecimento coletivo não é casual, mas de interesse de certos grupos sociais. No caso dos Estados Unidos é claro o interesse das elites e do governo em abafar os questionamentos de sua sociedade para as implicações morais do ataque nuclear. Era preciso que os norte-americanos apoiassem o exército de seu país, para que este estivesse fortalecido e respaldado perante a opinião pública mundial. Essa estratégia, que cria a condição de que o nível de questionamento seja o mínimo possível, é tipicamente autoritária. E para que esse tipo de política funcione “a degradação da memória social é um elemento decisivo” (Ginzburg 2001:82). É importante lembrar que o pensamento e o comportamento autoritário permanecem sob as formas de governos democráticos mais do que se possa imaginar ou se queira reconhecer.

A política usada para que a atitude fosse aceita não pesou só como uma ação repressora, mas fundamentou pensamentos e produziu discursos nacionalistas que exaltaram a “importância” das ações norte-americanas durante a guerra. Além da manipulação de informações, reportagens, documentários e várias outras formas de propaganda (o filme “Pearl Harbor” é um bom exemplo disso) foram divulgadas pelo mundo e serviram para inflamar o patriotismo norte-americano, e para alienar as pessoas quanto à realidade catastrófica dos ataques e quanto aos verdadeiros objetivos bélicos. Segundo a tese revisionista que o próprio Veríssimo cita em uma segunda crônica sobre os ataques a Hiroshima e Nagasaki, as bombas foram “muito mais mensagens à União Soviética, na disputa geopolítica que se iniciava com o fim da Segunda Guerra (…), como amostra de seu poderio bélico, do que meios para vencer o Japão, que já estava praticamente rendido. Também tentaram oficialmente esconder os efeitos devastadores da radiação. Só a pouco tempo, por exemplo, foram revelados os resultados de experiências secretas realizadas com humanos, na época dos primeiros testes atômicos” (Veríssimo 1997:105).

Noutro ponto de A cultura do remorso (I) encontramos a crítica do emprego da razão para a barbárie. Veríssimo questiona como intelectuais podem prestar-se a projetos anti-humanitários, com objetivos estúpidos e medíocres.

(…) Robert Oppenheimer era tudo menos medíocre e estúpido, era um dos cientistas mais brilhantes do seu tempo. Foi o chefe científico do Projeto Manhattan, que desenvolveu a bomba. Contou que, quando souberam dos efeitos do ataque a Hiroshima, ele e seus colegas no projeto comemoraram com champanhe. Tinha funcionado! Depois, Oppenheimer, que era um intelectual, lembrou-se disto e se arrependeu, e até recorreu a uma citação do Baghavat-Gita para expressar seu horror. Fica-se pensando o que é pior, o champanhe ou o humanismo poético e tardio. Mas Oppenheimer se redimiu, negou-se a trabalhar no desenvolvimento da bomba de hidrogênio, passou a ser um ativista antinuclear e foi perseguido por isto. James Conant não fez nada parecido. Hoje se sabe que foi Conant quem sugeriu que os melhores alvos para as primeiras bombas atômicas seriam grandes plantas industriais cercadas por moradias de trabalhadores. Conant também não era político ou militar. Na época, além de administrador do Projeto Manhattan, era nada menos que presidente da Universidade de Harvard, outra catedral do intelecto. (Veríssimo 1997:104-5)

A razão tem um potencial ativo ou transformador, pois além de ser o critério para avaliar os conhecimentos, é também um instrumento crítico para compreendermos melhor as circunstâncias em que a humanidade está inserida. Por meio da razão discute-se se um pensamento ou uma teoria contribuem ou não para que os seres humanos conheçam e compreendam as circunstâncias em que vivem, alterem as situações julguem inaceitáveis ou intoleráveis, para melhorar as condições em que se encontram. Mas sabemos também que a razão é um instrumento que pode ou não ser usado para fins morais, pois mesmo que os valores humanitários preguem que o trabalho do intelectual seja dotado de papel ético, a inteligência pode estar totalmente indiferente aos problemas de cunho social. No texto de Veríssimo temos um exemplo: é indignante a passagem em que Robert Oppenheimer afirma que ele e seus colegas que desenvolveram a bomba comemoraram com champanhe o resultado dos ataques, sem sequer considerarem o horror que estavam causando à população japonesa.

Devido às guerras e aos regimes autoritários que se espalharam pelo mundo ficamos conhecendo o uso dessa razão instrumental, que é aquela que está a serviço da exploração e da dominação, da opressão e da violência. As maiores crueldades de nosso século foram resultado de um grande investimento científico e tecnológico, incentivado por questões político-ideológicas resultantes, na quase totalidade das vezes, de governos com práticas autoritárias. Crueldades decididas à distância e justificadas como lamentáveis necessidades operacionais.

George Steiner também nos diz que boa parte da inteligência e das instituições da civilização recebeu a inumanidade com graus variados de boa vontade:

(…) extremos de histeria coletiva e de selvageria podem coexistir com a conservação e, até mesmo, o maior desenvolvimento das instituições, burocracias e códigos profissionais de alta cultura.
(…) em um mesmo indivíduo, qualidades óbvias de sensibilidade letrada e estética podem coexistir com um comportamento bárbaro e politicamente sádico. (Steiner 1991:87-8)

E nesse conceito enquadram-se Oppenheimer, James Conant e seus colegas do Projeto Manhattan.

A Segunda Guerra Mundial deixou um rastro de destruição e morte, mas o mundo provavelmente não “aprendeu a lição”; desde aquela época vários conflitos aconteceram. E onde está o remorso? Atitudes como a de Veríssimo, que através da crônica tenta livrar-se da culpa pelo seu esquecimento, e de Oppenheimer, que se redimiu e tentou impedir novos erros, são exceções. A alienação da sociedade, a mediocridade política, o instinto de destruição militar e o comportamento injusto de parte da intelectualidade ainda estão presentes entre nós. Recentemente presenciamos a invasão anglo-americana no Iraque. O mundo inteiro assistiu à destruição de um país, numa suposta tentativa de desarmá-lo (segundo os Estados Unidos, o governo iraquiano possuía armamento químico). Apesar de muitos protestos ocorridos por todo o mundo, nenhuma medida formal concreta foi tomada para impedir o conflito. A maioria da população norte-americana continuou apoiando seu exército. Muitos iraquianos também aprovaram a invasão, com a esperança de uma vida diferente daquela que tinham nas mãos de seu ditador. Mas será que o preço pago por eles não foi alto demais?

Depois de termos analisado os fatos abordados por Veríssimo em sua crônica, inegavelmente tão atuais, surge a necessidade de nos perguntarmos por que um brasileiro se interessa em escrever sobre o passado histórico dos Estados Unidos. Uma hipótese é a de que o autor deseja alertar-nos para uma relação de causa indireta entre os problemas brasileiros e a política norte-americana. Tal hipótese seria facilmente justificada pelos vários acordos político-econômicos assinados entre os dois países ao longo do processo histórico, que nos relegam a uma situação de dependência. A nossa experiência já reconhece esse fator como causador da submissão cultural e econômica, que dificulta o desenvolvimento do país e a resolução dos problemas e desigualdades sociais. Outra hipótese pertinente é a de que Veríssimo quer nos mostrar que a sociedade brasileira também sofreu (e ainda sofre) um processo de degradação da memória coletiva. A opressão e as atrocidades cometidas durante os governos autoritários em nosso país provocaram um grande trauma que ainda não foi superado plenamente, e cuja repercussão reflete-se até hoje. O crescimento da violência, por exemplo, além de ser influenciado pelas desigualdades que o sistema neoliberalista gera, deve-se à idéia de uma continuidade do autoritarismo entre nós, fundamentada no nosso passado colonial, escravista e, mais recentemente, ditatorial.

Independentemente da hipótese selecionada (afinal, ambas são pertinentes e justificáveis), é necessário tomarmos a atitude do autor como um alerta, para que a nossa apatia em relação a esses fatos acabe, pois é terrível que tenhamos ficado tão desassombrados com a insensatez e a crueldade humanas. A falta de preocupação com os acontecimentos catastróficos de nossa história é um dos fenômenos mais característicos do final do século XX; a maioria dos jovens de hoje crescem numa espécie de “presente contínuo”, sem elaborar qualquer “relação orgânica” com o passado da época em que vivem, nas palavras de Hobsbawm (1995:13). O esquecimento de fatos de tortura, violência e barbárie, através do “apagamento” da memória coletiva, bem como a banalização dessas questões, “potencialmente reforçam as chances de naturalizá-las e ignorar a intensidade de seu impacto” (Ginzburg 2001:88). Ora, ignorar um fato inaceitável não formula, quanto mais fornece, uma solução para o problema.

Por tudo isso, é crucial construirmos a consciência social para a discussão da complexidade da experiência histórico-política. E a literatura assumiu um papel decisivo nesse sentido, como nos mostra Antonio Candido, em seu artigo intitulado O direito à literatura: “(…) uma literatura empenhada, que parte de posições éticas, políticas, religiosas ou simplesmente humanistas. (…) [ casos em que o autor] parte de certa visão da realidade e a manifesta com tonalidade crítica” (Candido 1995:250).

A leitura crítica de textos, como A cultura do remorso (I)de Luís Fernando Veríssimo, proporciona-nos a reflexão de questões que são, muitas vezes, oficialmente mascaradas e até mesmo censuradas. Nesse caso, o autor utilizou uma experiência infantil como um veículo para iniciar uma narrativa que deseja expressar uma ocorrência violenta, em que critica nossa capacidade de prestar mais atenção às coisas irrelevantes do que às relevantes: é a combinação irônica do banal com o horror. Com o choque causado por esse estranhamento é possível estabelecer o despertar para uma reflexão crítica, em busca de soluções que visem reparar o mal que ocorreu e evitar que novas catástrofes aconteçam. E para elaborarmos uma discussão eficiente é preciso colocarmo-nos a par dos problemas e contradições do sistema que fazemos parte. Devemos, então, conhecer e reconhecer os erros para que não sejam repetidos.

Drummond, nosso grande poeta e pensador, preocupava-se também com a qualidade da consciência intelectual dos brasileiros, e deixou-nos (a nós, estudantes ou profissionais da área de letras) uma importante “missão” nesse sentido:

(…) num mundo absurdo, como o atual, que só erige padrões de cultura para destruí-los e perante uma civilização que conduz os seus melhores filhos à morte coletiva pela bomba, quem está certo é quem afinal era chamado de louco, e repelia esta ordem. […] perigo, insisto, é a volta às velhas formas burguesas de expressão, à literatura água de flor laranjeira, anódina e inconseqüente, ou simplesmente acadêmica. Este perigo é tanto maior quanto muitos escritores entre nós, não raciocinaram perante os fatos e fenômenos políticos. Estão ainda num inquietante não-importismo… Por isso a formação da consciência intelectual no Brasil está em plena infância. (Carlos Drummond de Andrade. In: BRAYNER 1978:34-5)

Enfim, é preciso consumirmos e produzirmos “uma literatura que se rale nos fatos e não que rale neles. Nisso, a sua principal missão – ser a estratificação da vida de um povo e participar da melhoria e da modificação desse povo” (Antônio 1976:14). Pois, muito além do que somente fruição, a literatura é uma importante modalidade para a relação da humanidade com os acontecimentos da história contemporânea.

Referências

ANTÔNIO, João. Malhação do judas carioca. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976.

BRAYNER, Sonia. Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

CANDIDO, Antonio. A vida ao rés do chão. In: Para gostar de ler: crônicas. São Paulo: Ática, 1981. Coleção para gostar de ler, v. 5.

______ . O direito à literatura. In: ______. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995.

FELMAN, Shoshana. Educação e crise ou as vicissitudes do ensinar. In: NESTROVSKI, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio (org.). Catástrofe e representação. São Paulo: Escuta, 2000.

GINZBURG, Jaime. Escritas da tortura. In: L’Ordinaire Latino Americain. Toulouse: Université de Toulouse, 2001. v. 183.

HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

STEINER, George. Em uma pós-cultura. In: ______. No Castelo de Barba Azul. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

VERÍSSIMO, Luís Fernando. A cultura do remorso (I). In: ______. Novas comédias da vida pública: a versão dos afogados. Porto Alegre: L&PM, 1997.

VERÍSSIMO, Luís Fernando. A cultura do remorso (II). In: ______. Novas comédias da vida pública: a versão dos afogados. Porto Alegre: L&PM, 1997.