A sedução do sujeito ativo das narrativas sobre leitores infantis

Daniervelin Renata M. Pereira

De uma dúvida surgida a partir da leitura de narrativas infantis, adveio um interesse específico que procuro sintetizar na presente análise. A dúvida diz respeito à distinção entre o sujeito privilegiado pela narrativa e o protagonista da mesma, distinção prevista pela teoria semiótica. Esta análise comparativa pretende ser um levantamento dos percursos narrativos dos sujeitos em duas narrativas infantis e a discussão das leituras temáticas possíveis, bem como a discussão da noção de sujeito implícita em cada uma à luz dessa teoria.

Embora saiba das várias interpretações possíveis e já realizadas dos textos analisados, esta terá uma abordagem imanentista, que considera apenas os textos analisados e que permitirá uma maior fixação nos objetivos aqui expostos.

A primeira narrativa, de Francisco Marques, um famoso contador de histórias, leva o título de O tucano e o coelho:

O tucano pousou no galho amigo do velho jatobá. O tucano trazia uma goiaba presa no seu longo bico. O tucano estava pronto para comer a deliciosa fruta, quando, de repente, apareceu aquele cujo nome rima com… bedelho.
– Querido tucano! Há quanto tempo! Sempre vistoso, que beleza! Já fiquei sabendo que o senhor está na escola de canto dos professores Uirapuru e Tangará. Maravilha! Gostaria muito de ouvir você cantar!
O coelho foi dizendo a cantar e levantando as orelhas e arregalando os olhos. O tucano, bem, o tucano abriu o bico e destampou a cantoria. É, isso mesmo, abriu o bico. A goiaba tchigudum! Alguns segundos depois… Alguns segundos depois, escuta só a cantoria do coelho:
– Sete e sete são catorze, com mais sete, vinte e um. (hmmm) Hoje não errei uma! Foram sete tucanos e sete goiabas.
Boa goiabada, eh, quer dizer, boa pescaria! Pouca história e muitas goiabas, ou melhor, muitas mensagens. Eu, por exemplo, conversando com a laranja, pesquei três. Primeira: quem escuta muito elogio perde o rumo do navio. Segunda: hora de comer, comer. Hora de cantar, cantar. Terceira: será que o coelho também está freqüentando alguma escola de canto? Pouca história e muito desafio! Vamos puxar a prosa e pescar outras goiabas?

Dois sujeitos podem ser identificados nessa narrativa, o tucano e o coelho, e um objeto-valor, a goiaba. O tucano, a priori em conjunção com o objeto, é modalizado pelo segundo, que usa da manipulação para alcançar seu objetivo.

Ao partir do senso comum, o leitor pode ser levado a deduzir, num primeiro momento, que o tucano é o protagonista desta narrativa. Tal dedução não é infundada, uma vez que o leitor de histórias infantis tradicionais está acostumado a processar leituras em que o sujeito central é um sujeito ingênuo e bonzinho, o qual sempre luta contra a esperteza e maldade de um anti-sujeito, o vilão.

As narrativas sempre estiveram impregnadas de um caráter moralizador e, não raro, têm servido de primeiro material para a alfabetização de crianças em várias culturas. RICHTER & MERKEL fazem referência a essa característica dos textos infantis:

Os textos oferecidos ao público mirim, porque compromissados com a educação da infância, são veículos de manipulação da mesma ao favorecerem padrões de comportamento exemplares. (RICHTER & MERKEL, 1978, p. 7)

Não é à toa que inúmeras histórias apresentam uma moral no término do texto. Mais do que retomá-lo, ela funciona como direcionamento interpretativo da história, servindo, muitas vezes, como exemplo e ensinando por meio de formas de “descontração”.

O protagonista para a semiótica é o ator do nível discursivo que centraliza as relações com outros personagens. Já o sujeito, para a mesma teoria, é aquele que é modalizado pelo /querer/, pelo /dever/, pelo /poder/ ou pelo /saber/. A análise, então, parte da relação entre os sujeitos para estabelecer qual deles seria o privilegiado pela narrativa e qual seria o protagonista no discurso.

Sabe-se que o texto deve ser analisado em seu todo, uma vez que as primeiras impressões são suscetíveis de variação no decorrer da leitura. Sendo assim, partindo dessa informação, pode-se afirmar que o coelho é o sujeito privilegiado na narrativa citada devido a sua competência argumentativa e a realização da performance no decorrer da narrativa.

O coelho, como fica implícito, está num processo de continuidade, pois o tucano nesta narrativa já é o sétimo a cair em sua armadilha, como ele canta no fim dessa história. Tal observação corrobora para a visão do coelho como destinador na narrativa.

Note-se ainda a manipulação que o coelho exerce sobre o tucano ao exaltar suas qualidades, fazendo-o abrir seu bico e soltar a goiaba da qual o esperto coelho toma posse. Ele usa da sedução, nesse momento, um tipo de manipulação na qual o coelho usa da imagem positiva que sua bajulação provoca, para que o tucano “feche o acordo” com ele. O coelho /sabe/ da competência do sujeito manipulado para cantar; a informação pode ser percebida na sua fala: “Já fiquei sabendo que o senhor está na escola dos professores Uirapuru e Tangará”.

Neste caso, cabia ao tucano o /querer/ fazer para que a manipulação rendesse frutos, ou melhor, o fruto que o coelho almejava. A aquisição é concretizada facilmente, após o elogio das qualidades do tucano. Ele “abriu o bico e destampou a cantoria”. No nível fundamental, a categoria semântica presente na história seria a oposição malandragem vs ingenuidade e, nesse caso, a malandragem teria um valor positivo, sendo eufórico e a ingenuidade, valor negativo, sendo disfórico.

A fala do narrador, ao final do texto, comprova a posição do coelho como sujeito privilegiado no percurso da narrativa. O narrador faz uma crítica à desatenção do tucano que “perde o rumo do navio” e à esperteza do coelho que faz “boa pescaria”, criando, assim, uma “moral” implícita para a história (até podemos imaginar a feição decepcionada do tucano e o coelho saltitante com sua suculenta goiaba!).

Com tal análise, não restam dúvidas de que o coelho é o sujeito privilegiado pela narrativa, o que também coincide com o sujeito mais ativo, ou seja, ele é um sujeito atualizado, pois ele /quer/, /sabe/ e /pode/ transformar a disjunção em conjunção. Já o tucano é um sujeito potencial com um papel predominantemente passivo; ele é modalizado pelo /aderir/ e pelo /crer/, sendo seu único desejo /querer/ cantar.

Passemos à segunda narrativa a ser analisada neste artigo: Chapeuzinho Vermelho na versão de Perrault, que faz parte da tradição cultural brasileira. Aqui, as relações entre os sujeitos são mais complexas do que em O tucano e o coelho, o que exige um olhar mais crítico.

Essa narrativa começa com a atribuição de uma tarefa à personagem Chapeuzinho Vermelho por sua mãe: levar um bolo e um pote de manteiga para sua avó. Desta tarefa dependerá a manutenção da imagem positiva de boa menina.

A atenção será mantida na relação entre os sujeitos lobo e Chapeuzinho, porque é nessa relação que se concentram as principais ações da narrativa. A escolha não é aleatória, mas parte da percepção de que são os trechos de que mais se lembram seus leitores após uma leitura, o que também nos interessa nesse estudo.

A primeira manipulação de sedução é exercida pelo lobo no encontro com Chapeuzinho na floresta com a proposta de seguir por caminhos distintos para saber quem chegaria primeiro.

O lobo adquire o /saber/ sobre a localização da casa da avó de Chapeuzinho e ele /sabe/ do gosto pelo desafio, comum às crianças, além da ingenuidade da menina que segue “catando avelãs e correndo atrás das borboletas” no seu caminho. A própria Chapeuzinho Vermelho fornece o /saber/:

– Ela mora depois do moinho que o senhor está vendo ali, na primeira casa da aldeia. (PERRAULT, 1997, s/p).

Neste ínterim, o lobo tem tempo de saciar parte de sua fome comendo a avó e de se disfarçar para esperar a cobiçada Chapeuzinho Vermelho.

Tudo indica que esse tempo é importante na narrativa, pois o lobo é um sujeito dominado pela paixão semiótica. Ele realmente não podia comer a Chapeuzinho Vermelho na floresta pela presença dos lenhadores, mas a espera também tem a importância de um processo de conquista, o qual torna o lobo característico na narrativa e ressalta sua maldade e astúcia na busca do seu objeto.

O lobo é um sujeito atualizado que se mantém ativo em todas as relações com os outros sujeitos. Ele /quer/, /sabe/ e /pode/ entrar em conjunção com seu objeto, Chapeuzinho Vermelho. O papel actancial desempenhado pelo lobo, aqui, é o de destinador manipulador ao estabelecer situações para sua performance na narrativa.

Chapeuzinho Vermelho, por outro lado, é sujeito virtual: ela /deve/ levar a encomenda da mãe para manter sua imagem positiva, que está em jogo, mas não /pode/ cumprir o contrato fechado com a mãe, porque o lobo se apresenta como obstáculo no seu caminho. Ela também ocupa a posição de objeto do sujeito lobo, como foi lembrado acima. Com base em BARROS (1994), pode-se esquematizar dois programas narrativos:

F(não cumprir a tarefa) [S1 (Chapeuzinho Vermelho) > S2 (avó) C Ov (bolo e manteiga)]

F(comer Chapeuzinho) [S1 (lobo) > S2 (lobo) C Ov (Chapeuzinho Vermelho)]

F = função
> =transformação
S1 = sujeito do fazer
S2 = sujeito do estado
C = conjunção
Ov = objeto-valor

Assim, é possível afirmar que Chapeuzinho centraliza as relações na narrativa que leva seu nome e gera a moral da história dirigida às moças, “sobretudo as mais bonitinhas”, alertando-as para o perigo em escutar estranhos como o lobo que são “criaturas maldosas”.

No entanto, na versão de Perrault, é o lobo que termina o texto como sujeito realizado ao entrar em conjunção com seu objeto de desejo. O autor termina a narrativa nesse ponto: o lobo come Chapeuzinho Vermelho. Sendo assim, volta a questão: Chapeuzinho Vermelho detém a posição de heroína, conceito profundamente ligado ao de protagonista, mas ela é o sujeito privilegiado da narrativa?

Pelo que indica a análise feita, o lobo, mantém-se ativo na maior parte da narrativa e recebe a sanção positiva, ao contrário de Chapeuzinho que é manipulada em todas as ações e termina na barriga do sujeito manipulador.

Na dimensão cognitiva, temos que o coelho e o lobo representam os sujeitos manipuladores nas narrativas concentrando as características de “vilões”, ou seja, são malvados, espertos, astutos e enganadores e são a eles reservadas as sanções positivas ao fim de cada narrativa.

A relação entre caçador e caça é explorada nos dois textos e ajuda na identificação da manipulação exercida entre o destinador e o destinatário. Pode-se observar que as características de ferocidade próprias de alguns animais são aproveitadas nessas narrativas. O valor atribuído ao lobo é justamente o usado na narrativa, ou seja, temos a concepção de lobo como animal feroz e, por natureza, mau, mas em O tucano e o coelho, não há referência a esse aspecto; o coelho é um animal indefeso na natureza, apesar da astúcia que apresenta na narrativa. Tal comportamento pode ser surpreendente e atraente para os leitores dessas histórias.

O tucano e Chapeuzinho Vermelho são vítimas do engodo de seus manipuladores e representam os “mocinhos” das histórias infantis terminando com a disjunção dos seus objetos-valores.

Entre os dois últimos sujeitos, é necessário estabelecer uma diferença. O tucano não tem voz na sua relação com o coelho, sua única ação foi abrir o bico para cantar, já Chapeuzinho Vermelho está em nível mais alto: ela tenta manter a conjunção de boa menina para a mãe e ainda direciona parte dos acontecimentos finais, pois é ela quem lança as perguntas ao lobo.

Mas onde estariam os textos com modelos exemplares de comportamento, quando os sujeitos ativos representam justamente o mal? Que conceito de criança estará implícito nessas narrativas?

O enunciatário da primeira história pode ser uma criança ativa que entra em conjunção com seu objetivo através de estratégias inteligentes. Percebe-se que, nesse texto, não há uma concepção de maldade ligada às atitudes do coelho, mas há um desprestígio da ingenuidade do tucano, o que confirma a sugestão de ouvinte ativo na relação com o mundo real. Pode-se afirmar, então, que o comportamento exemplar, nesse caso, está ligado a uma maior atividade do leitor em suas próprias ações.

No segundo texto, a protagonista, com quem o ouvinte/leitor (criança) deverá se identificar é um sujeito potencialmente ativo, mas efetivamente passivo. Neste caso, a criança possivelmente almeja a posição do lobo, por sua esperteza e conseqüente sanção positiva no final, mesmo que a moral seja remetida as moças bonitinhas, pois aí também se percebe o poder do lobo sobre suas vítimas.

Vemos por aí muitas crianças,
Mocinhas bonitas alegres e graciosas,
Que no meio de suas andanças
Dão ouvidos a criaturas maldosas.
Não é, portanto, de espantar
Que o lobo as venha devorar. [grifo meu] (PERRAULT, 1997, s/p).

Como exemplo de narrativas com esse perfil pode-se citar Branca de NeveCinderelaAs fadasA Bela e a Fera e outros em que, a idéia de comportamento exemplar está implícita. De outro lado, temos O gato de Botas que se assemelha à narrativa de O tucano e o coelho em que o sujeito manipulador recebe a sanção positiva.

As narrativas, que espelham uma cultura, refletem também as relações estabelecidas entre os sujeitos na realidade e o interesse presente em sua produção. O interesse parece não ser o de responder qual seria o gosto das crianças, mas qual a ideologia a ser imposta a elas.

A sedução do sujeito ativo sobre a criança é perfeitamente condizente com o contexto de crescentes inovações tecnológicas da modernidade, que exigem delas posições cada vez mais atuantes na sua relação com o mundo. Os sedutores e sofisticados video games, os modernos programas de computadores são alguns dos exemplos de situações que colocam a criança como altamente capaz e próxima do mundo adulto, ao contrário das simples e didáticas narrativas infantis.

Uma tradição pode estar sendo rompida: a da concepção de criança como ente puro e incapaz face à dominação de um outro manipulador. A atração é, então, tentada pela sedução de narrativas incrementadas e que seja compatível à nova personalidade das crianças. Vale lembrar que o conto de Perrault é do século XVII, já a narrativa de Francisco Marques é recente, apesar da intertextualidade com outros textos anteriores, o que pode ser visto como sintoma de mudança.

É inegável a importância e o valor do fantástico na vida das crianças de ontem e de hoje, e também a aprendizagem de associações convencionais que dirigem as expectativas ao se ouvirem histórias, como o papel esperado de um lobo, de um leão, de uma raposa, de um príncipe. Daí a necessidade em criar versões cada vez mais atualizadas.

Finalmente, pode-se afirmar que as narrativas infantis, como toda produção literária, são dinâmicas e fluidas. É impossível estabelecer critérios para a produção desses textos, pois além da variação dependente do autor, há aspectos sociais e temporais envolvidos que sempre fugirão ao pré-estabelecido. Essa conclusão só confirma o caráter aberto dos contos de fadas que permitem sempre outras adaptações e até transcriações do tema original.

Referências

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 1994.

MARQUES, Francisco. Histórias Gudorias de Gurrunforias de Maracutorias Xiringabutorias. Leituras silenciosas com barulhos de brinquedos. CD n.o PC0009. São Paulo: Palavra Cantada, 1999.

MATTE, Ana Cristina Fricke. A escoliose de Branca de Neve in: Revista do GEL. Araraquara – SP, v.1, n.1, p.13-34, 2004.

PERRAULT, Charles. Contos de Perrault. Ilustração Zdenka Krejcova. Trad. Monica Stahel e Rosemary Costhek Abílio. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

RICHTER, Dieter & MERKEL, Johannes. “A função da fantasia dos contos de fadas na educação burguesa”.Boletim Informativo da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil. Rio de Janeiro, 10 (41): 6-20, jan./mar., 1978.