O entre discurso de Ana Cristina César: uma análise do poema Arpejos

Daniel Wallace de Souza Lima

RESUMO: Este ensaio pretende apontar algumas considerações sobre a poesia de Ana Cristina César, mais especificamente no poema auto-intitulado “Arpejos”. Primeiramente, analisamos a relação da sua poesia e a geração dita como “marginal”, em seguida, propõe-se a reflexão do poema “Arpejos”, a partir de uma fala marcada pelo “entre” discursivo.

PALAVRAS – CHAVE: Poesia, marginal, heterotopia.

ABSTRACT: This paper attempts to point out some considerations about the poetry of Ana Cristina César, more specifically in the poem’s self-titled “Arpeggios”. First, we analyze the relationship between his poetry and the “marginal” generation, then it is proposed to reflect the poem “Arpeggios” from a speech marked by the discursive “between”.

 

1 A marginal que não rejeitou a biblioteca.

“Tudo o que está aqui já está em você, só que você não sabia, e é por isso que está me lendo, senão não precisaria me ler. (apud, SANTIAGO, p. 61).

A linguagem poética de Ana Cristina César enquadra-se numa posição que a distingue em relação aos seus companheiros da geração dita como “marginal”. A palavra marginal foi utilizada na década de 70 como potência significativa, já que, uma verdadeira cultura que se auto-intitulava como marginal foi criada nesta época. Esses grupos utilizaram-se de vários meios artísticos, como, por exemplo, o cinema de Rogério Sganzerla e Julio Bressane, na literatura temos os exemplos de Chacal e Cacaso, encontramos  o marginal nas artes plásticas representada pela figura de Hélio Oticica famoso pela frase: “Seja marginal, seja herói”, que escreveu em uma bandeira sobre a foto de um traficante morto publicada num jornal carioca em 1968.

Segundo Maria Lucia Camargo, a cultura dos anos 70 instalou uma múltipla “cultura à margem”: “[…] à margem da intelectualidade, à margem da sociedade de consumo, à margem da atuação política direta na esquerda revolucionária. Podemos pensar a marginalidade sob vários aspectos: comportamental, político, estético, econômico. (CAMARGO, 2003, p. 29).

O termo marginal encontra na literatura uma série de problemas sobre o seu significado. A imagem mais conhecida criada a partir da poesia marginal teve como principal característica a marca da “poesia do papo-geracional” que através de uma poesia calcada no linguajar coloquial, surgia como vertente contrária a geração de 30, no entanto, esse discurso cria um movimento que nunca existiu, ou seja, um “movimento de poetas marginais”, que praticavam um estilo de poesia de forma lúcida e consciente, no sentido de combater o texto erudito. Essas definições a cerca da poesia marginal teve como ponto de referência a antologia 26 poetas hoje, que inclui Ana Cristina César, organizada pela Heloisa Buarque de Holanda, publicado em 1976, que inclui vários poetas do Rio de Janeiro, e, por tê-los divulgados frente a um público mais amplo, tornou-se uma referência para os críticos e professores de literatura. Percebemos um problema do termo “marginal” visto sob a perspectiva dessa antologia, essa obra gira em torno de um limite geográfico, ou seja, toda a geração da década de 70 está marcada por características encontradas em alguns poetas cariocas.

Cita-se, aqui, o poema de Chacal (1972), autor relacionado na antologia 26 poetas hoje. Optamos na escolha desse poema, pois, percebemos uma linguagem coloquial que costura o texto, essa linguagem é defendida pela Heloisa Buarque como umas das principais características da poesia marginal, um texto que busca uma poesia de fácil explicação, otimista e vencedora, convincente e lógica, redonda e massacrante, que existe em toda leitura “bem-sucedida”. O próprio autor, ao lado de Cacaso e Ana Cristina César, nos serve como símbolo dessa geração. Encontramos o poema, sem título, no livro Preço da passagem:

Com a loucura no bolso, Orlando entrou na
Biblioteca Estadual.
Foleou folhas estapa-furdias sobre
As idéias a arquitetura e a descompostura
Dos homens
Aí achou graça. Aí ficou sério
Aí riu. Aí chorou demais (…)
Orlando disse mais tarde:
-Não faço isso never more.

Uma interessante abordagem sobre a questão do texto marginal é desenvolvido por Silviano Santiago (1978) em seu texto “A morte de Mallarmé”: “[…] a linguagem coloquial invadindo o verso e determinando até mesmo os seus recortes rítmicos não é um simples elemento que indicaria só desprezo pelo vocabulário “poético” do poema, é também derivada de uma convivência diária e comum, […] é dessas conversas que surgem quase escritos os poemas.” (SANTIAGO, 1978, p. 185). A procura dos poetas marginais, segundo o autor, encontra-se na utilização de uma linguagem diluída que expressasse suas vivências de jovens suburbanos inconformados com as regras impostas pelos meios sociais, contudo, não podemos esquecer o debate artístico que marca essa década de 70, de um lado, encontramos os poetas que rejeitavam a biblioteca, como, por exemplo, Cacaso e Chacal, que procuravam uma poesia de fácil assimilação para que possa ser entendida pela massa, do outro lado, temos os “poetas alienados” que não se afastavam da biblioteca, como, por exemplo, Ana Cristina César, Leminski e Wally Salomão, que abdicavam de uma linguagem-pedagógica e por isso eram considerados difíceis.

O ponto que une essas duas formas de fazer poesia está no ato de identificar uma separação entre linguagem erudita e popular. A separação foi incorporada por alguns poetas como plataforma de superação entre o subdesenvolvido e o desenvolvido. Outros poetas criaram discursos que não buscavam uma superação de subdesenvolvido para desenvolvido, o lugar escolhido foi justamente o entre: erudito-popular e subdesenvolvido-desenvolvido, cria-se um entre discurso contaminado por essas esferas consideradas puras. Essa contaminação surgida durante a poesia da década de 70 utiliza-se da alegoria como método de fuga para um corpo que é retraído e limitado pela ditadura limitar. No momento em que o corpo não busca uma única identidade, ele está apto a utilizar várias máscaras, assim, a captura desse corpo é dificultada.

Ana Cristina não se afasta da biblioteca. A autora trabalha com base nos movimentos que a qualificam como literatura (biblioteca) e também nos quais a desqualificam (estética coloquial), por isso, sua poesia caminha no limite entre o discurso coloquial e o erudito, a fim de transformar o poema num corpo infinito e de várias possibilidades de leituras. A poesia de Ana Cristina trabalha com um discurso formador de imagens sobre imagens. A autora trabalha o texto como potência, nem que, para isso, sua poesia, apesar de carregar elementos do cotidiano, seja classificada como difícil. Sua poesia não se apropria de elementos do cotidiano para se justificar como pertencente a uma determinada geração, mas sim, como reinvenção de elementos da literatura e de si mesma enquanto sujeito que se desfragmenta numa época de culto ao corpo “sarado” e falência do intelecto. As vozes que surgem na sua poesia através de um cotidiano banal não se limitam apenas como partes do registro de um instante, a linguagem na poesia da autora trabalha num viés de questionar o sujeito e também a própria linguagem que configura esse sujeito num determinado espaço e tempo.

No texto “Retratos de época”, Ana Cristina questiona seu amigo e poeta Cacaso sobre a relação entre texto fácil e difícil: ”[…] uma vez, eu li um poema meu que eu tinha adorado fazer […] e o Cacaso olhou um olho comprido […] leu e disse assim: É muito bonito, mas não se entende […] o leitor está excluído”. (apud, SANTIAGO, 1989).  A tensão criada pela poesia de Ana Cristina não se limita apenas entre os poetas marginais que acusaram sua poesia de ser difícil, o lado da biblioteca também acusou a autora de utilizar elementos que fogem dos padrões poéticos, como, por exemplo, o poema em forma de diário que encontramos em “Cenas de abril” e também no poema em forma de texto postais que forma a “Correspondência completa”, a linguagem coloquial e de caráter biográfico também constitui um ranço da crítica literária em relação à poesia de Ana Cristina.

Vê-se, assim, um incômodo gerado pela poesia de Ana Cristina na época em que foi lançada, tanto da parte que rejeitava a biblioteca, quanto da parte erudita. A questão problematizada está no campo da estética e também na questão sintática explorada pela poesia da autora. Nesses dois campos, a poesia trafega livremente sem que haja preocupação em atingir um certo público. Assim, o poema consegue uma configuração entre o singular e anônimo, contudo, esse movimento exige que o leitor também faça parte do poema, já que, a “apropriação” do texto pelo leitor também faz parte do ritual poético proposto pela autora. Por isso, a poesia da escritora consegue manter uma curiosidade com o passar dos anos, o texto agrega em si um “eu” obscuro, contudo, esse “eu” instiga o leitor.

Ao discutir a questão do singular e anônimo na poesia de Ana Cristina, Santiago (1989) aborda o que, na maioria dos casos, é a dificuldade do poeta marginal: a linguagem poética. Sobre essa questão, Santiago (1989) comenta: “A linguagem poética existe em estado de contínua travessia para o outro.” (SANTIAGO, 1989, p. 53). Ou seja, a linguagem poética nunca exclui o leitor, como Cacaso acusava a poesia de Ana Cristina. A partir dessa divagação sobre linguagem poética, Santigo (1989) configura duas perspectivas para definir a poesia da autora:

O primeiro protocolo se situa no nível do conhecimento e do reconhecimento que de sua obra estava  fazendo em relação aos  seus companheiros de geração.[…] O segundo protocolo se enuncia no próprio corpo de seu livro de poemas “A teus pés”, quando o texto desalimenta  o leitor, desalimentae desmistifica os equívocos de que podemos chamar de leitor autoritário. (SANTIAGO, 1989, p. 54)

O campo onde se configura o poema de Ana Cristina é o da falsa cumplicidade, justificada assim, pela relação ambígua entre texto e leitor. Apesar da utilização de dados biográficos (diário e cartas), contudo, como definiu Santiago, esses dados em travessia pela linguagem poética são de todos e de nenhum leitor, por isso, auto-biografia. Cada poema atinge de maneira única e diferente em cada leitor, assim, definimos a poesia de Ana Cristina como singular e anônima.

 2.1 Arpejos.

ARPEJOS

1
Acordei com coceira no hímen. No bidê com espelhinho
Examinei o local.Não surpreendi indícios de moléstia. Meus
olhos leigos na certa não percebem que um rouge a mais tem
significado a mais. Passei pomada branca até que a pele (rugosa
e murcha) ficasse brilhante. Com essa murcharam igualmente
projetos de ir de bicicleta à ponta do Arpoador. O selim
poderia reavivar a irritação. Em vez decidi me dedicar à leitura.

2
Ontem na recepção virei inadvertidamente à cabeça contra o
Beijo de saudação de Antônia. Senti na nuca o bafo seco do
susto. Não havia como desfazer o engano. Sorrimos o resto da
Noite. Falo o tempo todo em mim. Não deixo Antônia abrir
Sua boca de lagarta beijando para sempre o ar. Na saída nos
beijamos de acordo, dos dois lados. Aguardo crise aguda de remorso.

3
A crise parece controlada. Passo o dia a recordar o gesto
involuntário. Represento a cena ao espelho. Viro o rosto à
minha própria imagem sequiosa. Depois me volto, procuro nos
olhos dela signos de decepção. Mas Antônia continuaria
das rodas me desanuvia os tendões duros. Os navios me iluminam.
Pedalo de maneiro insensata
(CESAR, 2002, p.96)

2.2 O corpo musical.

Percebemos no título do poema “Arpejos” uma referência ao campo musical, essa categoria influência a estrutura corporal do poema, já que, o arpejo é formado por três notas, assim, como o poema de Ana Cristina é feito de três versos. O poeta Mario de Andrade também utilizva-se de elementos musicais para compor seus poemas, como, por exemplo, a dissonância e os acordes. Dialogando com o poeta, a autora utilizou um verso do poema de Mario de Andrade “Rua de São Bento” para compor seu poema “Casablanca”, reproduzida nas edições de “A teus pés”. Cita-se, aqui, trechos do poema de Ana Cristina e Mario de Andrade:

CASABLANCA
Te acalma, minha loucura!
Veste galochas nos teus cílios tontos e habitados!
Este som de serra de afiar as facas
Não chegará nem perto do teu canteiro de tanquicardias…
(CÉSAR,1998,pg.60)

RUA SÃO BENTO
Minha Loucura, acalma-te!
Veste o water-proof dos tambéns!
Nem chegarás tão cedo
Á fabrica de tecidos dos teus êxtases;
(ANDRADE,….)

Ao utilizar-se de um fragmento de texto, Ana Cristina os recria, fornecendo-lhes novos contornos e sentidos. Dessa forma, podemos afirmar que a prática tradutória de Ana Cristina está em consonância com o pensamento teórico de Walter Benjamin, expresso em seu ensaio intitulado “A Tarefa – Renúncia do Tradutor” (2001, p. 189-215), que é a introdução à tradução alemã de Cenas Parisienses (Tableaux Parisiens, 1923), de Charles Baudelaire, esse autor exerce uma grande influência na construção da biblioteca de Ana Cristina:

Ninguém me ama
Ninguém me quer
Ninguém me chama de Baudelaire

Isabel Câmara
(1980,apud,CAMARGO,pg.66)

2.3  O “entre” discursivo.

Encontramos no poema “Arpejos” uma série de fatos relatados através de uma descrição íntima e confessional, ou seja, o diário. Contudo, apesar do poema estar marcado por uma seqüencia lógica de números (1,2 e 3) , as descrições ocorridas nos versos não correspondem a uma formalidade de passado, presente e futuro, dessa forma, as ações ocorridas no poemas estão dentro de uma hierarquia da memória, manifestada através de um ponto inicial: uma coceira no hímen. O eu-lírico se desfragmenta para ser reconstruído sob outras perspectivas: “A desfragmentação optando pela reinvenção, uma reinvenção através do fingimento, ou melhor, o diário mentiroso.” (CAMARGO, 2003, p. 32)

No primeiro relato de “Arpejos” encontramos um eu-lírico que se afirma como sujeito que sofre uma ação, essa posição legitima-se pelo verbo no pretérito perfeito: “Acordei com coceira no hímen.” (CÉSAR, 2003, p. 96).  O hímen encontra-se numa categoria de permanecer “entre” o dentro e o fora do corpo da mulher. Jaques Derrida em La Dissémination (1972), utiliza o  hímen como metáfora do enjambement, numa análise do  poema “Quant au Livre”, de Mallarmé (1995): “[…]portanto imagem sem modelo, nem imagem nem modelo, meio (ao meio: entre, nem/nem; e meio: elemento, éter, conjunto, mídia).” (DERRIDA, 1972, p. 239). O enjambement é a dobra do poema, é a categoria que permanece no “entre”. Cita-se um trecho do poema de Mallarmé (1995) analisado por Derrida:

A dobra virgem do livro nesse instante,pronta para o sacrifício, revela o sangramento vermelho de fatia do stomos antigos; a introdução de uma arma, ou corta-papel, para estabelecer  a tomada de posse, apesar desse gesto bárbaro, como antes nos damos conta do ato de posse: quando ela se fará na participação, do livro tomado, levado daqui, de lá, aos ares de descoberto tal como um enigma – quase rarefeito por si. As dobras perpetuarão uma mácula intacta que convida pronta a abrir e a fechar a folha, de acordo com o mestre. (MALLARMÉ, apud, TRAVESSIA, 1995, p. 215)

Sobre essa questão, cita-se, aqui, o pensamento de Raul Antelo (2003), que realizou um estudo sobre a reflexão de Derrida sobre o hímen:

Além disso, de acordo com Derrida, ainda quanto à analogia entre livro e leque, este se apresentaria como tela protetora indicadora da virgindade ou película entre o dentro e o fora do corpo da mulher, assemelhando-se ainda à cartilagem de certos peixes ou às asas de certos insetos ou bichos que, como aranhas, urdem uma rede, uma obra, um texto. (ANTELO, 2003, p. 40)

Esse lugar inalcançável, ou seja, utópico, relaciona-se com um lugar sem lugar: o espelho. Michael Foucault (1984) descreve esse espaço criado pelo espelho como “heterotopias”: “O espelho, afinal, é uma utopia […] No espelho, eu me vejo lá onde não estou, em um espaço irreal […] uma espécie de sombra que me dá a mim mesmo minha própria visibilidade, que me permite me olhar lá onde estou ausente: utopia do espelho.” (FOCAULT, 1984, p. 415).

Com a ajuda do espelho cria-se um espaço momentâneo no qual a satisfação é gerada pela ilusão do reflexo do hímen, porém, a própria voz indica que não consegue compreender algumas manifestações do próprio corpo: “Meus olhos leigos na certa não perceberam que um rouge a mais tem significado a mais” (CÉSAR, 2003, p. 96). A saída encontrada pela dúvida foi a transformação do corpo em algo superior: “Passei uma pomada branca até que a pele (rugosa e murcha) ficasse brilhante” (CÉSAR, 2003, p. 96). O corpo modifica-se a partir de um desejo de mudança, sofrendo, assim, uma pequena morte: “como el erotismo y el sacrificio, el depertar del pensamiento nos hace vivir uns pequeña muerte” (HOLLIER, apud, SARDUY, p. 237). Neste primeiro relato o “entre” manifesta-se na relação entre o eu-lírico, o espelho e o hímen.

Na segunda descrição encontramos uma mudança do tempo em relação ao primeiro relato: “Ontem na recepção virei inadvertidamente à cabeça contra o beijo de saudação de Antônia” (CÉSAR, 2003, p. 96). Se no primeiro relato o verbo “acordei” nos demonstra um tempo próximo ao que é narrado, o segundo relato carrega no advérbio de tempo “ontem” uma relação distante entre o tempo narrado e o tempo no qual é descrito a ação.

Antônia encontra-se num sistema de abertura e fechamento do eu-lírico, é ela que ocupa o lugar de corpo utópico deixado pelo hímen. A relação entre a personagem e o eu–lírico se dá pela justaposição, nessa junção desses dois elementos, forma-se uma heterotopia: “A heterotopia tem o poder de justapor em um só lugar real, vários espaços, vários posicionamentos que são em si próprios incompatíveis” (FOCAULT, 1984, p. 418). A inquietação manifestada pelo eu-lírico nos remete a uma luta pelo espaço. Percebemos essa luta entre esses dois corpos na primeira descrição do desvio do beijo, em seguida, o eu-lírico continua sua imposição como voz única: “Falo o tempo todo em mim. Não deixo Antônia abrir sua boca de lagarta beijando para sempre o ar.” (CÉSAR, 2003, p. 96).

O segundo relato termina através de uma confissão do eu-lírico: “Aguardo crise aguda de remorso” (CÉSAR, 2003, p. 96). Apesar de ter criado um espaço onde aparentemente prevaleceu como única voz, essa própria voz nos demonstra que sua investida surge efeito graças a uma certa autorização de Antônia, por isso, a crise. Uma heterotopia forçada: “Só se pode entrar com uma certa permissão e depois que se cumpriu um certo números de gestos” (FOCAULT, 2003, p. 420). No segundo relato o “entre” se manifesta na relação na justaposição entre um “eu” e Antônia.

O terceiro relato mantém uma relação dos fatos ocorridos na segunda descrição. Novamente, encontramos um “eu” que se volta ao espelho, no qual representa a cena “involuntária” com Antônia. O espelho surge como fator que possibilita uma nova heterotopia. O reflexo da cena “involuntária” faz com que o “eu” ative sua memória (outro reflexo?), e procure na imagem de si mesma uma resposta de Antônia diante de tal gesto. A partir desse olhar diante do espelho, o eu-lírico parte para uma busca por algo real (Antônia), contudo, não se encontra o objeto esperado. O ponto ocupado pelo espelho é constituído pelo real, porém, o reflexo é o irreal, é aquilo que através da justaposição sobra para quem enxerga, ou seja, heteorotopia.

No relato final o eu-lírico descreve uma tentativa frustrada de reflexão sobre o acontecimento do beijo com Antônia, porém, ao contrário do segundo relato, o eu-lírico demonstra posição de inferioridade em relação à Antônia: “[…] procuro nela olhos de decepção. Mas Antônia continuaria inexorável” (CÉSAR, 2003, p. 96).

O poema termina numa citação a uma tópica da poesia clássica: o mar. Mais precisamente, os navios. Os barcos são objetos fechados em si mesmos, contudo, o caminho no qual percorrem está situado no aberto e infinito: o mar, por isso, heterotopia. Cita-se, aqui, o pensamente de Michael Foucault (1884) e sua reflexão sobre o barco:

[…] o barco foi para a nossa civilização, do século XVI aos nossos dias, ao mesmo tempo não apenas, certamente, o maior instrumento de desenvolvimento econômico, mas a maior reserva de imaginação.O navio é a heterotopia por excelência. Nas civilizações sem barcos os sonhos se esgotam[…](FOCAULT,1984,pg.422).

Assim, como os barcos, o eu-lírico gostaria de viver num lugar sem lugar, contudo, o eu-lírico permanece num caminhar no “entre”.

O primeiro relato não surge de maneira simples e singela, a forma, como, o eu lírico abre o discurso poético o coloca num patamar de importância em relação aos outros relatos, ou seja, a coceira no hímen é o motivo que ocasionou os dois relatos. Percebemos que Antônia é peça chave, já que, ela manifesta-se como elemento de tensão no segundo e terceiro relato. Para o eu-lírico o corpo de Antônia é o espaço de dentro e de fora, ela é a formadora de um espaço heterogêneo formadora de uma experiência. Pode-se concluir, citando Focault (1984) sobre a experiência provocada pela heterotopia: “[…]uma espécie de experiência mista, mediada.” (FOCAULT, 1984, p. 418)

3 Referências

CESAR, Ana Cristina. A Teus Pés. São Paulo: Brasiliense, 1998.

CAMARGO, Maria Lúcia. Atrás dos Olhos Pardos: uma leitura da poesia de Ana Cristina Cesar. Chapecó: Argos, 2003.

BENJAMIN, Walter. A Tarefa – Renúncia do Tradutor (Die Aufgabe des Übersetzers). (1923).Tradução de Susana Kampff Lages. In: Clássicos da Teoria da Tradução – v.1 (Edição Bilíngüe), Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2001.

SANTIAGO,Silviano. Uma literatura nos trópicos:ensaio sobre dependência cultural. São Paulo: Perspectiva, 1978.

SANTIAGO,Silviano. Nas malhas das letras. São Paulo: Companhia das letras,1989.

SARDUY,Severo. Escritos sobre um cuerpo. Mexico – Buenos Aires, 1987.

FOCAULT,Michael. Ditos e escritos. Forense Universidade,1984.

ANTELO,Raul. Outra travessia. Florianópolis:Universidade Federal de Santa Catarina,2003.

CHACAL. O preço da passagem. São Paulo: Brasiliense, 1982.