Até que treze tiros nos acordam: uma leitura teopoética de Mineirinho, de Clarice Lispector

Ailton Magela de Assis Augusto

RESUMO: Apesar dos enfrentamentos que historicamente marcaram as relações entre a Teologia e a Literatura, o presente trabalho pretende transpor o fosso que separa essas duas áreas do conhecimento humano através da apresentação de uma leitura possível para a crônica Mineirinho, da escritora brasileira Clarice Lispector. Tal leitura se inscreve no campo de estudos da teopoética e não pretende esgotar o texto, mas antes demonstrar a possibilidade de a Teologia e a Literatura iluminarem-se mutuamente.

PALAVRAS-CHAVE: Leitura interpretativa, teopoética, Clarice Lispector, Mineirinho.

ABSTRACT: In spite of the confrontation which is happening in the relations between theology and literature, this assignment intends to overstep the pit which separates these two areas of human knowledge through a possible reading presentation of the chronicle Mineirinho, by the brazilian writer Clarice Lispector. This reading lies within the fields of “theopoetics” studies and does not intend to use the text up, but to demonstrate the possibility of a mutual joining between literature and theology.

KEYWORDS: Interpretative reading, theopoetics studies, Clarice Lispector, Mineirinho.

 

1 A perspectiva teopoética na leitura de obras literárias

Ao falar sobre o conhecimento humano é necessário ter em conta a sua divisão em áreas, a qual se deu ao longo do tempo como consequência da definição de objetos de estudo e de metodologias de trabalho específicas. Contudo, o atual contexto da pós-modernidade só pode ser adequadamente apreendido e refletido a partir de estudos interdisciplinares. Este fato leva os estudiosos a promoverem a aproximação entre as várias ramas do conhecimento.

Cumpre notar, nesse contexto, que a especialização do saber deixa duas possibilidades ao estudioso que deseja promover uma aproximação entre quaisquer áreas distintas: ou ele estabelece entre elas um diálogo – no qual essas áreas dão subsídios uma à outra para as análises de seus objetos de estudo ou de um objeto em comum –, ou, então, ele toma parte em discussões sobre a adequação de um objeto de estudo a uma área e não à outra.

No que concerne ao presente trabalho, chamamos a atenção para as relações entre a Teologia e a Literatura. Essas relações foram marcadas historicamente por conflitos, apesar do interesse de ambas as disciplinas pela existência humana, explicitado por suas tentativas de explicar, retratar ou transcender essa existência. Paula (1997) destaca essa afinidade da Literatura com outras áreas do conhecimento partindo do pressuposto de que

a literatura revela o ser humano, a vida, as relações que incluem várias nuanças de sua busca incontida de descoberta de outros espaços, respostas por questões surgidas no decorrer da vida e mesmo expressão artística, do belo, de saudáveis conceitos e visões de existência … [para concluir que] assim caminha a literatura, um aglomerado infindável de relações com a sutileza de ter sempre algo a conhecer, a ser descoberto. (PAULA, 1997, p. 103)

Apesar do caráter interdisciplinar que subjaz à linguagem e às manifestações literárias, as aproximações entre Literatura e Teologia eram vistas não como relações de possível cooperação, mas sim como relações de subordinação. Tais relações deveriam culminar na submissão de uma das áreas à outra. Estabelece-se, então, uma queda de braços na qual temos, de um lado, a Literatura e, de outro, a Teologia.

A Literatura, ao deixar de ser instrumento de difusão e popularização dos conceitos elaborados pelos teólogos e sábios da Igreja, acaba por perder o direito de tratar livremente da temática considerada religiosa e, em contrapartida, rejeita a crítica teológica em favor da estética, procurando afastar a Teologia da reflexão sobre o fazer literário. De outro lado, a Teologia, tida como detentora da única interpretação verdadeira e possível para o discurso sobre o sagrado e, portanto, do direito de divulgar a “palavra de Deus”, nega à Literatura e às artes em geral essa possibilidade, além de estigmatizá-las como divertimento não raro condenável e como atividade profana e subversiva.

Diante de tal impasse, parece-nos oportuno trabalhar dentro do campo de estudos da teopoética, o qual foi delimitado a partir dos trabalhos do teólogo alemão Karl-Josef Kuschel (1999). Ele tenta dar conta do estabelecimento de novas relações entre Literatura e Teologia, pautadas não mais em um confronto, e sim em um diálogo, no qual essas duas áreas do conhecimento se iluminem mutuamente e deem contribuições uma à outra, facultando a melhor apreensão e significação da existência humana.

De acordo com Kuschel (1999:210), no marco do que ele denominou teopoética, compete tanto à Teologia quanto às artes a tarefa de “colaborar com a apreensão mais densa da realidade”. O autor defende ainda que à Literatura caberia particularmente dar “colaboração à desbanalização da vida” através de um aprofundamento das questões apresentadas pela realidade, a partir de um trabalho com a linguagem.

Segundo Manzato (2011), a teopoética é apenas um dos métodos de aproximação entre Teologia e Literatura. O autor destaca ainda que essa abordagem não apresenta até o momento um conteúdo programático ou método de trabalho bem definidos. Em todo caso, o estudo interpretativo de textos literários, como o que ora apresentamos, pode ser associado a esse campo de estudos e permite ultrapassar as fronteiras do estritamente literário/estético e encontrar ressonância de outros campos do conhecimento dentro de obras literárias, confirmando a possibilidade de apreender a realidade de modo mais denso a partir da Literatura e atribuindo a ela uma importância que não está ligada somente ao campo das artes.

Também nos parece oportuno ter em conta que a produção crítica sobre a autora que estamos enfocando já se apropriou do conceito de epifania[1], tomado de empréstimo da seara da Teologia através da Filosofia. O uso corrente do termo em textos de crítica literária dedicados a Clarice Lispector já constitui, a nosso ver, uma primeira aproximação entre a obra clariceana e a Teologia.

2 O fazer-se jornalista e a aproximação entre os escritos de Clarice Lispector e o campo de estudos da teopoética

Embora tenha se destacado como romancista e contista, Clarice Lispector também atuou na imprensa brasileira nas funções de repórter, entrevistadora e colunista, fazendo-o entre as décadas de 40 e 70, apenas com algumas interrupções. Sabendo que a autora começou a colaborar com jornais nos anos 40, podemos supor que seu trânsito no meio jornalístico, pelo menos no início de suas colaborações, foi facilitado pela ausência de uma técnica jornalística no Brasil. Sem profissionais especialmente preparados para o exercício do jornalismo, as redações aceitavam, em seus quadros, pessoas que “escreviam bem”, sendo enquadrados nessa classificação escritores já consagrados, estudantes de Direito e outros profissionais que tivessem formação ligada ao uso da linguagem. Contudo, como destaca Angiolillo, essas pessoas – e também Clarice Lispector – tinham de “encontrar sua própria maneira de descrever os fatos cuja cobertura lhe[s] era encarregada” (ANGIOLILLO, 2004, p. 3).

O marco teórico do presente trabalho encontra eco nessa necessidade de criação e desenvolvimento de um modo próprio de escrever, ou melhor, de descrever o cotidiano. O texto jornalístico, imiscuído com o literário, passa a funcionar como instância que, junto às abordagens religiosas, permite ao ser humano “desbanalizar” o olhar que lança sobre o mundo, ressignificando-o. Por essa razão, julgamos ser possível fazer uma leitura teopoética de Mineirinho, trabalho que exemplifica a problematização que o texto clariceano faz da espiritualidade assentada no senso comum.

3 Até que treze tiros nos acordam: a irrupção de uma sensibilidade nova em meio aos comentários sobre a morte de um bandido

Publicado originalmente em 1962, na revista Senhor (n. 40, junho 1962)[2], o texto intitulado Mineirinho apresenta, sob um prisma inusual, o assassinato de um facínora por policiais, abordando o “sentir-se dividido na própria perplexidade diante de não poder esquecer que Mineirinho era perigoso e já matara demais” e o desejo de que ele continuasse vivo. Em lugar de aportar novas e nem sempre coincidentes informações sobre o caso, à maneira das páginas policiais, ou de fazer uma acusação tardia ao bandido morto, o texto dirige uma pesada crítica à polícia e à sociedade através das reflexões que o fato suscita na narradora, a qual desde o início deixa marcada sua posição, constatando que “mais me adianta contar os treze tiros que mataram Mineirinho do que os seus crimes”.

No entanto, eram muitos os crimes de Mineirinho e grande a expectativa por sua captura desde que ele havia escapado da prisão. Na edição do Diário Carioca dos dias 29 e 30 de abril de 1962[3] por exemplo, consta a informação de que a região próxima ao Morro da Previdência, onde o facínora estava homiziado, “transformou-se numa verdadeira praça de guerra: cêrca de 100 policiais, armados de metralhadoras e com ordem de capturá-lo (de ‘qualquer maneira’) vasculhavam as ruas da favela”.

Para a narradora, apesar desse clima de guerra, o foco deve ser posto no assassinato de Mineirinho e não em seus muitos crimes. Isto seria explicado pela existência de uma justiça prévia – para nós passível de identificação com uma justiça divina – que se opõe à “justiça estupidificada” dos homens. Essa justiça prévia é, nas suas palavras, “a primeira lei, a que protege corpo e vida insubstituíveis, é a de que não matarás”. Lei esta que faz referência ao texto bíblico e cujo comparecimento no texto, além de favorecer um diálogo com a Teologia, chama a atenção para a distância existente entre o que a narradora chamou justiça prévia e as práticas da justiça dos homens, confirmando a necessidade de o homem apreender a realidade de outra forma e trazer a experiência religiosa para o seu cotidiano, deixando de considerá-la somente um discurso sem ligação com a vida prática.

A justiça dos homens, segundo a narradora, “vela meu sono, [e] eu a repudio, humilhada por precisar dela”. Um exemplo desse repúdio é a maneira pela qual ela conta os tiros que mataram José Miranda Rosa. à época, os jornais de grande circulação fizeram a descrição de quantos tiros foram disparados contra Mineirinho e quais as partes do seu corpo que foram atingidas. Os periódicos parecem estar de acordo quanto ao número de disparos – 13 –, mas os locais atingidos não são coincidentes. Interessados em tirar vantagem da surpreendente notícia, os meios de comunicação tratam apenas de descrever uma cena que seja condizente com a minúcia da crônica policial:

Com uma oração de Santo Antônio no bôlso e um recorte sôbre seu último tiroteio com a Polícia, o assaltante José Miranda Rosa, “Mineirinho”, foi encontrado morto no Sítio da Serra, na Estrada Grajaú-Jacarepaguá, com três tiros nas costas, cinco no pescoço, dois no peito, um no braço esquerdo, outro na axila esquerda e o último na perna esquerda, que estava fraturada, dado à queima-roupa, como prova a calça chamuscada. (Diário Carioca, 1º de maio de 1962)

Treze balas de metralhadora encerraram a existência do mais atrevido e perigoso bandido que marcou época nos Estados da Guanabara e do Rio de Janeiro. José Miranda Rosa, o tristemente famoso “Mineirinho”, foi encontrado morto, na manhã de ontem, pela reportagem de O Dia e A Notícia, à margem da estrada Grajaú- Jacarepaguá. O cadáver estava à beira de um grotão, em decúbito dorsal, no lugar chamado “Pedra do Gambá”, no morro da Cachoeira Grande, com a face esquerda encoberta pela mão do mesmo lado. Tinha dois balaços no pescoço, dois no maxilar, dois no rosto, dois no peito, dois nas costas, um na cabeça, um na perna esquerda e o último no braço direito. (O Dia, 1 de maio de 1962.)

O texto clariceano que estamos analisando, porém, faz a conta de outra maneira. A ênfase não é posta sobre as partes do corpo atingidas pelos disparos, mas sim sobre as reações da narradora frente ao excesso da ação policial, que vai contra a lei primeira (a de que não matarás):

Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina – porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro. (LISPECTOR, 1979, p. 101)

Querer ser o outro é um movimento que contraria a justiça humana, assentada no senso comum e na aceitação de que certas mortes podem ocorrer e são justificáveis, apesar da lei prévia que impediria o homem de matar e de ser morto. é um movimento que se choca com aquilo que é consensualmente aceito e que ressoava nas palavras dos jornalistas do Correio da Manhã que, no dia 01 de maio de 1962, declaravam:

Não foi a Justiça quem decretou a morte do mais temível assaltante do Rio de Janeiro, conhecido pela alcunha de “Mineirinho”. Êle próprio a procurou, desafiando a tranqüilidade pública e um aparelhamento policial cujas metralhadoras sabia não lhe dariam trégua. Careregando [sic] 104 anos de prisão, o facinora [sic] ainda brincou pelas ruas e favelas da cidade durante dias, assaltando e baleando – que estas eram sua razão de viver. (Correio da Manhã, 1° de maio de 1962. grifos nossos)

Querer ser o outro é o que não permite a continuidade do “alívio de segurança” que a narradora diz sentir inicialmente. Querer ser o outro é, enfim, arriscar-se a uma compreensão menos banal da vida e questionar a aparente harmonia criada pela sociedade ao negar a existência do que é diferente e legitimar sua eliminação. A esse respeito, é válido considerar a contribuição que um autor como Octavio Paz (1984) dá a essa discussão, ao nos brindar com a seguinte constatação:

O dualismo inerente a toda sociedade, e que toda sociedade aspira a resolver, transformando-se em comunidade, expressa-se em nosso tempo de muitas maneiras: o bom e o mau, o permitido e o proibido; o ideal e o real, o racional e o irracional; o belo e o feio; o sono e a vigília, os pobres e os ricos, os burgueses e os proletários; a inocência e a consciência, a imaginação e o pensamento. Por um movimento irresistível do seu próprio ser, a sociedade tende a superar este dualismo e a transformar o conjunto de inimizades solitárias que a compõem numa ordem harmoniosa. (PAZ, 1984, p. 181, grifos nossos)

O texto sobre a morte de Mineirinho também reconhece a existência desse movimento de harmonização dos contrários, destacado por Paz, mas aponta que tal movimento é forçado, uma vez que o mesmo exige das pessoas que elas sejam “sonsas”:

Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece. (…) Enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos. Até que treze tiros nos acordam, e com horror digo tarde demais – vinte e oito anos depois que Mineirinho nasceu – que ao homem acuado, que a esse não nos matem. (LISPECTOR, 1979, pp. 101-102, grifo nosso)

Quando treze tiros nos acordam, entretanto, essa harmonia artificial entra em crise e, por isso, a narradora se identifica com o criminoso (pedindo, de modo inclusivo, que não nos matem), distanciando-se da sociedade que se sente aliviada com a morte de Mineirinho, mas cujos membros evitam o olhar um do outro para não terem de se entender.

O entendimento entre as pessoas seria reconhecer a necessidade de mudar o modo de ver o mundo, deixando de considerar a justiça prévia como sendo apenas uma citação da Bíblia sem maior significação para a vida prática. Valorizar o que a narradora chama de justiça prévia é não só reassumir uma postura concorde com os “mandamentos divinos”, mas também passar a preservar a vida de um semelhante:

A justiça prévia, essa não me envergonharia. Já era tempo de, com ironia ou não, sermos mais divinos; se adivinhamos o que seria a bondade de Deus é porque adivinhamos em nós a bondade, aquela que vê o homem antes de ele ser um doente do crime. Continuo, porém, esperando que Deus seja o pai, quando sei que um homem pode ser o pai de outro homem. (LISPECTOR, 1979, p. 102, grifos nossos)

Essa nova postura coloca em xeque a visão de Deus como um pai distante, de quem sempre esperamos uma intervenção que nos favoreça e justifique. O texto assume então um tom ainda mais crítico com relação à forma como a sociedade vivencia a espiritualidade. Em lugar de enxergar a bondade divina nos outros homens, lembrando que fomos feitos à imagem e à semelhança de Deus – para usar os termos das Escrituras –, tratamos de fabricar um deus que nos permita fingir que estamos certos. Esta constatação leva a narradora a questionar aquele seu “alívio de segurança” inicial, reconhecendo que enquanto Mineirinho era fuzilado pela polícia,

um deus fabricado no último instante abençoa às pressas a minha maldade organizada e a minha justiça estupidificada: o que sustenta as paredes de minha casa é a certeza de que sempre me justificarei, meus amigos não me justificarão, mas meus inimigos que são os meus cúmplices, esses me cumprimentarão; o que me sustenta é saber que sempre fabricarei um deus à imagem do que eu precisar para dormir tranqüila e que outros furtivamente fingirão que estamos todos certos e que nada há a fazer. Tudo isso, sim, pois somos os sonsos essenciais, baluartes de alguma coisa. E sobretudo procurar não entender. (LISPECTOR, 1979, pp. 102-103, grifos nossos)

Procurar não entender é um conselho carregado de ironia, pois só a busca de entendimento permitiria o surgimento de um novo modo de ver o mundo e, assim, seria alcançada

uma justiça prévia que se lembrasse de que nossa grande luta é a do medo, e que um homem que mata muito é porque teve muito medo. Sobretudo uma justiça que se olhasse a si própria, e que visse que nós todos, lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem pode ser entregue à maldade de outro homem: para que este não possa cometer livre e aprovadamente um crime de fuzilamento. Uma justiça que não se esqueça de que nós todos somos perigosos, e que na hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um longamente guardado. (LISPECTOR, 1979, p. 103)

4 Conclusão

Ao longo do presente trabalho empreendemos uma leitura inserida no campo de estudos da teopoética, buscando reconhecer, como faria o já citado Kuschel, que os textos literários “por seu caráter livre e indeterminado e por sua capacidade de representar a multiplicidade da existência humana, podem colocar o homem em contato intenso com o que está além dele” (SOETHE, 1999, p. 9, grifo nosso).

Em nossa percepção, Mineirinho, de Clarice Lispector, é um texto que possui um trabalho de linguagem orientado no sentido de desbanalizar o olhar que dirigimos às notícias veiculadas pelos jornais, fazendo uma recusa da aceitação passiva de acontecimentos marcados pela violência, sendo que tal recusa se estende ao próprio sentimento religioso.

Por último, devemos dizer que se, em sentido amplo, coincidimos com a narradora ao desejar algo mais que “as coisas que foram se tornando as palavras que me [nos] fazem dormir tranquila[os], mistura de perdão, de caridade vaga”, no que tange especificamente a este trabalho, desejamos tão somente demonstrar a possibilidade de relacionar a produção clariceana com o campo de estudos da teopoética e a validade dos contatos entre Literatura e Teologia.

 

Referências

ANGIOLILLO, Francesca. Clarice jornalista: o ofício paralelo. Cadernos de Literatura Brasileira, Edição especial, n°. 17 e 18, dez. 2004. (encarte)

FERREIRA, Fernanda Silva. A construção da epifania nas narrativas de Clarice Lispector. In: <http://www.mackenzie.br/fileadmin/Graduacao/CCL/projeto_todasasletras/inicie/FernandaFerreira.pdf>, acessado em 21/06/2011 às 11h29.

KUSCHEL, Karl-Josef. Os escritores e as escrituras: retratos teológico-literários. São Paulo: Loyola, 1999.

LISPECTOR, Clarice. Para não esquecer: crônicas. 2. ed., São Paulo: ática, 1979.

MANZATO, Antonio. Pequeno panorama de teologia e literatura. In: MARIANI, Ceci; VILHENA, Maria Angela (organizadoras). Teologia e arte: expressões de transcendência, caminhos de renovação. São Paulo: Paulinas, 2011, pp. 86-98.

PAULA, Blanches de. água viva: o instante-já do encontro entre teologia e literatura. In: Teologia e Literatura. São Bernardo do Campo, SP: UMESP, Curso de Pós-Graduação em Ciências da Religião. Caderno de Pós-Graduação em Ciências da Religião, n°. 9, 1997, pp. 101-134.

PAZ, Octavio. O labirinto da solidão e post scriptum. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.

SOETHE, Paulo Astor. Apresentação. In: KUSCHEL, Karl-Josef. Os escritores e as escrituras: retratos teológico-literários. São Paulo: Loyola, 1999, pp. 9-11.

 

[1] O termo “epifania”, originalmente, fazia referência à manifestação de Jesus aos gentios, nomeadamente os Reis Magos, servindo para designar a festividade litúrgica conhecida popularmente como Dia de Reis. Teve seu uso estendido ao campo de estudos da Teologia, passando a designar quaisquer manifestações divinas. Transposto para a Filosofia, o termo passou a ser empregado para indicar a apreensão, geralmente inesperada, do significado de algo. Como foi destacado por Ferreira (2011), em artigo sobre a construção da epifania nas narrativas da autora em análise, o termo “epifania” tem sido recorrente na crítica literária dedicada à obra clariceana.

[2] Apesar de indicarmos a data e o veículo de comunicação em que o texto foi publicado pela primeira vez, para o presente trabalho utilizamos a versão publicada no volume Para não esquecer, coligido postumamente (ver referências).

[3] As citações de textos dos jornais da época da morte de Mineirinho (1962) foram retiradas da página <http://www1.uol.com.br/rionosjornais/rj45.htm>. Por respeito ao texto original de época e à fonte secundária onde os mesmos foram encontrados, optamos por manter a grafia de certos vocábulos, ainda nos casos em que ela esteja em desacordo com as normas atualmente vigentes. Também foram mantidas grafias desviantes, associando-se a elas a palavra sic.