A Guerra do Paraguai em Iaiá Garcia, de Machado de Assis

Rafael Muniz Sens

RESUMO: Neste artigo, vamos fazer um levantamento da temática da Guerra do Paraguai na literatura de Machado de Assis, focando na obra Iaiá Garcia, de 1878. Ao longo do texto, serão levantados pontos da narrativa conectados diretamente com o contexto histórico e, posteriormente, refletiremos sobre a presença do tema recorrente na literatura de Machado, como também construiremos possíveis leituras do livro em questão através desta temática.

PALAVRAS-CHAVE: Guerra do Paraguai; Machado de Assis; Século XIX.

ABSTRACT: In this article we survey the theme of the Paraguayan War in Machado de Assis’ literature, focusing on the book Iaiá Garcia, 1878. Throughout the text, points of the narrative that are directly connected to the historical context will be raised and, afterwards, we will reflect on the presence of this recurrent theme in Machado’s literature, as well as construct possible readings of the book in question through this topic.

KEYWORDS: Paraguayan War; Machado de Assis; 19th Century.

 

O Romance e a Guerra

Considerada ainda uma obra da fase romântica de Machado de Assis e publicada originalmente em 1878, no formato de folhetim,Iaiá Garcia conta a história de brasileiros que viveram no país durante o período de um grande conflito ocorrido na América do Sul, a Guerra do Paraguai. No romance, conhecemos Jorge e Iaiá, o par romântico do enredo que demorará toda a extensão do livro para ficar junto. Sendo assim, a guerra e o relato de seus acontecimentos não parecem ter, em nenhum momento, a pretensão de ser a característica principal do livro, porém se dão através de detalhes intrínsecos do enredo; demonstrando uma ferramenta que Machado administra magistralmente: a de contar História de forma sorrateira, aparentemente quase despretensiosa, mas eficaz e dinâmica, através de sua particular visão.

A Guerra do Paraguai começou no final de 1864, com o início de ataques paraguaios em terras brasileiras, primeiramente no Mato Grosso, a comando do então tido como ditador paraguaio Solano Lopez. O Brasil, diferentemente do inimigo, estava pouquíssimo preparado para uma guerra, tanto em questões de armamento como de exército. Essa situação de ataque repentino e confusões sobre as reais dimensões que toda a movimentação do confronto tinha ou chegaria a ter fica expressa ao longo romance Iaiá Garcia. É digno ressaltar que a primeira marca cronológica do romance é a data de 5 de Outubro de 1866, presente em carta enviada pela personagem Valéria ao conhecido Luis Garcia. Mesmo cerca de dois anos após o início do conflito, ainda se via uma difusa carga de informações recebidas pelo povo brasileiro, que Machado ilustra muito bem, através de seus personagens e narração, principalmente na parte inicial do livro, em que o contexto histórico aparenta ter mais influência sobre o universo da obra. A viúva, Valéria Gomes, que mandara carta a Luis Garcia, a pedidos de conselhos, conversa coloquialmente com o amigo do falecido marido sobre a situação de guerra no país antes mesmo de iniciar o assunto que queria tratar, mas mostrando aí a proporção dos embates em todo o território nacional.

— Sr. Luís Garcia, disse a viúva; esta guerra do Paraguai é longa e ninguém sabe quando acabará. Vieram notícias hoje?
— Não me consta.
— As de ontem não me animaram nada, continuou a viúva depois de um instante. Não creio na paz que o López veio propor. Tenho medo que isto acabe mal.
— Pode ser, mas não depende de nós…  (ASSIS, 1994, documento eletrônico).

Ainda neste diálogo, logo no início da obra, vemos, em questão da ficção, a preocupação de Valéria em mandar urgentemente seu filho Jorge à Guerra, como voluntário, a motivo de servir a pátria. As verdadeiras intenções da personagem são mais tarde explicadas, porém, já neste momento vemos outra característica do contexto histórico da época. Com a falta de um número considerável de soldados para a formação de um exército contra o Paraguai, procurou-se obter homens e armamentos de diversas formas. Além da utilização de escravos considerados livres como “voluntários” nas batalhas, ou, por exemplo, da vinda opcional de portugueses para a construção de um exército, buscava-se, pelo Brasil inteiro, voluntários a servirem a pátria com coragem e ufanismo, incluindo na guerra até mulheres e crianças. Esse nacionalismo esperado, entretanto, não era tão ideal para a situação em que se encontrava o país, o que resultou na apresentação de muitos soldados não pela missão de defender a terra natal, mas por diferentes motivos e interesses.

Especificamente em Iaiá Garcia, o intuito da personagem Valéria em enviar o filho como soldado à Guerra era o de separá-lo do casamento com a moça que ele tinha afeições, Estela, menina de família socialmente inferior. Oportunamente, a viúva apropria-se do contexto por qual passava o país e usa da escusa socialmente aceita de deixar que o filho servisse ao exército do Brasil. Jorge opõe-se à vontade da mãe, mas acaba por ceder e obedece as ordens, por subordinação e certa vingança, desejando sua própria morte na batalha e um consequente sentimento de culpa que seria causado na mãe por ter enviado o filho à Guerra de brusca maneira. Na conversa inicial com Luis Garcia, Valéria mascara suas intenções com o feito, mas não o convence por total.

— Por que não? Eu creio que é chegado o momento de fazerem todas as mães um grande esforço e darem exemplos de valor, que não serão perdidos. Pela minha parte trabalho com o meu Jorge para que vá alistar-se como voluntário; podemos arranjar-lhe um posto de alferes ou tenente; voltará major ou coronel. Ele, entretanto, resiste até hoje; não é falta de coragem nem de patriotismo; sei que tem sentimentos generosos. Contudo, resiste…
— Que razão dá ele?
— Diz que não quer separar-se de mim.
— A razão é boa.
— Sim, porque também a mim custaria a separação. Mas não se trata do que eu ou ele podemos sentir: trata-se de coisa mais grave, — da pátria, que está acima de nós.
Valéria proferiu estas palavras com certa animação, que a Luís Garcia pareceu mais simulada que sincera. Não acreditou no motivo público. O interesse que a viúva mostrava agora em relação à sorte da campanha era totalmente novo para ele. Excluído o motivo público, algum haveria que ela não quisera ou não podia revelar (ASSIS, 1994, documento eletrônico).

Depois da decisão da mãe, Jorge parte para servir as forças brasileiras com a esperança de que logo estaria em casa e livre para tentar a sorte no amor mais uma vez, todavia engana-se com a incerteza sobre a duração dos confrontos e acaba por permanecer em serviço até 1870, quando se dá o fim da guerra. Era tamanha a falta de noção sobre a dimensão dos eventos, que Valéria, enquanto o filho em serviço, começa a planejar um casamento para Estela, garantindo, assim, a separação entre a moça e o filho, mesmo se a guerra acabasse dali a pouco tempo e Jorge voltasse procurando os abraços de quem não deveria se casar. No início do capítulo VI, Machado faz um interessante recorte puramente histórico e, no parágrafo seguinte, tece o contexto da ficção naquele meio.

Poucos poderiam supor, nos fins de 1866, que a campanha se protrairia ainda cerca de quatro anos. O cálculo do General Mitre, relativo aos três meses de Buenos Aires a Assunção, tinha já caído, é certo, no abismo das ilusões históricas. Proclamações são loterias; a fortuna as faz sublimes ou vãs. A do general argentino, que era já uma afirmação errada, exprimiu contudo, no seu tempo, a convicção dos três povos. Do primeiro embate com o inimigo, viu-se que a campanha seria rija e longa; a ilusão desfez-se; ficou a realidade, que nem por isso encaramos com rosto aflito. Não obstante, era difícil presumir, em outubro de 1866, que a guerra chegasse até março de 1870. Supunha-se que um esforço ingente bastaria a reparar Curupaiti, a derrubar Humaitá, a vencer o ditador, não nos três meses do General Mitre, mas em muito menos tempo do que viria a ser na realidade.
Isto posto, não admira que Valéria receasse a cada instante a terminação da guerra e a pronta volta do filho. Se tal coisa acontecesse, ela teria dado um golpe inútil, e o fogo podia renascer das cinzas mal apagadas. Valéria preferia as soluções radicais. Uma vez arredado o filho, viu a necessidade de aniquilar as últimas esperanças, e o mais seguro meio era casar Estela. Assim procedendo, satisfaria também a afeição que tinha à moça, afeição que nunca lhe diminuíra. Sabia que entre Estela e o pai havia contrastes morais de difícil conciliação. Cada um deles falava língua diferente, não podiam entender-se nunca, sobretudo (dizia ela consigo) na escolha de um consorte (ASSIS, 1994, documento eletrônico).

Os Personagens e o Brasil

Em serviço militar, Jorge mantém contato com a família e amigos através de cartas pessoais. Ao longo dos anos em atividade, observa-se, primeiramente, o amadurecimento do jovem em homem, da transformação que passa pela guerra. Não somente ele matura, mas promove-se de cargos e muda sua própria visão da vida, do amor platônico que lutava para tentar preservar, ou de si mesmo. Por meio de Jorge, é perceptível a fusão da ficção com o contexto histórico, pois é através de seu enredo particular como voluntário no exército que somos apresentados a roteiros reais da própria Guerra, a preocupações, datas e eventos, envoltas na angústia do amante que desenhava estrelas a Estela no solo usando a espada de batalha.

Poucos dias depois operou-se a marcha de Tuiuti e Tuiu-Cué, a que se seguiu uma série de ações e movimentos, em que houve muita página de Plutarco. Só então pôde Jorge encarar o verdadeiro rosto à guerra, a cujo princípio não assistira; figurou em mais de uma jornada heróica, correu perigos, mostrou-se valoroso e paciente. O coronel adorava-o; sentia-se tomado de admiração diante daquele mancebo, que combatia durante a batalha e calava depois da vitória, que comunicava o ardor aos soldados, não recuava de nenhuma empresa, ainda a mais arriscada, e a quem uma estrela parecia proteger com suas asas de luz (ASSIS, 1994, documento eletrônico).

Jorge volta da guerra com enorme prestígio por ter servido a pátria. No decorrer da missão, mostra dedicação e oportunismo, a fim de elevar seu cargo militar. Nenhuma batalha é narrada ou se quer retirada a um parágrafo de comentários, no entanto, é citada a participação de Jorge nos confrontos, comandando, lutando e chegando até a se ferir a ponto de ficar alguns meses afastado dos combates. Todavia, a participação do rapaz na guerra se quer tinha sólidos ideais, mas apenas servia de contexto para a miséria de sua vida longe dos que amava e de onde queria estar. Eliminados os elementos da paixão interrompida, Jorge se apresenta e serve como voluntário por nada mais que o nome e o reconhecimento. Por fim, para uma guerra como a tal, que é contada por ter sido palco de sangrentas e violentas lutas, para Jorge, que pouco se machuca ou sofre, não parece ser a mesma situação de extrema selvageria.

Jorge sentiu então um fenômeno próprio de tais crises, — um movimento de ódio a todo o gênero humano, desde sua mãe até o seu inimigo. Tornou-se descortês, violento, deliberadamente mau: efeito transitório, ao qual sucedeu um abatimento profundo. Ferido daí a dias em Lomas Valentinas, retirou-se por alguns meses do exército, cujas operações só continuaram depois de meado o ano seguinte. Jorge teve parte nas jornadas de Piribebuí e Campo Grande, não já na qualidade de capitão, mas na de major, cuja patente lhe foi concedida depois de Lomas Valentinas. No fim do ano estava tenente-coronel, comandava um batalhão e recebia os abraços de seu antigo comandante, contente de o ver sagrado herói (ASSIS, 1994, documento eletrônico).

Outra menção direta ao contexto em que o romance se engloba é feita através do personagem Procópio Dias, que torna-se amigo de Jorge quando o conhece no Paraguai. Negociador abastado, aproveita-se ele da guerra para o lucro pessoal. Dizendo-se com sorte, consegue ele salvar seu capital antes de ser tomado pela crise comercial e bancária marcada logo antes do início da guerra, em 1864, conhecida como a Crise do Souto. Na caricatura do bom e velho capitalista, durante a guerra, Procópio se aproveita da situação específica para enriquecer ainda mais.

Procópio Dias tinha dois credos. Era um deles o lucro. Mediante alguns anos de trabalho assíduo e finuras encobertas, viu engrossarem-lhe os cabedais. Em 1864, por um instituto verdadeiramente miraculoso, farejou a crise e o descalabro dos bancos, e retirou a tempo os fundos que tinha em um deles. Sobrevindo a guerra, atirou-se a toda a sorte de meios que pudessem tresdobrar-lhe as rendas, coisa que efetivamente alcançou no fim de 1869 (ASSIS, 1994, documento eletrônico).

Ardilosamente, é este personagem que, de fato, mais se aproveita da influência admitida a Jorge graças aos seus serviços na guerra. Criada entre os dois uma relação de amizade maximamente superficial, Procópio Dias consegue finalizar negócios através da ajuda do companheiro, por cartas de recomendação. Em certo ponto, perde ele o irmão, e precisa viajar a Argentina para o enterro do ente deveras querido. Entretanto, não pelas memórias de infância era o ente amado, mas por diferentes motivos que ficam explícitos quando Machado nos conta que “a viagem a Buenos Aires não tinha por fim o cadáver do irmão, mas a herança, que posto não fosse grande, valia alguma coisa” (ASSIS, 1994, documento eletrônico). Sagazmente, já se apresenta então, de forma delicada, a ironia do mesmo Machado que dali a mais tarde daria voz a um defunto da alta sociedade.

Jorge conheceu Procópio Dias no Paraguai, onde este fora negociar e triplicar os capitais, o que lhe permitiu colocar-se acima das viravoltas da fortuna. Travaram relações, não íntimas, mas freqüentes e agradáveis, e até certo ponto úteis a Procópio Dias, que obteve de Jorge mais de uma recomendação. Não obstante a freqüência das relações, estavam longe da amizade estreita; e isso, não por esforço de Procópio Dias, cujas maneiras fáceis assediaram por muito tempo a inexperiência de Jorge. O motivo de Procópio Dias cessou com a guerra, desde que com a guerra cessara também o interesse mercantil. Jorge não tinha motivo contra ele; quando o conhecera estava no período melancólico (ASSIS, 1994, documento eletrônico).

Os conflitos da Guerra do Paraguai tiveram grande influência na vida dos brasileiros da época, seja na utilização dos meios da guerra para conquistas pessoais, na mudança de hábitos decorrida da crise bancária e comercial que se agravava com os gastos da guerra, ou por outros efeitos comuns resultantes de uma guerra sobre o povo envolvido. Os olhos da população por todo aquele cenário eram a imprensa. Múltiplas eram as charges, os comentários e as críticas. Muito satirizados eram os paraguaios e, principalmente, Solano Lopez, tido como ditador. Na própria imprensa, contudo, havia questionamentos sobre a duração que levaria a guerra, as razões e as consequências. O historiador Nelson Werneck Sodré diz que “a guerra não teve, no Brasil, em toda sua longa duração, boa imprensa”(SODRE, 1999, p. 202). Em Iaiá Garcia, esta influência estava também presente.

Não foi alegre nem animado o jantar. Falaram a princípio de coisas indiferentes; depois Valéria fez recair a conversação nas últimas notícias do Paraguai. Luís Garcia declarou que lhe não pareciam tão más, como diziam as gazetas, sem contudo negar que se tratava de um sério revés.
— É guerra para seis meses, concluiu ele (ASSIS, 1994, documento eletrônico).

É neste contexto que Machado de Assis notavelmente insere Valéria, uma das senhoras que preferiam arriscar as vidas dos filhos em troca de prestígio militar e um futuro brilhante garantido, do que os casar com mulheres economicamente inferiores. Há também Jorge, que, assim como muitos outros, vai a guerra como voluntário, mas sem a mínima vontade própria; ou Estela, que aceita sua situação social e, mesmo secretamente ainda guardando um amor por Jorge, não faz grande oposição a sua partida, pensando na separação como um ocorrido positivo aos dois.

Possíveis leituras e considerações

Para além da capacidade de podermos estudar Iaiá Garcia através da Guerra do Paraguai e vice-versa, hoje tem-se certeza que Machado era uma escritor hábil e apto a não somente reler momentos históricos com sua literatura, como também interpretá-los a sua maneira particular. Sendo um romance anterior a Brás Cubas, considerado este o marco do início de uma fase chamada de realista na obra de Machado, o romance Iaiá Garcia já apresenta em desenvolvimento alguns elementos que o escritor domina nas suas produções seguintes a fim de contribuírem para suas análises. É perigoso e muito subjetivo procurar, no romance sobre a guerra, metáforas propositais do autor para um entendimento mais profundo e completo do contexto histórico e literário, porém não totalmente incabível.

Uma personagem que possui um desenvolvimento curioso é, por exemplo, Valéria. Por motivos pessoais, de não casar seu filho, a viúva engaja-se com a ideia da guerra e encontra nela uma saída. Contudo, Jorge não volta a ver a mãe após ser mandado por ela a servir, pois, antes que esteja  em casa novamente, sua mãe já havia partido da vida. É exatamente no momento de término da guerra, com a morte de Solano Lopez, que acontece o óbito de Valéria. O falecimento tem sua explicação, rápida, de uma doença que aparecera nos últimos tempos, coincididos com a decadência das batalhas até o ponto final.

Um acontecimento inesperado e desastroso veio ainda golpeá-lo cruelmente, logo depois de março de 1870, quando, acabada a guerra, estava ele em Assunção. Valéria falecera. Luís Garcia lhe deu essa triste notícia, que ele antes adivinhou do que leu, porque as últimas cartas já lhe faziam pressentir o lúgubre desenlace. Jorge adorava a mãe. (ASSIS, 1994, documento eletrônico).

Um ano depois, então de volta da guerra, Jorge vai a Minas Gerais em excursão a fim de visitar o túmulo de sua mãe, que se encontrava e havia sido sepultada lá. Aproveita ele para visitar parentes e planeja por trazer os ossos da falecida ao Rio de Janeiro. Não gratuitamente, fora no Mato Grosso onde ocorrera importante invasão para o desencadeamento de todos os conflitos que viriam a ser a Guerra do Paraguai, sendo agora o lugar visitado pelo protagonista do romance, ao término das batalhas.

No meado do ano de 1871, fez Jorge uma excursão a Minas Gerais, com o fim de ajoelhar-se à sepultura de sua mãe, cujos ossos transportaria oportunamente para um dos cemitérios do Rio de Janeiro. A excursão durou seis semanas. Jorge visitou alguns parentes, e regressou nos princípios de agosto (ASSIS, 1994, documento eletrônico).

Também é interessante a participação do personagem Raimundo, escravo de Luis Garcia. Os negros e escravos não são novidade em Machado de Assis, já que, claramente, a situação da escravidão ainda era comum na época. A peculiaridade de Raimundo é que, após receber a carta de liberdade, prefere ele continuar a servir seu senhor, por apreço e, de certa forma, talvez comodidade. Assunto como este não é desvinculado da Guerra. Os negros formaram grande número nos exércitos dos países envolvidos. Com promessas de liberdade ou imposições, negros, escravos ou não, chegavam a ser, por vezes, a maioria de determinados grupos de soldados. A pauta da necessidade de homens a luta volta então a tona, e os escravos, inferiores, foram empurrados à situação de representar os países e seus interesses, defendendo com as próprias mãos as preocupações dos outros.

[…] Raimundo parecia feito expressamente para servir Luís Garcia. Era um preto de cinqüenta anos, estatura mediana, forte, apesar de seus largos dias, um tipo de africano, submisso e dedicado. Era escravo e livre. Quando Luís Garcia o herdou de seu pai, — não avultou mais o espólio, — deu-lhe logo carta de liberdade. Raimundo, nove anos mais velho que o senhor, carregara-o ao colo e amava-o como se fora seu filho. Vendo-se livre, pareceu-lhe que era um modo de o expelir de casa, e sentiu um impulso atrevido e generoso. Fez um gesto para rasgar a carta de alforria, mas arrependeu-se a tempo. Luís Garcia viu só a generosidade, não o atrevimento; palpou o afeto do escravo, sentiu-lhe o coração todo. Entre um e outro houve um pacto que para sempre os uniu (ASSIS, 1994, documento eletrônico).

A decisão de permanecer como trabalhador da família do senhor vem, aparentemente, do próprio Raimundo. Não por isso apaga-se a ligação entre uma liberdade teórica e prática. Deixando primeiramente claro que o negro era então um homem livre, Luis Garcia não vê problema algum em continuar usufruindo dos serviços de Raimundo, que volta a ser denominado como escravo pelo resto da obra. É merecido aqui lembrar que, pensando na visão de que os negros teriam sido, verdadeiramente, uma base essencial para a Guerra do Paraguai, é Raimundo que, perto do final do romance, decide por não entregar uma carta de Iaiá Garcia a Procópio Dias, o que termina salvando o casal Lina e Jorge e todo o desfecho da obra. O empregado, um negro que nada teve a ver com as batalhas reais da guerra, serve de intermediário para os personagens da trama, mas sua decisão de ir contra as ordens recebidas é de suma importância.

Da mesma maneira que Machado retoma assuntos recorrentes em suas obras, como traição, política, escravidão e sociedade, a Guerra do Paraguai voltou a ser relembrada em produções posteriores. Em Quincas Borba, o astuto personagem Cristiano Palha menciona as batalhas com o amigo Rubião, “Palha desconversou, e passou à política, às Câmaras, à guerra do Paraguai, tudo assuntos gerais, ao que Rubião atendia, mais ou menos” (ASSIS, 1994, documento eletrônico). No conto Um Capitão de Voluntários, de Relíquias da Casa Velha, a temática é ainda mais presente. Emílio, nomeado “X” durante no início do conto, alista-se no exército em função de Capitão de Voluntários. Em conversa com quem nos conta o enredo, diz ele ser contra a guerra e a posição do próprio país, mostrando um distinto comentário dos relatados em Iaiá Garcia, porém, muda de ideia e alista-se por motivos pessoais. Diferente de Jorge, o capitão fere-se gravemente durante as batalhas e morre antes de voltar para a casa.

— Maria acordou hoje com a mania de colher donativos para a guerra, disse-me ele. Já lhe fiz notar que nem todos quererão parecer que… Você sabe… A posição dela… Felizmente, a idéia há de passar; tem dessas fantasias…
— E por que não?
— Ora, porque não! E depois, a guerra do Paraguai, não digo que não seja como todas as guerras, mas, palavra, não me entusiasma. A princípio, sim, quando o López tomou o Marquês de Olinda, fiquei indignado; logo depois perdi a impressão, e agora, francamente, acho que tínhamos feito muito melhor se nos aliássemos ao López contra os argentinos.
— Eu não. Prefiro os argentinos.
— Também gosto deles, mas, no interesse da nossa gente, era melhor ficar com o López.
— Não; olhe, eu estive quase a alistar-me como voluntário da pátria.
— Eu, nem que me fizessem coronel, não me alistava (ASSIS, 1994, documento eletrônico).

De forma mais direta, porém menos elaborada que em Iaiá Garcia, a crítica ao voluntariado e ufanismo da guerra assombra outros contos de Machado, como Troca de Datas, em que o voluntário do conto se apresenta afim de deixar a mulher por quem perdeu a atração. No romance, entretanto, há a liberdade de uma maior divagação sobre o assunto. Se lermos a obra através da intenção de crítica deste contexto histórico, vemos que a guerra não possui um papel que seja diretamente importante para mais da metade da trama amorosa. Assim que Jorge volta de seu voluntariado, ocupando posto de herói, pouco tem a guerra um impacto na sociedade retratada no livro. Portanto, Machado nos apresenta uma crítica através de uma obra cujo herói representa uma nação brasileira que pouco sentiu os efeitos da guerra como os verdadeiros envolvidos, e o fato de esta batalha ser apenas detalhada na primeira parte do livro, em que a personagem principal Iaiá, que dá nome ao mesmo, apresenta ainda pouquíssimo desenvolvimento, representaria esse pensamento.

Ainda que, teoricamente, a Guerra do Paraguai deixa de ter papel fundamental ao enredo a partir da segunda parte do desenvolvimento, é difícil imaginar que o autor tenha apresentado este contexto de forma gratuita, a não influenciar os acontecimentos que ocorrem a seguir.  A batalha, no segundo bloco de Iaiá Garcia, parece deixar de ser bélica, em campo, e passa a ser social, entre os próprios personagens. O jogo com os personagens ao longo do enredo é visível. Valéria, que manipulava o restante, deixa espaço para que Iaiá amadureça e tenha seu aprendizado na arte da manipulação explorado pelo leitor. Surge a rivalidade entre Procópio Dias e Jorge, entre Estela e Iaiá. E, nas entrelinhas dessa salada romântica, começam a aparecer também os conflitos internos, seja indecisão sobre paixões, personalidade ou moral.

A esta voz importuna e verdadeira, Jorge erguia os ombros. Tentou refugiar-se no sono. O sono rejeitou-o de si. Então fumou, desceu à chácara, fatigou o corpo para melhor adormecer o espírito; mas a lua que batia no repuxo mostrava-lhe, ora um casebre de Santa Teresa, ora uma varanda da Tijuca, como se fossem o verso e o anverso da medalha de seu coração, toda a história da vida que ele vivera até ali. A diferença entre uma e outra dessas duas fases é que presentemente o desengano não o levaria à guerra, nem lhe daria os desesperos do primeiro dia. Não; Jorge levantou-se na manhã seguinte um pouco atordoado, mas não inteiramente abatido. Sentia alguma opressão moral, um desejo de saber quem era o adversário preferido. Merecê-la-ia? Que a merecesse, embora; ele tinha um direito anterior e superior; desde que a amava, excluía todos os outros. (ASSIS, 1994, documento eletrônico).

A transformação do clima de guerra após a segunda metade da obra é perceptível. Na primeira parte, Jorge participa ativamente das batalhas, mesmo que contrariado, usufruindo de um posto possivelmente comprado. Durante a próxima parte, entretanto, encontramos conflitos artificiais; são usadas meias palavras, trocas de olhares e manipulação. Há, então, um sutil divisão entre a aparência e a essência dos personagens, o que, ironicamente, não tinha deixado de ser retratado antes, quando nosso simpático protagonista volta da guerra como herói, inteiro e intacto, enquanto outros homens morriam em seu lugar e batalhavam de verdade. Outro paralelo possível é o conceito de sentimento temporário retratado em Jorge, tanto em seu serviço militar, quanto em sua vida amorosa, o que fica explícito quando Estela, indignada, reclama que o rapaz “foi para a guerra, lutou, padeceu, fiel ao sentimento que o tinha levado, até o ponto de o crer eterno. Eterno! Sabes quanto durou essa eternidade de alguns anos” (ASSIS, 1994, documento eletrônico). A questão confusa das trocas entre triângulos amorosos e todo o contexto da guerra, por vezes irônica e suavemente cômica, pode muito bem representar a opinião de Machado sobre a Guerra do Paraguai “como uma disputa cruel, violenta e ao mesmo tempo estúpida, como uma fusão de interesses do Brasil e do Paraguai” (ARAÚJO, 2011, documento eletrônico).

Talvez por não ser o auge da produção de Machado de Assis, parte de Iaiá Garcia acaba sendo esquecida pelos seus leitores. Num enredo romântico, banal, o escritor compõe não apenas uma obra de transição de uma fase do romantismo a uma realista, mas um relevante retrato histórico e social de um grande marco na história do Brasil, além de uma importante crítica colocada de forma ardilosa. Por isso, releituras deste livro proporcionam não somente a definição do aparecimento de algumas características de um grande escritor brasileiro, mas também uma compreensão mais vasta de nossa própria história e país.

Referências:

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ARAÚJO, Tiago Gomes de. Três literatos e um conflito: a Guerra do Paraguai (1865-1870) sob os olhares de Machado de Assis, Visconde de Taunay e Pereira da Silva. In: XXVI Simpósio Nacional da ANPUH: 50 anos, 2011, São Paulo. Anais do XXVI Simpósio Nacional da ANPUH. Disponível em: <http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1312327970_ARQUIVO_TrabalhocompletoTiagoGomesdeAraujoXXVIANPUHCorrigido.pdf> Acesso em: 25 Fev. 2014.

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ASSIS, Machado de. Quincas Borba. Rio de Janeiro, 1994. In: ASSIS, Machado de. Obras Completas, Volume I. Disponível em: <http://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?id=136496> Acesso em: 16 Jan. 2014.

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