Além das marcas pretas numa folha branca: notas sobre design editorial e livros como objeto de arte

Larissa Andrioli

RESUMO: O presente artigo busca apontar e refletir sobre alguns aspectos do design editorial. Partindo da ideia de Barthes com relação ao autor, procura-se identificar como a crítica biográfica (e sua posterior derrocada) influenciou no processo de criação de capas de livros e de projetos gráficos, até chegar à radicalização da figura do leitor com os chamados livros-experiência.

PALAVRAS-CHAVE: design editorial; crítica; leitor; projetos gráficos; livros-experiência.

ABSTRACT: The present article aims to identify and reflect about aspects of the editorial design. Starting from Barthes’s idea of the author, it tries to understand how biographical criticism (and its later downfall) has influenced on book covers and graphic projects creation process, and the radicalisation of the reader’s image with the experienceable-books.

KEYWORDS: editorial design; criticism; reader; graphic projects; experienceable-books.

 

INTRODUÇÃO

Em 1968, em seu famoso ensaio, Roland Barthes decretou a morte da figura do Autor. Argumentando que o texto deve ir além daquele que o escreveu, questionou a validade de leituras calcadas somente nesse aspecto do texto. O autor, como diz, é uma personagem que nasce com a sociedade moderna, focada no indivíduo. A criação do Autor (quase que como instituição) resultou no surgimento de uma crítica biográfica que vigorou por muito tempo e, apesar de estar em franca decadência na academia, ainda dá as caras de quando em quando. Essa crítica, que faz uma leitura “tiranicamente centrada no autor” (BARTHES, 1987, p. 50), procura toda e qualquer explicação da obra fora dela, em quem a produziu.

Com A morte do autor, o que Barthes propõe é o abandono dessa visão e a destruição da figura do Autor. Para ele, somente a supressão do autor permite que se enxergue lucidamente o texto. Ao modificar-se a postura diante do texto, modifica-se também a escritura moderna. A proposta de Barthes é a criação de um scriptor moderno, um autor que nasce junto com o texto: ele não possui vida pregressa nem vida futura; esteve ali, escreveu o texto, morreu. E é apenas o que surgiu de sua passagem pelo mundo que interessa a nós. Apenas o texto deve ser considerado, não deve estar “de modo algum provido de um ser que precederia ou excederia a sua escrita.” (BARTHES, 1987, p. 51).

O que Barthes defende, portanto, é que o texto seja tanto o criador como a criatura do leitor. Um texto é resultado mais do encontro de textos que constitui o leitor do que da sua forma em si, pois um livro, sem alguém que o leia, não passa de um amontoado de folhas com marcas sem sentido. Somente a partir do momento em que o leitor existe é que ele adquire significado, pois é o leitor que faz com que ocorra a leitura; ela não existe por si só. Barthes, assim, desconstrói uma noção de estilo individual que imperava na leitura especializada de literatura, destruindo a ideia de que um texto vem de uma entidade (o Autor) e a ela pertence. Desconstrói também a noção de genialidade, que ainda sobrevive entre os leitores. Ele defende que quem menos importa num texto é quem o escreveu. O estilo de um texto não vem do punho do autor e sim do leitor. Isso faz com que se derrube também a ideia de uma intenção do autor, visto que, pensando no leitor como verdadeiro criador de um texto, não podemos atribuir valor à busca de um significado maior por trás do texto, escondido nas palavras escolhidas pelo autor; a escrita deve ser percorrida, e não perfurada. (BARTHES, 1987, p. 52).

Tendo esclarecido como Barthes contribuiu para que a leitura centrada no autor ruísse, é preciso dizer que a crítica biográfica, no entanto, ainda perdura em algumas esferas. O que nos traz para o que nos interessa aqui: o mercado editorial. Para falar acerca do que nos trouxe a essa argumentação, traçaremos a seguir um paralelo entre crítica e venda de literatura.

LINHA DO TEMPO

Numa rápida visita a uma biblioteca é possível ter contato com diversas edições de livros que contam com a seção “vida e obra”, dedicada ao autor. Isso é, obviamente, consequência direta da crítica biográfica que imperou por muito tempo. Para os editores, parecia necessário que o leitor tivesse contato com um resumo da vida do escritor para poder compreender melhor o que estava lendo. A culpa, logicamente, não é só dos editores. Essa abordagem é um reflexo da crítica literária, que realmente calcava suas leituras nesse tipo de postura diante de um texto.

Ao visitarmos uma livraria, no entanto, a situação já é diferente. O rápido manuseio de edições novas (tanto de obras antigas quanto contemporâneas) nos mostra que não existe mais uma seção dedicada à vida do autor: diz-se apenas o básico: “esse livro foi escrito por tal pessoa, que nasceu em tal ano e já publicou tais livros”. Estes dados possuem um caráter mais informativo do que instrutivo: saber quantos anos o autor tem não irá direcionar sua leitura da obra, apenas te deixará a par de uma informação a mais sobre quem possui os direitos autorais do livro – afinal, não é disso que se trata o estabelecimento da autoria?

Esse abandono da crítica biográfica vem a se refletir também na parte gráfica de um livro. É notável a modificação que sofreu o processo de produção de capas e é cada vez mais possível traçar uma unidade criativa que aponta para o abstracionismo, distanciando-se da obviedade das capas que remetem diretamente ao autor em si.

Procuraremos ilustrar essa proposição a partir da análise comparativa de algumas edições do mesmo livro. Além disso, mostraremos também algumas capas e projetos gráficos de autores contemporâneos que apontam para esse abstracionismo e falaremos acerca de seu processo criativo.

Ontem e hoje: uma perspectiva comparativa de capas de um mesmo título

Ao observarmos as diferentes edições de um livro ao longo dos anos, é possível notar que, além de mudanças no projeto gráfico interno – como mudança de fontes, espaçamento, diagramação etc. –, há também uma significativa mudança nas capas. Essa mudança se dá por diversos motivos: pode ser motivada desde a simples melhora do trabalho gráfico até interesses comerciais.

Um exemplo muito claro disso são as edições de livros de Machado de Assis. Na primeira capa, temos não só a foto do autor como um enorme destaque ao seu nome, sendo que o conteúdo do livro em si encontra-se em fonte bem menor.

Fonte: ASSIS, Machado de.

Fonte: ASSIS, Machado de.

Fonte: ASSIS, Machado de.

A tendência é que as capas focadas no autor – que apresentam inclusive fotos – sejam substituídas por capas mais abstratas, como já dito antes, e podendo chegar mesmo ao minimalismo. O mesmo é possível observar nas capas da autora inglesa Virginia Woolf. Seus livros, que tradicionalmente trazem estampados a famosa foto de perfil da autora, passaram a apresentar capas bem distantes tanto da figura autoral quanto de seu conteúdo, visando apenas a uma apresentação estética bem elaborada.

Fonte: WOOLF, Virginia.

Fonte: WOOLF, Virginia.

Fonte: WOOLF, Virginia.

Esse abstracionismo estético pode ser visto também na reedição das obras de Lygia Fagundes Telles pela Companhia das Letras, projeto gráfico de Cláudia Warrak e Raul Loureiro. Todas as capas são detalhes de obras da artista plástica Beatriz Milhazes. O que podemos ver é que o design não aproxima o leitor nem do autor nem do conteúdo, mas procura atraí-lo ao apostar em imagens que se apresentem como barreiras ao entendimento do livro.

Fonte: TELLES, Lygia F.

Fonte: TELLES, Lygia F.

Fonte: TELLES, Lygia F.

Minimalismo

Uma tendência que vem crescendo cada vez mais é o minimalismo nas capas. Esse caminho chega por vezes a extremos na elaboração gráfica de um projeto. A ideia do minimalismo foge ao máximo da vinculação com o autor do texto – o foco é somente o conteúdo da publicação, procurando, através de pequenos elementos, remeter ao tema central da obra. O autor fica, nesse caso, fora da construção do design. O minimalismo gráfico, embora pareça contraditório, é algo que chama a atenção do leitor. Uma capa clean, se bem realizada, por vezes funciona muito melhor do que uma capa com muita informação. É o caso da série BIG IDEAS // Small books, da editora MacMillan. As capas são do designer Henry Sene Yee.

Fonte: ORBACH, Susie.

Fonte: KOESTENBAUM, Wayne.

Fonte: LUKES, Steven.

Fonte: DISKI, Jenny.

Fonte: HOFFMAN, Eva.

Fonte: ZIZEK, Slavoj.

Não-autor – a radicalização do apagamento da autoria:

Ainda pouco expressivo, já que pouco comercial, mas começando a aparecer de quando em quando, é o projeto gráfico que apaga o autor. Nesse caso, o designer opta por retirar da capa o nome do autor e o título da obra, deixando somente uma imagem que remeta a algum aspecto do conteúdo.

Tratemos aqui dois exemplos. O primeiro é O vidiota, de Jerzy Kosinsky, que contou com design de Lauro Machado, Jamil Li Causi e Rafael Saraiva.

Fonte: KOSINSKI, Jerzy.

Fonte: KOSINSKI, Jerzy.

As imagens representam a capa e a contracapa, respectivamente. Em entrevista ao blog Sobrecapas, Lauro Machado, ao ser indagado sobre a raridade de capas no mercado brasileiro que não apresentam identificação, responde:

Com esse livro aconteceu algo peculiar. Apesar do grande apelo visual e de sempre ter a capa elogiada em algumas das livrarias ele era colocado “de costas” com a quarta capa, onde está o título, para frente. Isso é reflexo de um mercado e uma cultura visual ainda em desenvolvimento. E com um mercado consumidor ainda pequeno, as editoras, em sua maioria, tendem a ser um pouco mais conservadoras se atendo à premissas nem sempre verdadeiras. (MACHADO, 2011, documento eletrônico)

O autor do blog, Samir Machado de Machado, escritor e também designer, ao publicar seu livro O professor de botânica,defendeu (e conseguiu) uma capa com as mesmas características.

Fonte: MACHADO, Samir Machado de.

O livro, cujo protagonista é alguém a quem faltam muitas coisas, possui portanto uma capa em que falta seu protagonista: ele está decalcado da imagem, que não apresenta nada além de árvores. Não consta título, não consta autor, não consta editora. Esse tipo de design nos interessa em especial porque traz de volta Barthes: assim como o texto em si, livros com capas assim precisam do outro, do leitor. Um livro cujo título é desinteressante pode ser facilmente descartado por um comprador na livraria sem sequer tocá-lo, mas um livro cuja capa não apresenta nenhum tipo de identificação atrai o leitor para si, obrigando-o a pegá-lo e a abri-lo, para ter contato com a obra.

ALÉM DO LEITOR PASSIVO 

Ao falar sobre o tipo de capa que obriga o toque do leitor, é inevitável falarmos sobre os chamados livros-experiência. Esses livros têm por objetivo tornar a experiência da leitura algo marcante e, por vezes, até mesmo árduo para o leitor. Para isso, apostam num projeto gráfico que mergulhe o leitor numa interação mesmo física com o livro durante a leitura. Falarei aqui de alguns casos que vão desde um nível mais leve de tratamento gráfico até algumas experiências extremas.

O primeiro caso que acho pertinente trazer aqui é de um livro muito recente, publicado em 2011, pela editora Rocco. O projeto gráfico de A página assombrada por fantasmas, de Antônio Xerxenesky, surgiu como trabalho de conclusão de curso de Ieve Holthausen, à época, granduanda em Design Visual pela Escola Superior de Propaganda e Marketing. O projeto interno abrangia interferências visuais no texto, como forma de remeter à materialidade da obra, do suporte do texto. As interferências iam desde uma mancha de café e um sublinhado de caneta até uma página rasgada.

Fonte: HOLTHAUSEN, Ieve.

Fonte: HOLTHAUSEN, Ieve.

Fonte: HOLTHAUSEN, Ieve.

A ideia dessas interferências é abandonar a concepção do livro como um veículo que transporta o leitor para outra realidade e depois desaparece. Esses elementos fazem com que o veículo deixe de desaparecer para se tornar uma tecnologia explícita. Buscam também refletir o leitmotif dos contos, ou seja, a metaliteratura. De acordo com a autora do projeto gráfico, a intenção era tornar o livro como um todo uma homenagem aos apreciadores de livros. Mas não é só o projeto gráfico interno deA página que traz a experiência da leitura como tema. Sua capa, assim como as intervenções no interior do livro, utiliza metalinguagem e causa também estranhamento. A designer descreve o processo de criação:

Fiz manualmente rasgos sequenciais nas páginas de um livro velho formando camadas e digitalizei. Para a construção das palavras digitalizei uma página inteira do mesmo livro e recortei os caracteres necessários para formar o nome do autor e o título e autor. Então apliquei as palavras montadas nos espaços, substituindo as originais da imagem. A construção da capa foi uma combinação de trabalho manual e digital. (HOLTHAUSEN, 2011, documento eletrônico)

Fonte: HOLTHAUSEN, Ieve.

O resultado causa de fato algum estranhamento, já que, em sua versão final, já com acabamentos, ainda é um pouco difícil distinguir o nome do livro e de seu autor.

Fonte: HOLTHAUSEN, Ieve.

O livro de Xerxenesky, no entanto, ainda estava sendo finalizado quando Ieve concluiu seu projeto gráfico, que foi aprovado pela Não Editora. Nesse meio tempo, o autor assinou contrato com a Editora Rocco e, apesar de aceitarem sua sugestão de usar o projeto inicial já pronto, exigiram algumas modificações que iriam ajudar na penetração do livro no mercado editorial. Para os editores da Rocco, um livro cuja capa dificulta o processo de compreensão do título e do autor não é comercial; da mesma forma, retiraram do projeto as interferências internas propostas por Ieve. Dessa forma, depois de passar por modificações em seu projeto gráfico, A página assombrada por fantasmas chegou às livrarias sem nenhuma interferência interna e com uma capa modificada digitalmente para melhorar a possibilidade de leitura dos dados que apresenta. Podemos ver que a fonte foi aparentemente negritada, ou apenas sofreu uma alteração no tom de cor, fazendo com que ficasse mais escura e, consequentemente, mais destacada das outras partes de texto que compõem a capa.

Fonte: XERXENESKY, Antonio.

Outro exemplo dos livros-experiência que nos interessa aqui faz parte do que chamei anteriormente de experiências extremas. A coleção Particular, da editora CosacNaify, propõe-se a publicar, de acordo com dados obtidos no sítio on line da própria editora, “clássicos da literatura ocidental (…) em edições nas quais o projeto gráfico faz parte da experiência de leitura e interfere na forma de experimentar o texto.”

Como resultado desse objetivo, temos uma série de livros que induzem o leitor a dedicar-se ao livro de uma forma que edições tradicionais não fazem. O livro Bartleby, o escrivão, de Herman Melville, por exemplo, exige que o leitor, para começar sua leitura, dedique-se primeiramente ao desafio de descosturar a capa (puxando uma linha vermelha que a lacra) e cortar as páginas não refiladas do livro (com uma espátula que o acompanha). Só assim, a partir de uma experiência de leitura que instiga o leitor, ele poderá chegar a descobrir o instigante protagonista do livro. Para entrar no universo da obra, o leitor deve, primeiro, conseguir ter o acesso material ao livro.

Fonte: MELVILLE, Herman.

Fonte: JAMES, Henry.

Um processo menos árduo, mas tão instigante quanto, acontece na edição de A fera na selva, de Henry James. O projeto gráfico acompanha a evolução da narrativa. Começando pela capa, que apresenta um material suave, agradável ao toque, próximo à textura de tecido, à medida que avançamos na trama e esta se torna mais dramática, a gramatura das páginas do livro aumenta, as tonalidades do papel escurecem e o espaço entre as linhas do texto diminui.

Fonte: foto da autora

Fonte: foto da autora

Fonte: foto da autora

Fonte: foto da autora

Assim, ao final do livro, o leitor experiencia uma leitura complexa não só psicologicamente, devido à densidade narrativa, mas também fisicamente, já que há esse link entre escrita e visual. Mais uma vez, o projeto gráfico reflete a evolução do texto.

Outros três títulos da CosacNaify que merecem destaque são: Flores, de Mario Bellatini, Museu do romance da eterna, de Macedonio Fernández e Zazie no metrô, de Raymond Queneau, que fazem parte também da coleção Particular e trazem em seu projeto gráfico reflexos de seu conteúdo que otimizam a experiência da leitura.

Fonte: BELLATIN, Mario.

Fonte: FERNÁNDEZ, Macedonio.

Fonte: QUENEAU, Raymond.

Em Flores, como forma de acompanhar a prosa seca e contundente do autor, bem como traduzir graficamente o caráter fragmentado da narrativa, a edição não possui capa e a orelha está despregada do miolo. O livro é feito de fragmentos envoltos num invólucro plástico. Museu do romance da eterna ensina que um romance moderno é feito de retalhos, desvios, digressões. É permeado pelo inacabado como forma de abrir a literatura à modernidade. Para transpor essa ideia para o projeto gráfico, o livro traz algumas páginas não refiladas, obrigando o leitor a destacá-las, e certa poluição textual que pode ser vista já pela capa, composta basicamente por pedaços de textos. Já em Zazie no metrô, o projeto gráfico dialoga com a ousadia do romance: é impresso em papel-bíblia e traz com clima da época retratada na narrativa com fragmentos de cartazes reproduzidos na parte interna das páginas.

Podemos citar também rapidamente o livro Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, inicialmente concebido não como um romance tradicional. Em entrevista, o autor relata:

A minha idéia inicial era a de que Eles eram muitos cavalos tivesse não a forma de um livro, mas o de uma pequena caixa, onde os capítulos, sem título e sem paginação, aparecessem soltos, para que o leitor não só configurasse a sua própria narrativa (cada vez que embaralhasse as páginas, surgiria uma versão diferente dos fatos), mas que também participasse efetivamente, anotando suas próprias impressões nas páginas em branco que seriam oferecidas junto com os cadernos. Nesse sentido, meu desejo era o de compartilhar a autoria com o leitor. (RUFFATO, 2011, documento eletrônico, grifo meu)

Ruffato traduz aqui a ideia central dos livros-experiência: partilhar a autoria com o leitor, deslocá-la do lugar institucional do autor para o lugar harmônico da troca entre as partes envolvidas na produção e na recepção da obra.

Publicado em 2006 pela editora Dom Quixote, o livro Do grande e do pequeno amor também apresenta uma condição visual peculiar: trata-se de um romance fotográfico, escrito por Inês Pedrosa em parceria com o fotógrafo Jorge Colombo. O livro conta a história de um casal que termina e retoma o relacionamento constantemente. Acompanhamos os dois personagens por meio de dois textos: o verbal e o imagético.

Fonte: foto da autora

Fonte: foto da autora

Nesse caso, não temos uma edição que procura dificultar o processo de leitura, mas apenas adicionar a ele um novo elemento. O livro pode ser lido seguindo apenas os elementos verbais, assim como as fotos podem ser compreendidas separadamente do texto, mas os dois componentes, somados, formam um livro que traz uma união da arte visual e da literatura de forma a ser um diferencial no mercado, tão saturado de livros tradicionais.

Um caso interessante de se trazer para a discussão é o do norte-americano Jonathan Safran Foer. O autor possui uma forte ligação com o design gráfico, o que faz com que ele adote em seus livros formas de integrar a escrita e a visualidade – sendo que esta não aparece como um extra, mas como parte da compreensão da obra. Sobre isso, o autor afirma em uma entrevista:

De onde viria a falta de interesse no design? Por que iria – como poderia – um autor não se importar com o visual de seus livros? Eu nunca conheci um artista que não se interessasse pelas artes visuais, ainda que tenhamos desenhado na areia uma profunda demarcação do que consideramos ser um romance, e com o que devemos nos importar. Então estamos nessa estranha posição de ter muito a dizer sobre o que está pendurado nas paredes das galerias e pouco sobre o que está nas páginas de nossos livros. A literatura não precisa de um componente visual – meus livros preferidos são todos feitos de palavras pretas em páginas brancas – mas seria bom se permitíssemos esse trânsito. (FOER, 2012, documento eletrônico)

Seguindo essa linha de pensamento, Foer escreveu o romance Extremely loud & Incredibly close (Penguin Books, 2008), que conta a história de Oskar Schell, um garoto de nove anos que perdeu o pai no atentado ao World Trade Center e se lança em Nova Iorque numa espécie de caça ao tesouro. O menino, que poderia ser diagnosticado como portador da Síndrome de Asperger, tem uma inteligência fantástica. Ele mantém cadernos e diários onde detalha seus dias, inclusive com fotos. Na edição do livro, essas fotos aparecem a todo momento, sendo que, sem elas, não seria possível captar diversas passagens e nem mesmo a carga emocional do final da obra.

Fonte: foto da autora

Além das fotos, há no livro dois elementos gráficos em cores. O primeiro são os grifos no jornal The New York Times, hábito que o pai tinha e fazia junto com o filho. Esse hobby já havia sido mencionado no livro, mas só aparece na altura em que Oskar encontra-se tão obcecado em sua busca que parece enxergar pistas em qualquer lugar, inclusive no jornal.

Fonte: Visual Editions

O outro elemento colorido que aparece é um teste de canetas. Ao chegar numa loja de materiais de pintura, o garoto procura o caderno que os clientes usam para testar o funcionamento do que vão comprar. Sabendo que seu pai escreveria o próprio nome, ele vasculha as folhas, e é então que nós, leitores, nos deparamos com o que ele está vendo. São algumas páginas de palavras sem nexo, nomes, nomes de cor e rabiscos, o que passa para o leitor a mesma missão de Oskar, que é encontrar “Thomas Schell” gravado ali.

Fonte: foto da autora

O elemento gráfico de Extremely loud mais interessante, no entanto, encontra-se nos capítulos narrados pelo avô de Oskar. O homem, que passou por um trauma na Segunda Guerra Mundial, perdeu a capacidade de falar. Para se comunicar, ele usa cadernos – dezenas de cadernos – nos quais escreve respostas e perguntas que precisa, eventualmente, usar. Além disso, possui duas tatuagens nas mãos: “sim” na direita e “não” na esquerda (temos acesso, no livro, a uma foto de suas mãos). Durante os capítulos dos quais ele é protagonista, as páginas acompanham a escrita de seus cadernos, ou seja, são poucas as páginas de texto corrido; em geral, as páginas são ocupadas somente por uma sentença, ou até mesmo estão em branco.

Fonte: foto da autora

Ao final do livro, o avô de Oskar, já sem espaço nos cadernos, sobrepõe uma sentença a outra, tornando a leitura impossível tanto para quem tivesse acesso ao que escreveu quanto para nós.

Fonte: Visual Editions

Fonte: foto da autora

O projeto gráfico de Extremely loud & Incredibly close é algo encantador, porque trabalha a junção da leitura verbal e visual de forma tão natural que leva o leitor a ocupar diversos papéis dentro da narrativa sem que ele se aperceba disso. Entretanto, Safran Foer não parou por aí. Aliás, ele estava apenas começando.

Lançado em 2010, Tree of codes foi classificado como “pesadelo editorial”. Depois de aceito por uma editora britânica que gosta de projetos inusitados, a Visual Editions, sua produção foi recusada por todas as gráficas contatadas, até que uma, na Bélgica, aceitou o desafio: produzir um livro que utilizasse um tipo de corte em cada página, resultando em algo assim:

Fonte: Visual Editions

Se uma edição como essa pode parecer despropositada, Foer explica: ele pegou seu livro favorito, Street of Crocodiles, de Bruno Schulz, e se propôs a escrever um outro livro a partir dele, mas somente usando a subtração, nunca a adição. Dessa forma, ele andou durante um ano pelas ruas acompanhado de um exemplar do livro de Schulz, uma caneta marca-texto e uma caneta vermelha. O resultado final, entretanto, não poderia ser um livro tradicional. Foer quis manter o “corpo” do livro original, porém, esculpido nele o livro novo.

Fonte: Visual Editions

Fonte: Visual Editions

Vemos, portanto, que a noção de Safran Foer sobre a ligação entre design e literatura faz com que ele se esforce para que as duas se misturem em seus livros. E isso vem se mostrando cada vez mais presente na literatura, o que faz com que exista uma necessidade de debruçar-se sobre os casos e estudá-los mais a fundo.

Conclusão (por ora)

O que tentei mostrar aqui foi como o mercado editorial reflete a forma como as figuras do autor e do leitor são problematizadas. Se inicialmente possuíamos um mercado focado no autor como instituição (reflexo da crítica biográfica), com edições baseadas na ligação entre obra e autor – tendo como resultado capas que apresentavam fotos do mesmo –, o que vemos atualmente é uma guinada para o lado do abstracionismo nos projetos gráficos. Isso advém de uma formação de profissionais que fazem parte de uma geração que não adota mais a crítica biográfica, preferindo manter um distanciamento entre a vida do autor e seus textos. Assim, acaba surgindo mesmo um distanciamento do próprio texto, resultando em capas cujo apelo é somente estético, como foi exemplificado anteriormente.

Além disso, é importante notar que, a partir desse afastamento do autor, a obra se aproxima do leitor. Como resultado, temos o surgimento dos livros-experiência, que são o grau máximo de aproximação entre texto e leitor, visto que forçam este a fazer com que o livro se abra para a leitura e a enfrentar alguns desafios físicos para conseguir começar ou prosseguir a leitura. Essa tendência mostra como o mercado editorial, à medida que se afasta do autor, se aproxima cada vez mais do receptor da obra, o que vem a dialogar com o que Barthes propõe em seu ensaio já citado aqui. Ao produzir edições experimentais, as editoras, ainda que não matem em absoluto a figura do autor, fazem com que nasça o leitor barthiano: aquele que, através de uma experiência de leitura palpável, constrói a obra e faz com que ela exista de fato no mundo.

Referências

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ANDRIOLI, Larissa. Imagem interna de A fera na selva. Arquivo pessoal.

ANDRIOLI, Larissa. Imagem interna de A fera na selva. Arquivo pessoal.

ANDRIOLI, Larissa. Imagem interna de A fera na selva. Arquivo pessoal.

ANDRIOLI, Larissa. Imagem interna de Do grande e do pequeno amor. Arquivo pessoal.

ANDRIOLI, Larissa. Imagem interna de Do grande e do pequeno amor. Arquivo pessoal.

ANDRIOLI, Larissa. Imagem interna de Extremely loud and incredibly close. Arquivo pessoal.

ANDRIOLI, Larissa. Imagem interna de Extremely loud and incredibly close. Arquivo pessoal.

ANDRIOLI, Larissa. Imagem interna de Extremely loud and incredibly close. Arquivo pessoal.

ANDRIOLI, Larissa. Imagem interna de Extremely loud and incredibly close. Arquivo pessoal.

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