Anjos mulheres: O Voo do corpo feminino na poesia de Maria Teresa Horta

Elisa Moraes Garcia, Joice Fagundes Martins

RESUMO: A escritora e jornalista Maria Teresa Horta é considerada como um importante expoente da Literatura Portuguesa Contemporânea. Com uma vasta obra que abrange contos, romances e poemas, sua produção não só se estende por um período de mais de meio século como também dialoga com séculos de tradição literária. Fazendo da mulher, do feminino, o principal objeto de sua produção, Horta constrói uma literatura que dá visibilidade e voz a esse sujeito, opondo-se às instituições patriarcais, desconstruindo os estereótipos femininos da sociedade ocidental, questionando não só a tradição cultural como a literária. Em sua poesia, são muitos tipos femininos que ela personifica, é o que ocorre em Os Anjos (1983), obra através da qual Maria Teresa Horta dá voz ao corpo feminino, através do anjo mulher. O presente trabalho tem como objetivo identificar e analisar as imagens referentes ao mito de Lilith, na referida obra, a partir da expressão da sexualidade e da liberdade femininas presentes no poema “Anjos Mulheres”. Para tal, serão utilizados os estudos do imaginário e do mito, tomando os trabalhos de Mircea Eliade como base fundamental, a fim de analisar as imagens e os símbolos femininos presentes na obra de Horta como representativos do feminino lilithiano.

PALAVRAS-CHAVE: Anjo mulher; Voo; Sexualidade; Liberdade; Lilith.

 

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

“Voar é o gesto da mulher”[1]
(Helene Cixous)

Maria Teresa Horta, poetisa nascida no ano de 1937, em Lisboa, declaradamente feminista, dedica parte importante de sua vida à luta das mulheres. A partir do fim dos anos sessenta, sua escrita vem de forma clara a ser cada vez mais “a voz feminista”, “a palavra da mulher”. Pertenceu ao movimento literário “Poesia 61”, é coautora, com Maria Velho da Costa e Isabel Barreno, do livro Novas Cartas Portuguesas e dona de uma vasta obra que abrange poesia, romance e conto. Tendo como formação o jornalismo, dirigiu durante quatro anos o suplemento “Literatura & Arte” do jornal A Capital, sendo, até meados de 1974, crítica literária do semanário O Expresso e, até perto de 1976, crítica literária da revista Flama. Já em 1975 dirige a “Página da Mulher”, do jornal O Diário e foi também chefe da revista Mulheres, na qual exerceu ainda a função de crítica literária e de cinema.

Os Anjos, obra poética publicada por Horta em 1983, contém poemas que abordam a androgenia dos anjos. É um voo de sensações e gozo em torno das palavras do corpo. A obra é dividida em seis longos poemas: “Anjos – I”, “Anjos do Apocalipse – II”, “Anjos do Amor – III”, “Anjos do Corpo – IV”, “Anjos da Memória – V” e “Anjos Mulheres – VI”, do qual fazem parte os versos analisados no presente trabalho.

Dos poemas de Os Anjos emerge um universo sensorial feminino, que instiga questionamentos acerca da liberdade da mulher, ligada à sua sexualidade. Horta estimula o bater das asas do corpo, desenhando uma atmosfera de transgressão feminina através de imagens que fazem referência ao mito de Lilith.

LILITH COMO ANJO MULHER NA POESIA DE TERESA HORTA

Teresa Horta, na poesia de Os Anjos, constrói imagens, que remetem ao corpo e ao prazer, à sensação e ao desejo femininos, desmistificando o prazer da mulher e deixando exalar pelas palavras a lascívia feminina permeada por imagens que remetem ao mito de Lilith. Em Aspectos do Mito, Mircea Eliade, menciona que:

[…] o mito conta uma história sagrada, relata um acontecimento que teve lugar no tempo primordial, o tempo fabuloso dos “começos”. Noutros termos, o mito conta como, graças aos feitos dos Seres Sobrenaturais, uma realidade total, o Cosmo, quer apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narração de uma “criação”: descreve-se como uma coisa foi produzida, como começou a existir. (ELIADE, 1989, p. 12-13)

Nesse sentido, o mito lilithiano trata da criação do ser feminino. Lilith foi criada para ser a esposa de Adão, porém, na versão sacerdotal do Gênesis, ela não aparece claramente, como é possível resgatar na seguinte passagem: “Jeová Deus construiu com a costela que havia tirado do homem formando uma mulher, e a conduziu ao homem. Então, o homem disse: — Desta vez é osso dos meus ossos e carne da minha carne!” (Gênesis II, 22-23). A fala de Adão sugere que houve outra mulher anterior à Eva, a qual era independente dele. Segundo Roberto Sicuteri:

O mito de Lilith pertence à grande tradição dos testemunhos orais que estão reunidos nos textos da sabedoria rabínica, definida na versão jeovístiva, que se coloca lado a lado, precedendo-a de alguns séculos, da versão bíblica dos sacerdotes. Sabemos que tais versões do Gênesis – e particularmente o mito do nascimento da mulher – são ricas de contradições e enigmas que se anulam. Nós deduzimos que a lenda de Lilith, primeira companheira de Adão, foi perdida ou removida durante a época de transposição da versão jeovística para aquela sacerdotal […]. (SICUTERI, 1998, p. 23)

Eva foi criada para servir a Adão, uma vez que Lilith recusou-se à submissão, representada pela metáfora da posição no ato sexual, ao parceiro, reivindicando igualdade entre eles, essa primeira mulher foi excluída do Éden e transformada em um demônio feminino perigoso, ligado a práticas agressivas e grotescas de sexo (SICUTERI, 1998). Atualmente, é possível perceber, ainda, que a sexualidade da mulher é revestida pela ideia de pecado e demonização, que pode ser justificada e resgatada através do arquétipo lilithiano.

A análise dos versos de Horta, apresentada a seguir, traz Lilith como símbolo de transgressão de tabus e proibições, de rompimento das regras que calam as mulheres e seus desejos, por tal viés, faz-se a aproximação entre Lilith e Lúcifer, o Anjo Caído, aquele que transgrediu as leis divinas, tornando-se o opositor de Deus. Lilith, na presente leitura, é a versão feminina do Anjo Caído, ou seja, o Anjo Mulher.

Para Barbara Black Koltuv (2001, p. 148), Lilith “[…] é a parte do Eu feminino com a qual a mulher moderna precisa voltar a se relacionar, a fim de não ser mais uma proscrita espiritual.”. A parte lilithiana de cada mulher é aquela que movimenta suas asas, as asas da liberdade feminina, que a faz voar,

As mulheres voam
como os anjos:
Com as suas asas feitas
de cristal de rocha da memória (HORTA, 1983, p. 103)

Na poesia de Horta, identificamos essas mulheres que possuem suas lembranças de experiências e histórias que as constituem como indivíduos que lutam por seu espaço e liberdade. Suas vivências, muitas vezes silenciadas e oprimidas, contam uma trajetória de dor e superação comum ao universo feminino. Suas asas são constituídas pelo cristal de rocha de suas vivências. Segundo Chevalier e Gheerbrant (2009, p. 303), o cristal é o embrião da rocha, simboliza o plano entre o visível e o invisível e outorga a faculdade de elevar-se ao céu. As mulheres na poesia hortiana voam, subvertendo as leis físicas, metáfora que sugere a subversão de leis sociais, e também nadam:

Disponíveis
para voar

soltas…

Primeiro
lentamente: uma por uma

Depois,
iguais aos pássaros

fundas…

Nadando,
juntas (HORTA, 1983, p. 104)

Na poesia de Horta, as mulheres são representadas, desde o princípio da criação, naturalmente dadas ao voo, à liberdade. Despertam-se uma a uma, para depois juntarem-se em irmandade, alcançando, “iguais aos pássaros”, longos voos, ao mesmo tempo em que descobrem a si mesmas, criam uma identidade coletiva e desfrutam de grandes conquistas. Intensas, “fundas…” e transgressoras como Lilith, subvertem as leis sagradas e dominam tanto o céu, quanto o mar, “Nadando,/juntas”. A água simboliza tanto a vida, pela fertilidade, quanto a morte, pelos perigos dos revoltosos mares. É, também, elemento que incita à sensualidade e à sedução, sendo o seu movimento associado ao movimento do corpo feminino.

Secreta: a rasar o
chão

a rasar a fenda
da lua

no menstruo:
por entre a fenda das pernas (HORTA, 1983, p. 105)

A mulher, através de sua intensa, obscura, “secreta” ligação com a lua, exerce sua mais pura feminilidade: o vermelho que verte “por entre a fenda das pernas”. Existe uma relação entre Lilith e as fases da lua, as quais, desde a antiguidade greco-romana, são associadas ao ciclo menstrual da mulher. Também conhecida como Lua Negra, Lilith é projetada como sendo o lado obscuro do satélite (SICUTERI, 1998). Para alguns povos camponeses alemães período menstrual é chamado “mound”, e o mesmo, na França, denomina-se “le moment de la luna”.  Lua, céu, asas, tais imagens que remetem à liberdade também são as utilizadas por Horta para construir o feminino lilithiano em sua poesia:

Como as asas
lhe cresciam nas coxas

diziam dela :
que era um anjo do mar (HORTA, 1983, p. 108)

As asas a crescerem nas coxas representam o voo do corpo da mulher, a liberdade sexual, coxas que se abrem livremente, corpo que se movimenta livremente no ato sexual, em busca de sua satisfação. A imagem feminina que na poesia hortiana é relacionada a “anjo do mar” remete à figura de Lilith, que após recusar-se a se submeter a Adão, permanecendo por baixo dele no ato sexual, é excluída do paraíso, cria asas e parte em direção ao Mar Vermelho, tornando-se lasciva e demoníaca, como menciona Sicuteri acerca de outros escritos: “Em certos textos Lilith vem descrita como o principal demônio feminino, com um corpo prorrompente de sensualidade, olhos fulgurantes, braços brancos cobiçantes; a boca e a vagina vibram como ventosas macias emanando vertiginosos perfumes de prazer.” (SICUTERI, 1998, p. 47). Mas essa imagem feminina relacionada ao mal é desconstruída por Horta, o feminino hortiano é livre, sem amarras, ao contrário da imagem demoníaca da mulher na tradição judaico-cristã:

Não somos violência
mas o voo

quando nadamos
de costas pelo vento

até à foz do tempo
no oceano denso
da nossa própria voz (HORTA, 1983, p.110)

Nesses versos, há a representação da mulher que se recusa a aceitar que através dela o mal vem ao mundo, “Não somos violência”, o que as mulheres buscam é a sua liberdade: “somos o voo”. Ao nadar de costas pelo vento, há um extremo esforço para alcançar tal liberdade, pois imposições foram feitas, o papel da mulher de servir ao homem foi definido nos primórdios, na criação divina, e a punição foi executada: Lilith foi excluída do paraíso, assim como a mulher que agiu motivada por sua libido, foi excluída do convívio em sociedade. É nesse início que voltam as mulheres em busca de suas próprias vozes. Mulheres que preferem o prazer e a luta por seu espaço, mesmo que, para isso, precisem recusar o seu lugar no paraíso, ao lado de algum Adão.

Nesse espaço de voo feminino na poesia hortianancontra-se também a representação pelas fadas:

Fadas?

filigrana cintilante
de asas volteando
no fundo da vagina (HORTA, 1983, p.114)

As fadas, diferente de como permeiam o imaginário infantil, originam-se de divindades infernais da mitologia grega, que se apoderam dos homens nos campos de batalha e parecem determinar a boa ou a má sorte e o destino do herói, enfeitiçando-o com sua sexualidade. Há, nessa figura original da fada, a representação lilithiana da sexualidade feminina: algo perigoso e sobrenatural, capaz de corromper os homens. Segundo Chevalier e Gheerbrant (2009, p. 416), as fadas são associadas ao ritmo quaternário, com três tempos marcados e uma pausa, o que representa o ritmo lunar, sendo a quarta fase invisível, o que significa a escuridão, a morte. A morte é o tempo de ruptura, em que se dissipa a epifania antropomorfa da fada e se manifesta a epifania animal da vida eterna, a serpente, a qual mais uma vez remete à Lilith.

A liberdade feminina, nesta obra hortiana, é ainda a poesia, as asas relacionam-se ao fazer poético, a transgressão que se consegue através da palavra, no encadeamento das imagens expressas por “voo”, “poesia”, “sexo”, “sonho”. É pelo fazer poético, neste “voar”, que a voz feminina se expressa:

Temos um pacto
com aquilo que
voa

– as aves
da poesia

– os anjos
do sexo

– o orgasmo
dos sonhos

Não há nada
que a nossa voz não abra (HORTA, 1983, p.119)

Na poesia de Os Anjos, na mulher, nos anjos ou na fada, as asas são elemento central e se relacionam ao feminino lilithiano pela liberdade sexual feminina, impulsionando o voo da mulher, que também é o voo literário, é a expressão de sua voz, de sua feminilidade, tanto tempo condenada pela simbologia do mal, associada ao feminino. Teresa Horta busca subverter a imagem feminina judaico-cristã, livrando-a das amarras, dando-lhe asas e voz. Lilith já não é mais a condenada à escuridão, mas a voz da liberdade feminina e da mulher nesta obra.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 A androgenia dos anjos, presente na referida obra hortiana, sugere a não diferenciação dos seres em função do sexo, delineando a mulher, através da poesia, tão sexualmente ativa na busca do prazer quanto o homem.  A imagem feminina, relacionada à Lilith, deixa de ser demoníaca e perigosa, passando a ser a completude da mulher que não mais se submete a imposições de comportamento sexual. Lilith representa o bater de asas de um anjo rebelde que ama, goza e relaciona-se consigo, sem medo. A voz erótica feminina presente na poesia de Horta propõe, através do voar, a liberdade feminina como um todo: sexual, social, literária, humana.

A sexualidade é parte integrante da mulher e o direito de vivenciar o prazer do corpo, sem amarras e sem imposições, proporciona liberdade para além do corpo, liberta a alma. A mulher ao se apropriar de si, apropria-se do mundo e marca seu espaço social. Maria Teresa Horta, em Os Anjos e mais especificamente em “Anjos Mulheres”, dá asas às palavras e a cada parte do corpo da mulher, a mulher torna-se um ser sexualmente alado, motivado pela transgressão presente nas imagens que remetem ao mito de Lilith. Ao reencontrar-se com sua metade lilithiana, a mulher torna-se completa e através da liberdade sexual, estará mais perto da igualdade social como um todo. Voar é o ato da mulher:

São raríssimas as
asas
que não partem dos seios

a florir nos
ombros
[…] (HORTA, 1983, p. 76)

REFERÊNCIAS

BÍBLIA ONLINE. Disponível em: <https://www.bibliaonline.com.br>. Acesso em: 28 abr. 2015.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Coordenação Carlos Sussekind; trad. Vera Costa e Silva [et al.]. 24 ed. Rio Janeiro: José Olympio, 2009.

ELIADE, Mircea. Aspectos do mito. Trad. de Manuela Torres; Revisão de Rute Magalhães. Lisboa: Edições 70, 1989.

ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Trad. de Póla Civelli. São Paulo: Perspectiva, 2007.

HORTA, Maria Teresa. Os Anjos. Lisboa: Litexa Portugal, 1983.

KOLTUV, Barbara Black. O livro de Lilith. 4 ed. São Paulo: Cultrix, 2001.

SICUTERI, Roberto. Lilith: a lua negra. Trad. de Norma Telles. 6 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.

Data de envio: 30 de julho de 2015.

[1] Epígrafe que abre o poema “Anjos Mulheres” (HORTA, 1983, p. 101).