Reinventando Sulpícia: uma Voz Feminina no “Corpus Tibullianum”

Vanessa Aparecida de Almeida Gonçalves

RESUMO: Este trabalho tem como objetivo apresentar a poeta romana Sulpícia, que provavelmente fez parte do círculo literário de Messala, junto a outros poetas renomados, como Tibulo e Propércio. Ao apresentarmos as seis elegias da poeta que chegaram até nós, levaremos em conta a relevância de se estudar uma das poucas vozes femininas dentro do âmbito literário romano, refletindo sobre as possíveis transformações que a ótica da mulher pode conduzir nos ambientes social e cultural de uma sociedade de natureza patriarcal.

PALAVRAS-CHAVE: Sulpícia; Corpus Tibullianum; mulheres romanas; elegia erótica romana.

ABSTRACT: This work aims to present the Roman poet Sulpicia, who probably was part of Messala’s literary circle, together with other renowned poets like Tibullus and Propertius. In the presenteation of her six surviving elegies, we will take into account the relevance of studying one of the few female voices within the Roman literary context, reflecting on the possible changes to which the perspective of a woman can lead in the social and cultural environments of a patriarchal society.

KEYWORDS: Sulpícia; Corpus Tibullianum; Roman women; Roman Love elegy.

 

Introdução

Durante a época de Augusto (40 a.C. – 14 d.C.), existiram, em Roma, alguns círculos literários. Em um deles, o de Messala, houve, ao que tudo indica, a participação de uma mulher conhecida pelo nome de Sulpícia. A existência dessa mulher num universo de escrita quase que exclusivamente masculino, como era o caso do romano, além de um dado bastante significativo, pode ser um interessante objeto de estudo. Por ser uma voz feminina em um mundo sob o poderio dos homens, a poesia de Sulpícia torna-se algo único na história da literatura latina, pois é uma das poucas chances – se não a única – de ouvirmos, sem intermediários, a voz de uma mulher romana. O objetivo, neste momento, é apresentar alguns apontamentos sobre os seis poemas da autora que chegaram até nós. Felizmente, quatro dos seis poemas possuem tradução de

Zélia de Almeida Cardoso (2003). Os dois restantes ainda não foram traduzidos para o português brasileiro, por esse motivo, uma das elegias foi traduzida por nós (III.15) e, quanto à outra, recorremos a uma tradução portuguesa (III.16).

Corpus tibullianum

Sabemos muito pouco a respeito de Sulpícia, todas as informações acerca dessa jovem romana estão contidas em suas próprias elegias, que são apenas seis, no Corpus Tibullianum. Esse “cancioneiro” é composto por três ou quatro livros1. Os dois primeiros têm autoria atribuída exclusivamente a Tibulo. De acordo com Toledo:

[…] dos epigramas e do panegírico de Messala, que integram o terceiro e quarto livros, segundo a divisão feita pelo humanismo italiano […], que conteriam, respectivamente, de um lado, as elegias de Lígdamo, de outro o panegírico de Messala, as elegias endereçadas a Sulpícia, os epigramas de Sulpícia e uma elegia e um epigrama supostos de Tibulo. (TOLEDO, 1990, p. 13)

O terceiro e o quarto livros compreenderiam um conjunto de vinte textos (CARDOSO, 2003, p. 71). Como são irregulares nas suas formas estilísticas e textuais,foram concedidos a outros poetas.

Sabemos que Sulpícia teria sido sobrinha de um dos incentivadores da literatura no período áureo de Roma, chamado Messala. Observamos isso nos versos em que a autora dirige-se ao tio: “Podes descansar, Messala, excessivamente cuidadoso a meu respeito: essas viagens, meu tio, muitas vezes não me são oportunas.” 2 (CARDOSO, 2003, p. 125). Além da poeta, também teriam participado desse mesmo círculo nomes como Propércio e Tibulo, cujas elegias são mais conhecidas e reconhecidas. Indício disso é que o próprio “cancioneiro” com as obras de Sulpícia e Tibulo recebe o nome apenas deste último.

Em vista disso, no decorrer dos anos, muitos estudos compreenderam a história das obras de Sulpícia de formas distintas, por tantas vezes desconsiderando a autoria feminina. Por exemplo, para Thomas K. Hubbard, seria relevante nos questionarmos acerca da apropriação da voz feminina por poetas masculinos, entre eles Ovídio, Horácio e Propércio, que conseguiram assumir uma linguagem poética emotiva e psicologicamente semelhante à voz poética feminina (HUBBARD, 2005, p. 181).

Contudo, devemos salientar que essa tentativa de discursar em nome da mulher não equivale aos sentimentos e interesses femininos. Entendemos que somente uma mulher consegue reproduzir um discurso exclusivamente feminino, uma vez que vivemos

em uma sociedade de cunho patriarcal e que, muitas vezes, não consegue admitir a autoria intelectual de uma mulher, baseando-se apenas em falácias misóginas. “Esta obviedade do senso comum foi aceita cinquenta anos atrás, mas a atividade social feminina nas últimas décadas tornam-na, agora, insustentável”. (FUNARI, 1995, p. 184). Por isso, devemos nos desvencilhar dos julgamentos e acreditar que, mesmo na sociedade romana – na qual havia pouquíssima liberdade para as mulheres -, com Sulpícia foi possível reconhecer uma voz dissonante no sistema, do mesmo modo que ocorreu com Safo, na antiguidade arcaica grega.

As mulheres romanas

A possibilidade de trabalhar com o ponto de vista feminino numa época em que as mulheres eram vistas como incapazes de pensar e como pessoas sem consciência dos seus atos é algo surpreendente e importantíssimo para a compreensão de uma perspectiva diferente acerca da sociedade romana, na qual a figura feminina adquire uma posição questionadora acerca do seu papel social, aproveitando-se do ambiente literário. As mulheres, as crianças e também os escravos eram legalmente considerados objetos, ou seja, não eram concebidos como cidadãos e viviam sob a tutela do paterfamilias (chefe da família), que deveria assegurar-lhes proteção e subsistência; eles, em contrapartida, deveriam se submeter ao seu parecer para praticamente todas as questões da vida. Paul Veyne destaca essas relações em A história da vida privada:

A mulher é uma criança grande da qual se deve cuidar por causa do dote e do nobre pai. […] Um marido é senhor tanto da esposa como dos filhos e dos domésticos; o fato de sua mulher ser infiel não constitui um ridículo, e sim uma desgraça, nem maior nem menor do que se sua filha engravidasse ou um de seus escravos faltasse ao dever. Se a esposa o engana, criticam-no por falta de vigilância ou de firmeza e por deixar o adultério florescer na cidade. (VEYNE, 2009, p. 48)

O chefe de família estava em posição hierárquica superior em relação aos demais sujeitos pertencentes ao âmbito familiar, contudo, o patriarca deveria manter a casa e seus dependentes de acordo com a moral e os bons costumes para preservar sua imagem pública, “uma esposa que se comportasse de forma adequada em todas as alturas estaria a aumentar o crédito público do marido.” (MASSEY, 1988, p. 70).

Além disso, as mulheres mantinham-se sob a sombra masculina, apenas eram reconhecidas em razão do seu relacionamento com algum homem, eram mulheres, mães ou filhas de alguma figura varonil. De acordo com Massey:

As imagens das mulheres romanas encontradas na literatura estão reflectidas na arte romana. Esculturas, pinturas murais e mosaicos, todos mostram mulheres nos seus papéis tradicionais – filhas obedientes, esposas fiéis, mães estremosas, amantes, objectos de diversão e servas dos homens. (MASSEY, 1988, p. 104)

Vivendo num cenário absolutamente patriarcal, sobrinha de uma das figuras mais proeminentes da sociedade romana, Sulpícia transgride as barreiras impostas ao seu gênero e instaura uma nova concepção do feminino no meio literário, propiciando uma leitura adversa do tradicional. Além disso, a matéria literária pode nos oferecer uma fonte inesgotável de assuntos, já que um dos objetivos do gênero elegíaco consiste em aproximar o sistema versificatório a uma expressão de sentimentos de ordem subjetiva (FILIPE, 2002, p. 59).

Deve-se salientar que Sulpícia teria passado sua infância em um meio não convencional para as mulheres romanas. Considerando a formação tradicional das jovens

– segundo a qual as mulheres eram incentivadas e preparadas para as relações sociais que sustentavam o prestígio masculino -, na maioria das vezes, eram desencorajadas a manifestarem-se com autonomia:

As mulheres eram encorajadas a desenvolver as suas capacidades e talentos, não para si próprias, mas para os homens. Na verdade, ao longo da história, o seu papel tem sido na maioria das culturas e sociedades o de servir os homens. Isso significa dar à luz, proporcionar prazer sexual, cuidar da família, trabalhar nos campos ou oficinas ou, como no exemplo citado, prover entretenimento. Uma vez que isto tem sido claramente feito por mulheres, os homens têm tido oportunidades para participar em actividades consideradas como marcas do progresso social: política, guerra, negócios, tecnologia, actividades culturais como arte, música, drama, literatura […]. (MASSEY, 1988, p. 94-95)

Por esse motivo, o convívio com Messala, tutor e incentivador das artes romanas, pode ter proporcionado um ambiente que possibilitou inicialmente o contato da jovem com a leitura e a escrita e, posteriormente, a proximidade com a literatura através dos amigos e protegidos de Messala. Ainda acerca do cenário tradicional em que as mulheres romanas viviam, é relevante ressaltar que há muitos estudos modernos de caráter multicultural e pluralista3 que vêm investigando as construções sociais diante dos temas de classes sociais e de gêneros, a fim de questionarem as diversas concepções conservadoras e estereotipadas a respeito dessas temáticas. Segundo Pedro Paulo A. Funari:

Brian Durrans ressalta que “o viés patriarcal inclui preconceitos de classe, étnicos, de idade, entre outros” e, assim, deveríamos tentar estudá-los como “complexos de atributos que se sobrepõem e se entrecruzam”. Da mesma maneira, Margarita Díaz-Andreu lembra que não deveríamos falar de “mulheres romanas” em geral, já que especificidades históricas e geográficas deveriam ser, também, consideradas pelos que se dedicam ao estudo das relações de gênero. (FUNARI, 1995, p. 191)

Em vista disso, é relevante ressaltar que, apesar da grande polêmica que gira em torno da identidade de Sulpícia e da autoria dos poemas do terceiro livro do Corpus Tibullianum, a suposta participação de uma mulher num meio literário romano não só  nos permite compreender um pouco mais acerca da organização social, como também disponibiliza evidências de uma sociedade atravessada por contrastes e não baseada somente nos discursos de senso comum explorados por diversas teorias classicistas.

A Elegia Erótica Romana

Considera-se que o gênero elegíaco tenha iniciado na Grécia, durante o século VII a.C., e que a palavra elegia, em sua origem grega, referia-se aos cantos fúnebres. Ao longo do seu desenvolvimento, as temáticas diversificaram-se, cedendo espaço para muitos outros temas que eram compostos em dísticos elegíacos. A temática amorosa será composta com o uso dos dísticos elegíacos, metro formado por um hexâmetro e um pentâmetro. Contudo, seria ao longo do período alexandrino que o estilo tornar-se-ia popular por meio dos poetas Calímaco e Fílitas, os grandes incentivadores da elegia romana.

Em Roma, existem muitas controvérsias em torno de quem teria inaugurado o gênero elegíaco somado a uma temática amorosa, uma vez que teria sido o poeta Galo o criador de uma sequência exclusiva de poemas para uma única mulher, contudo, Catulo e os poetae noui (poetas novos) foram os primeiros a provar da fonte estilística de Calímaco:

Calímaco de Cirene, o mais representativo dessa vertente, é o poeta alexandrino por excelência, aquele que mais influiu não só em Catulo e em poetas novos, como também naqueles que as velhas histórias da literatura consideram legatórias apenas do período arcaico e clássico, como Virgílio e Horácio. (NETO, 1996, p. 28)

Todavia, o poeta dedicou-se a outros estilos, como a lírica e o epigrama, motivo pelo qual, para muitos, Catulo não é considerado o precursor do gênero. Além disso, o poeta também deu início à tendência de se eleger uma mulher como objeto frequente de seus poemas em dísticos elegíacos, normalmente exaltando-a. Para Paul Veyne:

Dois ou três decênios antes do começo da nossa era, jovens poetas romanos, Propércio, Tibulo e, na geração seguinte, Ovídio, decidiram-se a cantar na primeira pessoa, com seu verdadeiro nome, episódios amorosos e a relacionar esses diversos episódios a uma só e mesma heroína, designada por um nome mitológico; a imaginação dos leitores povoou-se assim de casais de sonhos: Propércio e sua Cíntia, Tibulo e sua Délia, Ovídio e sua Corina. (VEYNE, 1985, p. 9)

E Sulpícia e seu Cerinto. A poeta se atém ao código elegíaco, elege uma figura amada a fim de demonstrar sua experiência subjetiva em relação ao amor, assim como Tibulo, Propércio e Ovídio, que também utilizaram o espaço poético para manifestarem suas vivências amorosas. Contudo, devemos considerar que todas essas experiências acontecem no espaço poético, ou seja, podem ser apenas criações, não tendo correspondência alguma com a própria vida dos poetas:

A Elegia adapta experiências pessoais a formas e situações típicas. Isso, de acordo com CONTE (1994), e mesmo de acordo com VEYNE (1985), deve nos alertar para os perigos da crítica biográfica. Não devemos, portanto, confundir poeta e amante – devemos, sim, falar sobre um mundo elegíaco, com regras e comportamentos, e que, para alguns, estariam mais bem representados no primeiro livro de Propércio. (LOPES, 2010, p. 35)

A elevação da experiência amorosa, para os elegíacos, não estava relacionada apenas aos prazeres do ócio, tratava-se de um dos compromissos mais significativos da vida, no qual o sujeito poético deveria abandonar todos os seus deveres a fim de vivenciar o sentimento amoroso, pois “o amor era a única experiência que importava, que tornava a existência completa e com significado.” (LOPES, 2010, p. 35).

Portanto, as elegias eróticas romanas possuem não apenas uma estrutura formal, representada pela utilização de dísticos elegíacos, como também convenções de conteúdo, segundo as quais o sujeito poético cria um ambiente favorável à experimentação amorosa.

As elegias sulpicianas

Assim como os outros elegíacos latinos, Sulpícia também emprega a temática amorosa. Em seus versos, percebemos a presença de vários elementos pertencentes ao gênero elegíaco, como o destaque para a figura amada a fim de descrever a sua experiência poética e o amor como a plenitude da vida. Igualmente, eram recorrentes os

temas que versavam sobre a paixão, a celebração de um aniversário, as mensagens destinadas ao amado, a dor da separação ou de uma doença. Todos esses tópicos são recorrentes na obra de Sulpícia e, a partir desse momento, veremos, poema a poema, como a poeta desenvolve todas essas temáticas.

Levando em consideração a temática elegíaca, na qual se destaca o discurso sobre o amor, apontaremos algumas distinções criadas pelo sujeito poético feminino.

A primeira dessas inversões apresenta-se na alteração dos papéis daquele que é amado (Cerinto), e de quem ama (Sulpícia), ou seja, a mulher comporta-se como a personagem ativa da relação amorosa, dentro do ambiente literário. É indispensável rememorar que a sociedade romana mantinha-se dentro do sistema patriarcal, no qual todas as instâncias sociais eram lideradas por homens. Ao nos depararmos com a perspectiva sulpiciana acerca da inversão dos papéis daqueles que participam da composição elegíaca, veremos que a concepção da poeta nos revela um profundo alargamento do pensamento feminino, já que temos a inauguração de um discurso que ultrapassa as barreiras da ficção em direção a uma realidade sociocultural.

Existe uma hipótese interessante a respeito do nome do jovem a quem a autora faz referência. A poeta elege o pseudônimo grego Cerinto para seu amado. Segundo Raquel Teixeira Filipe:

Sob o ponto de vista da botânica, cerinthus, “ceríntea”, é uma planta bastante procurada pelas abelhas para o fabrico do mel. No que toca à etimologia, cerinthus, é tomado diretamente do grego Κήρινθος, designando uma substância que serve de alimento às larvas das abelhas, composta por néctar e pólen. A ligação às abelhas e ao mel é, sem dúvida, significativa, já que tanto o inseto como a substância por ele produzida têm estado desde longa data associados à produção poética. (FILIPE, 2002, p. 61)

Deste modo, Sulpícia adota um vocábulo com intensa relação com a produção poética e evidencia uma postura perspicaz em torno desta, uma vez que Κήρινθος deriva de Κήρός, que significa “cera”, substância utilizada na confecção das tabuinhas 4 , as mesmas que os elegíacos latinos empregaram como meio de comunicação com suas amadas. Observemos a referência que a autora faz às tabuinhas de cera: “[…] Não gostaria de confiar alguma coisa a tabuinhas seladas para que ninguém a lesse antes de meu amado.”5 (CARDOSO, 2003, p. 125). Graças a esta escolha por parte da autora, percebemos seu profundo conhecimento acerca da construção e simbologia poéticas, já que, além de apresentar sua experiência subjetiva junto do jovem, a poeta serve-se da etimologia da palavra cerinthus para nomear seu amado, valendo-se de uma das práticas de comunicação dos elegíacos. Assim, percebemos o quanto a poeta adequa-se ao código elegíaco aproveitando-se de todas as significações pertencentes a este gênero. “O

elemento diferenciador com que todo autor procura suprir uma lacuna e que motiva seu trabalho insinuava-se a partir do antigo patrimônio comum. Num fragmento Calímaco diz nada canto que não esteja documentado.” (NETO, 1990, p. 26). Portanto, ao manter os lugares-comuns da elegia amorosa, a poeta garantiu a eficácia do seu texto literário, uma vez que, na antiguidade, essa capacidade de se adequar ao modelo é que dizia se o poema e o poeta eram eficientes:

Para os antigos gregos e romanos, a ideia de imitação da natureza (Mímeses/imitatio/imitação) como fator determinante para elaboração de certo texto, vinha acompanhada da observação e imitação de textos de mesmo gênero, anteriores àquele que se estava construindo. Não bastava ao autor imitar a natureza, era mister também proceder como outros autores de mesmo gênero já haviam procedido (zêlosis/aemulatio/emulação), utilizando, por exemplo, os mesmos lugares-comuns e os mesmos mecanismos compositivos específicos de cada gênero. (MARTINS, 2009, p. 26)

Além disso, ao considerarmos o caminho histórico-literário romano, veremos que a maior parte dos protagonistas elegíacos são homens. Porém, com a participação de Sulpícia no Corpus Tibullianum, teremos uma diferença fundamental, pois nos encontramos na presença de um sujeito poético feminino, o que confere – a partir deste momento – a possibilidade alcançada pela mulher de falar, mesmo que poeticamente, por ela mesma.

Em relação à abordagem feminina do homem amado, podemos ver que ela se constitui inversamente ao desenvolvimento poético masculino, uma vez que Sulpícia apresenta Cerinto, passivo dos seus amores e submisso dos seus desejos, algo distante da realidade poética e social romana. Além do que, para Filipe (2002, p. 62): “o caso de Sulpícia não reflete mais que a ousadia de uma mulher que como poucas do seu sexo, pretendeu passar da esfera privada para a pública”. Sabemos que uma das raras instituições em que a mulher romana tomava parte era – ainda que relativamente, pois quem continuava a exercer o poder era o chefe de família – o casamento. Em nossos dias, a família e o casamento são considerados instituições de interesse público, contudo, em Roma, eram organizações particulares que só cabiam aos interessados nessas relações. “Em suma, o casamento era um fato privado como entre nós o noivado” (VEYNE, 2009, p. 43). Por esse motivo, nem mesmo nesta instituição as mulheres apresentavam-se no âmbito privado. Então, Sulpícia instaura uma nova concepção de comportamento feminino, ao revelar suas vontades publicamente, através dos seus poemas:

Finalmente o amor chegou e seja eu mais conhecida
Por tê-lo encoberto por pudor do que por tê-lo revelado a alguém. Comovida por meus versos, Citeréia o trouxe
E o depositou em meu regaço.
Vênus cumpriu suas promessas. Se alguém, ao que sabe, Não encontrou alegrias, que fale das minhas.
Não gostaria de confiar alguma coisa a tabuinhas seladas Para que ninguém a lesse antes de meu amado;
Alegro-me de meu erro; aborrece-me fingir por minha reputação.
Que diga que eu fui digna com um homem digno. (CARDOSO, 2003, p. 125)6

Diante desta elegia, percebemos que a jovem poeta não apenas ultrapassa as fronteiras do âmbito privado por meio de versos calorosos destinados a Cerinto, mas também explora elegantemente a matéria de cunho comum (o amor) das elegias, transformando o ambiente elegíaco num meio de comunicação para os questionamentos acerca do lugar da mulher na sociedade romana: “Finalmente o amor chegou e seja eu mais conhecida/por tê-lo encoberto por pudor do que por tê-lo revelado a alguém.” 7 (CARDOSO, 2003, p. 125).

Ainda que Sulpícia transgrida alguns paradigmas sociais através da sua matéria poética, em um dos versos acima, “Alegro-me de meu erro; aborrece-me fingir por minha reputação” 8 (CARDOSO, 2003, p. 125), a poeta claramente exprime sua insatisfação com sua própria conduta, uma vez que ainda se faria necessário preservar sua imagem pública para a sociedade. Porém, mais uma vez, faz uso de um meio público para manifestar os anseios de uma mulher apaixonada, além de questionar o sistema patriarcal, no qual a moral e os bons costumes deveriam ser respeitados. Na elegia III.18, é possível reconhecer a angústia da poeta em ter que manter as aparências, negando seus desejos e sentimentos:

Que eu não seja para ti, minha luz, a ardente paixão Que parecia ter sido há poucos dias
Se, jovem tola, cometi alguma falta,
Da qual reconheço que me arrependo mais
Do que de te haver deixado só, ontem à noite,
Por desejar dissimular meu próprio ardor.9 (CARDOSO, 2003, p. 127)

Na elegia III.14, a autora refere-se a uma viagem indesejada ao campo com Messala e, novamente, queixa-se de ter que zelar por sua reputação ao ter que partir rumo ao ambiente campestre, adequado às moças. São motivos, ainda, de sua insatisfação, os cuidados excessivos por parte do tio, situação que a jovem desaprova. Além do mais, a autora apresenta claramente, em seus versos a contrariedade em tomar suas decisões de acordo com as do tio. Dessa maneira, compreendemos que, ao

discordar do papel submisso que lhe é atribuído, acentua seu intuito poético de destacar as figuras femininas como seres individuais capazes de exercer suas próprias vontades:

Chega o indesejado aniversário, que deve ser passado tristemente
No campo maçante e sem Cerinto.
O que é mais agradável que a cidade? São as casas de campo convenientes às moças? E o gélido rio da região de Aércio?
Podes descansar, Messala, excessivamente cuidadoso a meu respeito:
Essas viagens, meu tio, muitas vezes não me são oportunas.
Levada para longe, deixo aqui meu coração e meus sentimentos
Por minha vontade, embora não permitas que eu a tenha.10 (CARDOSO, 2003, p. 125)

Ainda com a temática de celebração, tal como a elegia anterior, o poema III.15 dedica-se à comemoração apaixonada da poeta que não mais irá viajar e passará seu aniversário em Roma, na companhia do seu amado:

Sabes que a viagem foi adiada por causa do triste desejo de uma moça?
Já é permitido estar no teu aniversário em Roma.
Que seja celebrado por todos nós este aniversário
Que agora vem para ti sem que fosse esperado.11 (III.15, Tradução minha)

Levando em conta o tom de comemoração do sujeito poético nesta elegia, constatamos distinções entre as elegias III.14 e III.15. Na primeira, prevalece a lamentação acerca da viagem e da sua própria conduta, na segunda, a poeta festeja sua conquista de permanecer em Roma, já que poderá celebrar as calendas ao lado de Cerinto. Portanto, ao explorarmos a construção poética de Sulpícia nesses poemas, percebemos que não se trata, apenas, de uma conquista literária, mas também da celebração social, uma vez que a vontade da mulher (poeta) supera a do homem (tio): “Sabes que a viagem (foi) adiada por causa do triste desejo de uma moça?”12 (III.15, Tradução minha)

Contudo, não apenas de alegrias são constituídas as elegias amorosas. Sulpícia, em sua elegia III.16, censura o jovem amado ao saber de seus flertes com uma cortesã:

Agradeço-te porque agora permites-te andar muito tranqüilo
Em relação a mim, não vá eu desastrada, cair subitamente.
Olhar pela toga e o couro carregado com o cesto de lã
Requer maior atenção da tua parte do que Sulpícia, a filha de Sérvio.
Inquietam-se comigo aquelas cujo maior motivo de sofrimento
É que não me entregue a um qualquer leito conjugado.13 (CASTRO; VIANA, 2009, p. 109)

A jovem romana transporta para os versos acima sua insatisfação com o comportamento de Cerinto, ou seja, de um homem. Temos um elemento importantíssimo neste poema. Ao reprovar a conduta do jovem, Sulpícia revela-se insubmissa ao seu amado, novamente confirmando a inversão dos parâmetros tradicionais da sociedade. Segundo Massey:

Existia em Roma, como na Grécia, a mesma dualidade na moral sexual, pois eram os homens que impunham os padrões morais. Os elementos do sexo masculino oriundos das classes sociais mais abastadas podiam visitar prostitutas, ter casos amorosos fora do casamento, e a sua vida sexual era geralmente plena e variada. Das mulheres, por outro lado, exigia-se a fidelidade aos maridos. Aquelas que tinham relações sexuais extramatrimoniais eram consideradas imorais, quer por homens, quer por mulheres. (MASSEY, 1988, p. 77)

A partir disso, percebemos o quanto apoeta transgrediu as normas sociais, uma vez que, novamente, não se sujeitou ao comportamento indesejado do amado.

Por fim, temos a elegia III.17, que alude a uma enfermidade do sujeito poético:

Tens, acaso, Cerinto, compaixão de tua amada
Já que a febre castiga meus membros fatigados?
Eu não desejaria vencer a doença triste
Se não acreditasse que tu também o queres.
De que me adianta vencer a doença se podes suportar
Com indiferença o mal que atormenta.14 (CARDOSO, 2003, p. 127)

Nesta elegia, a poeta sente-se angustiada com a suposta indiferença de Cerinto e pede ao amado compaixão – dado o estado em que se apresenta -, uma vez que, para ela, o desejo de recuperação deve ser mútuo. Ambos devem vencer a doença, já que no sistema elegíaco “os poetas são unânimes em afirmar que a preservação da vida da jovem é a preservação de duas vidas: a da puella e a do amante […]” (FILIPE, 2002, p. 75). Com isso, mais uma vez, fica evidente a preocupação da poeta em adequar seus poemas de acordo com a estrutura e a temática elegíaca.

Considerações finais

A partir da leitura das elegias de Sulpícia, tentamos demonstrar que a poeta lança mão de inúmeras táticas estilísticas e discursivas, focalizando na experiência subjetiva da mulher aquilo que diz respeito ao amor. A autora também expressou, inúmeras vezes, através de seus versos, o descontentamento do sujeito poético com as restrições ao comportamento da mulher dentro da sociedade romana. Analisamos alguns aspectos que reforçaram a ruptura com a tradição literária romana, talvez em razão de ser a primeira vez – e talvez a única -, em que podemos ouvir a voz de uma mulher romana no meio literário. Ao transgredir com os versos femininos de cunho erótico, a poeta se apropria dos padrões elegíacos a fim de destacar sua genuína expressão poética.

Muitos estudos passados desqualificaram Sulpícia como autora, com base na possível inadequação dos seus poemas ao código elegíaco. Entretanto, durante nosso trabalho, foi possível perceber que, ao mesmo tempo em que a poeta se conforma ao modelo, demonstrando conhecer as regras do jogo literário, ela o transgride, pois impõe sua presença feminina num universo literário dominado pelos homens.

Referências

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CASTRO, Inês de Ornellas; VIANA, Maria Mafalda de Oliveira. Poemas de Amor: Antologia Poética Latina (I a.C. – III). Seleção e tradução anotada Inês de Ornellas Castro e Maria Mafalda de Oliveira Viana. Lisboa: Relógio D’Água, 2009.

FILIPE, Raquel Teixeira. As elegias de Sulpícia: uma voz feminina num mundo de homens. Portugal: Universidade de Aveiro, v.4, p. 57-78, 2002.

FUNARI, Pedro Paulo A. Romanas por elas mesmas: as mulheres romanas e sua situação nos estudos clássicos. São Paulo: UNICAMP, 1995. v. 5. p. 179-200.

HUBBARD, Thomas K. The invention de Sulpicia. The classical Journal, Austin, University of Texas, v. 100, p. 177-194, Dec. 2004.

LOPES, Cecilia Gonçalves. Confluência genérica na Elegia Erótica de Ovídio ou a Elegia Erótica em elevação. 2010. 153 f. Dissertação (Mestrado em Letras clássicas) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.

MARTINS, Paulo. Literatura Latina. Curitiba: IESDE BRASIL S.A., 2009.

MASSEY, Michael. As mulheres na Grécia e Roma antigas. Tradução de Maria Cândida Cadavez. Lisboa: Publicações Europa-América, 1988.

NETO, João Angelo Oliva. Introdução. In: CATULO. O livro de Catulo. Introdução, tradução e notas de João Angelo Oliva Neto. São Paulo: Edusp, 1996.

NOVAK, Maria da Glória (org.). Poesia lírica latina. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

POZO, Juan Luis Arcaz. TIBULO: Elegías. Introduccíon, traduccíon y notas de Juan Luis Arcaz. Madrid: Alianza, 1994.

PRADO, João Batista Toledo. Elegias de Tibulo. Introdução, tradução e notas. 1990. 316 p. Dissertação (Mestrado em Letras clássicas)- Faculdade de Filosofia. Universidade de São Paulo, São Paulo.

VEYNE, P. A. Elegia Erótica Romana. São Paulo: Brasiliense, 1985.

VEYNE, P. A. História da vida privada, 1: do Império Romano ao ano mil. Trad. Hildegard Feist; consultoria editorial Jonatas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

 

1 “Segundo a divisão feita pelo humanismo italiano no décimo quinto século”. (PRADO, 1990, p. 13)

2 No original: “Iam, nimium Messalla mei studiose, quiescas;/ non tempestiuae saepe, propinque, uiae”. (CARDOSO, 2003, p. 125).

3 Cf. FUNARI, 1995, p. 181.

4 “Os elegíacos latinos mencionam por diversas vezes nas suas obras esses pequenos pedaços de madeira, revestidos a cera, onde escreviam as mensagens que, geralmente por meio de uma escrava, eram levadas às amadas […]”. (FILIPE, 2002, p. 66)

5 No original: “Non ego signatis quicquam mandare tabellis,/ ne legat id Nemo quam meus ante, uelim”. (CARDOSO, 2003, p. 125).

6 No original: “Tandem uenit amor, qualem texisse pudori /quam nudasse alicui sit mihi fama magis./ Exorata meis illum Cytherea Camenis/ attulit in nostrum deposuitque sinum./ Exsoluit promissa Venus: mea gaudia narret,/ dicetur si quis non habuisse sua./ Non ego signatis quicquam mandare tabellis,/ ne legat id nemo quam meus ante, uelim, /sed peccasse iuuat, uultus componere famae/ taedet: cum digno digna fuisse ferar”. (CARDOSO, 2003, p. 125).

7 No original: “Tandem uenit amor, qualem texisse pudori/ quam nudasse alicui sit mihi fama magis”. (CARDOSO, 2003, p.125).

8 No original: “sed peccasse iuuat, uultus componere famae/ taedet:cum digno digna fuisse ferar”. (CARDOSO, 2003, p.125).

9 No original: “Ne tibi sim, mea lux, aeque iam feruida cura/ ac uideor paucos ante fuisse dies,/ si quicquam tota commisi stulta iuuenta/ cuius me fatear paenituisse magis,/ hesterna quam te solum quod nocte reliqui,/ ardorem cupiens dissimulare meum”. (CARDOSO, 2003, p. 127)

10 No original: “Inusius natalis adest, qui rure molesto /et sine Cerintho tristis agendus erit./ Dulcius urbe quid est? An uilla sit apta puellae/ atque Arretino frigidus amnis agro?/ Iam, nimium Messalla mei studiose, quiescas;/ non tempestiuae saepe, propinque, uiae./ Hic animum sensusque meos abducta relinquo /arbitrio, quamuis non sinis esse, meo”. (CARDOSO, 2003, p. 125)

11 No original: “Scis iter animo sublatum triste puellae?/ Natali Romae iam licet esse tuo./ Omnibus ille dies nobis natalis agatur,/ qui nec opinanti nunc tibi forte uenit”. (POZO, 1994, p. 106).

12 No original: “Scis iter ex animo sublantum triste puellae?”. (POZO, 1994, p. 106).

13 No original: “Gratum est, securus multum quod iam tibi de me/ permittis, subito ne male inepta cadam./ Sit tibi cura togae potior pressumque quasillo/ scortum quam Serui filia Sulpicia: /solliciti sunt pro nubis, quibus illa dolori est/ ne cedam ignoto maxima causa toro”. (CASTRO, 2009, p. 109).

14 No original: “Estne tibi, Cerinthe, tuae pia cura puellae, /quod mea nunc uexat corpora fessa calor?/ A ego non aliter tristes euincere morbos/ optarim, quam te si quoque uelle putem./ At mihi quid prosit morbos euincere, si tu nostra potes lento pectore ferre mala?”. (CARDOSO, 2003, p. 127).

 

Data de envio: 1º de agosto de 2014