O dialogismo polifônico nos contos machadianos: “Cantiga de Esponsais” e “Um Apólogo”

Angelina Diniz Pereira

RESUMO: Considerando a teoria dialógico-polifônica de Mikhail Bakhtin, a estética de criação e expressão machadiana e o contexto extraverbal do período de produção, neste estudo será analisado o cruzamento entre as vozes do discurso presentes nos contos “Cantiga de Esponsais” e “Um Apólogo”, investigando o diálogo interno dentro de cada narrativa, o teor subjetivo das obras e a construção dialógica. Como principal conclusão, entendeu-se que a narrativa machadiana não se limita a apenas refletir sobre uma temática univocal, mas reflete o meio extra artístico em sua estética de forma crítica e abrangente.

PALAVRAS-CHAVE: dialogismo; narrador; cantiga dos esponsais; um apólogo.

ABSTRACT: Considering Mikhail Bakhtin’s dialogic-polyphonic theory, Machado de Assis’ creation and expression aesthetics, and the extra-verbal context of the production period, this study will analyze the intersection between the voices of the discourse present in the tales “Cantiga de Esponsais” and “An Apologist ”, investigating the internal dialogue within each narrative and the subjective content of the works, including the dialogue with each other, and will also discuss how this may reflect the dialogic construction. As a main conclusion, it was understood that the Machado’s narrative is not limited to just reflecting a univocal theme, but reflects the extra artistic means in its aesthetics in a critical and comprehensive way.

KEYWORDS: dialogismo; narrador; cantiga dos esponsais; um apólogo.

 

Caracterizando a história “Cantiga dos Esponsais”

A narrativa de Cantiga dos Esponsais é feita sob o ponto de vista de um narrador onisciente, que reporta-se ao leitor dando-lhe coordenadas para que entenda que não é o único leitor da história. Cria-se uma experiência inusitada em que o leitor presencia a leitura de um segundo interlocutor, “a leitora que está em 1813” (ASSIS, 1974, p. 39), a qual conhece todos os traços temporais da narrativa, desde a localização geográfica da Igreja, que compõe um dos ambientes do conto, até os costumes e a cultura da época.

É a partir deste ponto de vista, de uma leitora do sexo feminino do século XIX, cujo único entretenimento eram as missas cantadas, que o leitor deve decodificar e interpretar a história que se segue.

É interessante frisar que, no recorte histórico dado pelo narrador, o Rio de Janeiro dos anos 1813, a cidade já hospedava a Família Real Portuguesa há cinco anos. A influência religiosa, ideológica, política, cultural e econômica que esta visita proporcionou ao Brasil é inegável. Além de trazer o reforço físico da influência da Igreja Católica, a Coroa portuguesa também refinou a produção de música sacra no país, principalmente por meio da relação entre D. João e o músico José Maurício, citado na narrativa machadiana. É a partir da comparação com este personagem que o narrador começa a apresentar o protagonista do conto, Mestre Romão.

Ao reportar-se ao leitor, em: “Quem não conhecia mestre Romão, com o seu ar circunspecto, olhos no chão, riso triste, e passo demorado?” (ASSIS, 1974, p.39) o narrador da história chama-o para refletir sobre a figura humana do personagem principal. Isso confirma a afirmação de José Luís Jobim, estudioso da obra machadiana, que diz que

o mais relevante é o “sentimento íntimo”, o que vale para o escritor e para seus personagens, pois Machado não acredita em descrições de contextos e ações sem a contrapartida de como os personagens se sentem em relação a ambos. Não se trata, portanto, de uma negação dos aspectos por assim dizer “exteriores” na construção do romance, mas, isto sim, da reivindicação de que haja uma correlação coerente com a interioridade dos personagens que se movem nestes “exteriores”. (JOBIM, 2010, p.13)

Nesse sentido, é plausível que a escrita machadiana traga, como aspecto central, a condição emocional e os conflitos internos do personagem Mestre Romão. 

Nos parágrafos seguintes, os focos narrativos mantêm-se em terceira pessoa, onisciente, com especial foco aos sentimentos do Mestre. O leitor passa a saber que o personagem principal divide a casa com um preto velho, o pai José, e que a esposa que ele um dia tivera já havia falecido.

A dedicação e a admiração que o Mestre cultiva pela música, porém, não foram suficientes para que conseguisse compor um canto esponsalício para a esposa em vida. Chegando ao tema da obra, que também lhe dá o título, o leitor passa a se deparar com uma profunda reflexão do narrador sobre a frustração do Mestre Romão 

Como um pássaro que acaba de ser preso, e forceja por transpor as paredes da gaiola, abaixo, acima, impaciente, aterrado, assim batia a inspiração do nosso músico, encerrada nele sem poder sair, sem achar uma porta, nada. Algumas notas chegaram a ligar-se; ele escreveu-as; obra de uma folha de papel, não mais (ASSIS, 1974, p.41).

Diante da metáfora do pássaro preso que tenta vigorosamente fugir, é possível entender que o que aprisionava o personagem era a busca incessante pela inspiração que, mais adiante, ele veria, não é encontrada quando buscada, mas quando casualmente exercitada. 

  Tal frustração também é explicada quando o narrador explica que o mestre Romão “trazia dentro de si muitas óperas e missas, um mundo de harmonias novas e originais, que não alcançava exprimir e pôr no papel” (ASSIS, 1974, p.40). Neste ponto, entende-se que mesmo tendo inúmeras referências, isto é, uma bagagem de conteúdos que poderia fomentar a criação de novos, a materialização da criação era um sonho distante para mestre Romão.

É importante marcar que 

a sociedade, para Machado, é matéria prima para a abordagem da condição humana. Diante disso, seus contos, como sabemos, voltam-se para os comportamentos e sentimentos das suas personagens, priorizando a representação de suas sensações, do seu mundo interior, diante de um destino incerto (MARCHEZAN, 2015, p. 78).

Colaborando com esta ideia, mais adiante o narrador coloca que o Mestre Romão se encontrava adoecido e sentia que sua saúde estava comprometida. Nesse estado, ele decide retomar a composição da cantiga de esponsais que não conseguira finalizar, anos antes, mas sem sucesso. Ao observar, pela janela, um casal de recém-casados, o músico presencia, com profunda tristeza, o tardio encontro do fragmento que faltava a sua composição. Esse momento marcou o seu último suspiro.

começou a cantarolar à toa, inconscientemente, uma cousa nunca antes cantada nem sabida, na qual coisa um certo trazia após si uma linda frase musical, justamente a que mestre Romão procurara durante anos sem achar nunca (ASSIS, 1974, p.42).

Conforme mencionado, a percepção de que a inspiração fora tão fácil e natural para a moça (expresso nos termos “à toa”, e “inconscientemente”), e tão difícil e perseguida para si, Mestre Romão entrou em um conflito intransponível.

Efetivamente, na circunstância de a recém casada entoar a frase musical que o maestro procurou em vão pela vida fora, ganha corpo um símbolo que pode traduzir-se do seguinte modo: para Machado, o cotidiano trivial reserva dramas intensos, embora anônimos e sem voz; em segundo lugar, a felicidade da nubente corresponde ao encontro do inefável, que somente se comunica por vias indiretas ou obtusas, no caso representadas pelo cantarolar despreocupado (MOISÉS, 2005, p. 283-284).

E é pensando em trazer ao conhecimento do leitor os tais “dramas intensos, embora anônimos e sem voz” que Machado lança com profundidade e verossimilhança o conto “Cantiga dos Esponsais”. 

Um Apólogo: reflexões a partir do meio social

É interessante notar que, de acordo com Bakhtin (1979, p.312), “o homem não tem território interior soberano, ele está todo e sempre na fronteira, ao olhar para dentro de si mesmo ele olha o outro nos olhos ou pelos olhos do outro”, e essa tônica guia ambos os contos machadianos estudados neste artigo. Mestre Romão, em Cantiga dos Esponsais, revela seu conflito interno na relação de busca pela inspiração, e o personagem de Um Apólogo revela um processo reflexivo significativo ao mencionar, no final do conto, uma reflexão sobre seu próprio comportamento: “Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!” (ASSIS, 1994, p. 2).

Neste conto, o narrador em terceira pessoa conta a história fabulosa de uma agulha e de uma linha, discutindo a relação de poder e de relevância entre as duas. O conto inicia-se com o diálogo entre a agulha e a linha, as quais tentam convencer uma à outra de que são mais importantes: a agulha, dizendo que lidera o processo, que a linha apenas a segue; e a linha, defendendo que ela é mais importante, pois prende um pedaço de tecido ao outro e dá “feição aos babados” (ASSIS, 1994, p.1). 

Considerando que “o discurso escrito é de certa maneira parte integrante de uma discussão ideológica em grande escala” (1992, p.123), Bakhtin considera que ele responde a algo, isto é, não surge do nada, mas caracteriza-se como uma resposta, confirmação ou busca por apoio.

Assim, entende-se que o meio social propiciou a Machado de Assis reflexões o suficiente para que compusesse esses dois contos repletos de subjetividade.

A arte, também, é eminentemente social; o meio social extra artístico afetando de fora a arte, encontra resposta direta e intrínseca dentro dela. Não se trata de um elemento estranho afetando o outro, mas de uma formação social, o estético, tal como o jurídico ou o cognitivo, e apenas uma variedade do social (BAKHTIN, s/d, p.2) 

Ao final de Um Apólogo, quando a costura está finalizada e o vestido em que a linha e a agulha foram utilizadas está no corpo da baronesa, o narrador reporta a conclusão do debate.

A linha, para mofar da agulha, perguntou-lhe: — Ora agora, diga-me quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? (ASSIS, 1994, p.2)

Em outras palavras, a linha era mais poderosa do que a agulha por poder ir a bailes e cumprir um papel social. Esta conclusão denota que a sociedade da época reconhecia esse papel como relevante. Apesar de não haver explicitamente um marcador de espaço temporal, a menção a elementos como “baronesa”, “imperador” e “mucamas” dá a impressão que o contexto da obra remonta ao período Imperial no Brasil, que se baseava na divisão da nobreza por títulos. Considerando a importância dada aos títulos nobres e posições influentes, a valorização da linha por ter contato com pessoas importantes do cenário nacional faz total sentido.

Mais importante ainda, esse traço refletido no conto é uma confirmação da teoria bakhtiniana ao considerarmos que nenhum discurso verbal surge do nada, mas sim como resposta a uma discussão social.

É possível dizer que dialogismo é o modo de funcionamento real da linguagem, que se articula sempre entre relações de enunciados. Além desse dialogismo constitutivo, temos o composicional, pelo qual o locutor incorpora vozes de outros de forma expressa (discurso objetivado) ou não (discurso bivocal). É possível ainda um terceiro conceito de dialogismo, no qual a noção de que o sujeito se constitui historicamente e a partir dos outros é determinante para sua própria ação”. (BAKHTIN, 1979, p. 299)

Conclusão

Machado de Assis passou por um processo de educação significativo sob a tutela de padres na cidade do Rio de Janeiro, tendo a disposição o acervo da Biblioteca Nacional. Sua construção sócio-histórica e dialógica influenciada pelo meio social reflete-se nas obras analisadas pelo teor reflexivo e ligado às temáticas sociais. Ao passo que Cantiga dos Esponsais se refere à discussão da busca pela inspiração e pela imaterialidade da arte, Um Apólogo liga-se fortemente à discussão sobre as relações de poder existentes na sociedade do período (e que não deixa de ser atual, também, nos dias de hoje).

O mais importante entre esses dois contos é perceber que a narrativa machadiana não se atém a uma só temática de reflexão, mas reflete o meio extra artístico de forma abrangente. As provocações interpretativas, os variados focos narrativos e as vozes críticas de narradores e personagens se entrelaçam e dão forma ao que Bakhtin define como Dialogismo, que são as relações sociais constituintes do enunciado.

Referências

ASSIS, M. Contos. Série Bom Livro, 3ª ed., São Paulo: Ática, 1974.

ASSIS, M. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1979.

BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992. 

BAKHTIN, M.; VOLOSHINOV, V. N. Discurso na vida e discurso na arte (sobre poética sociológica). S/d.

JOBIM, J. L. MACHADO DE ASSIS: O CRÍTICO COMO ROMANCISTA. In: Machado de Assis em linha. Rio de Janeiro: v. 5, p.75-94, junho 2010.

MARCHEZAN, L. G. Vozes no conto de Machado de Assis sobre um incêndio em Montevidéu. In: Bakhtiniana, Revista de Estudos do Discurso. São Paulo: PUC-SP, v. 10, p. 73-89, ago. 2015. 

MOISÉS, M. A literatura brasileira através dos textos. São Paulo: Cultrix, 2005.