Entre o coletivo e o individual: a poética vanguardista de Vladímir Maiakóvski e a representação do amor e do cotidiano em Sobre Isto

Paola Vitória de Lana Melo de Carvalho

RESUMO: O presente artigo possui como objetivo analisar como Vladímir Maiakóvski reproduz, no poema Sobre Isto (1923), a dualidade entre o coletivo e o individual. Ademais, observar como a pluralidade de ideias, movimentos artísticos, científicos e literários existentes no Pós-Revolução Russa estão presentes na obra. O foco do projeto recai na percepção de como os principais temas do poema — amor e cotidiano — são retratados com base em ideologias vigentes nos anos revolucionários e em como o poeta as reelabora de forma criativa. Maiakóvski possuía seu próprio método poético, que neste trabalho chamaremos de “método Maiakóvski”, e articulava a forma de maneira que ela fosse capaz de refletir o conteúdo pretendido e dasautomatizasse a percepção do leitor. Sendo assim, a recodificação das questões levantadas pelo contexto histórico-cultural em que Sobre Isto foi escrito se dá tanto no conteúdo quanto na forma. 

PALAVRAS-CHAVE: Vladímir Maiakóvski; Sobre Isto; método poético; amor; cotidiano.

ABSTRACT: This article aims to analyze how Vladímir Maiakóvski reproduces, in the poem About That (1923), the duality between the collective and the individual. In addition, observe how the plurality of ideas, artistic, scientific, and literary movements existing in the Post-Russian Revolution are present in the work. The focus of the project is on the perception of how the main themes of the poem – love and everyday life – are portrayed based on ideologies prevailing in the revolutionary years and how the poet reworks them creatively. Maiakóvski had his own poetic method, which in this work we will call the “Maiakóvski method”, and articulated the form so that it truly reflected the intended content and transformed the reader’s perception. Thus, the recoding of the questions raised by the historical-cultural context in which About That was written takes place both in content and form.

KEYWORDS: Vladímir Maiakóvski; About That; poetic method; love; everyday life.

  1. INTRODUÇÃO

Vladímir Maiakóvski, apelidado de o poeta da revolução, compõe, entre 1922 e 1923, o que considera uma das obras mais bem trabalhadas de sua carreira: Sobre Isto. O longo poema lírico é constituído de um prólogo, dois capítulos com subdivisões internas e uma parte final, considerada pela tradutora e pesquisadora Letícia Mei (2018, p.112) como uma espécie de epílogo. Mesmo estruturado como poema e com características inerentes ao gênero, Sobre Isto conta uma história completa com início, meio e fim. Cada divisão e subdivisão apresenta uma narrativa particular que complementa a trama da anterior. Sendo assim, podemos ver na prática o que relata Boris Schnaiderman (SCHNAIDERMAN, 1971, p. 59 apud MIRANDA, 2018, p.66): “Maiakóvski afirmou em diversas ocasiões a necessidade de se anular a diferença rígida entre prosa e verso e, neste sentido, ele prenuncia a noção moderna de texto. ”

Entretanto, Sobre Isto é publicado e mal recebido pela crítica soviética, que o considera avesso à Revolução Russa e sentimental em demasia (MEI, 2018). Com o passar do tempo, uma nova visão sobre a obra é apresentada por diversos estudiosos que se debruçaram sobre a criação do poeta. Passa-se, então, a ressaltar como em uma lírica — na qual clama falar sobre o amor — Maikóvski consegue reunir o pessoal, o coletivo e utilizar sua linguagem poética para questionar o cotidiano pós-revolucionário. Transforma, assim, o seu ao redor em matéria poética, recriando o real de acordo com suas convicções literárias, artísticas, ideológicas e científicas. Todo o poema retrata temas pessoais para o autor, mas, ao mesmo tempo, aborda a esfera coletiva de cada assunto. A obra possui um tom confessional e mostra como o social afetava diretamente o sujeito Vladímir Maiakóvski. 

Para este artigo, partiremos do método empregado pelo poeta, aqui nomeado de “método Maiakóvski”, e das características de movimentos de vanguardas encontradas em Sobre Isto para investigarmos como o autor articula a forma de sua poesia a fim de alocar temáticas densas e significativas ao mesmo tempo em que recompõe a realidade de uma maneira que faz pensar e desautomatiza a percepção do leitor. Deste modo, a obra funciona como um espaço para refletir sobre amor, futuro, cotidiano, morte, sociedade e revolução a partir das ideologias vigentes na época do Pós-Revolução Russa. 

A poética de Maiakóvski possui diversas características marcantes, presentes em diferentes partes de Sobre Isto. Decidimos ressaltar algumas — que constituem o trecho escolhido para análise— pela importância dada a esses procedimentos no artigo Como Fazer Versos?, escrito pelo próprio Vladímir Maiakóvski em 1926. 

  1. A CONEXÃO ENTRE A POÉTICA MAIAKOVSKIANA E OS MOVIMENTOS VIGENTES NOS ANOS REVOLUCIONÁRIOS 

No artigo Vanguardas Russas: a arte revolucionária (2017, p.19), Arlete Cavaliere declara: “Muitos artistas russos surgiram, então, como representantes genuínos da nova era proletária, […] a produzir uma audaciosa simbiose de variadas tendências estéticas e artísticas, vicejantes durante os anos revolucionários.”. Sendo Maiakóvski um dos grandes representantes do cubofuturismo e da vanguarda, seria coerente encontrar traços de diferentes movimentos em suas obras. Ademais, Boris Schnaiderman destaca a relação estreita entre o movimento futurista, do qual Maiakóvski fazia parte, e o formalismo russo

Para Schnaiderman, a relação entre o poeta e o formalismo foi estreita, já que a atuação dos futuristas russos estava encaminhada para a pesquisa de uma linguagem poética vinculada à vida e não petrificada. (SCHNAIDERMAN apud MIRANDA, 2017, p.66). 

Os poetas cubofuturistas diferenciavam-se dos seus precursores, simbolistas, por, ao invés de trabalharem somente com o nível simbólico-imagético, privilegiarem a sonoridade poética e terem como intuito realizar a desconstrução das palavras e a criação de uma nova linguagem, transmental (záum).  A escola formalista forneceu subsídio teórico para a prática poética dos futuristas e acompanhou de perto a criação de uma linguagem poética que desautomatizasse a vida. O conceito de estranhamento— obscurecimento da forma, aumento da dificuldade e prolongamento da duração da percepção — desenvolvido pelo formalista Viktor Chklovski (1917) é parte fundamental da estética futurista. O que há entre os movimentos é uma relação na qual a teoria fortalece a arte e vice-versa. 

Além do formalismo russo, outros dois movimentos bastante importantes para a obra de Maiakóvski são o cubismo e o futurismo. A estética futurista acaba por se tornar quase que a escola oficial do Pós-Revolução Russa, contudo, existiam diferentes vertentes do movimento, sendo Maiakóvski participante do cubofuturismo. Em 1912, ele publica junto a outros artistas o manifesto Bofetada no Gosto do Público, que é descrito por Boris Schnaiderman (2014, p.35) como “de sabor nitidamente marinettiano”. Entretanto, no início de 1914, durante a passagem de Filippo Marinetti pela Rússia, o poeta e outros artistas enviam uma carta ao Jornal Nov negando qualquer conexão com o escritor italiano. 

Todavia, é quase impossível para os cubofuturistas negarem a influência de Marinetti em sua arte. Mesmo possuindo diferenças como a não recusa completa do passado, pois trabalhavam com o folclore do país, e a renovação linguística ter diretrizes próprias, os poetas do movimento russo exaltavam a máquina, o movimento, a cidade e baseavam seus comportamentos e maneira de apresentação na escola marinettiana. Além disso, o próprio Maiakóvski afirma haver, entre os dois movimentos, semelhanças no método de elaboração formal, mas completa divergência ideológica. (MAIAKÓVSKI, 1923 apud SCHNAIDERMAN, 2014, p. 36). 

Apesar de haver uma clara referência ao cubismo no nome da escola cubofuturista, a relação entre ambos nunca foi explicitada pelos manifestos dos poetas do movimento russo, diferentemente do que acontecera com o futurismo. Contudo, mesmo sem declararem os ideais cubistas como pretensão artística, os participantes do movimento russo apropriavam-se dessa estética. Os cubofuturistas possuíam apreço pela sonoridade poética, e a estética da pintura cubista aplicada ao poema trazia a capacidade de um exímio trabalho sonoro. A perspectiva livre em que os objetos são situados na tela de um pintor cubista consegue ser transposta para outro meio artístico, o som (POMORSKA, 2010). A estética cubista também permitia desconstruir a narrativa imagética, assim, nos poemas de Maiakovski, a figura humana se funde ora com os animais, ora com a cidade que a circunda. 

2.1 AS CARACTERÍSTICAS CUBISTAS EM SOBRE ISTO: UMA SIMBIOSE DE TENDÊNCIAS 

Como já mencionado neste trabalho, muitos artistas modernistas russos trabalhavam com uma simbiose de tendências vicejantes nos anos revolucionários. Mas, além da mescla entre movimentos artísticos e literários, havia uma outra tendência, sendo essa científica, que era de grande importância para os participantes do cubofuturismo, em específico, para Maiakóvski: a Teoria da Relatividade, criada por Albert Einstein. 

A vanguarda cubista trabalhava com novos conceitos de espaço, cor, objeto e forma, e o espaço e o tempo são relativos e estão entrelaçados para a Teoria da Relatividade. Em 1913, no manifesto A palavra enquanto tal, Aleksiéi Krutchônikh e Vielimir Khliébnikov, que era uma espécie de mestre para Maiakóvski, desenvolvem um ponto importante da estética cubista; a teoria da relatividade a respeito da palavra, que era análoga ao conceito de objeto na pintura cubista (POMORSKA, 2010). Desse modo, não só o cubismo e a relatividade eram importantes para os cubofuturistas, como um foi aplicado ao outro pelos próprios poetas do movimento. 

Em Sobre Isto, essa relação entre a teoria científica e o movimento de vanguarda é bastante utilizada e mostra-se de grande importância para a construção da obra poética — “ a linguagem fragmentada à moda de um quadro cubista, não explicita completamente a narrativa: são os fragmentos sobrepostos que compõem o sentido.” (MEI, 2015, p.22).  Conquanto haja a história do poeta ursificado percorrendo diferentes cenários, a narrativa do texto não é linear pelo fato de que não há uma cronologia lógica; o passado, o presente e até mesmo o futuro se misturam no canto do poeta — “O tempo é trabalhado de forma complexa em Sobre Isto[…] O poema é uma viagem pelos meandros do tempo, como a “Teoria da Relatividade” de Einstein que tanto fascinava Maiakovski.” (MEI, 2015, p.131). 

No primeiro capítulo, o poeta ursificado chega até a ponte e encontra o homem de sete anos atrás, então, percorre um caminho passando por ambientes familiares até o local de sua execução e, por fim, canta o futuro e sua possível ressurreição. Entretanto, ocorre também a inserção de diferentes cenários que embaralham a cronologia temporal, como, por exemplo, a “passagem” por outro país antes de chegar à casa de seus familiares— “Abandono ao bando da nevasca. / Que terra será esta? / Que país? / Groen- /-amor-is-/- lândia?” (MAIAKÓVSKI, 2018, p.39). O poema tem a sua narrativa baseada em diferentes acontecimentos, mas os saltos temporais de outros procedimentos dificultam o estabelecimento da conexão lógica entre eles. Por conseguinte, há a possibilidade de entender o “embaralhamento” da linha temporal pela representação de mais de uma dimensão ao mesmo tempo.

  1. O MÉTODO MAIAKÓVSKI: A PRÁTICA POÉTICA DO POETA DA REVOLUÇÃO

A linguagem transmental, como um dos principais procedimentos dos cubofuturistas, trazia a ideia da desautomatização da percepção do leitor e também evocava a ideia das transformações sociais. Maiakóvski igualmente acreditava na necessidade da arte funcionar como um desautomatizador, considerava a poesia um ofício, que necessita de tempo e trabalho árduo, pois é necessário encontrar a forma correta e exata que funcione e seja verdadeira para cada encargo social. Sendo assim, o poeta unia o método formal com o método sociológico, e, como resultado, o conteúdo era inseparável da forma. Além disso, acreditava que era necessário o desenvolvimento de um dialeto social para “reproduzir” a luta e o dia a dia das classes (POMORSKA, 2010).

Nos anos revolucionários, não era somente o poeta da revolução que se preocupava em atribuir a sua poesia uma orientação social. Todavia, Maiakóvski possuía características que o diferenciavam dos outros poetas de sua escola e, muitas vezes, criticava como seus colegas falhavam em associar a forma e o encargo social. Considerava que muitos dos versos produzidos em sua época eram falsos e mal feitos. 

deste modo os poetas da URSS receberam o encargo social de escrever versos sobre Iessiênin. Um encargo social excepcional, importante e urgente[…] Na minha opinião, 99% do que se escreveu sobre Iessiênin é simples baboseira ou baboseira perniciosa. Versos miúdos dos amigos de Iessiênin. Vocês sempre poderão identificá-los pelo tratamento dado a Iessiênin, eles sempre o chamam à maneira familiar, “Sierioja”[…] A introdução do familiar “Sierioja” rompe imediatamente o encargo social e o processo de realização. O nome “Sierioja” reduz o tema grande e penoso ao nível de epigrama ou do madrigal[…] Estes versos são obras de quem se desincumbe às pressas do encargo social mal compreendido, em que o objetivo a alcançar não se casa absolutamente com o processo e se assume um estilozinho de folhetim[…] (MAIAKÓVSKI, 1926, p. 213).

É justamente por esse motivo que, neste trabalho, damos um nome próprio ao método de criação poética de Maiakóvski. Além de o poeta defender o trabalho diário de pesquisa e criação de formas poéticas, assegurava que para construir versos bons e verdadeiros era necessário escrever sobre o futuro meses antes, mas não de maneira profética, e sim atual. Ele entendia que era necessário tempo para reavaliar o texto e eliminar os defeitos e os excessos (MAIAKÓVSKI, 1926, p. 217). Outra característica interessante na metodologia maiakovskiana é a ideia de que a distância da matéria poética poderia renovar o olhar e ajudar a realizar uma melhor associação entre forma e conteúdo (MAIAKÓVSKI, 1926).

Segundo Letícia Mei (2015, p.127), o conflito entre o amor e a vida cotidiana, o amor esmagado pelo byt, é o tema central de Sobre Isto. Contudo seja um poema lírico, não transita somente pelo sentimento subjetivo do poeta; a obra acaba por cumprir uma função social de pensar e repensar o amor e o cotidiano nos anos revolucionários. Por conseguinte, a estrutura da obra necessitou de ser trabalhada de maneira que sustentasse não só o encargo social, mas também uma segunda camada de sentimentos e afetos pessoais. Para exemplificar como Maiakóvski trabalha poeticamente duas esferas opostas, podemos analisar um pequeno trecho do encontro do poeta ursificado com o homem de sete anos atrás: 

— Vladímir!
              Pare!
                  Não me deixe!
Então por que não permitiu que me
                                                     atirasse?
Que o coração com força no pilar despedaçasse?
Há sete anos aqui me conservo.
                                                 Observo essas águas,
ao parapeito preso pelas linhas dos versos.
Há sete anos essas águas não tiram os olhos de mim.
Quando, então,
                        quando a libertação chegará enfim?
Quem sabe entrou na dança?
Beija?
      Come?
             Cultiva a pança?
Você,
     no cotidiano mesquinho,
                                  naquela felicidade familiar, (MAIAKÓVSKI, 2018, p. 34)

Nesses versos, Maiakóvski consegue primeiro criar a imagem de um homem (o duplo) isolado e solitário. Depois, constrói a imagem poética de outro homem (o próprio poeta-personagem) inserido em um cotidiano social. Ou seja, há a imagem poética do “poeta” isolado e preocupado com a libertação da sociedade e há a imagem poética do “poeta” inserido em um contexto social, sendo julgado por viver uma felicidade própria e subjetiva. 

Nesse momento, há também a possibilidade de associarmos Sobre Isto à literatura russa clássica, pois mesmo pregando uma nova arte, os cubofutristas estão conectados à tradição literária do país (MEI, 2018). O duplicado de Maiakóvski assemelha-se à sósia criada por Dostoiévski na novela O duplo (1846), que é apresentada por Bakhtin (2013, p.297) como resultado de uma crise dramatizada da autoconsciência de Golyádkin pelo comportamento do “eu para si mesmo”. O duplo maiakovskiano também apresenta um tom de crise da consciência por ter sucumbido ao egoísmo da felicidade individual. 

O “método Maiakóvski” consistia em uma diária pesquisa de palavras e formas poéticas. À vista disso, a poética maiakovskiana é permeada de procedimentos entendidos por ele como capazes de dar ao encargo social uma forma justa e verdadeira e desautomatizar a percepção. Para observarmos alguns dos procedimentos característicos do poeta empregados em Sobre Isto, já que nos interessa perceber a articulação da forma com o conteúdo, analisaremos versos do mesmo trecho citado anteriormente, o encontro entre o poeta ursificado e o homem de sete anos atrás, mas partindo da construção original, em russo.  

Para Maiakóvski, a rima era uma maneira de amarrar os versos, considerava que sem ela os versos esfarelavam-se e sumiam da mente com rapidez. Ademais, afirmava que era essencial criar esquemas incomuns de rimas e declarava realizar procedimentos com palavras e versos importantes a fim de ressaltá-los (MAIAKÓVSKI, 1926, p.223-235). Destacaremos aqui, então, a rima interna presente no original do verso “ Então por que não permitiu que me atirasse? ” (MAIAKÓVSKI, 2018, p. 34), que aborda o suicídio como uma das maneiras de libertação do duplicado preso a ponte. Também, o esquema incomum de rima presente no original dos versos “Há sete anos aqui me conservo. / Observo essas águas” (MAIAKÓVSKI, 2018, p. 34), que ressaltam o tempo de espera para a tão desejada libertação. Ou seja, o poeta emprega esquemas diferenciados para atrair a atenção do leitor, detê-lo desautomatizando a sua percepção e fazê-lo refletir sobre as palavras e os sentidos destacados

Para mais, escolhemos ressaltar a aliteração presente no original do verso “ naquela felicidade familiar” (MAIAKÓVSKI, 2018, p.34, grifo nosso). Para o autor, as aliterações eram um meio de emoldurar palavras importantes, entretanto, defendia a cautela perante esse procedimento, não aprovava repetições gritantes (MAIAKÓVSKI, 1926, p.231). O esquema de aliteração empregado por Maiakóvski faz referência à novela de mesmo título, escrita por Liev Tolstói (1859), que conta a dramática história da transformação do amor em violência. Essa aliteração possui dupla funcionalidade, pois, em primeiro lugar, emoldura palavras dando-lhes o destaque e, em segundo, traz referência à obra tolstoiana. Sendo o conceito de felicidade familiar de grande importância para o trecho do poema em que está presente, cabe o pensamento da dupla função da expressão. 

Assim, o “método Maiakóvski” consistia em trabalhar por meio de diferentes técnicas e procedimentos a forma do poema para que ela reproduzisse o encargo social pretendido e cumprisse, deste modo, o seu papel de transformação social. Além disso, também incluía práticas como afastar-se da matéria poética e escrever sobre o futuro de maneira atual. Em Como Fazer Versos?, o escritor relata ainda outros “costumes incomuns” de sua prática poética, o que corrobora mais ainda para denominarmos o seu método como “método Maiakóvski”.

  1. A PERCEPÇÃO DO COTIDIANO NO PÓS-REVOLUÇÃO E O RETRATO DE SÍMBOLOS BURGUESES NO DIA A DIA 

Em Sobre isto, o cotidiano é representado como um meio que cerca e sufoca o poeta. Em Una generación que malogró a sus poetas (1977, p.22), Roman Jakobson relata que tanto Sobre Isto quanto O homem (1917) são poemas que representam um canto fúnebre sobre a vida cotidiana que impera. A imagem de claustrofobia evocada por Maiakóvski ataca diretamente a mesmice do dia a dia e denuncia como o conforto do cotidiano e das comodidades burguesas fazem com que se esqueçam dos ideais revolucionários, acomodando-se. 

No segundo capítulo de Sobre Isto, o poeta ursificado é acusado pelo seu duplicado, o qual parece ter um papel de crítico, de ter se acomodado com o cotidiano mesquinho e a felicidade familiar:

 […]Você,
                                                        no cotidiano mesquinho,
                                                                                         naquela felicidade familiar,
                            quer se insinuar como um franguinho?!
                            Nem pensar! (MAIAKÓVSKI, 2018, p.34, grifo nosso

Maiakóski declara, em Como Fazer Versos? (1926, p. 234), que se deve sempre pensar na possibilidade de o leitor alterar o ritmo e o sentido dos versos em sua leitura. E, que, portanto, é necessário organizá-los de maneira que isso não aconteça. Então, apresenta a técnica de dividi-los em semilinhas como a solução. Essa técnica é empregada, nos versos anteriores, de maneira que enfatiza a palavra “Você” e faz com que o ritmo dê tempo para que o leitor digira as ideais “no cotidiano mesquinho” e “naquela felicidade familiar” sem as sobrepor. Consequentemente, isso ressalta o tom crítico do duplo para com o autor.

 Também, nos versos: “Tudo/ o que em nós/ está cravado pelo passado da escravidão, / tudo, / exame mesquinho/ estabelecido/ e entranhado no dia a dia” (MAIAKÓVSKI, 2018, p. 75-76), o autor, novamente, para se referir ao cotidiano, o chama de mesquinho. Desta vez, ambas as palavras não estão sintaticamente relacionadas, mas estão próximas espacialmente, e os versos acabam por explicar uma das razões do descontentamento com o dia a dia pós-revolucionário: a não superação completa do passado de escravidão do povo russo.

Um outro modo de o poeta demonstrar a sua decepção com o cotidiano e com o Pós-Revolução Russa é a utilização de símbolos burgueses. A obra é repleta de símbolos e passagens que possuem um teor universal e significante do momento histórico vivido pelo autor. Por exemplo, no prólogo, ele não cita a palavra amor ao explicar sobre o que cantará. Essa ausência é simbólica e caracteriza uma época na qual cantar sobre um sentimento pessoal, não sobre o coletivo, era inaceitável. Ademais, Maiakóvski adjetiva o seu tema ocultado como banal e pessoal: “Neste tema, /pessoal/ e banal, /cantado não uma vez/ mas cinco, […]Este tema chega, / ressoa da cozinha, / gira, /[…] fica de pé por um instante/ e desaba, ” (MAIAKÓVSKI, 2018, p.15-16).

Para mais, o poema tem a noite de Natal como um de seus cenários, e ao vivenciá-la, o poeta-personagem lida diretamente com uma festividade religiosa e familiar, ou seja, simbolicamente burguesa. Dentre a parte do poema em que a noite de Natal é o período de tempo, há ainda mais referências ao esquecimento dos ideais revolucionários. Há a representação do chá, “Trocaram o amor pelo chá? ” (MAIAKÓVSKI, 2018, p. 44), e há o momento em que o autor descreve seus amigos a comemorar o feriado religioso, enquanto até mesmo Karl Marx vivencia o Natal através de sua moldura, “Até Marx, / atrelado à rubra moldura, /arrastava os grilhões da usura. […]/ — Boas festas! / Boas festas! / Boas festas! / Boas festas! / Boas/fes/-tas! ” (MAIAKÓVSKI, 2018, p. 50-51). 

  1. A CONCEPTUALIZAÇÃO E A REPRESENTAÇÃO DO AMOR A PARTIR DO SOCIAL E DO IDEOLÓGICO  

A palavra amor, ausente e subentendida no título do poema, quase não aparece em Sobre Isto. É no primeiro capítulo onde há a prima aparição, como um adjunto adnominal que qualifica o duelo em que o poeta-personagem diz encontrar-se: “Como a se espelhar, / esperavam, / a me mirar, / um mortal duelo de amor. ” (MAIAKÓVSKI, 2018, p. 24, grifo nosso). Ou seja, é usada como um termo acessório, sem conceptualização própria, e é uma referência ao amor burguês, já que se está cantando sobre o relacionamento romântico do personagem.

 Logo em seguida, próximo ao fim do primeiro capítulo, há a primeira vez em que “amor” aparece como um termo essencial (sujeito) e como um substantivo composto, “Enquanto/ do Rio/ Nevá, / lá do fundo, / o amor-salvador/ não chegar até mim, / você também vagará, ” (MAIAKÓVSKI, 2018, p.36, grifo nosso), sendo então, não o amor individual, burguês, mas sim o amor universal. 

Com base nas duas diferentes maneiras de empregar a palavra amor, apresentadas nos primeiros parágrafos deste subtítulo, podemos perceber como Maiakóvski estruturou sua obra para representar uma ideologia do momento sócio-histórico em que vivia:

o privado e o social, a rebelião dos sentidos e do coração. […] Embora na Europa de 1920 e 1930 ainda subsistissem muitas proibições, também já eram populares os preceitos e doutrinas do amor livre[…] dos comunistas, empenhados em ignorar a vida privada e suas paixões; a das antigas proibições da igreja e da burguesia […] (BRETON apud PAZ, 1994, p.125).

Sendo assim, o amor burguês, considerado pela elite artística da época menos elevado do que o amor livre, se transforma em mero acessório que caracteriza outro conceito. Enquanto o amor revolucionário, amor-salvador, aparece como um termo essencial, com caracterização própria. 

Essa dualidade entre o amor burguês (individual e egoísta) e o amor-salvador (coletivo e libertador) faz-se presente em toda a obra. Após o primeiro capítulo, Maiakóvski segue explorando as diferenças entre esses conceitos de amor. Apoiado nas ideias de sua época, primeiro questiona o fato de terem trocado o amor pelas comodidades cotidianas burguesas— “Trocaram o amor pelo chá? / O amor pelo remendo das meias? ” (MAIAKÓVSKI, 2018, p. 44). Depois, questiona se o poeta-personagem não havia traído o amor por condená-lo aos ideais do passado— “os anos vendi à mesmice/ eu mesmo sufocava com tanta sandice. […]eu traí o meu amor? ” (MAIAKÓVSKI, 2018, p. 61, grifo nosso). Além disso, o homem de sete anos atrás, que via o amor-salvador como um de seus caminhos para a libertação, declara que continuará pregado na ponte em uma espera que durará mais duzentos anos, já que não houve nenhum avanço social em relação ao amor universal — “Aqui estou há sete anos, / e ficarei mais duzentos, / […] como redentor do amor terreno, /devo ficar, / e ficarei por todos, / por todos expiarei, / por todos chorarei.” (MAIAKÓVSKI, 2018, p.64)

5.1 O AMOR UNIVERSAL: A COMUNHÃO E A EVOLUÇÃO DA HUMANIDADE

Na parte final do poema, no epílogo, o poeta-personagem canta sobre seus desgostos para com a realidade cotidiana/social que o envolve. Ademais, reflete sobre a sua morte e sobre a sua futura ressurreição. Outrossim, aborda a necessidade de o amor universal ultrapassar o amor burguês para que a humanidade consiga, desse modo, prosperar em comunhão. É nessa parte em que se evidenciam os sentimentos do autor sobre a morte e sua esperança para com o futuro. Maiakóvski acreditava que a teoria da relatividade mudaria a relação humana com o tempo e que ela tornaria possível a ressurreição. Além disso, depositava fé na ideia de que seria possível realizar no futuro o que faltou ao passado (JAKOBOSON 1977). Após a Revolução de 1917, essa ideia de projeção do futuro ganha força e recebe grande espaço nas obras de diferentes poetas, inclusive na poética de Vladímir Maiakóvski (GACHEVA, 2019).

Em “El Caso Maiakovski” (1977, p.38), Jakobson relata que a imagem da imortalidade é sempre invariável na mitologia do poeta, é constantemente associada à terra e à carne e jamais se apresenta como uma ressurreição sem encarnação. A ideia de imortalidade pela ressurreição e do amor criador do pós-humano ganha grande expressão na obra de Maiakóvski. Essas concepções possuem inspiração na filosofia cosmista de Nikolái Fiódorov (1827- 1903) — que percebe como um dever cristão a ressurreição mental e física para, então, metamorfosear a raça humana — e na filosofia religiosa de Vladimir Solóviov (1853- 1900) — que entende o Eros como o poder criador do novo homem, aquele que transcenderia a morte; que aconteceria a partir da união da humanidade, não como indivíduo (GROSSMAN E PAPERNO, 1994). 

O Cosmismo russo via como dever humano continuar a sua própria criação/evolução e projetava o futuro como o local perfeito, exatamente como ocorre na última parte de Sobre Isto. Também entendia que a ultrapassar a família, o casamento e a reprodução era algo essencial para a evolução da humanidade (GROSSMAN E PAPERNO, 1994). 

No fim do epílogo, justamente no subtítulo O amor, esse sentimento é abordado de maneira mais direta. Ele é citado pela última vez como o amor universal, capaz de preencher a imensidão: 

Ressuscita-me […]

Para que o amor não seja escravo
de casamento,
                   luxúria,
                               pão. 

Maldizendo as camas,
                         erguendo-se do estrado,

 para que o amor preencha a imensidão […] 

Para que
        a família
                 seja,
                       após essa era que se encerra,

o pai,
     no mínimo o mundo,
a mãe — no mínimo a terra (MAIAKÓVSKI,2018, p. 82-84). 

Nesses versos, o poeta-personagem expressa sua vontade de ser ressuscitado em uma época em que não mais existe o amor escravo do casamento e em que a “família” é universal. Sendo assim, a última parte do poema é uma súplica que se conecta diretamente ao amor evolutivo de Solóviov e as projeções cosmistas de Fiódorov.  

Em Sobre Isto, a jornada do poeta-personagem é iniciada com uma referência ao amor burguês (individual e egoísta) e finalizada com versos sobre o amor universal (capaz de transformar e unificar a humanidade). Por conseguinte, Maiakóvski leva o leitor a percorrer um caminho do individual até o coletivo. Ao criar uma narrativa que se inicia com sentimentos individuais e egoístas e que termina clamando pelo Eros gerador da comunhão universal, o poeta desautomatiza a percepção do seu leitor e o faz refletir sobre a contínua necessidade de transformação da sociedade. 

  1. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vladímir Maiakóvski estruturou a forma de seu poema para que ele pudesse representar duas perspectivas opostas — coletivo em contraste com o individual— de tantos temas extraordinários: amor, cotidiano, revolução, comunhão universal, morte e futuro. O poeta da revolução possuía seu próprio método poético, aqui referenciado como “método Maiakóvski, e dialogava com a escola formalista, já que entendia a poesia como um ofício capaz de modificar a sociedade ao desautomatizar e obscurecer a forma de uma problemática social. Em Sobre Isto, Maiakóvski ressalta a simbiose cultural existente na Rússia pós-revolução e, por meio da arte, transforma de modo criativo o cotidiano. As angústias pessoais são elevadas ao sofrimento de toda a sociedade em transformação. 

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013. 

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