Poeta à sombra: ultra-romantismo em poesias escolhidas de Fagundes Varella

Carolina Severo Figueiredo

RESUMO: Este trabalho tem como objetivo analisar aspectos da poesia ultra-romântica em Fagundes Varella, a partir dos poemas “Sobre um túmulo” e “Tristeza”, de 1861, e “Eu amo a Noite”, de 1869. Nelas, serão apontados elementos que caracterizem esta vertente da segunda geração do Romantismo, baseada nos referenciais de Antonio Candido (1975), Brito Broca (1979) e Massaud Moisés (1998). A metodologia partirá dos conceitos que abarcam as propostas: O que é o Romantismo; como se estrutura o Ultra-romantismo e porque ele é assim chamado; quem foi o poeta em questão e, finalmente, quais são as características de alguns dos seus poemas que possam fundamentar o pertencimento deles no contexto ultra-romântico. A partir dos estudos, constatou-se um lapso nas pesquisas acerca de Varella comparado a outros poetas de sua época, e o que poderia ser chamado “afastamento” diante de críticas feitas a sua obra poética e vida pessoal. Será, então, proposta uma problematização destas críticas, além de ressaltar a importância da continuidade de pesquisa tanto da vida quanto da obra de Fagundes Varella.

PALAVRAS-CHAVE: Fagundes Varella. Ultra-romantismo. Poesia brasileira.

ABSTRACT: This paper aims to analyze the ultraromantic aspects of Fagundes Varella’s poetry, through the poems “Sobre um túmulo” and “Tristeza”, from 1861, and “Eu amo a Noite, from 1869. In them will be pointed elements that characterize the second generation of Romanticism, based on the references of Antonio Candido (1975), Brito Broca (1979) and Massaud Moisés (1998). The methodology will be based on the proposal’s concepts: What is Romanticism; how does the Ultraromanticism is structured and why is it named like that; who the aforementioned poet was and, finally, which are the peculiarities in some of his poems that fundaments it’s belonging to the ultraromantic context. Through the studies, a lack of Varella’s poetry research was noticed compared to other poets of his time, what could be called an “estrangement” in face of criticisms about his poems and personal life. A proposition of problematization on these criticisms will be made, besides emphasizing the importance of the continuity of research both of the life and the work of Fagundes Varella.

KEYWORDS: Fagundes Varella. Ultraromanticism. Brazilian poetry.

 

Primeiras palavras

Quando se trata de Romantismo no Brasil, sobretudo no nosso tempo, há quem revire os olhos e afaste os livros: espera-se logo um romance açucarado, uma poética excessivamente efêmera, à Vitoriana, que na maioria das vezes não reflete a percepção de mundo que temos na contemporaneidade. O imediatismo que a vida digitalizada trouxe, pode (mas nem sempre) nos afastar das questões mais profundas da emoção ou da reflexão. Entretanto, como bem descreveu Baudelaire em seu ensaio Pintor da vida moderna (1863), há artistas que pintam os costumes de sua época, mais circunstanciais, e outros, “para glória e felicidade da nação”, retratam tudo aquilo que é considerado “eterno”: as emoções, os sonhos, a religiosidade, a individualidade, o subjetivismo anímico.

O Romantismo se enquadra neste último conceito, refletindo uma visceralidade ímpar que a razão só traduz na superfície. Neste cenário, alguns poetas brasileiros, a partir dos anos 40 do século XIX, conseguiram a proeza de aprofundarem-se ainda mais no âmago da consciência e da Alma, inspirados por um movimento literário europeu: o Ultra-romantismo. O vocábulo “ultra”, que pressupõe “além de; através de”, significa nesse contexto tudo o que se pode exagerar no Romantismo. Há então a necessidade de se percorrer um caminho ainda mais intenso no que se refere à subjetividade. Se a poética romântica era como uma fina nuvem matinal e rósea, o ultra-romantismo é a espessa neblina noturna, cheia de mistérios e sombras que vivificam o imaginário poético deste século.

O objetivo deste trabalho é, portanto, adentrar essa névoa etérea e analisar, de maneira mais consistente, poemas escolhidos de um de nossos poetas da segunda fase romântica, Fagundes Varella, a partir da edição de 1892 de suas Obras Completas. São os poemas “Sobre um túmulo” e “Tristeza”, ambos do livro Noturnas (1861), e “Eu amo a Noite”, pertencente aos Cantos do Ermo de da Cidade (1869). Com o propósito de extrair elementos que fundamentem o pertencimento destes poemas no contexto literário do Ultra-romantismo através do conceito de Massaud Moisés, que sugere um “ambiente fantástico, ‘negro’, guardando um gosto doentio pelas funerações” (1998, p. 287).

Partindo do referencial teórico Estudo analítico do poema, de Antonio Candido, se buscará fazer uma análise associada à interpretação dos poemas de Varella. A interpretação pura depende de critérios muito pessoais; a análise pura irá prejudicar uma percepção mais “anímica” do poema. Portanto, este estudo visa “a investigação sobre o poema como uma operação feita em duas etapas virtuais: comentário e interpretação, ou comentário analítico e análise interpretativa – intimamente ligados, mas que se podem dissociar” (1996, p. 15). O comentário e a interpretação literária, então, significariam uma tradução do poema a partir do sentido e da mensagem aparentemente passada pelo autor.

Diante disso, o estudo será embasado principalmente nos referenciais teóricos de Antonio Candido (1996, 2002), Alfredo Bosi (1970), Brito Broca (1979), e o anteriormente citado Massaud Moisés (1998). Há uma latente necessidade de se resgatar a pertinência de Varella para a poesia brasileira, não limitada à corrente do Ultra-romantismo. Foi notado um “lapso” de pesquisa acadêmica (em comparação com outros poetas de sua época e estilo similar) que pode ser compreendido por um estigma circundante à obra de Varella, considerado um “poeta menor” por certos críticos literários. Esta questão será aprofundada na terceira seção deste artigo, inspirada pelo texto de Davi de Sousa, Fagundes Varella: um bardo boêmio (2008). Procurar-se-á, portanto, sugerir uma continuidade de pesquisa a partir da obra deste poeta tantas vezes esquecido.

Um convite à névoa…

Quando Alfredo Bosi (1970, p. 91) citando Paul Valéry, comentou que “seria necessário ter perdido todo espírito de rigor para querer definir o Romantismo”, não estava errado. De fato, há tamanha subjetividade nos temas que abraçam essa escola, que tentar encará-la como algo simplório ou “tátil” seria uma falha hedionda. Há pesquisadores que encarem com tamanha visão estrutural a poética desta fase, que podem acabar perdendo um pouco do que há de belo e onírico no lirismo dessa fase literária. Deve-se, portanto, tentar elevar nossa percepção de apenas críticos ou estudiosos para um pouco da despretensão dos “leitores de poesia”, a fim de manter o espírito unido a uma teoria mais sólida e adequada à pesquisa.

Para tratar inicialmente de questões pragmáticas, no contexto histórico do Romantismo, principiado no início do século XIX, o Brasil já aspirava por mudanças políticas e culturais. O efervescente desejo de libertar-se da Metrópole portuguesa definia o recém-adquirido patriotismo e nacionalismo brasileiro, que viria a ser uma das principais características desta fase literária. Os intelectuais da época se viam como brasileiros; entretanto, inexistentes as universidades na colônia, iriam à Europa com o incentivo da Metrópole, e voltariam ao Brasil munidos de intenso ímpeto artístico. A partir deste ponto, já havia considerável produção de literatura, artes plásticas e música na colônia que independiam do controle de Portugal, o que Candido chamaria de “contradição cultural” (CANDIDO, 2002, p. 7-9).

Estes intelectuais que voltavam ao Brasil após uma estada na Europa seriam majoritariamente afetados pela literatura que consumiam: Voltaire, Musset, Byron, Horácio, Boccaccio, Ovídio, Goethe, Dante, Heine, Hugo, Shelley, entre outros (BROCA, 1979, p. 100). Como nossa cultura ainda estava intrinsecamente ligada à europeia, muitos de nossos poetas românticos acabaram por reproduzir grande parte do que viam nos exemplares de suas bibliotecas, tanto em relação aos costumes, quanto à forma e temática literária.

Em consequência disso, gerou-se toda uma mitologia que envolve esta escola em questão, sobretudo ao caráter “sombrio” dos autores europeus anteriormente citados. Silvio Romero, historiador de proximidade temporal com o Romantismo, define o homem romântico como “[…] um tipo pálido e tristonho, exibindo mágoas e desconsolos. Uma moça romântica é uma criaturinha meio fantástica, de olhos langues, descoradas faces, cheia de sonhos e quimeras…” (1888, p. 685). Ou seja, apreende-se, a partir desta visão, que o poeta romântico do século XIX era impreterivelmente triste, soturno, de alma enegrecida, cheio de lamentações. Contrariando este ponto de vista, Brito Broca em seu ensaio Eram tristes os Românticos?, nos diz:

[…] Mas parece que na maioria dos casos se tratava de uma tristeza meio artificial, haurida mais nos livros do que na realidade. Reproduziam os desesperos de Byron, Musset, Espronceda, sem chegar a senti-los verdadeiramente. E daí uma pergunta: Como seriam pessoalmente os românticos? […] Evidentemente, os poetas de hoje já não se parecem mais com a poesia que cultivam. Mas uma das características do Romantismo era a coerência entre a vida e a arte. Isso se verificava com Byron, Musset, Espronceda, e tantos outros. (BROCA, B. 1979, p. 117)

Se partirmos do pressuposto de que há uma linearidade que justifica vida-obra intrinsecamente e de maneira não-dissociável, o chamado “mal-do-século”, que Candido explica brevemente como sendo a “vocação romântica da auto-análise desalentada, à qual não faltava certo prazer no sofrimento” (2002, p. 60), explicaria algumas mortes prematuras e agonias exacerbadas que pareciam transcender a obra poética e estender-se pelos âmbitos mais pessoais dos poetas, sobretudo da segunda fase do Romantismo. Há de se enfatizar que é sempre “perigoso” associar autor ao eu-poético, entretanto, será necessária a abertura destas propostas para que se compreenda de maneira mais eficaz o estudo em questão.

Retomando a definição de Silvio Romero apontada anteriormente, se o poeta romântico já era definido como taciturno e sombrio, há uma corrente que elevará aos extremos estas concepções. O chamado Ultra-romantismo, termo emprestado das escolas portuguesas e que se estendeu até as nossas letras devido ao contato íntimo com a literatura européia, é definido por Massaud Moisés (1998) e Antonio Candido (2002) como uma tendência do excesso das faculdades românticas, mais flagrante entre os poetas jovens; Exorbitara-se todo o purpúreo amor do Romantismo ao enegrecimento da Alma, trazendo a imagem da mulher amada que, antes apenas inalcançável ou divina, agora é pintada como uma figura fantasmagórica, incorpórea, morta ou desprendida do mundo real.

Para Moisés, as características que definem o Ultra-romantismo em Portugal seriam principalmente:

Ambiente fantástico, “negro”, guardando um gosto doentio pelas funerações, tom melodramático, transbordante idealismo amoroso, que rompe o círculo das conveniências ou do verossímil, teatralidade extrema, que não recusa os gestos mais descabelados para traduzir uma visão do mundo pessimista, entrevista a partir da morte e não a partir da vida, sentimentalidade paroxística, expressa por jatos “vulcânicos”, irrealidade e irracionalidade, desprezo das estruturas sociais vigentes e anseio de uma esfera transcendental ou além-túmulo, emprego de versos simples, desataviados, visando à fácil comunicação com o leitor preparado para a contemplação de morbidezas e que nela encontra sumo prazer estético e moral […] (MOISÉS, Massaud. 1998, p. 287)

Transpondo esta linha de pensamento para os poetas brasileiros, Candido define que “esses poetas levaram a melancolia ao desespero e o sentimentalismo ao masoquismo […] o que levou alguns deles à poesia do absurdo e da obscenidade. Do ponto de vista forma, é o momento de avanço da musicalidade no verso […] surgindo a atração pela morte.” (2002, p.47). Este movimento no Brasil foi expressivo especialmente entre 1845 a 1865 (CUNHA, 1971, p. 15), e seus maiores expoente foram Álvares de Azevedo e Casimiro de Abreu, ambos prematuramente mortos, com 20 e 21 anos. Entretanto, oito anos após a expiração de Álvares e no mesmo ano de falecimento de Casimiro, um jovem carioca matriculava-se na Faculdade de Direito de São Paulo – local onde proliferava a produção poética ultra-romântica – e rapidamente empunharia o cetro de maior poeta do país. Este homem era Luís Nicolau Fagundes Varella.

Nascido no Rio de Janeiro em 1841, filho de Dr. Emiliano Fagundes Varella e D. Emília de Andrade, Fagundes Varella viveu no que seria considerado pelo seu principal biógrafo como “um dos mais belos cenários do Brasil” (CAVALHEIRO, apud GUERRA, 1957): uma vasta fazenda colonial, de terras semicultivadas, no município de Rio Claro, situado na antiga província do Rio de Janeiro. Vivendo a vida sem sobressaltos em uma casa-grande tipicamente patriarcal, passando longos dias em contato com uma natureza lânguida e arrastada, Varella possivelmente tiraria desta fase o bucolismo que depois iria ilustrar seus poemas mais sertanejos. Nesta época principiaria seu apreço pela poesia, e ainda na adolescência escreveria seus primeiros versos.

Em 1859, aos 18 anos, muda-se para São Paulo a fim de ingressar na Faculdade de Direito, onde a parte mais expressiva de sua vida se inicia. Entregando-se a uma boemia que ditaria o estigma de sua reputação, Varella é visto mais nos bares e tavernas que nas aulas; é mais conhecido como boêmio e poeta do que como estudante. Na voz de Carrera Guerra, o poeta “inicia-se no álcool, escreve versos e, ainda preparatoriano, publica o primeiro livro de poesias, Noturnas, em novembro de 1861” (GUERRA, 1957, p. 26). Rapidamente ganha notoriedade e popularidade entre os acadêmicos e intelectuais paulistas. Apesar disso, sua dipsomania parece não revelar um fundo de alegria e exasperação juvenis. Ao contrário, um colega da Faculdade diria em 1867 que Varella parecia “ora sozinho e taciturno, […] em desalinho as vestes, mal cuidados os cabelos, estampado no rosto uma dor tamanha que doía ver-se.” (BROCA, 1979, p. 121).

Este testemunho nos faz rememorar a impossibilidade de se dissociar autor e obra poética, ao menos neste caso específico. Para Broca, embora nesta época Varella ainda estivesse amargurado pela morte prematura de seu primeiro filho, “não é de se estranhar que […] um dos românticos mais sinceros cuja vida foi realmente de desatino e sofrimento, se assemelhasse algum tanto a esse tipo descrito pelo colega” (1979, p. 121). Os pressupostos que fazem crer essa legítima angústia do autor e que corroboraria na sua obra poética, são os elementos introdutórios para a análise, portanto, de seus três poemas escolhidos que serão visitados na seção subsequente.

O Romantismo sepulcral

Pode-se notar a presença de aspectos típicos do Ultra-romantismo no contexto em que está inserido Noturnas, de 1861, primeiro livro publicado de Varella. Estas características aparecem menos enfaticamente em Cantos do Ermo e da Cidade, de 1869, porém, em determinados poemas como Visões da Noite e Enojo ainda se encontram particularidades como o pessimismo e o desejo de morte, característicos da fase ultra-romântica. Seria recorrente, a partir do último poema de Noturnas e no livro posterior, Estandarte Auriverde, de 1863, uma quebra nas temáticas sepulcrais e princípio de uma poesia nacionalista e patriótica que seguiria Varella até sua última obra, Anchieta ou O Evangelho nas Selvas, publicado postumamente em 1875.

Contudo, será salientada neste estudo a face “sombria” que aparece seguidamente na obra poética de Varella, podendo ser referida, aos termos de Brito Broca (1979, p. 215), de Romantismo sepulcral. Partindo deste espaço de neblina e evocação noturna, Varella magistralmente pincelou o etéreo de seu imaginário com elementos que trazem com muita particularidade o pertencimento à corrente literária em foco. Ao passo que se sobressaem três temas e, deles, três poemas escolhidos para esta análise.

Fuga ao sepulcro: Sobre um Túmulo, 1861

Poema mais curto de Noturnas, porém talvez um dos mais viscerais, o eu-poético de Sobre um Túmulo descreve a um interlocutor, em terceira pessoa, o destino da morte através do ponto de vista tumular. Como em um esconjuro, o morto a quem fala o eu-poético é amaldiçoado por todos os horrores que o sepulcro pode oferecer. Neste poema, é clara a representação negativa da sepultura, através de termos como “fria”, “enregelada”, ou outras palavras que denotam o que há de mais maléfico na morte, como “maldição”, “castigo”, “fardo”, “podridão”, “olvido”. Como neste trecho:

Teu castigo será gemer debalde
Buscando o sono que o sudário deixa
Ouvir nas trevas de uma noite horrenda
De errantes larvas a funérea queixa!
(VARELLA, 1889, v. 1, p. 211)

É interessante reconhecer características que fazem lembrar elementos poéticos de Augusto dos Anjos (Monólogo de uma sombra, 1912), mais de quarenta anos após a publicação de Noturnas: As larvas que se queixam, que são dotadas de vozes que ecoam nas trevas, e torturam a alma que gemerá sob o sudário da tumba. O salgueiro, que também é associado à melancolia e à noite (CANDIDO, 2002, p.17), aparece em:

Seque o salgueiro que sombreia a lousa
E em seu lugar estendam-se os abrolhos!
(VARELLA, 1889, v. 1, p. 211)

Além destes elementos mórficos, há alguns elementos estruturais que podem ser encontrados no poemeto e valem ser ressaltados. Algumas “imprecisões” de métrica, como chamariam críticos literários da época, se fariam evidentes em muitos versos. Para Fausto Cunha, Varella “não dá importância à simetria em muitos lugares” (1971, p. 118). Machado de Assis, ao introduzir o livro Cantos e fantasias, em 1866, comenta que “a boa versificação é uma condição indispensável à poesia; e não podemos deixar de chamar a atenção do autor para esse ponto”. Percebe-se então uma variação entre decassílabos e hendecassílabos em pouco espaço de verso, como bem aponta Carrera Guerra (1957, p. 141), inclusive no que concerne à alteração de uma palavra plural para o singular, com efeito de se estabelecer a métrica, como vemos grifado no verso:

E quando as turbas levantar-se um dia […]
(VARELLA, 1889, v.1, p. 211, grifo meu)

Contudo, apesar desta assimetria, há de se reconhecer a intensidade com que são ditos os versos; essa “imprecisão” pode ser compreendida também com o que Antonio Candido chamaria de “negação das normas e desabalada vontade de transgredir” dos ultra-românticos (2002, p. 47). Então, voltando ao tema, esta maldição a que o eu-poético profere, deseja o Inferno ao seu interlocutor, quer o esquecimento que só a Morte poderia propiciar. Para ele, seguindo a partir deste último verso,

[…] — Aparência de Deus —, para afundar-se
No seio d’Ele, ardentes de alegria,
Surdo sejas aos ecos da trombeta
Em teu leito de pedra enregelada;
Findem-se os mundos, e a existência tua
Fria se apague na soidão do nada!
(VARELLA, 1889, vol. 1, p. 211, grifo meu)

Soidão, segundo Guerra (1957, p. 141) refere-se à versão arcaica de solidão, utilizada também para adequar-se à forma desejada pelo poeta. Ademais, homem religioso que era, Varella só desejaria ao mais abominável dos homens a surdez ante as trombetas do Paraíso. Esta fuga ao cemitério, sobre um túmulo de quem o eu-poético recrimina, subentende uma perspectiva pessimista da morte. Situação que difere, em alguns termos, da próxima temática.

Louvor à Morte: Tristeza (1861)

Mais longo que o anterior, este poema traz uma narrativa com uma concepção que se assemelha ao de Sobre um Túmulo: a morte como esquecimento, como olvido. Entretanto, há uma divergência considerável no modo como o eu-poético encara este esquecimento.

A voz poética principia os versos introduzindo ao leitor o conteúdo de seu espírito e de sua angústia:

Minh’alma é como o deserto
De dúbia areia coberto,
Batido pelo tufão;
É como a rocha isolada
Pelas espumas banhada,
— Dos mares da solidão.—

Nem uma luz de esperança,
Nem um sopro de bonança
Na fronte sinto passar!
Os invernos me despiram,
E as ilusões que fugiram
Nunca mais hão de voltar!
(VARELLA, 1889, v. 1, p. 120)

Através dessa desesperança e desilusão, justificam-se os versos seguintes. Aqui, aos leitores mais ávidos de Varella, se poderá notar saliente semelhança a um poema posterior, afinal, segundo Guerra (1967, p. 144), “as estrofes 1, 2, 4, 6, 7, 8 e 9 [de Tristeza] foram aproveitadas em Noturno (Cantos Meridionais, II, 44)”, com algumas variantes.

O eu-poético prossegue, portanto, diante de “[…] atrozes ideias/a febre me queima as veias/a vertigem me tortura!…”. A narrativa agora já começa a assemelhar-se mais ao estilo Ultra-romântico:

Oh! Por Deus! Quero dormir,
Deixem-me os braços abrir
Ao sono da sepultura!
(VARELLA, 1889, v. 1, p. 120)

Percebe-se a divergência significativa no uso do “sono”, comparado ao poema analisado anteriormente. Agora, o sono que é suplicado à morte, associa à tumba algo que poderia trazer paz e descanso para a voz poética. A morte, neste poema, é vista como uma “Virgem descorada”, dotada de “meigos abraços”; uma “pobre noiva” que “nos espera tão amorosa”: quase uma ode, ressignificando toda a abordagem vista em Sobre um Túmulo. Para o eu-poético em Tristeza, a vida já se exauriu de tal forma que a morte transforma-se no que há de belo, torna-se expectação de findar a tortura de estar vivo:

Quero morrer: não é crime
O fardo que me comprime
Dos ombros lançar ao chão,
Do pó desprender-me rindo
E as asas brancas abrindo
Lançar-me na amplidão!
(VARELLA, 1889, v. 1, p. 120)

O termo “asas”, aqui, pode ser compreendido como uma metáfora para a libertação. A voz poética quer destituir-se do peso da tristeza em vida, do fardo que o mantém preso à terra. Este poema traz, em vista disso, uma sugestão do que poderia ser a única saída para as agruras do sofrimento, pelo ponto de vista Ultra-romântico. Lembrando que os poetas dessa fase são principalmente caracterizados pelo exagero, pela “irrealidade e irracionalidade, desprezo das estruturas sociais vigentes e anseio de uma esfera transcendental ou além-túmulo” (MOISÉS, 1998, p. 287). Porém, de modo mais “calmo” ou resignado, o próximo poema é o que realmente traz a acepção de maior beleza nesses anseios.

Ode à morbidez: Eu amo a Noite (1869)

Este poema de 69 é mais um dos que foram resgatados por Varella de seus primeiros versos. Ao que alguns poderiam chamar de “auto-plágio”, neste estudo será tratado como revisitação temática, como reformulação e aprimoramento, a partir do poema Tristeza (mesmo nome do analisado anteriormente, porém, de conteúdo divergente), publicado em Vozes d’América (1864), mas assinado como sendo de 1861, mesma época de Noturnas. Na voz de Carrera Guerra (1957, p. 258) sobre Tristeza, “o conteúdo deste poemeto é o mesmo de Eu amo a Noite (Cantos do Ermo e da Cidade, II, 54), com semelhanças, inclusive, de forma.”.

Apesar da necessidade de apontar essas semelhanças, não será aprofundada, aqui, essa revisitação. O que há de mais contundente na escolha de Eu amo a Noite para análise a partir do viés da Poesia sepulcral foi a escolha dos termos utilizados pelo poeta. Enquanto em Sobre um Túmulo o vocábulo “horror” era utilizado denotando negatividade, em Eu amo a Noite o eu-poético associa ao termo “sublime”, transpondo definitivamente beleza na morbidez noturna:

Eu amo a noite quando deixa os montes,
Bela, mas bela de um horror sublime,
E sobre a face dos desertos quedos
Seu régio selo de mistério imprime.
(VARELLA, 1889, v. 2, p. 216)

Para Solange Ribeiro de Oliveira, Fagundes Varella “proclama sua atração pelo cemitério, e pelas horas sombrias da noite […] Essa atração pela noite evoca também a culto romântico à natureza, em seus aspectos sombrios e hostis.” (2011, p. 147). Este bucolismo enevoado trazido pelo eu-poético em Eu amo a Noite é a faceta sombria do que viria a ser uma das características principais da obra de Varella: o sertanejismo. Oliveira associa este comportamento à influência de Byron sobre os românticos brasileiros deste período, relembrando Childe Harold, poema que também evoca amor sobre a noite e suas particularidades mórbidas e lúgubres. (OLIVEIRA, 2011, p. 148). Prossegue a voz poética:

Amo as perpétuas que os sepulcros ornam,
As rosas brancas desbrochando à lua,
Porque na vida não terei mais sonhos,
Porque minh’alma é de esperanças nua.
(VARELLA, 1889, v. 2, p. 217)

Aqui, é retomada a desesperança que apareceu no poema anterior. Não obstante, é associada à ideia de beleza soturna aos aspectos que envolvem este lapso de sonhos, não parecendo que o eu-poético se exaspera ou amargura, pelo contrário: dá a ideia de resignação, e pode-se até interpretar este amor à noite como uma forma de compreender a tristeza que antes o desesperava. É possível enfatizar esta concepção através da escolha de Varella por versos como “amo o silêncio”, “amo o furor do vendaval”, “amo as torrentes”, “amo o pavor das soledades” e “amo a tristeza dos profundos mares”. Ideia esta que fica clara na última estrofe do poema, quando finalmente há a associação de positividade ante ao sofrimento:

Tenho um deserto de amarguras n’alma,
Mas nunca a fronte curvarei por terra!…
Ah! tremo às vezes ao tocar nas chagas,
Nas vivas chagas que meu peito encerra!
(VARELLA, 1889, v. 2, p. 218)

A partir desta latente altivez que a voz poética evoca, é propício traçar uma linearidade entre os três poemas analisados: Sobre um Túmulo traz o horror e a maldição à ideia de Morte; Tristeza, por sua vez, aparece como uma fuga das angústias da vida através da libertação pela morte; e, posteriormente, a resiliência de Eu amo a Noite, quando o eu-poético traduz a convalescença destas agruras, ponderando que apesar das “vivas chagas”, jamais se “curvará por terra”. Paralela à análise se encontra a biografia do autor, que igualmente se recuperou de muitos sofrimentos vividos e, apegado à religião, conseguiu alcançar dignamente o ápice de sua existência. (GUERRA, 1957, p. 108-109).

Poeta à sombra: um epígono por excelência?

Quando publicado, em 1906, o Compêndio de história da Literatura brasileira, Romero e Ribeiro não hesitaram em elogiar os versos varellianos e considerá-lo “o mais extraordinário de nossos poetas”, muito embora, a introdução a este elogio tenha sido uma das críticas mais memoráveis para os pesquisadores da obra poética de Varella. Desconsiderando totalmente a pluralidade da consciência humana e da possibilidade em se caminhar por diversos caminhos poéticos, os autores o consideraram pejorativamente dotado de “natureza múltipla, inconstante, […] um agitado, um detraqué ao jeito de Edgar Poe, menos a epilepsia franca” (ROMERO e RIBEIRO, 1906, p. 223). Ou seja, apesar de sua obra, o contato da vida pessoal de Varella já era ali associado como um infortúnio; esta visão estigmatizada de sua natureza “errante” começaria a ser constantemente apontada; seria uma sombra que o perseguiria, ratificada por quase todos os biógrafos e críticos de sua obra.

Alguns anos depois, José Veríssimo escreveria: “Lido após aqueles poetas [Tobias Barreto e Castro Alves] deixa-nos a impressão do já lido. […] à impressão de falta de originalidade junta-se a da banalidade.” (VERÍSSIMO, 1915, p. 995); Associa-se à esta crítica a de Antonio Candido, que infere, apesar de também elogiar Varella, “a impressão deixada por ele, é, com efeito, de que nada fez senão beber, poetar, vaguear e desvairar-se” (CANDIDO apud SOUSA, 2008, p. 3) e, finalmente, a declaração de Alfredo Bosi ao afirmar que Varella foi “o epígono por excelência, o maior dentre os menores poetas saídos das Arcadas paulistas” (BOSI, 1970, p. 129), cuja obra tem relevo “antes documental que artístico”, graças à “mais desbragada boêmia” que “levou o eterno adolescente à bebida e à existência errante” (idem, p. 130).

Em seu ensaio Dipsomania e Romantismo, Brito Broca (1979, p. 152), aponta que os abusos do álcool e do fumo eram recorrentes (mas não de maneira generalizada) entre os românticos. Os poetas byronianos eram conhecidos também pelos seus hábitos dipsomaníacos, entretanto, é muito mais evidente a crítica da obra de Varella a partir desse vício do que outros como Álvares de Azevedo ou Gonçalves Dias, poetas que igualmente abusavam da bebida (BROCA, 1979, p. 158). A partir dessas acepções, ficam os questionamentos: Se acaso estas particularidades da vida pessoal de Varella não houvessem sido enfatizadas em quase todo o material aqui pesquisado, a percepção de sua obra teria maior relevo? Afinal, muito mais frequentemente encontrada é a crítica à sua vida pessoal, do que à métrica e forma poética, por exemplo, apesar de diferir do que a maioria dos críticos literários preconiza: a dissociação entre a vida e a obra do poeta.

Considerações finais

A partir das pesquisas efetuadas para o estudo em questão, foi constatada certa dificuldade em encontrar material verdadeiramente relevante a respeito de Fagundes Varella. Reitera-se, portanto, a necessidade de haver sequencia ininterrupta da pesquisa de sua obra. Apesar de muitos dos principais críticos literários do país o haverem citado, há muito pouco diante de composição tão vasta; o que é compreensível diante do ofuscamento causado, sobretudo, por Álvares de Azevedo. Afirmação curiosa devido ao que, de fato, escreveu consideravelmente menos comparado à Varella. Muito porém, é inegável que a maestria justifique o local que o autor de Macário ocupe nas letras brasileiras.

Dificilmente um poeta de sua época irá disputar um lugar “à luz” com Álvares de Azevedo. Entretanto, tendo vivido mais tempo e em relação às temáticas, Varella escreveu poemas de tanta relevância quanto. Mais enfaticamente, devido a sua pluralidade, pôde ter se aventurado tanto na névoa noturna quanto no sol irradiante do dia. Graças à imensa capacidade temática que vai do lado soturno, considerado nesta análise, quanto aos longos e belíssimos poemas religiosos e indianistas, sertanejos e bucólicos, Varella transcende sua época e desconcerta os leitores que esperam encontrar um poeta uno. Este escreveu tantas odes à Morte quantas à Vida, tantos martírios quanto cantos suspirosos de alegria, soube viver a sombra e a luz de maneira igualmente intensa, soube pintar a Natureza romântica com beleza magistral e em campos quase dicotômicos: Varella é poeta de maior grandeza, justamente pelo motivo que foi criticado.

Referências

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