Leitura do/no “Famigerado” roseano

Fernanda Scopel Falcão

“ A vida também é para ser lida”
João Guimarães Rosa
(ROSA, 1985, p. 8)

O conto “Famigerado”, escrito por João Guimarães Rosa para o livro Primeiras estórias , é-nos contado por um narrador em primeira pessoa, que por suas atribuições (dar consulta e receita) pode ser um médico. Ele, por ser o morador mais letrado de um tranqüilo arraial, recebe em sua casa a visita de quatro cavaleiros, um deles em busca do significado da palavra “famigerado”.

Flávio Carneiro, em O cristal e a chama , denominou o narrador desse conto de “leitor vidente” (CARNEIRO, 2002, p. 116), pois é por meio do seu olhar que tomamos conhecimento da situação, do espaço e dos personagens. Partiremos, então, dessa denominação cunhada por Carneiro, bem como de suas leituras, para verificarmos a importância do olhar do narrador para a interpretação da estória.

Sem saber qual é o motivo da visita, o narrador tenta elaborar uma resposta por meio de atentas leituras; antes de falar qualquer coisa com os homens, ele os analisa de sua janela. Sua primeira observação é sobre o homem que parecia ser o líder do grupo:

[…] um cavaleiro rente, frente à minha porta, equiparado, exato; e, embolados, de banda, três homens a cavalo. Tudo, num relance, insolitíssimo. Tomei-me nos nervos. O cavaleiro esse — o oh-homem-oh — com cara de nenhum amigo. Sei o que é influência de fisionomia. Saíra e viera, aquele homem, para morrer em guerra. Saudou-me seco, curto pesadamente. Seu cavalo era alto, um alazão; bem arreado, ferrado, suado. E concebi grande dúvida. (ROSA, 1988, p. 13)[1]

O médico percebe que o cavaleiro não é o tipo de pessoa que vem em missão de paz, ao contrário, é um “oh-homem-oh – com cara de nenhum, amigo” (p. 13). Observa, ainda, como este coage os acompanhantes:

Os outros, tristes três, mal me haviam olhado, nem olhassem para nada. Semelhavam a gente receosa, tropa desbaratada, sopitados, constrangidos coagidos, sim. Isso por isso, que o cavaleiro solerte tinha o ar de regê-los: a meio-gesto, desprezivo, intimara-os de pegarem o lugar onde agora se encostavam. Dado que a frente da minha casa reentrava, metros, da linha da rua, e dos dois lados avançava a cerca, formava-se ali um encantoável, espécie de resguardo. Valendo-se do que, o homem obrigara os outros ao ponto donde seriam menos vistos, enquanto barrava-lhes qualquer fuga; sem contar que, unidos assim, os cavalos se apertando, não dispunham de rápida mobilidade. (p. 13)

E conclui que eles não são capangas, mas prisioneiros do outro, que ocupa uma posição estratégica, “tomando ganho da topografia” e fazendo-se resguardado pelos acompanhantes – impedindo, assim, qualquer tentativa de fuga, tanto do visitado quanto dos três cavaleiros.

E pelas atitudes do líder, o narrador acredita que se trata de um bravo jagunço: “Aquele homem, para proceder da forma, só podia ser um brabo sertanejo, jagunço até na escuma do bofe” (p. 13). Pensa, então, que não poderia dar “mostras de temeroso” (p. 13) e que deveria medir bem suas palavras, já que não tinha armas e que “com um pingo no i” (p.14) seria dissolvido. E como “o medo é a extrema ignorância em momento muito agudo” (p.14), procura racionalizar a situação para sair-se bem dela: convida o cavaleiro a desmontar (para também “desmontar” suas estratégias), mas este se nega. A partir daí, o narrador apura ainda mais o olhar, faz suposições e estuda até as entonações e os silêncios do visitante, que está “de armas alimpadas” (p. 14).

O líder se apresenta: é Damázio dos Siqueiras, matador perigosíssimo que, embora serenasse há algum tempo, como que se aposentando, ainda era “o feroz de estórias de léguas” (p. 14). E ele vem em busca do significado da palavra “famigerado”, atribuída à sua pessoa por “um moço do Governo” (p. 15). Por sua vez, mantendo seu atento olhar, o narrador entende que sua arma será a palavra. E aqui temos, numa referência ao olhar metafísico, a associação entre ler/ver e conhecer (como no “Mito da caverna”, de Platão), pois quem vê bem adquire conhecimento, e quem possui conhecimento vê bem. Aproveitando-se de suas observações, por ler muito bem as condições em que se encontra, o narrador capacita-se a escolher a acepção de “famigerado” que melhor se adequará à situação, para que possa livrar-se do perigo.

O vocábulo “famigerado” abarca um duplo sentido antitético: em seu significado original, dicionarizado, denomina aquele que tem fama, “famoso, célebre, notável” (p.16); no significado usual, denota o malfeitor, mal-afamado, perverso, obscuro, temível. É uma espécie de “palavra-pharmakon” (Cf. MACIEL; XAVIER, 2001, p. 42), já que pharmakon é um termo grego que pode significar tanto “remédio” quanto “veneno”.

Apropriando-se desse poder das palavras, devido à sua formação intelectual aliada à sua posição de “leitor vidente”, o narrador soube administrar a ambivalência de “famigerado” e utilizou-se da acepção que serviu como um remédio para a situação; optou pela acepção original, menos utilizada, porém mais adequada ao momento, de forma a afastar o perigo – a morte – de si e do moço do Governo, que na verdade usara o termo em seu sentido usual, depreciativo.

Essa escolha do narrador explicita um princípio preconizado por Guimarães Rosa, nosso maior alquimista verbal: o da necessidade de buscarmos o sentido primitivo, original das palavras. Para que elas pudessem realmente expressar realidades mais profundas, seria preciso depurar o signo lingüístico para se resgatar a energia originária do vocábulo e, só a partir daí, explorar as diversas potencialidades da palavra poética (Cf. ROSA, 1973). A partir disso, e coadunando-nos com Márcio Seligmann-Silva, é possível concluir que “a linguagem original relacionava o homem diretamente com um conhecimento total” (SILVA, 1999, p. 24). E nesse ponto percebemos uma forte ligação com a faculdade de ver(ler)/conhecer do narrador: se fizermos o caminho de volta na afirmação do teórico brasileiro, ratificaremos que a capacidade cognitiva do médico permitiu a seleção semântica oportuna ao contexto.

Mas a dualidade não se restringe a “famigerado”; também é encontrada nas figuras do jagunço e do narrador, o não-letrado e o letrado que representam os embates ignorância versus conhecimento, força física (na violência e nas armas de Damázio) versus força intelectual (no poder das palavras e, principalmente, na capacidade do narrador em manejá-las). Ademais, verificamos que o encontro do jagunço com o médico é tão-somente um processo metonímico de uma situação mais ampla, o embate entre sertão e cidade, que ainda se configura em outros embates: Governo versusjagunçagem; moço do Governo versus o “velho” Damázio; a honra da regra lingüística (Damázio respeita o poder da palavra, visto que anda léguas em busca de seu significado) versus a lógica sertaneja do direito consuetudinário, das regras sem leis escrituradas. Nesse sentido, percebemos que o dualismo – e aqui o entendemos como o que se baseia em dois princípios opostos e coexistentes – é a chave de interpretação da estória.

O próprio nome do jagunço carrega em si uma ambivalência: Damázio vem do grego dámasos , que significa “vencedor”; e Siqueiras, vem de “sequeira”, “lugar seco que não foi regado” (Cf. GUÉRIOS, 1994). Assim, de um lado temos a força e a fama do jagunço e de outro a aridez intelectual, confirmada pelo desconhecimento da palavra que nem conseguia pronunciar (“fasmisgerado… faz-me-gerado… falmisgeraldo… familhas-gerado…”): são duas forças opostas que coexistem sem se negar, como os outros dualismos do conto.

Por esse viés, entendemos que na lógica do sertão – do direito consuetudinário e das regras sem leis escrituradas – o jagunço mescla os dois sentidos da palavra: é o assassino notável, famoso, que é temido e respeitado por sua perversidade. A coexistência desses dois sentidos está presente na leitura do narrador e explicita-se no desfecho do conto. Primeiramente, quando o médico observa Damázio, vê que ele tem “cara de nenhum amigo”, que impõe respeito e autoridade aos homens que o acompanham, que ele não é “um” qualquer, mas “o” feroz de estórias de léguas, matador perigosíssimo conhecido em toda a região: “quem dele não ouvira?” (p. 14).

E no final da estória, a acepção-remédio do vocábulo acaba revelando o outro lado – talvez a “realidade mais profunda” – do jagunço, que respeita o poder das palavras. Ao receber o significado original de “famigerado”, Damázio assume sua positividade e despe a carapuça de sertanejo violento:

Saltando na sela, ele se levantou de molas. Subiu em si, desagravava-se, num desafogaréu. Sorriu-se, outro. Satisfez aqueles três: — “Vocês podem ir, compadres. Vocês escutaram bem a boa descrição…” — e eles prestes se partiram. Só aí se chegou, beirando-me a janela, aceitava um copo d’água. Disse: — “Não há como que as grandezas machas duma pessoa instruída!” […] Mas mais sorriu, apagara-se-lhe a inquietação. Disse: — “A gente tem cada cisma de dúvida boba, dessas desconfianças… Só pra azedar a mandioca…” Agradeceu, quis me apertar a mão. Outra vez, aceitaria de entrar em minha casa. (p. 16-17)

Enfim, essa redenção pelo poder da palavra não é casual, ela reflete a metafísica de Guimarães Rosa, para quem “a impiedade e a desumanidade podem ser reconhecidas na língua” (ROSA, 1973, p. 340). O reacionário da língua acredita na possibilidade de vida ou morte pelo verbo; crê que por meio da própria linguagem, sabendo-se administrá-la em sua porção remédio, o mal é corrigido e o homem é curado; pois

o bem-estar do homem depende do descobrimento do soro contra a varíola e as picadas de cobras, mas também depende de que ele devolva à palavra seu sentido original. Meditando sobre a palavra, ele se descobre a si mesmo. (ROSA, 1973, p. 340)

Referências

CARNEIRO, Flávio Martins. O leitor vidente. In: ______. Entre o cristal e a chama : ensaios sobre o leitor. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2001. p. 116-120.

GUÉRIOS, Rosário Farâni Mansur. Nomes & sobrenomes . 4 ed. São Paulo: AM Edições, 1994.

MACIEL, Luiz Carlos Junqueira; XAVIER, Gilberto. Cadernos de literatura comentada : 2001. Belo Horizonte: Horta Grande, 2000.

ROSA, João Guimarães. Famigerado. In: ______. Primeiras estórias . Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. p. 13-17.

______. Tutaméia . 6. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. Prefácio.

______. João Guimarães Rosa. Diálogo com a América Latina : panorama de uma literatura do futuro. São Paulo: Pedagógica e Universitária, 1973. p. 315-356. Entrevista concedida a Günter W. Lorenz.

SELLIGMAN-SILVA, Márcio. Ler o livro do mundo. Walter Benjamin : romantismo e crítica poética. São Paulo: Iluminuras, 1999.

 

[1] Todas as citações de “Famigerado” são dessa mesma edição (V. Referências). Por isso, a partir daqui, após transcrições do conto, apenas indicaremos o número da página de onde o trecho foi retirado.