Música e literatura em Macunaíma

Tamara Prates Durães

RESUMO: O presente artigo tem por objeto de estudo a rapsódia Macunaíma (1928). Pretendemos realizar uma leitura da obra a partir de uma prévia discussão sobre as idéias de Mário de Andrade em torno do assunto música brasileira presentes em Música do Brasil (1941).

PALAVRAS-CHAVE: Macunaíma. Música e literatura. Mário de Andrade.

RESUMÉ: La presente recherche a pour but d’étude la rapsodie Macunaíma (1928). On prétend faire une lecture de l’oeuvre à partir d’une discussion sur lês idées de Mário de Andrade à propôs sujet musique brésilienne dans Música do Brasil (1941).

MOTS-CLÉ: Macunaíma. Musique et littérature. Mário de Andrade.

 

Um dos principais aspectos destacados na figura de Mário de Andrade é a sua pesquisa sobre formas de manifestações da cultura popular brasileira. José Miguel Wisnik (2004) considera que Macunaíma se inscreve no projeto estético de Mário de “basear a arte brasileira na cultura popular rural” e que, em Ensaio sobre a música brasileira, o intuito de Mário era unir dois mundos separados por “um fosso abissal: o da cultura erudita, transplantada de base européia, e o das culturas populares, espalhadas pelo território brasileiro, que testemunhavam a criação inconsciente do povo através dos séculos de colonização” (2004, p.109, grifo nosso).

Entre os vários aspectos da cultura popular rural, estudados com afinco e muita disciplina por Mário de Andrade, discutiremos, de modo especial, a música brasileira, e sua presença na obra Macunaíma. Para isso, aproximaremos a obra Música do Brasil (1941) de Macunaíma (1928), ambas de Mário de Andrade.

Segundo José Miguel Wisnik (2004), “a obsessão [mariandradiana] pela cultura popular é mais o sinal do dilaceramento e da percepção da sociedade em suas tensões sísmicas não aparentes do que um feliz arranjo de classes e raças que se acomodariam harmonicamente para sanear a falta de “caráter” nacional” (p.137).

Arnold Hauser (1988), em “Camadas educacionais na história de arte: arte folclórica e arte popular”, nos apresenta uma diferenciação entre arte popular e arte folclórica. A primeira deve “ser compreendida como produção artística ou quase-artística por exigência de um público semi-culto, geralmente urbano e tendendo para o comportamento de massa”. A segunda corresponde às “atividades poéticas, musicais e pictóricas dos estratos da população que não são cultos nem urbanizados ou industrializados”, tendo na sua essência “participantes inventivos” que não “reivindicam qualquer autoria pessoal das criações” (p.243).

O que Hauser denomina de “arte folclórica” é por nós entendida como “a cultura popular rural” de que escreve Wisnik (2004) ao realizar uma leitura da obra Macunaíma, e é dentro dessa perspectiva que trataremos agora da música em Macunaíma.

Em O tupi e o alaúde (2003), Gilda de Mello e Souza dá ênfase ao que o próprio Mário ressaltou em Macunaíma, ou seja, tal obra foi constituída por meio da “combinação de uma infinidade de textos preexistentes, elaborados pela tradição oral ou escrita, popular ou erudita, européia ou brasileira”. Para a autora, este processo aparentemente parasitário é, na verdade, muito inventivo, pois ao recortar trechos de obras para reagrupá-los em uma nova ordem, Mário atuou sobre eles e os alterou “em profundidade” (p.10).

Discordando da análise de Haroldo de Campos, Gilda de Mello considera que a composição dessa obra é mais do que a técnica do mosaico ou do exercício da bricolage. Segundo a ensaísta, o processo criador de Macunaíma está baseado na música popular. Além disso, a estudiosa afirma que Macunaíma foi composto em “um momento de grande impregnação teórica, pesquisa sobre a criação popular e busca de uma solução brasileira para a música” (p.12).

Gilda de Mello e Souza afirma que Mário de Andrade, ao compor sua rapsódia, utilizou dois processos relacionados à música ocidental (erudita ou popular). São eles: a “suíte – cujo exemplo popular mais perfeito podia ser encontrado no bailado nordestino do Bumba-meu-Boi” e a “variação, presente no improviso do cantador nordestino, onde assume forma muito peculiar” (p.12).

De acordo com Mário de Andrade, a música popular brasileira sofreu influências diversas e isso acarretou uma dificuldade em diferenciar uma música popular nacional. No décimo segundo capítulo de Pequena história da música (1987), Mário identifica tais influências que repercutiram em nossa música popular: ameríndias, portuguesas, africanas e espanholas. Ele observa que a partir do entrelaçamento destas que “o nosso canto popular tirou sua base técnica tradicional” (p. 171).

Retomando idéias de Mário de Andrade, Gilda de Mello, aponta que, na maioria das vezes, os elementos portugueses, africanos, espanhóis e até brasileiros não conseguiam fundir-se num todo e assim “a música popular assume o aspecto de “um documento curioso da nossa mixórdia étnica”, de um palimpsesto, como são os quitutes de nossa culinária com os seus ingredientes fortes “da pimenta, do tutu, do dendê, da caninha”” (p. 13).

Ainda retomando Mário de Andrade, a autora afirma que, até o século XIX, não podíamos considerar a existência de “melodias brasileiras tradicionais”. Por isso, os compositores que quisessem criar uma obra nacional deveriam se ater às “normas de compor do populário”. Entre essas, o processo rapsódico da suíte e da variação representavam as mais características normas universais de composição.

A suíte é um processo ligado às danças populares e constitui-se num dos mais antigos processos de composição que é comum tanto à música erudita quanto à popular e não pertence exclusivamente a um determinado povo. Para a ensaísta, a suíte é formada pela “união de várias peças de estrutura e caráter distintos, todas de tipo coreográfico, para formar obras complexas e maiores” (p.13).

Segundo a autora, quando Mário de Andrade designa sua obra de rapsódia, ele está indicando que a mesma “retoma o processo compositivo da música popular” (p.15). Porém, importante destacarmos que em Pequena história da música, citada anteriormente, ao especificar as influências ameríndias, espanholas, africanas e portuguesas no canto popular, Mário aponta que o Bumba-meu-Boi, a dança dramática mais nacional que existe no Brasil, tem sua origem primitiva em Portugal.

A ensaísta indica o material utilizado por Mário de Andrade para elaboração de Macunaíma[1] e também ressalta que este apresenta-se na obra da mesma maneira que os elementos mais diversos se misturam na música popular.

Ao observarmos a rapsódia marioandradiana, notaremos a presença de um episódio nuclear (a perda e busca da muiraquitã) que não consegue se impor ao longo da narrativa com “exclusividade” e desta forma, o episódio passa a ser permeado de outros episódios que são secundários. Isso comprova o princípio da suíte em sua “variante popular”. Nas palavras de Gilda de Mello e Souza:

O processo de construir recheando o núcleo básico de temas subsidiários, de unir num todo mais complexo várias peças de forma e caráter distintos, era (…) corrente na música européia do Romantismo e ocorria também no teatro de revista e nas danças dramáticas brasileiras, onde encontrava a expressão mais perfeita no Bumba-meu-Boi (SOUZA, 2003, p.16).

A autora esclarece que não é seu intuito desenvolver uma abordagem sobre a possível analogia estrutural entre Macunaíma e o Bumba-meu-Boi. Juntamente com a autora, queremos ressaltar que não foi apenas coincidência as formas do Bumba-meu-Boi e de Macunaíma serem rapsódicas, e que há a possibilidade de Mário de Andrade ter sugerido, por meio das semelhanças estruturais, a proximidade entre a sua obra e essa dança dramática que, para Mário, constitui-se na melhor maneira de representar a nacionalidade.

Mário, enquanto estudioso da cultura popular, analisava as representações coletivas do Brasil e isto revelou que o boi exercia grande influência de norte a sul do país. O boi era considerado por Mário de Andrade como “o bicho nacional por excelência” e essa figura aparecia em todas as “manifestações musicais do populário”. Nas palavras de Gilda de Mello e Souza, “num país sem unidade e de grande extensão territorial, “de povo desleixado onde o conceito de pátria é quase uma quimera”, o boi – ou a dança que o consagra – funcionava como um poderoso elemento “unanimizador” dos indivíduos, como uma metáfora da nacionalidade” (p.17).

A autora afirma que o boi não é apenas a representação do “animal heráldico do Brasil”, mas representa de forma metaforizada a personalidade do escritor (o seu ethos). A imagem do boi ocorre diversas vezes nas poesias marioandradianas como “sinal do poeta” e “símbolo do Brasil”. Dessa maneira, podemos compreender que Mário fez o mesmo em Macunaíma. Ele procedeu “a uma identificação semelhante, desta vez entre o animal simbólico do Brasil e Macunaíma, o herói simbólico da nacionalidade” (p. 18).

Importante notarmos que no poema Pau – Brasil, de Oswald de Andrade, publicado em 1925 e entre os poemas da série “Roteiro de Minas” estão os poemas “Bumba meu Boi” e “Ressurreição”. Segundo a autora, há uma “intercalação” entre um dos trechos finais de Macunaíma e uma das partes principais do Bumba-meu-Boi. Mário ao interpretar o núcleo dessa dança, morte e ressurreição do boi, indicava “a destruição e o ressurgimento do princípio vital” em Macunaíma. Quando Mário interrompe a narrativa para descrever os detalhes do bailado (surgimento do Bumba-meu-Boi e o desaparecimento do herói da cena em questão), ele usa isso como metáfora para o final da obra. Para Gilda de Mello e Souza, a morte e a ressurreição do boi representaria “a antecipação do sacrifico do herói, que logo mais seria destroçado neste mundo, para em seguida ressurgir no céu em forma de estrela” (p.18).

O outro processo utilizado por Mário de Andrade na constituição de Macunaíma que a ensaísta ressalta é a variação. Essa regra de compor repete uma melodia que foi dada e, a cada repetição, muda-se um ou mais elementos dela. Desta forma, a melodia será sempre reconhecida, apesar de apresentar uma nova fisionomia. Observarmos tal processo quando Mário usa a estrutura da narrativa mítica para explicar alguns fenômenos da modernidade, por exemplo, a origem do jogo de truco, da lagarta rosada do algodão, da broca do café e do futebol.

A variação se exprime por dois movimentos contrários que são o nivelamento estético e desnivelamento estético. No primeiro ocorre a “ascensão de um gênero inferior a um nível superior de arte culta”. No segundo acontece o processo contrário, ou seja, “é o povo que apreende e adota a melodia erudita” (p.20). Em Macunaíma a carta às “senhoras Amazonas” (Capítulo IX – “Carta pras Icamiabas”) poderia, então, ser um nivelamento estético?

A autora ressalta que Mário observou que a migração das formas populares de melodias européias para o nosso país acabou transferindo canções que já estavam fixadas, ao longo dos anos, e definidas quanto às suas “características étnicas”, mas essas formas, quando transportadas para o nosso meio de etnia em formação e repleto de influências diversas, não conseguiram se adaptar e assim fecundar o processo criador. Nas palavras da autora:

Incapaz de se movimentar dentro de um estilo importado, a imaginação popular brasileira adotou uma solução peculiar que, evitando a subserviência da cópia, contornava a dificuldade com esperteza: submeteu os textos originais a uma combinatória muito engenhosa que ora trocava os textos, ora as melodia; ora fracionava os textos e as melodias; ora inventava melodias novas para textos tradicionais – e assim por diante (SOUZA, 2003, p.22).

Segundo a ensaísta, Mário de Andrade encontrou nos repentistas o exemplo mais perfeito de tal processo de composição. O chamado “tirar o canto novo” do cantador nordestino é um mecanismo que usa os dois movimentos da variação: o nivelamento e o desnivelamento.

Para Gilda de Mello e Souza o processo compositivo da rapsódia Macunaíma está diretamente relacionado com os estudos musicais de Mário de Andrade, principalmente em relação “à motivação sobre o sistema de empréstimos entre música erudita e popular” (p. 25). Em Macunaíma, podemos notar que o mecanismo inventivo de composição é aparentemente parasitário e Mário, a partir de uma gama de materiais diversos e já elaborados, os submete a variados “mascaramentos” e “transformações” (p.26).

Da mesma maneira que os cantadores populares incorporam, inconscientemente, todo o aprendizado por eles acumulados durante anos e o usam no momento de tirar o canto, Mário de Andrade teria projetado em Macunaíma toda a sua meditação sobre o país.

Macunaíma representava esse percurso atormentado, feito de muitas dúvidas e poucas certezas; traía a marca das leituras recentes de história, etnografia, psicanálise, psicologia da criação, folclore; atestava, em vários níveis – dos fatos de linguagem aos fatos de cultura e de psicologia social -, a preocupação com a diferença brasileira; mas, sobretudo, desentranhava dos processos de composição do populário um modelo coletivo sobre o qual erigia a sua admirável obra erudita (SOUZA, 2003, p.29).

Em “Rapsódia e resistência”, Telê Porto Ancona Lopez (1996) nos mostra que a figura do narrador (definida apenas no Epílogo) em Macunaíma é fundamental para compreendermos o gênero, a estrutura, o estilo, o protagonista e a trama marioandradiana. Segundo a autora, a história do “herói da nossa gente” só existe porque foi transmitida ao “rapsodo brasileiro, narrador culto e, por artifício, cantador popular” (p.71) e este se encarregou de escrever o que ouvira do papagaio. Podemos tentar entender por “narrador culto”, o narrador com um vasto conhecimento da cultura brasileira que Lopez compara aos antigos “aedos”, no entanto, este:

não se põe no plano de superioridade dos antigos; seu discurso é do tempo presente e o do país; o solene convive com o banal, o erudito com o popular. Não pode fugir ao grotesco. Compraz-se com humor, expressa-se na ‘fala impura’ e não esconde o empenho em cantar: ‘me acocorei em riba destas folhas, catei meus carrapatos, pontiei na violinha e em toque rasgado botei a boca no mundo cantando na fala impura as frases e os casos de Macunaíma, herói de nossa gente’ (LOPEZ, 2003, p.72).

A autora afirma que a rapsódia musical está estruturada “a partir de temas e motivos que significam formas e soluções anteriores, repensadas, reelaboradas”. Assim, Macunaíma estrutura-se por meio da combinação entre o gênero romance (entendido tanto de maneira erudita quanto de maneira folclórica) e “os contos de convergência definidos por Proença”. Neste sentido, pode-se entender que “é canto, poesia, ao mesmo tempo que é prosa, narrativa, sendo capaz, portanto, de absorver, em sua construção, soluções de todo tipo” (p.74).

Silviano Santiago (2002) no ensaio “O caso Érico Veríssimo” da obra Nas malhas da letra analisa a estrutura musical do romance Clarissa (1984) e considera que um dos personagens principais, Amaro, como músico, deseja apreender a realidade e escolhe a rapsódia como gênero de composição musical para esse fim. Amaro vive em uma pensão, com uma gama variada de pessoas e a sua intenção é analisar, de modo artístico, toda essa heterogeneidade que está ao seu redor. Por meio da rapsódia, ele sonha harmonizar “esses elementos tão díspares com que convive no dia-a-dia em mistura de intimidade e solidão” (p.173).

Da mesma maneira que acontece com o personagem Amaro, Mário de Andrade debate-se com um material bem diversificado e difícil de harmonizar para constituir Macunaíma. Por isso, em ambos, a rapsódia é a forma musical que deverá “dar conta do “composito” (o termo é de Flaubert), sem que cada elemento perca a condição essencial de alteridade” (p.175).

O ensaísta retoma algumas idéias de Gilda de Mello e Souza, apresentada por nós anteriormente, para referir-se à originalidade de Macunaíma que está no fato de Mário de Andrade ter conseguido encontrar “uma estrutura musical para combinar o oral e o escrito, o popular e o erudito, o europeu e o indígena” (p.175-6).

O autor afirma que entre Macunaíma e Clarissa existe a diferença entre o som e o documento. Entre o que foi escrito e o que ainda poderá ser escrito, entre o tempo-espaço do cotidiano e o da história. Mário de Andrade buscou as mais variadas fontes e dela retirou os elementos para serem reagrupados em uma nova ordem. Mário demonstrou que “a noção do todo” é “como um produto harmonioso e conseqüente” que procura dar uma forma global ao diverso. Para o ensaísta, o grande paradoxo de Macunaíma está no fato de estar “miniaturizado na própria figura compósita do “herói sem caráter”: um só corpo que índio, branco e negro, simultaneamente” (p.177). A diferença existente entre o rapsodo de Mário de Andrade e Amaro está na maneira de compor a rapsódia. Para o primeiro, importa o erudito, a leitura, “o primado dos olhos tentando apreender pela memória dos documentos” no qual se baseou, para em seguida “trair a memória com a imaginação criadora e assim surpreender a construção do devir histórico brasileiro”. Para Amaro, o que realmente importa é “o ouvido e o instante” (p.178). São as várias vozes dos personagens que fazem com que Amaro busque um princípio de composição para organizar as “vozes ruídos” (p.179).

Santiago considera que o texto de Érico Veríssimo passa por dois movimentos. No primeiro, o narrador deve harmonizar as vozes distintas, deixá-las alcançar o primeiro plano da narrativa e assim deslocar a cara dos personagens para outro lado. Nesse sentido, as vozes do discurso tomam o aspecto de máscaras faciais que recobrirão as características físicas das personagens. Para o narrador de Clarissa, o mais importante é apreender as máscaras que foram acrescentadas aos personagens. Tais máscaras ocorrem enquanto voz: “quando o ouvido musical do narrador surpreende as nuanças da voz de um ou mais personagens” (p.179). No segundo momento do texto ocorre o “desaparecimento da voz do narrador na narrativa” e este “opta por se reduzir ao imenso e sensível ouvido” (p.179). O texto de Érico torna-se uma “melodia-de-vozes” apreendida pelo ouvido do narrador. Neste momento, o narrador observa apenas a heterogeneidade das vozes e não observa os personagens como seres dotados de individualidade. Quando o narrador apreende as vozes sem se preocupar com a sua origem, elas perdem a sua condição de articular frases com sentido e tornam-se apenas anotação “musical”. Para o narrador de Clarissa, não é importante que se identifique quem disse o que, mas que notemos as vozes, combinadas de um modo enérgico, pela “batuta musical do narrador” (p.180).

Destacamos que, em Clarissa, por meio da hierarquização feita pela personagem Fernanda (primeiro vida, depois literatura), Santiago considera que Érico Veríssimo “teria sido incapaz de dar prosseguimento ao projeto macunaímico de Mário de Andrade. Embora fosse leitor ávido de livros, Érico seria incapaz de dar a condição de ficção a textos alheios, a “sistemas fechados de sinais”, como disse Gilda de Mello e Souza” (p.185).

Em Música do Brasil (1941), Mário de Andrade traça uma linha evolutiva da música brasileira e aponta primeiramente que esta, assim como toda a música americana, não teve um desenvolvimento “inconsciente”, ou seja, “livre de preocupações quanto à sua afirmação nacional e social”, como tiveram as escolas musicais européias e as músicas das nações asiáticas. Desta maneira, a música brasileira “teve que forçar a sua marcha para se identificar ao movimento musical do mundo ou se dar significação mais funcional” (p.9).

Mário de Andrade aponta que a música brasileira, do ponto de vista social, teve um desenvolvimento bastante lógico. Segundo Mário, isto se deu primeiramente com “Deus, em seguida o amor, e finalmente a nacionalidade”. O autor de Macunaíma ressalta que esta lógica do desenvolvimento musical não acontece em outras artes (como a poesia, a pintura, a prosa, a escultura e, até mesmo, a arquitetura), pois nestas outras artes “o elemento individualista independe grandemente das condições técnicas e econômicas do meio” (p.9).

O autor modernista explicita que o desenvolvimento geral da música brasileira seguiu de forma obediente à evolução musical, como qualquer outra civilização. Mário afirma que a Colônia nunca conseguiu a liberdade em relação à “religiosidade musical” e que o canto possuía uma grande importância porque era “o elemento mais litúrgico, mais imprescindível, pode-se mesmo dizer que “sine qua non” da entrada em contato místico com o deus desmaterializado” (p.15).

A música dos jesuítas agia de modo social na Colônia como um “elemento de religião, de catequização do índio e, concomitantemente. de geral arregimentação”. A música religiosa funcionava como forma de submeter os índios (as forças contrárias) e confortava os colonos brasileiros. Assim, a música conseguia harmonizar todos os habitantes num grupo que, apesar da “total carência de técnica e riquezas”, não tinha classes e os indivíduos eram “socialmente aplanados entre si” (p.17).

Nessa sociedade sem classes, a música religiosa, mesmo não fazendo mais parte dos rituais católicos, representava, nessa época, “um elemento litúrgico de socialização dos primeiros agrupamentos”. Desta forma a música tornou-se universal, devido ao “emprego do canto católico dos portugueses com os primeiros cantos-de-órgão e o gregoriano” (p.18).

Apesar disso, a música era “nacional” e “brasílica”, uma vez que conseguia absorver as “realidades da terra e dos naturais que a possuíam” (p.18). Para isto, utilizavam-se os cantos, as palavras, as danças e até mesmo os rituais ameríndios. Essa música representou “uma força que subiu de baixo para cima, e viveu das próprias necessidades sociais da Colônia primitiva” (p.19).

Mário afirma que, na segunda metade do primeiro século, quando aconteceu a fixação de certos centros como Olinda e Bahia, a música, embora continuasse religiosa, torna-se “um instrumento de outra forma utilitário”, pois morre “o Deus verdadeiro da primitiva coletividade e não tem propriamente ressurreição” (p.19).

O autor observa que a música religiosa não é mais baixa e sim elevada, ou seja, deixa de lado o caráter popular e transforma-se em uma música mais nobre (erudita). A música religiosa busca a beleza da arte e continua a ser européia porque é católica, mas não é mais nacional, pois não utiliza os elementos da terra.

Mário de Andrade destaca que a partir do Império “o batuque místico já não bastava mais para acalmar o nativo consciente de sua terra e de sua independência” e assim aconteceu o que ele denomina de “Ars Nova”. Assim ocorre o predomínio da música profana em duas formas caracterizadas pela sensualidade: a modinha de salão – “queixa de amores” – e o melodrama – “válvula de escape das paixões”. Mário afirma que a modinha representava a “coisa nacional” apesar de “sua falta de caráter étnico”. Para o estudioso, a modinha enquanto “manifestação de lar, semiculta, nem popular nem erudita” não alcançará “funcionalidade decisória em nossa música” (p.21).

Antônio Carlos Gomes é considerado o principal representante da primeira fase da música brasileira (ele seria a “síntese profana”) denominada de “internacionalismo musical” (p.24). Nessa fase importavam-se as diferentes músicas européias, já que não havia propriamente uma música européia. O crítico faz uma ressalva aos compositores que, na fase internacionalista, substituíram este nome por universalista. Mário diz que é “um verdadeiro primor de ignorância sociológica” afirmar a existência de uma música universal. Para ele, nem mesmo o proletariado urbano – que seria universalista devido a uma fatalidade técnica e econômica – produzia uma música popular que também pudesse ser universal. É importante ressaltar que, páginas atrás, quando baseando-nos em Mário de Andrade, dissemos que a música religiosa da Colônia era “universal”, Mário observava o ponto-de-vista social. Agora, Mário de Andrade salienta que a observação recai sobre a técnica. Ao analisar os elementos que constituem a música pelo viés estético, Mário comenta que inexiste música “universal” (p.24-5).

A música erudita produzida em nossas terras no limiar da República era, segundo Mário de Andrade, “internacionalista em suas formas cultas e inspiração” (p.27), apesar de nomes como os de Francisco Manuel da Silva e Carlos Gomes tentarem fazer o contrário. No Instituto Nacional de Música, onde se agrupavam os compositores nacionais, desenvolvia-se e protegia-se a produção, avançando em relação à técnica de compor. Entretanto, a técnica e a produção não haviam conseguido se desvencilhar da Europa. Sendo assim, os compositores desse período eram internacionalistas.

De acordo com Mário, a música popular, que seria a “mais intransigentemente nacional”, não existia ainda durante o período colonial. Não é possível dizer que existia uma música popular brasileira na Colônia. Não era interessante que esta “expressão voluntariosa de nacionalidade” prejudicasse a submissão à qual o povo tinha que se amoldar. Mário de Andrade afirma ainda que, nessa época, os negros faziam uma música negra, os portugueses faziam uma música portuguesa e os índios produziam sua música indígena. É apenas nas proximidades da Independência que vai se firmando musicalmente o povo nacional e, assim, as formas como o lundu, a modinha e a sincopação começam a se estabelecer na comunidade. Depois disso, e com uma maior “exigência popular”, ocorre a fixação das danças dramáticas brasileiras como, por exemplo, as Congadas, os Caboclinhos e o Bumba-meu-Boi.

Mário de Andrade aponta que algumas das danças dramáticas brasileiras, provavelmente, foram compendiadas rapsodicamente por poetas e compositores anônimos, na letra ou na música, e dá ênfase ao Bumba-meu-Boi, sobretudo porque este “já era bem caracteristicamente e livremente nacional, pouco lembrando suas origens remotas d’alem-mar e celebrando o animal que se tornara o substituto histórico do Bandeirante: o maior instrumento desbravador, socializador e unificador da nossa pátria, o Boi” (p.29).
Segundo o autor, entre o final do Império e o começo da República (com o samba, o maxixe, a evolução das toadas e das danças rurais, a formação e fixação dos conjuntos de choros e a modinha – que já havia deixado o “piano dos salões” e passado ao “violão das esquinas”) ocorre o crescimento e definição da música popular que torna-se “a criação mais forte e a caracterização mais bela da nossa raça” (p.29).

Mário de Andrade afirma que a fase nacionalista da nossa música, na qual se encontrava quando publicou Música do Brasil, não surgiu com a Segunda República, mas com a Primeira Grande Guerra, que incentivou a “sanha nacional das nações imperialistas de que somos tributários”. Isto contribuiu decisivamente para que se afirmasse a nossa consciência musical nacionalista como uma tendência coletiva e não mais individualista. Mário exemplifica essa questão com Villa Lobos que, poucos anos depois de terminada a Primeira Guerra e de ter vivido os acontecimentos da Semana de Arte Moderna, abandonou o seu “internacionalismo afrancesado” sistematicamente e de forma consciente, para ser o precursor e figura mais representativa da fase nacionalista da música brasileira.

Sobre a fase nacionalista, o crítico diz ser a mais “empolgante” porque, ao contrário das outras, é dirigida pelo raciocínio, pelas decisões e pelas vontades humanas. Assim, tal fase possuiu:

um interesse mais dramático, derivado da luta do homem contra as suas próprias tradições eruditas, hábitos adquiridos, e dos esforços angustiosos que faz para não se afogar nas condições econômico-sociais do país, sempre na esperança generosa de conformar a sua inspiração e as manifestações cultas da nacionalidade numa criação mais funcionalmente racial (ANDRADE, 1941, p. 31).

Mário de Andrade explicita que a fase nacionalista é um “degrau evolutivo de cultura” e não será, desta forma, a última das fases da “evolução social da nossa música”. O autor ressalta que esse período é extremamente e “conscientemente pesquisador”, muito mais “pesquisador que criador” (p.31). A posição do compositor brasileiro nessa fase da nossa música, em 1941, é enfatizada pelo autor. Nas palavras dele, o compositor brasileiro é um “sacrificado”. Sendo assim, o compositor, diante de uma obra a ser construída, não poderia agir livremente como um “ser estético”, esquecido, em consciência, de seus deveres e obrigações”. Para Mário, o compositor deveria lutar pela nacionalização da nossa música. Mais à frente, ressaltando as fases da música brasileira (universal, internacionalista e nacionalista), afirma que a música brasileira deverá se elevar à fase “Cultural” em que será livremente estética e refletirá “as realidades profundas da terra em que se realiza” (p.32). Desta maneira, a música não será apenas nacionalista, mas principalmente, “nacional”.

Porém, para chegar a esta última fase, ainda falta um “gigante”, um compositor que verdadeiramente reflita nossas realidades e busque a técnica. “Na verdade, a situação do compositor brasileiro contemporâneo é muito difícil. De maneira geral, e com a ressalva apenas de uns três ou quatro, falta-lhe técnica, e o estado econômico do país é que mais condiciona esta falha” (p.32). Alguns dos compositores nacionais, de acordo com Mário de Andrade, sabem apenas por alto os elementos primários da composição e são incapazes de dar um tratamento musical a certos temas.

Nesse ponto do seu estudo, Mário de Andrade chama a atenção para o fato de que, na literatura, a situação atual (anos 40) é mais complicada do que na música, talvez pelas exigências mesmas da especialização desta. Na literatura, Mário aponta que as novas gerações parecem destinadas “a provar que se pode ser escritor sem saber escrever”:

O movimento modernista, eminentemente crítico por natureza, parecia implicar numa grande revolução ulterior de cultura, mas tal não se deu. Os novos não aguentaram o tranco. E o despoliciamento intelectual do país, de editores; jornais e revistas especialmente, a camaradagem da crítica tão madrinha como comodista, permitiu esse estado assombroso de coisas, cujo menor defeito ainda é a superstição nacional do talento, embora sejam, com alguma lisonja, pouco menos que analfabetos (ANDRADE, 1941, p.33).

Comparando novamente a situação da literatura com a da música, Mário observa que a segunda é muito melhor: “afinal das contas, pode-se escrever uma novela sem saber o que é silogismo ou que Tiradentes… não está enterrado em Vila Rica” (p.33-4).

O autor informa não ser “materialista e muito menos dos que descansam nas costas largas dos fatores econômicos todas as culpas do pequenino rendimento humano” (p.39). Da mesma maneira que Mário cita que há compositor brasileiro desonesto no emprego da técnica – ao basear-se no “destradicionalismo” e no “despoliciamento cultural” da nossa sociedade e também nas “aventuras experimentalistas” da música em sua contemporaneidade – vê que a deficiência técnica está relacionada em parte à situação financeira do país. Ele, porém, possui a convicção de que esses prejuízos podem ser sanados ou pelo menos amenizados. Portanto, a “marcha das coisas” pode ser forçada e o peso das circunstâncias ser equilibrado através de uma política musical que tenha uma orientação clara e também enérgica em seus atos:

O compositor brasileiro aí está, meu Deus! cheio de talento e – o que é muito mais importante – admirável de idealismo e resistência. E, a bem dizer sozinho, tem conseguido no que lhe compete, forçar essa marcha das coisas, pois que ajuntou uma herança musical que é das mais fortes da América. E nem sei mesmo que fé renitente e heróica lhe tem feito remover as suas montanhas (ANDRADE, 1941, p. 39).

Nos escritos de Mário de Andrade da década de 40, e dos quais Música do Brasil é apenas um exemplo, notamos que o autor buscava uma arte brasileira (e de maneira especial, uma música) que conciliasse a sociedade, que pensasse nas realidades da nossa terra, ou seja, uma arte mais social. Porém, ressaltamos que na obra Macunaíma, em que o texto narrativo (o conto) acaba recaindo no “canto” e o final do canto é novamente conto, um vaivém que cada leitura atualiza. Mário de Andrade conciliou a união entre dois mundos – o erudito e o popular, encerrando uma arte interessada no sentido que ele utiliza este termo para falar da música popular brasileira.
“Tem mais não”.

Referências

ANDRADE, M. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Belo Horizonte: Garnier, 2004.

_____________. Pequena história da música. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987.

_____________ Música do Brasil. Curitiba, São Paulo e Rio de Janeiro: Guaíra, 1941.

HAUSER, A. “Camadas educacionais na história da arte: arte folclórica e arte popular”. In: HAUSER, A. Teoria da arte. Lisboa: Presença, 1988.

LOPEZ, T. P. A. “Rapsódia e resistência”. In: LOPEZ, T. P. A. Mariodeandradiando. São Paulo: Hucitec,1996.

SANTIAGO, S. “O caso Érico Veríssimo”. In: Nas malhas da letra. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.

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WISNIK, J. M. “Cultura pela culatra”. In: Sem Receita – ensaios e canções. São Paulo: PubliFolha, 2004.

 

[1] Os aspectos indígenas extraídos da obra de Koch-Grünberg, Capistrano de Abreu, Barbosa Rodrigues, Couto de Magalhães entre outros; acrescenta-se a isso os elementos de origem africana, portuguesa e mesmo brasileira. A esses elementos que já são variados, são incluídos aspectos da história nacional, episódios vivenciados pelo autor; textos dos cronistas e etnógrafos também foram utilizados; aspectos da língua: fórmulas sintáticas, enumerações recorrentes, locuções e modismos.