Crise na literatura: um incômodo marginal?

Franciele Queiroz da Silva

RESUMO: Identificando a Literatura Marginal (periférica) como um gênero presente e perturbador na literatura contemporânea, interessa-nos como fonte de investigação o boom das produções literárias escritas por jovens autores, moradores de periferia e os reflexos provocados por essas publicações nos estudos literários. O pressuposto é que as obras contemporâneas sob a denominação “marginal” contrariam o cânone literário e questionam os limites da definição da literatura. O objetivo principal do presente texto estará em problematizar fatores que rondam este ‘movimento’, tais como a própria nomenclatura “marginal”, a questão da violência como um elemento de forte incidência nas narrativas marginais periféricas contemporâneas e o embate que há algum tempo está em curso entre duas vertentes distintas que disputam lugar na teorização sobre o literário: Estudos Culturais e a própria Teoria Literária.

PALAVRAS-CHAVE: literatura contemporânea, marginal, incômodo

ABSTRACT: Identifying the Marginal Literature (peripheral) as a present and disturbing gender on contemporary literature, what interests us as an inquiry source is the boom of the literary productions written by young authors, inhabitants of periphery and the consequences provoked by these publications in the literary studies. We base on the assumption that the contemporary works, under the denomination of “marginal”, oppose the literary canon and question the limits of literature definition. The main objective of this text is to question factors related to this ‘movement’, such as the “marginal” nomenclature itself; the issue of the violence as an element of strong incidence in the contemporary peripheral marginal narratives; and the shock which has been being faced by two distinct sources that dispute place to theorize about the literary: Cultural studies and the Literary Theory itself.

KEYWORDS: contemporary literature, marginal, disturbance

 

ENFRENTANDO O PRESENTE: UMA PERSPECTIVA MARGINAL

O presente texto abordará questões que rondam uma das diversas facetas da cena literária atual, pois acreditamos que é necessário destacar do panorama múltiplo da contemporaneidade, a vertente sobre a qual nos debruçaremos. Tendo em vista a “pluralidade de nomes e características” (AZEVEDO, 2004, p.6) na literatura contemporânea, que só faz crescer mais a cada dia motivada pelas mudanças sociais e pela facilidade de publicação na Internet, o presente ensaio promove um recorte sobre o vasto número de publicações e propõe empreender uma análise direcionada a um determinado grupo de escritores que se autodenominam “marginais”.

Segundo o estudioso Stuart Hall “O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor do “eu” coerente.” (1997, p.13). Entendendo que a emergência do sujeito e sua importância, cada vez maior a partir do Romantismo, está estritamente relacionada a isso que chamamos modernamente literatura, acreditamos que a literatura contemporânea – os autores que se lançam hoje como autores de literatura – exige uma consciência crítica a fim de estimular a reflexão sobre as mudanças que o surgimento de outras vozes e novos sujeitos impõem como desafio ao pesquisador dessa área.

Nosso pressuposto considera que a Literatura Marginal (periférica) é um gênero perturbador na literatura contemporânea. Acreditamos que essa pressuposição se justifique, principalmente, por estas produções colocarem em xeque as noções de valor, de cânone, questionando o que seja o “literário” hoje. Dessa forma tentamos perceber algumas estratégias textuais e extratextuais que justificassem tal pressuposto. Nossas perguntas iniciais procuram entender a nomenclatura deste ‘movimento’ que vem se fortalecendo na contemporaneidade: O que é ser “marginal”? Marginal a quê?  Há diferença entre o marginal dos anos 70 e o marginal contemporâneo? Quais são as características deste “marginal”?

Interessa-nos também investigar o lugar reservado à Literatura Marginal no embate entre Estudos Culturais e Teoria Literária além de problematizar sua inserção numa tradição literária específica. E, além disto, buscamos refletir sobre a extrema violência como uma característica dos textos ficcionais da Literatura Marginal Contemporânea.

Acreditamos que é importante confrontar-se com o presente na tentativa de traçar panoramas, a fim de buscar conhecer essa nova literatura para propor hipóteses, arriscando-se às produções ‘marginais’ na literatura. Além disso, a relevância desta empreitada está em promover um estudo contemplando um ângulo da literatura muitas vezes não observado, não inserida nos padrões canônicos e ainda muito questionada no que diz respeito à sua “qualidade” literária.

A escolha do referido tema deu-se pelo interesse investigativo em acreditar que a teoria “é aquela que aceita se questionar a si própria e colocar em causa o seu próprio discurso” (COMPAGNON apud SOUZA, 2002, p.282)Sendo assim, este ensaio se propõe a investigar características que nos apontem se a obra considerada ‘marginal’ deve ser encarada sob novos parâmetros.

O “MARGINAL” ONTEM E HOJE

De acordo com o dicionário Houaiss o termo “Marginal” pode ter entre outras significações: 1. relativo à margem 2. Que vive à margem do meio social em que deveria estar integrado, desconsiderando os costumes, valores, leis e normas predominantes nesse meio; delinqüente, vagabundo; mendigo 3. Situado no extremo, no limite, na periferia 4. Diz-se de pessoa que vive entre duas culturas em conflito 5. Indivíduo marginal; delinqüente, fora-da-lei. Como podemos observar muitas das definições que escolhemos e expusemos dizem respeito à posição do indivíduo que vai contra a cultura vigente.

A denominação “Marginal” não é um termo novo para designar um movimento ou um aspecto da literatura de uma determinada época. Nos anos 70, o termo “marginal” foi designado para caracterizar um movimento denominado “Poesia Marginal”. O conhecido rótulo, “Poesia Marginal”, despontou com maior força na cidade do Rio de Janeiro. Tratava-se de um grupo de poetas quase todos pertencentes às classes média e média alta, como afirma PEREIRA em sua obra Poesia Marginal nos anos 70[1] (1981, p.36): “[…] são, fundamentalmente, representantes das camadas médias; alguns de camadas médias altas com sólido backgroud familiar tanto em termos financeiros quanto intelectuais […]”. O rótulo ‘marginal’ dizia respeito à reprodução de suas obras (quase sempre poemas) de forma ‘artesanal’. A também conhecida “geração mimeógrafo” valia-se desse mecanismo para fazer circular as poesias produzidas.

As características principais dessa produção eram o tom irônico, a escolha pelo uso de uma linguagem coloquial, drogas e sexo como temáticas principais e a tematização do cotidiano carioca predominantemente de classe média. Segundo Carlos Alberto Messeder Pereira essa produção estaria próxima a “algo que talvez pudesse ser definido como ‘politização do cotidiano'[…].” (1981, p.32)

A “marginalidade” desse grupo de escritores também conhecidos como geração mimeógrafo diz respeito, então, como pudemos observar, à sua relação com o mercado editorial, já que as obras eram confeccionadas pelos próprios poetas que também eram os grandes distribuidores do seu produto: venda de mão em mão, propaganda boca a boca, mantendo um contato presencial com seu potencial leitor em teatros, shows, cinemas e bares. O poeta dos anos 70 já não é mais o mesmo preso a ‘torres de marfim’, diferente de todo aquele distanciamento proposto, daquela atemporalidade pretendida em diferentes épocas literárias, este ‘poeta marginal’ entra em contato direto com seu público leitor, começando a (des)construir uma noção de escritor.

O termo “marginal”, de acordo com Heloísa Buarque de Hollanda, merece então ressalvas, pois a avaliação de seu valor literário é dirigida por fatores extralingüísticos, principalmente de produção:

A classificação marginal é adotada por análises e assim mesmo com certo teor e hesitação. Fala-se mais frequentemente ‘ditos marginais’, ‘chamados marginais’ evitando-se uma postura afirmativa do termo. Geralmente ele vem justificado pela condição alternativa, à margem da produção e veiculação do mercado, mas não se afirma a partir dos textos propriamente ditos, isto é, de seus aspectos propriamente literários. (HOLLANDA, 1981 p.98-99)

Uma das intenções primordiais dos poetas observados no período era de transformar os padrões de qualidade da época. Distanciando-se propositalmente das obras “intelectualizadas” ou “populistas”, declarando assim, sua posição underground em relação ao sistema.

A atitude ‘gauche‘ dos poetas, diz respeito não apenas à alternativa ao mercado editorial, mas também à inquietação quanto aos padrões morais da família burguesa. Essa postura tem semelhanças como o movimento hippie, surgido nos anos 60, que marcou uma atitude contra cultural. Originado, nos EUA esse grupo estava em desacordo com os valores tradicionais estabelecidos pela cultura norte americana. Os hippies têm como característica a transgressão de valores pré-moldados pela sociedade, utilizam cabelos e barbas compridos como forma de infringir as ‘normas’.

VIOLÃO DE RUA E ENGAJAMENTO

Durante as décadas de 60 e 70, o Brasil vivia um contexto sócio-político de autoritarismo e de censura cujo alvo principal era as artes: música, cinema, literatura, enfim, quaisquer manifestações culturais que contrariassem, naquele momento, os ideais políticos impostos pelo regime de exceção. A Literatura foi um campo de resistência. Embora não pretendamos afirmar o determinismo do regime político sobre aspectos culturais da década, não podemos negar que fortes influências desse período conturbado marcam a produção dos escritores.

Vários movimentos literários aliaram a literatura à postura engajada, participativa, de luta contra a repressão e o autoritarismo, como o “Violão de Rua”.

 O Grupo “Violão de Rua” (patrocinado pela UNE) reunia nomes como os de Ferreira Gullar, Paulo Mendes Campos, Affonso Romano de Sant’anna, Moacyr Felix, Vinícius de Moraes, José Carlos Capinam, entre outros, e tinha como intuito maior promover a literatura como canal de lutas e reivindicações. A temática das produções concentrava-se na descrição da pobreza, da desigualdade e da exploração do povo tanto no campo quanto na cidade.

Talvez, então, valha à pena pensarmos numa proximidade muito maior do movimento da literatura marginal contemporânea com os poetas do grupo “Violão de Rua” do que propriamente com a poesia marginal da década de 70.

Na literatura contemporânea o termo “marginal” continua sendo utilizado para demarcar um grupo de escritores. No entanto, agora não escrevem apenas poesia, mas participam de uma conjuntura cultural mais ampla, que envolve a prosa, a música (por meio dos Rapps e MC’s) e produções cinematográficas.

Outra significação da palavra “marginal” é proposta pelo poeta e ensaísta Glauco Mattoso em seu livro O que é Poesia Marginal. De acordo com o autor, o termo marginal foi emprestado das ciências sociais e traz como significado “o indivíduo que vive entre duas culturas em conflito, ou que, tendo-se libertado de uma cultura, não se integrou de todo em outra, ficando à margem das duas”. (MATTOSO, 1981, p.7)

Se considerarmos a sugestão de Mattoso, o conceito de marginalidade no contemporâneo, por ser mais abrangente e inclusivo, pode abarcar inúmeros sujeitos: homossexuais (pela escolha sexual) indígenas (pela diferença cultural), negros (pela raça). Enfim, identidades que não correspondem a uma cultura dominante. Nesse sentido, a noção de contracultura diz respeito à margem, à periferia.

Portanto, nos dias atuais a ambivalência do termo ainda prevalece. Assim como pode se referir juridicamente a delinqüente, fora-da-lei, infrator e perigoso, estando ligado ao mundo do crime, também remete à concepção sociológica, ou seja, indivíduos que de alguma forma são vitimados pela exclusão social, ‘pobres’ ou membros de minorias étnicas e raciais, à margem da sociedade.

Na década de 90, o termo “marginal” assume outra roupagem para o cenário contemporâneo. Os marginais dessa década podem ser caracterizados por seu perfil sociológico, ou seja, moradores ou ex-moradores das periferias urbanas brasileiras. E mesmo presidiários, que no cárcere utilizam-se da literatura como libertação, repassando suas experiências a leitores por meio de suas obras literárias como é o caso do ex-presidiário Josemir José Fernandes Prado, conhecido como Jocenir, em sua obra, Diário de um detento.

São, em sua maioria, autores da cidade de São Paulo que começaram a despontar no cenário editorial a partir da publicação do livro Cidade de Deus no ano de 1998. O sucesso do livro, que foi roteirizado no ano de 2002, fez eclodir na sociedade brasileira um envolvimento com uma realidade que andava ausente da literatura. O cotidiano da favela torna-se mais próximo e explícito para todos, estranhamento que rendeu uma boa repercussão tanto para a bilheteria do filme de Fernando Meirelles, quanto para a obra de Lins.

A revista Caros Amigos também abriu espaço para divulgação de uma produção que não encontrava repercussão no meio editorial até então. A série Literatura Marginal em três atos: Ato I (2001), Ato II(2002) e Ato III(2004) trouxe à cena vários autores desconhecidos. A seleção dos textos para publicação era feita pelo escritor Ferréz que contribuía com a revista desde o ano de 2000.

Os temas destas obras permeiam, sobretudo, o cotidiano dos moradores da favela, e suas adversidades na sociedade brasileira como: violência, sexo, drogas, estupros e assaltos. A linguagem utilizada nas obras também é uma característica marcante dessa vertente da produção literária contemporânea. Os ‘ditos marginais’ se utilizam de uma linguagem em sua maioria aproximada da oralidade, saindo dos padrões convencionais de escrita e não utilizando a chamada linguagem ‘culta’:

– E aí truta! Firmeza?
– Só, eu tô na boa, choque, e você?
– Na moral, tô lá trampando com o Matcherros na firminha dele.
– Ah! Tô ligado, o Amaral me contou que ele tá indo pela órdi lá com o esquema.
– É, o bagulho virou bem, se pá nóis vamo contratá até o Panetone, isso é, se o bagulho dele com o futebol num virá.
– Firmeza, o esquema é esse; afinal, como diz o crente, “Se Deus é por nóis, quem será contra nóis”.
– Choque, a parada sempre foi nesse naipe, e a parada cada vez vai ser pior, as correrias estão ficando mais forte e a parada vai ficar mais louca, firma!(FERRÉZ, 2005, p.145)

Os escritores da “literatura marginal” contemporânea possuem características próprias como levantar questões gerais importantes para a comunidade da qual fazem parte. Neste sentido nos questionamos: será que poderíamos arriscar uma aproximação com o contexto comentado por Benjamin em seu texto sobre o narrador segundo a análise das obras do escritor russo Leskov no qual o teórico alemão identificava, a partir da afirmação do romance como gênero, uma incapacidade de compartilhar experiências? “O romancista segrega-se. A origem do romance é o individuo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos e que não sabe dá-los.” (BENJAMIN, 1987, p.201.)

Diferentemente do que Benjamin afirma a literatura marginal contemporânea objetiva oferecer um espaço em que “a voz da comunidade” apareça, e não só a do autor, produtor da obra. Os autores procuram se basear em uma idéia coletiva sobre o que narram, ou seja, o espaço social da periferia.

Algumas vezes nota-se o intuito de “provocar” a capacidade crítica do público por meio de textos com fundo denunciador e moralizante. Como no conto + 1 AKIM do escritor Ratão, que se encontra na obra Capão Pecado de Ferréz:

Não me deixo levar, a Rede Globo até, mas não vai me enganar.
Não to a fim de ver a merda da Sandy e o bosta do júnior o dia inteiro na tv cantando suas músicas sem conteúdo e ganhando dinheiro com a miséria do meu povo.  (RATÃO, 2000, p.42)

Nos anos 70, segundo Ana Cristina Tannús Alves (dissertação de mestrado “Em busca do discurso poético Aristides Klafke: Marginalia e Contracultura”) prevaleciam os sentidos de deboche, de riso, do efeito cômico em si, provenientes das experiências diárias, aliadas à atitude de desbunde do poeta.

Na “Literatura Marginal” dos anos 90/00 assim como no movimento “Poesia Marginal” dos anos 70 há uma opção de abordagem ‘literária’ por elementos do cotidiano. Porém, o tratamento dado a esse tema – o cotidiano – na contemporaneidade é completamente diverso da postura de ‘deboche’ dos anos 70, considerando-se a seriedade e o compromisso social investidos pelos autores em suas obras.

No que diz respeito à utilização da linguagem, podemos notar que o “marginal” dos anos 70, utilizava a linguagem coloquial. A literatura marginal de nossos dias exacerba ao máximo esse recurso, e ainda acrescenta um estilo próprio de falar, na tentativa de reproduzir uma maneira de falar da cultura periférica como: “mó”, “truta”, “pode crê”, “tá ligado”, entre outros.

Apesar de todas as diferenças, contextuais e de produção, a “Poesia Marginal” também pretendia desestabilizar o cânone, a tradição literária brasileira. Os marginais dos anos 90 não apenas citam os grandes nomes da literatura, como os apontam como inspiração para suas produções literárias. Notamos essa busca pelo clássico como uma característica deste ‘novo marginal’, e comprovamos tanto por entrevistas concedidas a sites da Internet como na própria produção literária.

Eu li, li muito. Quando escrevi Capão pecado, tive mais trampo, menos tempo. Comprei vários livros, outros me foram trazidos por amigos. Li Dostoievski, Tchekov, Gorki, Flaubert, Pessoa. Eu gosto muito da literatura beatnik, também. (FERRÉZ, em entrevista ao site Portal Literal, originalmente publicada em 2003)

Nesta entrevista o autor Ferréz explicita a sua preparação e as suas inspirações criativas para escrever seu segundo Romance, a obra Manual Prático de Ódio, lançada no ano de 2003. Evidenciamos também essa característica nos textos literários destes autores como é o caso do escritor Sacolinha que em muitos de seus contos, faz referência a filósofos e autores consagrados da literatura:

Nessa época eu lia Karl Marx, Aristóteles, Descartes, Kant, Rousseau, Maquiavel, Platão e Vygotsky. Eu não tinha com quem conversar […] e quando encontrava alguém do meu nível intelectual, esse dizia que eu falava demais. (Sacolinha, 2006 p.31) Eu estava dando uma risada do comentário de um crítico de literatura sobre a literatura de Edgar Allan Poe […] (SACOLINHA, 2006, p.17)

Concluímos, assim, que houve uma verdadeira “metamorfose” de valores atribuídos ao termo “marginal”. O marginal contemporâneo é o morador da favela que de alguma forma se sente menosprezado pela sociedade da qual faz parte e tenta por meio das artes como a literatura demonstrar o valor cultural que possui.

ESTUDOS CULTURAIS E TEORIA DA LITERATURA

Podemos dizer que a denominada “Literatura Marginal ou Periférica” torna-se para nós um bom expoente para a averiguação do embate, há algum tempo recorrente, entre Estudos Culturais e a própria Teoria da Literatura.

Estes autores reivindicam seu espaço no mercado editorial e agem para que isso aconteça. A comunidade também é um dos alvos desse contemporâneo “marginal” agora com o intuito de promover outros autores da própria comunidade.

Na maioria dos casos, os autores contemporâneos como Ferréz, Sacolinha, Sérgio Vaz e outros, lutam por uma comunidade mais justa, promovem ações e divulgam em seus blogs, projetos, festas literárias, saraus, bibliotecas comunitárias, recitais, onde todos possam ter acesso às obras literárias. Configura-se uma noção de autor ‘colaborativo’, engajado e participativo na comunidade, próximo ao leitor e que tenta ao máximo elevar as características próprias da cultura periférica.

 Esses autores sofrem críticas pelo forte apelo ao real intrínseco a suas obras literárias. Essa talvez seja a marca que mais sustente as dúvidas a respeito da condição literária da produção ‘dita marginal’. Porém a discussão sobre o que é literatura atravessa séculos e se mantém na contemporaneidade.

 A indefinição do termo literatura é tema do capítulo introdutório de Terry Eagleton em seu livro Teoria da literatura: Uma Introdução.  Desde os textos de Platão e Aristóteles a discussão se arrasta, porém ao longo de séculos muitos foram os parâmetros criados para sustentar alguma especificidade desse objeto de estudo: a bela escrita (belles lettres) da retórica, a escrita imaginativa romântica, o estranhamento formalista. Variando conforme as épocas e os olhares de seu público em relação ao objeto literário.

Sendo assim, quais os critérios que definem a literatura ‘dita marginal’ como literatura? Quais os traços literários contidos nessa literatura? Ou será que devemos reformular estes parâmetros de leitura para as obras contemporâneas?

A Professora Eneida Maria de Sousa dedicou-se em um de seus textos, “A teoria em Crise”, a tratar de uma possível turbulência sofrida pela “teoria pura” e de seus reflexos na literatura. Segundo a estudiosa Eneida “a crise por que passa a disciplina é causada pelas transformações culturais e políticas das últimas décadas” (SOUZA, 2002, p.68), sendo assim, a tranqüilidade de uma área tida como consolidada é abalada por mudanças sociais. Há então a necessidade de um campo que aceite outras perspectivas, que não considere apenas a aplicação e compreensão de termos como “belo poético”, “qualidade estética”, “literariedade” e etc.

A produção literária deve ser encarada agora com outros olhares, não mais valorizando apenas o “esteticamente concebido” e os “critérios de literariedade”. Deve-se considerar uma capacidade antes não aludida que é a de “suscitar questões de ordem teórica ou de problematizar temas de interesse atual, sem se restringir a um público específico” (SOUZA, 2002, p.68).

De acordo com a pesquisadora o conceito moderno da Teoria Literária objetivou apenas a produção científica do objeto de estudo e acabou por não considerar fatores psicológicos, históricos e biográficos do literário, prendendo-se apenas ao nível da literariedade como valor.

Sendo assim, observamos o surgimento de uma corrente de estudos, na década de 50 que se interessa pelo viés de teoria social crítica, sendo denominada de Estudos Culturais. Esta vertente estaria pautada na tentativa de inclusão do que – um estudo multidisciplinar, que investe nos saberes produzidos pelas ciências humanas – se encontra à margem da noção de cultura vigente. Provocando assim, uma desestabilidade na ordem pré-estabelecida pelo poder dominante (cultura dominante).

 Os Estudos Culturais campo que contemporaneamente também “teoriza” sobre o objeto literário passa a ser responsável então, pela desconstrução da noção de cultura vigente, reivindicando assim, espaço para a valorização do que anteriormente não foi/é entendido como produção cultural. O que provoca uma ampliação da noção do objeto de estudo da Teoria da Literatura, com a inserção de obras antes não encaradas como literárias, provocando uma desestabilização da noção de ‘cânone literário’.

Um sentido imprescindível para a corrente dos Estudos Culturais defendida por Raymond Williams, um dos pioneiros na área, era a de transpor a noção de ‘cultura exclusiva’ para uma ‘cultura comum’. De acordo com a estudiosa Maria Elisa Cevasco em sua obra Dez Lições sobre os Estudos Culturais, a importância do materialismo cultural do ponto de vista de Raymond Williams está em:

[…] demonstrar que a oposição costumeira entre literatura e realidade, cultura e sociedade mascara profunda interconexão: não se pode analisar uma sem a outra, e nem mesmo sem conceber uma literatura sem a realidade que ela produz e reproduz, ou, pela mesma via, uma sociedade sem a cultura que define seu modo de vida. (CEVASCO, p.150, 2003)

Apesar de possuir propósitos interessantes, a teoria proposta pelos estudos culturais é muito criticada no meio acadêmico, já que alguns dos intelectuais da academia afirmam que os Estudos Culturais “estariam ameaçando os estudos literários, corrompendo o objeto de análise e distorcendo a teoria da literatura.” (SOUZA, 2002, p.68)

Temos então, duas vertentes distintas, com preocupações também díspares. Interessa-nos pensar que a Teoria da Literatura de alguma forma se ‘modifica’ com a tensão estabelecida pela emergência dos Estudos Culturais, que acreditam ter também a competência de teorizar sobre o objeto literário.

Eneida Maria de Sousa reclama em seu texto uma mudança evidente no papel do intelectual. Para a estudiosa não cabe mais ao acadêmico o “comodismo” de expor suas opiniões apenas em salas de aula. Contemporaneamente outros meios requisitam o trabalho intelectual, indo além das análises de defesas de teses e de publicações em revistas especializadas. Muitas vezes este crítico, estudioso, pesquisador e/ou professor é convidado a demonstrar suas opiniões pelos meios de comunicação em massa.

O que pode ter favorecido essa postura de diálogo, de abertura e de troca foi o embate teórico existente entre as duas correntes já expostas, ou seja, Teoria Literária e Estudos Culturais.

A crise poderia estar então no surgimento de uma concepção culturalista que também tem como intuito o “teorizar” as produções literárias, tarefa antes exclusiva da Teoria Literária, provocando assim, diretamente uma turbulência em um campo “consolidado”, que, no entanto, é permeado por questões imprecisas como “definição de literário”, “cânone”, “valor”, “estética” e etc.

Temos como grandes expoentes da corrente dos estudos culturais: os estudiosos Stuart Hall, Terry Eagleton, Jonathan Culler e no Brasil vemos enveredar para essa postura alguns críticos como Silviano Santiago, Maria Elisa Cevaso e a própria Eneida Maria de Souza.

Nesta conjuntura de ‘teorias’ como pensar a Literatura Marginal (periférica)? Nossa proposta é que a literatura denominada “marginal” distancia-se radicalmente do “belo poético” e das ditas palavras bonitas. Fato este observado no ‘estilo literário’ próprio de escritores marginais periféricos em que a aproximação com o real é nítida e não se cogita uma definição do literário como escrever difícil e ‘bonito’.

A chamada Literatura Periférica demonstra um interesse ávido pelo real. Essa tendência está presente nas obras dos escritores contemporâneos, porém ela poderia ser avaliada na literatura marginal (periférica) como mais do que uma relação indissociável entre o real e o imaginativo, mas como um meio pelo qual esses escritores contestam sua realidade. Neste caso seria válido avaliar a literatura marginal (periférica) como uma postura de resistência.  Para Bosi a resistência “é um conceito originalmente ético, e não estético” e quando há esse hibridismo de intenções entre “os conceitos próprios da arte e da ética e da política” surgem às expressões: poesia de resistência e narrativa de resistência.

Neste sentido entra a grande questão o que seria este estético? A literariedade é o que realmente legitima um texto literário como produção cultural? Nossos julgamentos não estão sempre pautados por valores?

AFINAL, O QUE É A TAL LITERARIEDADE?

Literariedade segundo o dicionário literário[2] quer dizer a possibilidade de “constatar uma propriedade, presente nas obras literárias, que as caracterizaria como pertencentes à literatura. Para denominar esta propriedade, criaram o termo literaturnost, que foi traduzido para a língua portuguesa como literariedade.” (JOBIM, E-Dicionário de Termos Literários) No entanto, a existência desta possibilidade é questionável, pois que propriedade seria esta? E como esta propriedade estaria presente em todos os textos ditos literários, já que a literatura é fruto de uma cultura e, portanto variável historicamente?

Márcia Abreu discute essa questão em sua obra Cultura Letrada, afirmando que a “literariedade não está apenas no texto – os mais radicais dirão: não está nunca no texto – e sim na maneira com que ele é lido.” (ABREU, 2006, p.29) Neste sentido dialogamos com uma concepção extremamente abstrata que será entendida a partir de olhares diferentes e segundo valores também distintos.

Dois textos podem fazer um uso semelhante da linguagem, podem contar histórias parecidas e, mesmo assim, um pode ser considerado literário e o outro não. Entra em cena a difícil questão do valor, que tem pouco a ver com os textos e muito a ver com posições políticas e sociais. (ABREU, 2006, p.39)

De acordo com o que sugere Márcia Abreu podemos observar, que o valor está ligado a questões sociais, fatores que se transformam cotidianamente. A autora instiga ainda mais a discussão afirmando que uma obra só será declarada literária quando referendada por “instâncias de legitimação.” Estas instâncias seriam representadas pelas “universidades, os suplementos culturais dos grandes jornais, as revistas especializadas, os livros didáticos, as histórias literárias etc.” (ABREU, 2006, p.40)

Neste momento é que percebemos que não basta apenas a criação pela criação e que realmente existem interesses, visões políticas e ideológicas que determinam toda uma tradição. Por isso somos levados a concordar mais uma vez com a posição de Márcia Abreu, pois o consenso em torno da Grande Literatura será sempre difícil, já que parece baseado no cultivo de uma instância evanescente, o chamado “gosto literário”. Basta citar as eternas listas de leituras imperdíveis para constatarmos que alterando-se o júri, modificam-se também os eleitos.

Os motivos para referendar uma obra como sendo ou não literária, possuidora ou não da ‘dita literariedade’ podem ser os mais arbitrários. Suscitando assim, indagações interessantes para uma investigação como esta: o que é esse estranho objeto denominado literatura? O que caracteriza a qualidade de uma obra literária? Se consideramos que parte da crítica rejeita a produção da literatura marginal alegando o caráter meramente documental das obras, mero reflexo e/ou registro da violência cotidiana das periferias, caracterizando tais produções como mera denúncia e, portanto, negando-lhes “qualidade literária”, a questão fundamental parece ser a seguinte: as obras apelando às questões da realidade mais brutal conseguem extrapolar o mero registro, transformando esse real em um processo de constituição para as narrativas?

Se considerarmos os apontamentos de Terry Eagleton, em sua obra Depois da teoria, a respeito de ficção não temos problemas em admitir que os textos produzidos pelos escritores periféricos, assim como Ferréz, são produções ficcionais. Nossa afirmação se embasa nas colocações do autor:

[…] a ficção é incapaz de contar a verdade. Se uma autora parte para nos garantir que o que está afirmando agora é realmente verdade – que, literalmente, de fato aconteceu – tomaríamos isso como uma declaração ficcional. Romancistas e contistas são como o menino que brincava de gritar por socorro: estão condenados a ser perpetuamente desacreditados. Você poderia pôr a declaração numa nota de rodapé e assiná-la com suas iniciais e a data, mas isso não o faria passar da ficção para o fato. O subtítulo “Um romance” é suficiente para garantir isso. (Eagleton, 2005, p.130)

Sendo assim, as obras as quais nos referimos e que são o corpus de nossa análise, não podem deixar de ser caracterizadas como ficcionais, mesmo que muitas das vezes sejam vistas como mero reflexo do real. Pois a partir do que nos expõe Eagleton o leitor não verá a obra como simples descrição do cotidiano destes autores – mesmo que assim seja – o leitor dessa obra passa a ter uma função de extrapolar o narrado, transformando esse cotidiano em um processo de constituição para as narrativas.

Ítalo Moriconi em seu texto “Circuitos Contemporâneos do Literário”[3] colabora para pensarmos a questão da literatura e afirma em seu texto que “Enquanto fenômeno histórico, “literatura” define-se nuclearmente como arte verbal escrita, da narrativa ficcional ou da lírica, posta a circular no mercado na forma-suporte do livro.” (MORICONI)

No entanto, vale ressaltar que Moriconi expõe nesse texto três circuitos, que para o autor, se caracterizam como fundamentais para entender o literário contemporâneo – o circuito midiático, o circuito crítico e o circuito da vida literária – além de um quarto circuito que o ensaísta se diz “obrigado” a mencionar- o circuito alternativo – que de acordo com o autor, compreende o que nesta abordagem nos interessa “[…] o campo dos relatos prisionais, dos relatos brutos da periferia urbana brasileira (o novo sertão) e demais escritas e assinaturas de não profissionais. “(MORICONI).

Na perspectiva do pesquisador estas composições ‘alternativas’ poderiam ser encaradas como não-literárias como podemos constatar no excerto:

 […] nesse circuito [se refere ao alternativo], já não lidamos com literatura, se consideramos que o conceito de literatura implica a circulação num mercado de livro e a condição profissional de produção deste livro, do lado do autor ou autora, atores principais do sistema. (MORICONI)

Entretanto, apostamos que não é bem assim que ocorre com a literatura marginal (periférica) contemporânea já que essa literatura pelo que entendemos eclodiu de forma inesperada e conseguiu espaço no mercado de livros. O escritor Ferréz é exemplo do que afirmamos já que possui quatro livros lançados pela editora Objetiva e já foi traduzido em outras línguas para vendas fora do país – pela editora El Alefh (Espanha) e pela editora Palavra (Portugal) – construindo assim a nosso ver um sistema com condições profissionais de produção, o que nos leva a questionar os limites do circuito alternativo referendado por Moriconi e encarar essas produções ficcionais como literárias.

No entanto, em vista das dimensões desta discussão não achamos pertinente encerrá-la com nenhum veredicto, acreditamos que ainda há vários pontos a serem discutidos, mas também que o enfrentamento com estas polêmicas se faz necessário para que se forjem suposições que resultem em embates teóricos acerca destas questões.

Para Ferréz, organizador da antologia Literatura Marginal: talentos da escrita periférica o enfrentamento aberto dos textos publicados com as classes dominantes – encaradas como instâncias de legitimação –, indicia a vontade de assumir uma voz própria, evitando-se atravessadores:

A capoeira não vem mais, agora reagimos com a palavra, por que pouca coisa mudou, principalmente para nós.
Não somos movimento, não somos novos, não somos nada, nem pobres porque pobre, segundo o poeta da rua, é quem não tem as coisas.
Cala a boca, negro e pobre aqui não tem vez! Cala a boca!
Cala a boca uma porra, agora a gente fala, agora a gente canta, e na moral agora a gente escreve.
Quem inventou o barato não separou entre literatura boa /feita com caneta de ouro e literatura ruim/escrita com carvão, a regra é só uma, mostrar as caras. Não somos o retrato, pelo      contrário, mudamos o foco e tiramos nós mesmos a nossa foto. (FERRÉZ, p.9, 2005)

O próprio autor questiona a suposta separação entre literatura boa/ruim; relacionando assim com a predominância de classes (rico simbolizado pelo ouro/ pobre simbolizado pelo carvão); este pequeno excerto retirado do texto denominado “Terrorismo Literário” tem a intenção maior de colocar em xeque a existência de uma produção muitas vezes desconsiderada ou deixada à margem, mas que por meio dos textos literários, ou seja, da produção cultural quer ser “ouvida”.

De certa forma, essa vontade de adquirir um “espaço de direito” faz com que surja o interesse de diversos pesquisadores e leitores. Além de um espaço relevante no campo da crítica cultural e literária, que não poupa esforços para tentar analisar esse movimento atual.

OLHARES SOBRE A VIOLÊNCIA

Nota-se nas narrativas contemporâneas um grande apelo às questões cotidianas. Gostaríamos de privilegiar a violência como temática importante no contexto da literatura marginal dos anos 90, é claro que não podemos generalizar as produções e seus temas, no entanto, a violência é um elemento muito recorrente nas prosas dos ‘ditos marginais’ contemporâneos.

Neste sentido apreciamos a violência como elemento temático das narrativas de dois autores: Rubem Fonseca (anos 70) e de Ferréz (anos 90/00). Tentando observar de que forma essa violência é apresentada aos leitores, selecionamos dois contos e buscamos observar a “maneira” como os autores apresentaram essa violência ao leitor.

Quando falamos em violência, somos remetidos facilmente a mais notória das violências, ou seja, a física, mas não podemos deixar de enfatizar a existência de outras formas de violência tais como violência de gênero, familiar, doméstica, moral, psicológica e sexual.

Quando dizemos “Literatura Marginal” inegavelmente poderiam surgir no mínimo duas abordagens interpretativas. A primeira, a qual o trabalho tenta abordar enfaticamente, é a produção literária produzida pelos chamados “marginais” ou excluídos sociais, moradores de favela, e que produzem textos literários. Aqui, tomaremos como exemplo o escritor Ferréz.

Outro tipo de “literatura marginal” poderia ser representado pelo autor Rubem Fonseca, seria uma literatura sobre marginais, não produzida por eles e nem para eles e que reavivaria o velho dilema do narrador de A Hora da Estrela de Clarice Lispector que representa o intelectual consciente das mazelas de seu país e que sofre porque nunca será lido por aqueles de quem sua literatura fala. Embora Rubem Fonseca nunca tenha pretendido escrever uma literatura engajada, é inegável que em muitos de seus contos proliferam os marginais excluídos da sociedade.

Já Ferréz representa escritores que estão na periferia e fala de fatos sobre os quais mostra conhecimento pela convivência diária com a violência. Enquanto Rubem Fonseca fala a partir de um olhar externo. Importante analisarmos que são vivências, experiências e olhares totalmente distintos, e que discorreram em suas narrativas sobre uma mesma vertente, a da violência. Portanto discutiremos a questão da violência nas narrativas, analisando também a busca da representação do outro, da alteridade.

 “O COBRADOR” E “ABISMO ATRAI ABISMO”

“O cobrador” faz parte de uma coletânea de contos lançados em 1979, pelo escritor Rubem Fonseca. O conto retrata os pensamentos e os atos violentos de um narrador-personagem que tem o intuito constante de cobrar da sociedade. É como se o outro lhe devesse quase tudo de que necessita para viver. E promove essa cobrança por uma série de assassinatos, estupros e pela violência física.

O narrador representa uma classe distinta de boa parte das demais personagens do conto, e evidenciamos este tipo de postura por alguns comentários emitidos pelo narrador-personagem, como nos fragmentos: “Na praia somos todos iguais, nós os fodidos e eles.” (FONSECA, 1979, p.175) ou em um poema de autoria do narrador-personagem recitado para uma mulher mais velha com a qual teve um breve envolvimento “Os ricos gostam de dormir tarde/ apenas porque sabem que a corja/ tem que dormir cedo para trabalhar de manhã/ Essa é mais uma chance que eles/ têm de ser diferentes:/” (FONSECA, 1979, p. 169).

A voz narrativa firma-se como uma voz excluída da sociedade. O tema central do conto é a busca pela “justiça” entre classes. Desse modo, a matéria com que Rubem Fonseca trabalha, está na sociedade e nas ruas, buscando por meios não convencionais e “politicamente incorretos” a igualdade entre as classes.

O título é bem ilustrado pela fala incisiva do narrador: “Eu não pago mais nada, cansei de pagar!, gritei para ele, agora eu só cobro!” (FONSECA, 1979, p.166). O narrador-personagem que não é nomeado em momento nenhum do conto, assim como a maioria de suas vítimas, é “o cobrador” e está disposto a mostrar à sociedade por meio da violência, que merece seu espaço, e que merece tudo que a classe à qual não pertence sempre teve acesso.

O que fortalece esse aspecto de cobrança são as várias necessidades que ele afirma ter, o que pode ser observado neste excerto: “Estão me devendo comida, buceta, cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes, estão me devendo.” (FONSECA, 1979, p.166) Em certos momentos a sua raiva toma proporções maiores, e isso acontece quando a personagem assiste a programas televisivos nos quais a classe-média é a personagem dominante.

O conto é um misto de violência física, violência sexual, crítica social e anti-heroísmo, tudo isso com uma exacerbação de detalhes. Pode-se dizer que a narrativa consegue promover uma sequência de flashes. A composição da narrativa é minuciosamente descritiva, em alguns momentos conseguimos facilmente imaginar a cena, pela sensibilidade de composição que o escritor demonstra ter.

Curva a cabeça, mandei.
Ele curvou. Levantei alto o facão, segura nas duas mãos, vi as estrelas no céu, a noite imensa, o firmamento infinito e desci o facão, estrela de aço, com toda a minha força, bem no meio do pescoço dele.
A cabeça não caiu e ele tentou levantar-se, se debatendo como se fosse uma galinha tonta nas mãos de uma cozinheira incompetente. Dei-lhe outro golpe e mais outro e outro e a cabeça não rolava. Ele tinha desmaiado ou morrido com a porra da cabeça presa no pescoço. Botei o corpo sobre o pára-lama do carro. O pescoço ficou numa boa posição.  Concentrei-me como um atleta que vai dar um salto mortal. Dessa vez, enquanto o facão fazia seu curto percurso mutilante zunindo fendendo o ar, eu sabia que ia conseguir o que queria. Brock! a cabeça saiu rolando pela areia. Ergui alto o alfanje e recitei: Salve o Cobrador!(FONSECA, 1979, p. 173)

A narrativa é uma sequência de fatos violentos. Em seus momentos de “cobrança”, o personagem acaba por destruir o consultório de um dentista, chutar a lata de um cego que pede esmolas na rua e atirar em um homem que andava em sua Mercedes. Além disso, mata um muambeiro a tiros, depois atira em um casal de jovens, estando a mulher grávida, e estupra outra de classe nobre.

Apenas em casos excepcionais, o “cobrador” não mata suas vítimas e nessas ocasiões considera-se um indivíduo “justo”. A respeito de um caso fortuito com uma mulher mais velha, afirma: “Essa fodida não me deve nada, pensei, mora com sacrifício num quarto e sala, os olhos dela já estão empapuçados de beber porcarias e ler a vida das grã-finas na revista Vogue.” (FONSECA, 1979, p.170).

Não sabemos nada da vida deste narrador, apenas sua busca incondicional por ‘justiça’. Não reconhecemos na personagem um indivíduo que aceita a ordem social estabelecida. Rubem Fonseca nos interessa ao trazer já nos anos 70 uma postura inquietante.

O que é na contemporaneidade, para autores como Ferréz tratar da questão da violência?

Em 1934, Walter Benjamin promoveu uma conferência que resultou em um texto denominado “O autor como produtor” em que a tensão central de sua análise baseou-se justamente na dialética entre ‘tendência politicamente correta’ e ‘qualidade literária’.

O contexto em que Benjamin escreve era marcado por uma forte pressão do partido comunista pelo alinhamento político dos intelectuais e artistas, exigindo-lhes um engajamento comprometido com as diretrizes partidárias. A “tendência” politicamente correta significava o apadrinhamento dos mais pobres e necessitados pelos intelectuais do partido. Dessa forma, a qualidade literária era uma característica secundária em relação à tendência política da esquerda revolucionária. Segundo as diretrizes partidárias a obra literária seria considerada de “qualidade” se o artista se comprometesse com as causas e anseios da classe operária. Só assim, a ‘qualidade’ da obra de arte estaria assegurada. Para Benjamin qualidade e tendência não são características opostas. Na condição de produtor, o autor deveria zelar pela produção de sua obra, preocupando-se com sua escrita, com a experimentação formal, comprometendo-se com a pesquisa da inovação estética e nessa condição de autor-produtor assumiria uma tendência política progressista.

Como Rubem Fonseca e Ferréz lidam com a questão da violência na encruzilhada entre ‘tendência política’ e ‘qualidade literária’? A grande questão que nos interessou a partir da leitura do texto de Benjamin “O autor como produtor” foi pensar como a literatura marginal (periférica) contemporânea lida com as duas faces de uma mesma moeda, segundo o pensador alemão.

O autor procura explicitar que estes aspectos – qualidade literária e tendência politicamente correta – não precisam competir: “Pretendo mostrar-vos que a tendência de uma obra literária só pode ser correta do ponto de vista político quando for também correta do ponto de vista literário. Isso significa que a tendência politicamente correta inclui uma tendência literária” (BENJAMIN, 1987, p.121), acrescentando que a “tendência literária” de que trata é o que determina a “qualidade da obra”.

Parece-nos que Benjamin defende a existência de um labor necessário para a produção da obra literária, uma necessária transformação do material “real” em ficcional. A questão que gostaríamos de colocar em debate está intrinsecamente relacionada a várias discussões que permeiam o texto de Benjamin e incisivamente relacionada às inúmeras críticas lançadas às produções da dita literatura marginal (periférica). Será que estes jovens autores “marginais” conseguem promover esse processo de transposição do real ao ficcional? As obras destes jovens autores possuem “qualidade literária”, entendendo-a aqui como aquela operação de transformação do material de que tratam (a realidade? A violência?)?

As obras analisadas parecem de certa forma ir contra o pressuposto de Benjamin – literalização das condições de vida – se dermos ouvidos às fortes críticas lançadas às produções literárias marginais contemporâneas pelo explícito apelo que fazem ao real. No entanto, como definir se estas produções apenas refletem as características de uma comunidade e/ou de um grupo social? Até que ponto essas narrativas são apenas “informativas”? Ou se podemos considerá-las literárias? Será que existem critérios que conseguem estabelecer estes limites tão nebulosos?

Ou será que para os escritores contemporâneos “marginais” a dualidade exposta por Benjamin não faz nenhum sentido já que consideram que seguir a tendência política, repudiar o sistema já é o ‘motivo’, a causa que faz valer a pena escrever, justificando, portanto a inserção no sistema literário?

Uma citação de Ferréz contida no texto “Terrorismo Literário” diz muito do comportamento adotado pelos escritores “marginais” em relação ao mercado: “Somos o contra sua opinião, não viveremos ou morreremos se não tivermos o selo da aceitação, na verdade tudo vai continuar, muitos querendo ou não.” (FERRÉZ, 2005 , p. 9).

Nessa breve citação podemos observar que a postura de Ferréz é de uma possível ruptura com os moldes aceitos pela sociedade, ou como o escritor diz pelo “sistema”. E fica claro que não se importará com o julgamento que recairá sobre sua atitude, já que tudo vai continuar da mesma forma tendo ou não, a aprovação geral do sistema. Se aproximando também, do personagem principal de “O Cobrador”, conto de Rubem Fonseca, que não quer saber quais leis regem a ordem social, quer o que é ‘dele’, esteja com quem estiver.

João Cezar de Castro Rocha em seu ensaio “Dialética da marginalidade – caracterização da cultura brasileira contemporânea”[4] insere o imaginário literário da marginalidade no diálogo com a malandragem valendo-se do famoso ensaio de Antônio Candido, “Dialética da Malandragem”. Castro Rocha identifica, no contexto contemporâneo, uma transfiguração do conceito de malandragem, observando as mudanças de valores da sociedade.

De acordo com a análise de Candido, incorporamos facilmente ao imaginário social a figura do malandro como tipo idealizado. O ‘malandro’ é caracterizado como um símbolo de inteligência e provocador de uma afetividade popular, aspecto sobre o qual reflete Castro Rocha: “Passamos décadas idealizando o malandro. Mas não existe nenhuma possibilidade de idealização da figura do marginal” (ROCHA). De acordo com a proposta de Castro Rocha, a figura do “malandro” nunca é elaborada como sendo má, pois este sempre aparece caracterizado de forma simpática e um tanto rebelde.  Já a representação simbólica do marginal não raro aponta para as franjas da sociedade, quando não para o indivíduo criminoso capaz de ameaçar a sociedade.

Segundo as reflexões de Castro Rocha, o malandro passa, na literatura contemporânea a marginal. Não há mais espaço para a dialética, pois a ‘inocência’ e esperteza do malandro, capazes de garantir-lhe um lugar com jeitinho na sociedade que insiste em negar-lhe um lugar de direito não fazem mais parte da postura ativa do marginal, que quer assumir um papel que sempre lhe foi negado, como explicita Ferréz: “Não somos o retrato, pelo contrário, mudamos o foco e tiramos nós mesmos a nossa foto.” (FERRÉZ, 2005, p. 9). O que parece estar em pauta para os escritores marginais é que esse outro pertencente à classe média e média alta, que nunca deu importância para a sua existência como excluído social, leia e considere sua voz perturbadora na sociedade contemporânea.

Voltando à análise das obras literárias, podemos afirmar que em Rubem Fonseca, a violência está presente tanto nos atos do narrador, assim como em certos momentos na linguagem utilizada. Rubem Fonseca trabalha com o misto de popular e erudito, aterrorizante e lírico e o cômico e trágico.

Os dilemas enfrentados pelo narrador ficam nítidos quando observamos atitudes totalmente contrárias aos atos violentos que comete como podemos observar no seguinte trecho:

Conversamos na rua. Você está fugindo de mim? ela pergunta. Mais ou menos digo. Vou com ela pro sobrado. Dona Clotilde, estou com uma moça aqui, posso levar pro quarto? Meu filho, a casa é sua, faça o que quiser, só quero ver a moça. (FONSECA, 1979,  p. 179)

Ora o narrador demonstra ter uma autoconfiança exacerbada, chegando às vezes a se mostrar prepotente – “Onde eu passo o asfalto derrete.” (FONSECA, 1979, p.173) –, ora totalmente frágil. A ambiguidade se mostra mais presente se analisarmos a personagem. Ela é capaz de provocar em seus leitores uma ‘classificação’ um tanto contraditória, é como se carregasse em si a capacidade de se mostrar herói/anti-herói. Para os excluídos sociais um verdadeiro símbolo de heroísmo, já que busca uma igualdade entre classes. Entretanto, os meios de que se utiliza, o colocam na condição de anti-herói pela extrema brutalidade com a qual promove suas cobranças no decorrer da narrativa.

Em certos momentos toda esta crueldade parece doentia, até mesmo para o personagem: “A rua está cheia de gente. Digo, dentro da minha cabeça, e às vezes para fora, está todo mundo me devendo!” (FONSECA, 1979, p.166).

Outro acontecimento que tem bastante relevância no conto é o aparecimento de Ana. Uma moça rica, dona de uma beleza singular, o que faria a moça uma perfeita “vítima” do cobrador. Porém isso não ocorre. Desde o início o narrador-personagem parece ter se encantado com ela. Ana é representante da classe alta, mas não é alvo da violência do “cobrador”. O que Ana teria de diferente? Uma característica incomum de Ana em relação às outras personagens do conto é que ela não teme “o cobrador”.

Após conhecer Ana e ouvir dela a confissão de que não tinha medo dele, o cobrador muda seus planos e modifica seu modo de ‘cobrar’. Esta personagem é de suma importância no conto, tendo em vista que Ana ensina ao cobrador outras formas de efetuar sua vingança.

Como podemos observar na análise comparativa dos contos, a temática aborda é a mesma, talvez a brutalidade e a intensidade de tal violência seja até maior na obra de Rubem Fonseca em comparação a produção de Ferréz. No entanto, vale ressaltar que o modo com que essa violência é exposta ao leitor é substancialmente diferente, além de sua posição como sujeito-autor no sistema literário brasileiro também constar de origens distintas. Prova disto pode ser a escolha das vozes atribuídas aos personagens pelos escritores em questão.

O foco narrativo do conto de Rubem Fonseca é o de um narrador-personagem. Pode ser uma estratégia do autor em consolidar um pacto e uma aproximação com o leitor. Como se fosse necessário tornar explícita a participação e a vivência dos fatos expostos no decorrer da narrativa. Aparentemente, o intuito é de uma possível ‘comprovação’ da vivência do narrador-personagem o que poderia gerar uma maior credibilidade ao narrador executor de todas aquelas agressões brutais. Como vemos no trecho: “Dei um tiro no joelho dele. Devia ter matado aquele filho da puta” (FONSECA, 1979, p.166).

 Já a obra contemporânea do escritor Ferréz, intitulada Manual Prático do Ódio, é escrita na terceira pessoa do singular por um narrador observador, ou seja, o narrador não se inclui na narrativa, apenas tem o papel de ‘contar’ o que presenciou para seus leitores. Se observarmos o foco do capítulo aqui destacado, observaremos que o autor ao escolher o narrador em terceira pessoa parece não estar preocupado em ‘convencer’ o leitor do que conta. Como vemos no trecho a seguir: “Armandinho mirava a pistola na cabeça de Èrika e não deixava de achar muito engraçado ver a dona daquele apartamento extremamente luxuoso, com aquela cara, ele notava que assim ela não parecia tão alta…” (FERRÉZ, 2003, p. 191).

Esse paralelo foi realizado para refletirmos sobre o posicionamento dos autores diante de suas narrativas. Será que pelo fato de Ferréz ser do gueto e falar de acontecimentos que possivelmente fazem parte de seu cotidiano, faz com que sua narrativa funcione como uma espécie de testemunho cuja posição de observação garante o pacto com o leitor? Em contrapartida a utilização de um narrador-personagem na obra de Rubem Fonseca é um artifício de aproximação à representação do marginal?

E interessante pensar na sucessão de “conflitos” importantes para a discussão no âmbito dos estudos literários que o boom da literatura marginal provoca.

Tratando de espaços não valorizados socialmente, como a periferia dos grandes centros urbanos, ou os enclaves murados em seu interior, como as prisões, os textos citados como alguns outros vem conseguindo uma visibilidade na mídia, êxito perante parte importante da crítica e reconhecimento dentro do campo literário e cultural, provocando debates sobre sua legitimidade, enquanto expressão de um sujeito social até então sem voz, ou mesmo sobre a possibilidade de uma nova vertente temática e estilística, correspondente à matéria que traduzem. (Pellegrini, 2008, p. 41)

Seria interessante considerarmos a citação de Tânia Pellegrini para refletirmos sobre essa “nova vertente temática e estilística”. A violência e o engajamento social, contidos na maioria das obras marginais contemporâneas são características de uma vertente temática.

O romance Manual Prático do Ódio de Ferréz conta a história de um grupo que planeja um assalto a um banco. O capítulo “Abismo atrai abismo” foi escolhido para comparações com a obra de Rubem Fonseca e inicia-se relatando a extorsão de um delegado a um dos integrantes da quadrilha do roubo. O autor promove neste primeiro momento uma crítica à polícia, pela corrupção. O delegado chega a dizer a Régis, que o que lhe interessava, ou seja, o dinheiro, também era interesse de todos ali. E que o melhor a fazer era ouvir e concordar.

Durante a narrativa de Ferréz há uma constante mudança no foco de observação. Avaliamos tal postura também como artifício de construção narrativa, em que para delimitar diferentes ângulos o escritor opta por marcá-los graficamente por meio de espaços em branco no decorrer de toda a obra.

Após uma dessas mudanças de foco narrativo, é narrado um assalto a um apartamento de luxo. Violência direta a uma família de classe média alta. Como observamos na citação:

Celso estranhou quando Alfredo que estava indo com a cadeira na sua frente soltou um grito e desmaiou. Ao chegar à entrada da sala, rapidamente Celso passou pela cadeira de roda e tomou outro susto quando viu a cena, Armandinho havia desferido vários golpes com o cabo da pistola no rosto de Érika e ela estava com o rosto todos ensanguentado e caída no chão. (FERRÉZ, 2003, p.194)

Esse trecho é resultado da revolta de Armandinho, um dos assaltantes, com a administradora de empresas que está sendo vítima do assalto, pois ela supõe que o assalto tenha sido uma “fita” que a empregada passou. Ou seja, que tenha sido a empregada que forneceu os dados para que o assalto se consumasse. A revolta de Armandinho estava em defender a funcionária de Érika.

 Poderíamos falar da alteridade nas obras literárias marginais contemporâneas, em que uma única voz, tem o intuito de representar toda uma comunidade, dar voz a uma comunidade antes negligenciada. É o que pode simbolizar parte deste assalto, em que observamos a defesa de uma classe excluída. Nestes momentos de violência e crueldade, as classes se igualam: “– Agora fudeu, dona, todo mundo é igual, naum tem patrão, num tem empregada, e se vacilá, vai ta tudo cheio de sangue em menos de segundos, o primeiro a morrer, se tentar algo, é o pivete aí.” (FERRÉZ, 2003, p. 192).

Ferréz, morador da favela, empresta sua voz à comunidade excluída, já Rubem Fonseca é um elemento estranho a essa exclusão, e tenta, a fim de garantir a confiabilidade de sua representação, promover um pacto com seus leitores.

A questão da violência está inegavelmente presente na estrutura narrativa dos dois textos brevemente analisados. É como se a violência estruturasse o ‘fazer’ literário de Ferréz e de Rubem Fonseca. Entretanto, é interessante pensarmos em que nível essa estrutura narrativa é fortalecida ou enfraquecida com a utilização indiscriminada da violência.

Através da breve análise que empreendemos na tentativa de realçar as diferenças e semelhanças entre os dois textos literários destacados, podemos concluir que é relevante o modo como os escritores lidam com a representação da marginalidade. Rubem Fonseca fala em primeira pessoa, tenta avivar uma situação marginalizada, tenta falar de uma esfera a qual não pertence, de um outro que não é definitivamente seu ‘mano’, seu irmão, e para isso cria uma “persona”, na tentativa de criar seu ‘efeito de real’. A posição de Ferréz é totalmente diversa: o autor reivindica o conhecimento da causa, ele próprio, autor marginal, convive com os marginais e o resultado ficcional disso é a exposição dos fatos pelo narrador como testemunha, como observador da violência real. Respaldando por sua condição à margem, o pacto de verossimilhança pode ser perfeitamente reforçado por um narrador em terceira pessoa, meninos, eu vi.

LITERATURA DO INCÔMODO

Retomando nossas discussões acerca do tema podemos detectar com clareza que nossa premissa maior se confirma. Apostamos, pelos inúmeros impasses explorados ao longo de nosso texto, que a literatura marginal (periférica) é um ‘movimento’ presente e perturbador na cena literária contemporânea.

Talvez a maior evidência disso seja o fato de que a maior polêmica provocada pelo surgimento de tais textos gire em torno da pergunta sobre se a produção chamada de literatura marginal se caracteriza como “literária”. No entanto, entendemos que a confirmação ou a refutação a este questionamento pode não ser algo tão simples de delimitar. Richard Freadman e Seumas Miller na obra Re-pensando a Teoria afirmam que:

[…] é preciso deixar claro que embora exista, em nível conceitual, uma distinção a ser traçada […] as fronteiras entre o literário e o não-literário não são nítidas. A maioria dos textos possui uma dimensão literária e uma não-literária, e na prática é muito difícil caracterizar cada texto como (predominantemente) literário ou não-literário, ou isolar todos os elementos literários dos não-literários dentro de qualquer texto específico. (FREADMAN e MILLER 1994, p.254)

Neste sentido, observamos que um mesmo texto tem a possibilidade do “híbrido”, da mistura, de elementos considerados literários ou não. Então, talvez por isso possamos afirmar que o surgimento da literatura marginal cause tanto rebuliço no âmbito da teoria literária: por apostar no hibridismo, no deslizamento, no alargamento das fronteiras do que há pouco tempo era certamente apontado como literatura.

Observar a transição da “figura marginal” no contexto literário brasileiro e promover paralelos entre estes períodos analisados (70 e 90) foi de suma importância para confirmar a premissa do ‘incômodo’ que essa literatura provoca. Muitas diferenças foram detectadas, tanto nos meios de produção, quanto na sociedade e nos próprios produtores desta literatura “marginalizada”. Como já explicitamos, a intenção do “Marginal” contemporâneo é tematizar seu cotidiano violento, colocar em questão a cultura periférica e acima de tudo inscrever na história um grupo antes silenciado, dando-lhe voz própria.

É importante notar que um grande número de escritores envolvidos com a produção ficcional atual são autores nascidos na periferia que enfrentam adversidades, e que despontam em um momento ímpar, fase de deslocamentos, de transição, de reestruturação de valores, forçando a nós que pertencemos ao campo literário, a re-pensar a crítica e a teoria.

Estes autores encontram na literatura uma forma de “inclusão” e tomam este espaço como seu. Parecem pressupor que esta ‘inclusão’ pode ser apenas simbólica por isso reforçam de maneira quase “impositiva” seus ideais. Como podemos observar no seguinte excerto:

 […] o ideal é mudar a fita, quebrar o ciclo da mentira dos “direitos iguais”, da farsa do “todos são livres”, a gente sabe que não é assim […] Sabe duma coisa, o mais louco é que não precisamos de sua legitimação, porque não batemos na porta para alguém abrir, nós arrombamos a porta e entramos. (FERRÉZ, 2005, p.10)

No entanto, estar disposto e/ou saber lidar com estas “novas posturas” também não é uma tarefa tão simples. Re-definir conceitos, padrões de qualidade e valores contemporâneos é necessário, principalmente para a crítica. Afinal, como bem colocou Eagleton “Nesse mundo, o que é centro pode deixar de sê-lo da noite para o dia: nada nem ninguém é permanentemente indispensável”. (EAGLETON, 2005, p.36).

É neste sentido que acreditamos a teoria “envolve relações complexas de tipo sistemático entre inúmeros fatores; e não é facilmente confirmada ou refutada” (CULLER, 1999, p.12) como nos propõe Culler em seu texto “O que é teoria?”. Sendo assim, nesse período de transição e efervescência em que nos encontramos é que a teoria justifica sua tarefa de problematizar seu objeto de análise evitando estabilizá-lo como algo atemporal.

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* Franciele Queiroz da Silva é graduando em Letras, Português, pela Universidade Federal de Uberlândia.

 

[1] A aproximação da nomenclatura ‘marginal’ foi o primeiro impulso para que nos interessássemos pelo movimento dos anos 70 – Poesia Marginal –. No entanto, a partir dessa relação semântica observamos e estabelecemos convergências e divergências entre o movimento dos anos 70 e a produção contemporânea – Literatura Marginal – que contribuíram para melhor entender e caracterizar o panorama atual, sobretudo no que se refere à incidência do termo marginal na prosa, sendo este um dos interesses de nossa análise.

[2] Disponível em: <http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/L/literariedade.htm>, acesso em: 15 de jan. de 2009.

[3] Disponível em: http://www.avatar.ime.uerj.br/cevcl/artigos/Circuitos%20contemporaneos%20do%20literario%20(Italo%20Moriconi).doc> acesso em: 07 de out. de 2008.

[4] Disponível em: <http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2004/03/275292.shtml>, acesso em: 30 de mar. de 2008.

 

Artigo submetido em 27/02/2009 e aprovado em 06/03/2009.