Entre Sonetos e Retalhos

Zilma Gesser Nune

Vitrais

Ernani Rosas

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Cortesia do projeto Autores, obras e acervos literários catarinenses em meio digital do PRONEX – Núcleos de Excelência.

Transcrições do poema Vitrais podem ser acessadas clicando aqui.

 


 

Somos alma do tempo ante a cortina
de um espírito oculto e legendário…
(A. Luso)

O nome do catarinense Ernani Rosas (Desterro, 1886 – Rio de Janeiro, 1955) está aqui posto como foi o seu viver, como poeta. Arquivado por longo tempo, à margem da história da literatura, o escritor promete deixar o seu desterro ou a sua condição de “filho do poeta Oscar Rosas” ou, ainda, de figurar em relações de “outros poetas”, apontados como “figuras menores ou epigonais” [1] e mostrar a sua verdadeira identidade.

Ernani Rosas nada publicou em vida. É recente a descoberta de sua obra inédita, que tem, aos poucos, sido publicada. [2]

A Editora da UFSC publicou em 2008 o livro Cidade do ócio: entre sonetos e retalhos , com a maior coletânea de poemas de Ernani Rosas, contudo, ainda restam manuscritos inéditos. Importante trabalho de divulgação desse autor vem sendo desenvolvido pelo projeto Autores, obras e acervos literários catarinenses em meio digital , PRONEX/UFSC, Coordenado pelo Professor Alckmar Luiz dos Santos. Além de outras ações, o projeto propõe a digitalização e a colocação no Portal Catarina de uma série de raros periódicos literários catarinenses ( Terra, Sul, Litoral e O Moleque ), além da obra de importantes autores (Cruz e Sousa, Luís Delfino, Ernani Rosas , Araújo Figueredo, Virgílio Várzea, Horácio Nunes Pires e Duarte Schutel). E todas essas informações também estarão totalmente integradas à biblioteca digital do NUPILL (Núcleo de Pesquisas em Informática, Linguística e Literatura).

Para revelarmos o material de Ernani Rosas, foi necessário um retorno ao passado para resgatar parte de um patrimônio cultural que estava sujeito a desaparecer. O poeta esteve por muito tempo entre muitos outros seres encaixotados, dados ao desterro dos arquivos na Academia Catarinense de Letras. Oculta, também, foi sua existência, que em poucas linhas daria um capítulo à parte “Das negativas”.

O que existe de concreto, e são fatos marcados e datados por fontes documentais, é possível ser reunido em uma cronologia que comporta apenas dez itens:

  • 1886 – A 31 de março nasce Ernani Salomão Rosas Ribeiro d’Almeida, no bairro Saco dos Limões, na Capital Catarinense, sendo o primeiro filho do casal Oscar Rosas e Julieta Escobar Rosas.
  • 1889 – A família de Ernani Rosas transfere-se para o Rio de Janeiro.
  • 1904 – Aparece o primeiro poema datado, entre os autógrafos assinados pelo poeta: intitulado “Uma mulher perdida”.
  • 1912 – 1914 – Luís de Montalvor, poeta português, esteve no Brasil e manteve contato com Ernani.
  • 1915 – O poeta é convidado a colaborar na Revista Orpheu , de Portugal, o que nunca se efetivou.
  • 1917 – Lançamento, entre amigos, no Rio de Janeiro, da plaquete “ Certa lenda numa tarde”.
  • 1918 – Lançamento, restrito, da plaquete “ Poema do ópio ”, no Rio de Janeiro.
  • 1925 – Morre seu pai, passando a família por dificuldades financeiras.
  • 1953 – Última data registrada entre os poemas autógrafos do poeta.
  • 1955 – Num humilde sítio em Nova Iguaçu, morando em companhia da irmã Berenice e dos sobrinhos, morre Ernani Rosas vitimado por uma síncope cardíaca.

Até mesmo as imagens do poeta são raras. Uma das fotos mais conhecidas é do poeta quando jovem e pertence ao acervo do Museu/Arquivo de Poesia Manuscrita.

No Anuário Catarinense de 1956, aparece uma foto de Ernani Rosas ao lado do sobrinho, Oscar Rosas Neto, filho de sua irmã mais nova, Berenice (ver ilustração acima).

O nome do poeta é certo que dentro em breve promete deixar o seu “desterro” literário, ganhando espaço e corpo através da edição da sua obra. O que resta de Ernani Rosas é o sujeito com existência textual, projetado pelo poeta na sua escritura.

O nome do “ser de carne e osso”, o “filho de Oscar Rosas”, o “amigo de Andrade Muricy”, esse parece destinado a se manter sob a guarda de algumas rubricas específicas, pelas quais se distribui o escasso material biográfico de Ernani.

Andrade Muricy, em seu Movimento simbolista brasileiro , se apresenta como o “biógrafo amistoso e desenvolto” de Ernani Rosas. Os “biografemas” revelados pelo crítico, ponto de referência do poeta, são de caráter totalmente encomiástico, “um canto descontínuo de amabilidades”, diria Barthes, cujas rubricas são especificamente relacionadas ao poeta e nada em relação ao homem, dentre as quais pode-se destacar: “é um simbolista (…) um dos últimos da espécie hoje em dia e dos mais singulares e significativos. (…) de precedência divinatória (…) encarnação perfeita do poeta simbolista do começo do século”, entre outros elogios.

O seu primeiro poema datado é de 1904, e há o registro de apenas um no decorrer desse ano, quando o poeta contaria dezoito anos de idade. Mas a sua produção mais expressiva inicia-se, efetivamente, a partir de 1911 com maior concentração de textos nos anos 40. O que se constata é que, se o poeta manifesta cedo a sua vocação, não é tão cedo assim que a revela (ao papel), e menos ainda ao público, uma vez que sua obra ficou conhecida através de duas plaquetes e um folheto, lançados entre os amigos no Rio de Janeiro, em 1917 e 1918. Outro fato que consideram importante e destacam esses relatos biográficos, é o contato que o poeta mantinha, por intermédio de Luís de Montalvor, com a poesia lusitana, fato este que teria provocado transformações na sua poesia. O contato com a poesia portuguesa realmente foi decisivo para Ernani, fato esse registrado por Cleonice Berardinelli. A pesquisadora aponta uma intertextualidade marcante entre a poesia de Ernani e a de Sá-Carneiro, indicando “numerosas consonâncias” entre os dois poetas e a provável influência do escritor português na poesia do brasileiro. Essa mesma influência é confirmada por Augusto de Campos, que enfatiza as ousadias da linguagem poética dos dois escritores. Além disso, a amizade com Luís de Montalvor, que esteve no Brasil entre 1912 e 1914, é atestada no registro de uma carta publicada no Anuário catarinense de 1956, datada de março de 1915 e o escritor reclama:

É a segunda vez que te escrevo e sem obter resposta. Admiro muito que tão rapidamente te esquecesses de mim. (…) Como não tivesse tido resposta a essa carta, mando esta por ensaio ao cuidado de Ronald, e logo que tu me escrevas, enviar-te-ei amiudadas vezes bastantes notícias minhas e literárias. (…) Vais ver logo o Orpheu , este sonho enorme que vamos realizar e em que tu tomarás parte a seu tempo.

Ao que tudo indica, também esta carta não obteve resposta, uma vez que não há registro de qualquer outra correspondência a ele endereçada. A admiração ao amigo, no entanto, era grande e flagrante, já que Afonso Várzea observa, em uma de suas visitas ao poeta:

Em roda do catre rondam cães amigos, que avisam da entrada de estranhos no terreiro, e a estante de estudante está recheada de manuscritos, cuidadosamente dobrados e amarrados, e dos livros que alimentam as horas longas, dado especial destaque a Luís de Montalvor, a quem acrescenta sempre “Chefe dos Poetas do Orfeu ”.

Todos os biógrafos de Ernani Rosas destacam essa relação com a poesia portuguesa, como também há quem aponte nesses textos traços precursores do supra-realismo e do pré-modernismo.

Relativamente à questão autoral, há um outro dado que merece destaque. Ernani Rosas, não era só ele, porque era também Ritus da Cruz, Narciso Caspio, Antonio Luso, Narciso Luso e Alda Trigueiros, seus pseudônimos.

É preciso, então, entender a questão do “outro nome” na poesia de Ernani Rosas. Esse desdobramento pode ser significativo quando nos revela um escritor de dicção portuguesa ao assinar como Luso e, ainda, a possibilidade inusitada de dar contornos arredondados à feminina forma da poesia de Alda Trigueiros.

De outro lado, desfaz esse jogo de ocultamento ao revelar seu nome, entre parênteses, ao lado do pseudônimo. No poema abaixo, pode-se observar as assinaturas sobrepostas do autor.

Tua presença saudosa,
brilha em minha nostalgia:
como uma noute distante,
oculta na fantasia!…
Narciso Caspio (E. Rosas.)

Outro exemplo curioso pode ser registrado no seguinte poema. E. Rosas assina o texto e depois, as alterações, trazem o nome de Antonio Luso:

Tens o olhar das mulher’s da Galiléia!
a expressão de piedade e poesia,
Aparição de errante Lua-cheia!…Rio 941
E. Rosasp’las sete-espadas da su’alma-cheia!
De santa a minorar a mágoa alheia
Antonio Luso

A máscara é retirada também em situações em que o texto é escrito e assinado por um determinado pseudônimo e, ao ser reescrito, a versão do mesmo texto aparece com a assinatura de “Ernani Rosas”. Observe-se o seguinte exemplo: o poema, assinado por “N. Luso”, apresenta-se reescrito, sofrendo algumas alterações das quais a mais inusitada é a do nome do autor:

Da “Vida humana” para o Caos profundo…
Ante a geena de uma noute cava,
Que há de tragar o Lodo deste Mundo!…945 Rio
N. Luso
[Do Ser humano] para o |caos| profundo,
|ante| a geena de uma noute cava,
Que há de tragar [a lama] deste |mundo|!…Rio 945
[E. Rosas]

Outro dado interessante e que contribuiu para a ocultação do nome de Ernani Rosas foi a presença sempre importante do nome do pai, Oscar Rosas, seja em Santa Catarina, seja no Rio de Janeiro. A sombra do pai em certos momentos ofuscou o brilho do filho, o nome do pai quase enclausurou a obra do filho. Na trajetória dos manuscritos de Ernani do Rio de Janeiro para a sua terra natal, percebe-se o impacto inicial dos pesquisadores ao se depararem com um material que julgavam de Oscar Rosas, mas que era “simplesmente de um filho dele que também fazia poesia”. O pesquisador Iaponan Soares revela que uma caixa com poesias de Ernani Rosas teria chegado ao Estado na expectativa de que fossem de Oscar Rosas, pai de Ernani e patrono de uma das cadeiras da Academia Catarinense de Letras. Quando se percebeu que os poemas não eram de Oscar, a caixa foi guardada e ficou esquecida por um bom tempo até ser redescoberta pelo próprio Prof. Iaponan que questiona: “Sorte ou trama do destino?”.

A obra merece ser lida pelo valor literário que tem em si mesma e o autor, não por estar o seu nome atrelado à sua origem catarinense ou pelo estigma do sobrenome do pai, mas por aquilo que escreveu. Porém, quanto aos dois nomes (pai e filho), as fronteiras não parecem bem delimitadas no que concerne à especificidade de cada um dos Rosas. Se “o fantasma do escritor” permanece hoje como um vivant dentro da sua escritura, no caso de Ernani Rosas parece que além de seu próprio espectro, encontramos a sombra do pai marcando fortemente a sua história. Esse pai forte está representado no poema que Ernani dedica a Oscar Rosas:

Para Oscar Rosas

Atlântida dos meus quatorze ramos,
Linda Nau, que encalhaste nestes mares,
Quanta saudade tenho dos palmares,
Onde cantam sabiás e gaturamos!

Como me exulta a tua claridade
E a asa do teu sol pestanejante
Onde já me abrigaste, tiritante,
A desalmada noite da saudade!

Marítimo jardim d’Além cismares,
A cantar e a florir, de fonte em fonte,
Recordas um rosal, sonhando aos luares…

Para os insetos, para o Sol nascente,
Quando as cínzeas gaipavas no horizonte,
Fecham um colar de asas no ocidente.

Ritus da Cruz

Quanto à existência de Ernani, poderíamos dizer que rastro é a palavra exata para defini-la. Rastro significa um registro de passagem que existe apenas como vestígio, indício ou sinal.

Quanto à caracterização do acervo, os poemas avulsos, são manuscritos, poucos são os datiloscritos, registrados em papel com ou sem pauta, recortados em tamanhos diversos e nas mais variadas formas: folhas destacadas de blocos ou cadernetas, tiras recortadas de papel almaço ou pedaços muito pequenos de papel, alguns escritos somente na frente, outros, na frente e no verso.

Não há uniformidade em nenhum aspecto, as tintas se misturam, formando um mosaico: diversas tonalidades de azul e vermelho, verde e preto. Além disso, o poeta utiliza-se do lápis e, por diversas vezes, mistura cores em um mesmo poema, ou faz alterações com cores diferentes. Há uma parte do acervo constituída de plaquetes, que já foram objeto de estudo e recuperação de outros pesquisadores.

Quanto à grafia, há uma nuança de formas que vai da letra desenhada ao rabisco quase ilegível. A grafia de maior recorrência é a que se registra no seguinte manuscrito:

 Sonho Extinto

A Galera do Azul partiu, era sol-pôr….
Levando essa saudade de voltar,
Que a Tarde ao Longe, como rosa em flor,
Recolhia-se ao Luar a recordar!…

Passavas água-morta entre Pinheiros,
Com a renúncia na Sombra dos Pinhais:
Por noite d’Além-Túmulo e nevoeiros,
De Saudosa, na mágoa de teus Ais!…

919.

Nota: Na parte inferior da folha há o início do poema “A Mágoa ao Longe”, que continua em outra folha. O poema é manuscrito a tinta azul, em papel sem pauta, medindo 16 x 23 cm. A pontuação do final do verso 1 foi alterada de [!] para [….], e do final do verso 6 de [!] para [:]. A data foi alterada de [914] para [919]

O legado do poeta foi silencioso e sem pretensões. Em meio a todos os seus manuscritos nenhuma palavra que denote vontade de publicar ou lamentos por isso não ter ocorrido. Ao final de sua vida talvez esboce um certo sentimento de efemeridade, pois escreve em um de seus manuscritos inéditos:

idade do Ócio seria um livro se Eu fosse
maismoço! mas, como ‘stou velho não
passará de um cântico!

 

[1] As antologias de poetas catarinenses, bem como os dicionários literários, indicam sempre a mesma fonte: MURICY, Andrade. Panorama do movimento simbolista brasileiro . Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1952, V.2, p.157. Nas antologias, o nome de Ernani Rosas aparece em listas de “outros poetas”, “poetas menores”, “figuras epigonais” ou tendo como referência o nome de seu pai – Oscar Rosas – reconhecido poeta catarinense.

[2] Em 1989, Iaponan Soares e Danila Varella organizaram a publicação de Poesias de Ernani Rosas, pela Fundação Catarinense de Cultura, com transcrição de 88 poemas. Ana Lice Brancher transcreveu 147 poemas em sua dissertação de Mestrado “De sedas, penumbras, volúpias – a poética êxul de Ernani Rosas”, UFSC, 1993. Em 1998 sai a publicação dessa dissertação, pela EdUFSC, intitulada História do gosto e outros poemas. Em minha dissertação de mestrado, acima citada, transcrevi 206 textos do poeta.